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DIALÉTICA DO FEITOR1 Este artigo é resultado de pesquisa financiada pela Fapesp (Processo 2011/50221-8).

Dialectics of the Overseer

RESUMO

Este artigo analisa a forma como a mudança social e a reprodução das desigualdades são representadas no romance Vencidos e degenerados (1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. ), do escritor negro maranhense José do Nascimento Moraes (1882-1958). Confere-se destaque ao modo como a figura do feitor, mais do que um tipo histórico ou social reconhecível, sintetiza as relações de força que articulavam raça, trabalho e poder no pós-abolição.

PALAVRAS-CHAVE:
raça; pós-abolição; intelectuais negros; literatura; Maranhão

ABSTRACT

This article analyzes how social change and the reproduction of inequalities are represented in the novel Vencidos e degenerados (1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. ) by the black writer from Maranhão José do Nascimento Moraes (1882-1958). Highlights are given to the way in which the figure of the overseer, more than a recognizable historical or social type, synthesizes the power relations that articulated race, work and power in the post-abolition period.

KEYWORDS:
race; post-abolition; black intelectuals; literature; Maranhão

Quem vos disse, senhores, que pareço em desespero com qualquer rapaz? Se me amargo a contemplar-me, sou a luta entre o ser nada e o ser demais… Oswaldo de Camargo, 15 poemas negros (1961)

Mas o antigo escravo quer fazer-se reconhecer.

Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (1952)

Na primeira semana de abril de 1915 começou a circular, na cidade de São Luís do Maranhão, o romance Vencidos e degenerados, do escritor negro José do Nascimento Moraes (1882-1958), que havia pouco completara 33 anos. Conforme noticiou um dos maiores jornais da capital maranhense: “Ofertado pelo respectivo autor, recebemos um exemplar dos Vencidos e degenerados, romance da lavra do sr. Nascimento Morais [sic]. O livro sobre o qual com mais vagar diremos alguma coisa acha-se à venda na livraria Ramos de Almeida” (A Pacotilha, 6/4/1915, p. 1). Entretanto, a promessa da resenha crítica do livro não se cumpriu e, durante toda a segunda metade daquela década, o silêncio da imprensa sobre uma obra que parecia talhada para gerar polêmica foi tão estranho quanto geral.

O romance consiste numa interpretação das consequências sociais e políticas do fim da escravidão na periferia do Brasil. O país que emerge daquelas páginas é o das cidades provincianas e aristocráticas do norte agrário, ainda embaraçadas e ressentidas com a derrocada do mundo dos senhores. Uma paisagem social abafada pelas lutas materiais e simbólicas - entre velhos fidalgos, comerciantes portugueses, caixeiros arrivistas, libertos, mulatos, moleques - em torno dos significados do “trabalho livre”. Uma sociedade escandalizada pelos casos públicos de amor e sexo entre homens negros e mulheres brancas, mas acostumada com a bastardia comum dos mestiços sem pai embalados por antigas escravas. Personagens e ações organizados numa São Luís impregnada pelo sentimento de decadência e pelas frustrações de uma época na qual os direitos conquistados com a abolição da escravidão foram limitados pela reestruturação de hierarquias econômicas e sociais no novo ambiente político da recém-proclamada República.

Vencidos e degenerados torna-se ainda mais expressivo como documento quando se tem em vista que a análise sobre essa fase decisiva na formação da sociedade brasileira moderna lida com o problema da escassez de narrativas e testemunhos orais ou escritos elaborados por negros livres ou pessoas escravizadas que conviveram com o fim do cativeiro (Schwartz, 2005Schwartz, Stuart. “Prefácio”. In: Rios, Ana Lugao; Mattos, Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005., p. 9). A produção literária e artística de intelectuais negros é uma alternativa para lidar com esse problema (Gato, 2018b______. “Ninguém quer ser um treze de maio: raça, abolição e identidade nacional nos contos de Astolfo Marques (1903-1907)”. Novos Estudos Cebrap, v. 37, n. 1, 2018b, pp. 117-40.; Magalhães Pinto, 2018Magalhães Pinto, Ana Flavia. Escritos da liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp , 2018.; Machado, 2018Machado, Maria Helena P. T. “Maria Firmina dos Reis: inviabilidade e presença de uma romancista negra no Brasil dos séculos XIX ao XX”. In: Reis, Maria Firmina dos. Úrsula. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2018.; Schwarcz, 2017______. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.; Medeiros da Silva, 2017Medeiros da Silva, Mario Augusto. “Rastros do Cisne Preto: Lino Guedes, um escritor negro pelos jornais (1913-1969)”. Estudos Históricos, v. 30, n. 62, 2017, pp. 597-622.; Chalhoub, 2016Chalhoub, Sidney. “Escravidão e racismo em obras de Machado de Assis”. In: Chalhoub, Sidney; Pinto, Ana Flávia Magalhães (orgs.). Pensadores negros - pensadoras negras: Brasil, séculos XIX e XX. Cruz das Almas/Belo Horizonte: EdUFRB/Fino Traço, 2016.; Azevedo, 1998Azevedo, Elciene. “‘Lá vai o verso’: Luiz Gama e as primeiras trovas burlescas de Getulino”. In: Chalhoub, Sidney; Pereira, Leonardo (orgs.). História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.). Este artigo visa enfrentar essa lacuna abordando o modo como Nascimento Moraes interpretou a transformação de uma sociedade imperial cindida entre cidadãos e escravos numa república dividida entre brancos e negros, com destaque para fatores como a desvalorização do trabalho, a concentração oligárquica do poder e a intensificação dos processos de racialização dos grupos sociais.

Utilizo o conceito de racialização para designar a constituição de fronteiras sociais por meio da imposição de classificações de grupos - brancos, mestiços, mulatos, morenos, negros, pretos etc. - que forjam a hierarquia racial remetendo a características físicas e/ou culturais consideradas negativas, supostamente inerentes, e usualmente imaginadas como hereditárias e naturais (Miles; Brown, 2003Miles, Robert; Brown, Malcolm. Racism. Londres/Nova York: Routledge, 2003., p. 100; Guimarães, 2016Guimarães, Antonio Sérgio. “Formações nacionais de classe e raça”. Tempo Social, v. 28, n. 2, 2016, pp. 161-82.; Silvério, 2013Silvério, Valter Roberto. “Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira”. In: Bonelli, Maria da Glória; Landa, Martha Diaz Villegas de (orgs.). Sociologia e mudança social no Brasil e na Argentina. São Carlos: Compacta, 2013.). Uma das características do lento processo de emancipação que culminou na abolição foi intensificar a racialização dos critérios de distinção na sociedade brasileira (Albuquerque, 2009Albuquerque, Wlamyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.; Mattos, 2009Mattos, Hebe. “Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista”. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial, v. III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.). No Maranhão, a existência de uma ampla camada de pessoas livres categorizadas como “pardos”, “pretos”, “caboclos” desde meados do século XIX valorizou o uso da nomenclatura das cores, típicas do escravismo, para controlar e subjugar homens e mulheres que viviam fora do cativeiro, dado que alterou e ampliou os significados culturais da cor (Gato, 2019______. “Raça e cidadania no pós-abolição maranhense (1888-1889)”. Afro-Ásia, v. 59, 2019, pp. 235-74.). No pós-abolição, a persistência dessas categorizações de grupo não só legitimava a manutenção da cultura da escravidão nas relações de trabalho e de sociabilidade, como explicitava a reclassificação de uma gente diferenciada no tocante ao acesso aos direitos na sociedade imperial - homens e mulheres de cor nascidos livres, alforriados, crianças de ventre livre, e os treze de maio2 2 Termo de época utilizado para se referir às pessoas libertadas pelo Decreto de Abolição, em 13 de maio de 1888. - em um grupo racial (Albuquerque, 2010______. “A vala comum da ‘raça emancipada’: abolição e racialização no Brasil”. História Social, n. 19, 2010, pp. 91-108., p. 104; Gato, 2018b______. “Ninguém quer ser um treze de maio: raça, abolição e identidade nacional nos contos de Astolfo Marques (1903-1907)”. Novos Estudos Cebrap, v. 37, n. 1, 2018b, pp. 117-40., p. 134).

A ficção se debruça sobre mudanças sociais e políticas cruciais na vida do autor e de seus familiares. Nascimento Moraes foi liberto do cativeiro quando nasceu, em 19 de março de 1882, devido à chamada Lei do Ventre Livre (1871), que tornava compulsória a alforria dos filhos de pessoas escravizadas. Como Raimundo Nascimento Moraes (1878-1915), seu irmão mais velho, era filho do sapateiro liberto Manuel do Nascimento Moraes e da escrava Maria Catarina Vitória, pais que investiram seus parcos recursos na educação de seus filhos como forma de emancipação. Quando menino, Nascimento Moraes frequentou instituições privadas de ensino na cidade de São Luís, entre as quais se destacava o então conceituado Seminário das Mercês.3 3 Dados sobre a libertação de Nascimento Moraes e sua escolarização na infância encontram-se em Cruz (2017). Mais tarde, seguindo os passos do irmão, cursou, de 1895 a 1899, o secundário no Liceu Maranhense. A conclusão do curso secundário foi o limite de sua formação escolar. A impossibilidade financeira de cursar engenharia no Rio de Janeiro foi uma frustração de sua juventude (O Maranhão, 12/12/1907, p. 2).

O destaque no colégio e a admiração de alguns colegas e professores influentes na imprensa lhe permitiram iniciar carreira no jornalismo e dedicar-se ao ensino particular. A dedicação profissional ao ensino privado e o engajamento em jornais de oposição como A Campanha (1902-04), A Imprensa (1906-07), A Pátria (1908) e Correio da Tarde (1909-11) constituem as principais características da atuação pública de Nascimento Moraes na primeira década do século xx.4 4 Uma apresentação pormenorizada da atuação pública de Nascimento Moraes nos anos 1900-1910 consta em Gomes (2015). Em 1915, o autor venceu o concurso para professor de geografia no Liceu Maranhense, posição que lhe proporcionou certa estabilidade financeira e prestígio intelectual. Mas a consagração literária definitiva só veio quando ingressou na Academia Maranhense de Letras, em 1938.

O romance, portanto, foi escrito num período de insegurança profissional e intelectual na vida de Nascimento Moraes.5 5 Conforme as indicações de Nascimento Moraes na apresentação do livro, é provável que o romance tenha sido elaborado entre 1900, quando inicia uma colaboração mais sistemática em jornais e revistas literárias, e o fim de 1909, quando entrega o manuscrito à tipografia Ramos de Almeida (Diário do Maranhão, 17/11/1909, p. 1): “Já um pouco tarde vem este livro à luz da publicidade. Escrevi-o nos primeiros anos de vida literária, quando me rasgavam as primeiras linhas do horizonte, quando sentia as primeiras impressões. Quantos anos passados! […] Mas o livro sai assim mesmo. Não lhe altero uma linha sequer. Será sempre o meu ponto de referência” (Moraes, 1915, p. 1). As polêmicas em que o escritor se envolveu, ao longo da escrita do livro, contra políticos e literatos, conflitos que não raro descambavam em agressões raciais, revelam que o escritor se percebia como uma pessoa inteligente e preparada vivendo num ambiente provinciano, em que suas credenciais escolares eram desvalorizadas pelo clientelismo político e pelo preconceito racial. O romance focaliza tensões dessa natureza ao descrever os impasses de reformadores sociais negros e mestiços sob a ameaça constante de silenciamento e marginalização no debate público, dado que torna explícito ao leitor o projeto de uma literatura militante. Literatura como missão de questionar a falta de dinamismo social, as minguadas oportunidades educacionais para a gente comum, a preferência pelos imigrantes portugueses no comércio, a subordinação dos intelectuais à oligarquia regional, o privilégio das chamadas famílias tradicionais no comando do estado. 6 6 Ver o capítulo “Literatura e ação pública”, em Sevcenko (2003). A imaginação do Brasil que assim se revela é aquela que também encontramos, guardadas as devidas diferenças, em intelectuais negros como André Rebouças, Cruz e Souza e Lima Barreto, que “recusaram, em comum, a naturalização dos fatos, a adesão a uma ética social utilitária e a acomodação intelectual frente a uma representação homogênea do mundo - tônicas daquela nova civilização que se afirmava” (Carvalho, 2017Carvalho, Maria Alice Rezende de. “Três pretos tristes: André Rebouças, Cruz e Sousa e Lima Barreto”. Topoi, v. 18, n. 34, 2017, pp. 6-22., p. 20).

Vencidos e degenerados pode ser divido em duas partes. A primeira aborda o conjunto de expectativas de modernização política e social impulsionado pela abolição, bem como as frustrações com o formalismo da liberdade conquistada nas primeiras duas décadas do regime republicano. Nesse momento, é-nos apresentada a primeira leva de personagens importantes: abolicionistas republicanos como João Olivier e o professor Carlos Bento, o português João Machado, além de pessoas negras com estatutos diferenciados, como o sapateiro livre Olympio, o capanga alforriado Daniel Aranha e os “treze de maio” Andreza Vidal e Zé Catraia. A segunda parte do romance trata da clivagem racial da cidadania por meio dos desafios enfrentados por um jovem negro culto e educado no ambiente provinciano de São Luís: o personagem Claudio Olivier, filho adotivo do jornalista mestiço de mesmo sobrenome e cujos pais biológicos são Andreza Vidal e Daniel Aranha. Muito do romance, nessa segunda parte, passa-se na roda de boêmios organizada pelo ex-escravo João da Moda, roda em que Claudio inicia um caso amoroso com Armênia Magalhães, herdeira de uma família tradicional em decadência. O personagem, subentende-se, é um “ventre livre”, um “ingênuo”, posto que sua mãe foi libertada pelo decreto de abolição quando Claudio já contava oito anos de idade. Noutras palavras, o autor situou a maioria dos personagens centrais em seu próprio grupo social.

Meu argumento é que a transposição simbólica dessa perspectiva na composição do romance é flagrante na forma como a mudança social e a reprodução da desigualdade são imaginadas em Vencidos e degenerados. Esse aspecto é manifesto na caracterização da posição social dos personagens e sua trajetória de vida antes e depois da abolição, na representação das clivagens raciais no espaço urbano de São Luís nas primeiras décadas republicanas, na trama das relações de parentesco e sociabilidade entre os personagens, bem como na descrição ficcional dos obstáculos raciais para ascensão de negros e mestiços educacionalmente aptos para posições sociais de mando e prestígio. Revela-se de maneira ainda mais intensa na forma como o curso da história e a experiência social do tempo são representados na narrativa: a permanente sensação dos personagens negros e dos abolicionistas republicanos de que pouca coisa mudou para melhor, a despeito da transformação que atravessou o país. Esse sentimento, que nos enovela ao longo de todo o romance, é condensado numa passagem pequena, porém decisiva a respeito da figura do feitor como síntese das relações de força que articulavam raça, trabalho e poder no pós-abolição.

AS DUAS FACES DO FEITOR

Quando folheamos a primeira edição de Vencidos e degenerados, um erro de datas nos chama a atenção. Na capa, o ano de publicação é assinalado corretamente como 1915. Entretanto, na folha de rosto, consta 1910. O detalhe salta aos olhos em razão de algumas referências ao livro na imprensa da cidade de São Luís bem antes da publicação. Uma nota do jornal Diário do Maranhão de 17 de dezembro de 1909 informava a entrega do romance à gráfica. Sete meses depois, uma nova menção ao livro apareceu no vespertino Correio da Tarde (30/7/1910, p. 1) e indicava que o livro saía da gráfica. Conforme sugere a nota, o romance já estava pronto para impressão em meados de 1910. Outra referência ao livro, datada de agosto do mesmo ano, corrobora essa asserção.

E você, ó cretino, que nem ao menos teve coragem de mandar à impressão aquela choldra intitulada Vencidos e degenerados, que as suas formigas tanto apregoavam?

Vencido tem sido você por mim; e degenerado é, porque em vez de estar na Escola de Aprendizes Artífices, aprendendo a ser sapateiro, mete-se a discutir com branco.

Seja menos asno, ó negro sórdido!

E é uma sorna da sua ordem que se diz professor! (A Pacotilha, 10/8/1910, p. 3)7 7 Esse virulento excerto pertence a um conjunto de mais de vinte artigos anônimos contra o autor que foram publicados entre julho e agosto de 1910 nos dois jornais de maior circulação da capital maranhense, A Pacotilha e Diário do Maranhão. Para uma análise dessa polêmica, ver: Cardoso (2013); Cruz (2016).

Essas referências ao livro, somadas ao erro contido na folha de rosto, permitem inferir que o manuscrito estava finalizado cinco anos antes de sua efetiva publicação, num período em que Nascimento Moraes enfrentava agressões de cunho racial na imprensa de São Luís. Na última edição do romance há um depoimento do filho do editor de Moraes que nos ajuda a compreender a demora para a publicação: “Criança ainda, lembro-me de ter ajudado a dobrar e colecionar os cadernos de Vencidos e degenerados, quando se encontrava em fase de encadernação. Em virtude do acúmulo de serviço e da pobreza de recursos técnicos da época, o livro demorou mais de dois anos para sair pronto” (Ferreira, 2000Ferreira, Humberto Ramos de Almeida Jansen. “Dois depoimentos”. In: Moraes, José do Nascimento. Vencidos e degenerados. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000., p. 18). Aos problemas técnicos e financeiros da editora, no entanto, podem ter se somado razões de ordem política e racial. Note-se, entre os insultos e provocações citados acima, a alusão à falta de “coragem” do escritor para publicar seu livro. Uma das passagens mais humilhantes do trecho acima é a menção ferina ao ofício de sapateiro, ocupação do pai do escritor, e que atacava fundo o senso de inadequação e desconforto com as origens sociais e as aspirações profissionais e intelectuais, flagrante nas maneiras, memórias e registros dos negros livres e escolarizados nascidos no século XIX (Spitzer, 2001Spitzer, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental (1780-1945). Rio de Janeiro: EdUerj, 2001.; Schwarcz, 2017______. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.).


Capa de Vencidos e degenerados com data de 1915.


Folha de rosto de Vencidos e degenerados com data de 1910.

As dificuldades que atravancaram a publicação do livro são importantes para a leitura do texto, pois nele o projeto de uma literatura militante, empenhada em ser o registro crítico de uma época, é particularmente acentuado na forma do romance, graças a um recurso criativo mobilizado pelo autor. Em paralelo à história dos personagens, o leitor acompanha os impasses da escrita e publicação de um opúsculo intitulado Panfleto: síntese política e social. O texto é escrito pelo velho Bento, professor ilustrado e poliglota, abolicionista e republicano de velha cepa, um dos responsáveis pela formação política e intelectual do personagem central. Seu radicalismo o havia “impossibilitado de trabalhar com os outrora liberais e conservadores. Afastado da imprensa, […] vivia a lecionar particularmente. O que ganhava, porém, era tão pouco, que lhe não dava para meio mês de despesas. Carlos Bento com todo o seu saber e fama vivia em quase completa miséria” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 52). Assim descrito, o personagem tipifica o lugar do intelectual marginalizado na cidade de São Luís e condensa os principais medos e fantasmas dos literatos na Primeira República.

A maneira como o opúsculo é apresentado ao leitor ratifica sua relevância na composição do romance. A primeira parte do manuscrito aparece logo depois que o narrador descreve os dilemas vivenciados pelos personagens negros que conquistaram a liberdade na abolição, bem como as frustrações daqueles que sonharam com uma “república que vinha fazer do preto cidadão” (idem, p. 72). O panfleto denuncia que o tradicionalismo dos fidalgos da terra e a ausência de limites entre a coisa pública e a esfera privada intensificaram a crise econômica do estado no pós-abolição. De forma análoga, a parte final do manuscrito, sobre os mecanismos de poder que desvalorizam o mundo do trabalho e reforçam o preconceito racial, é-nos dada a ler somente quando estamos cientes dos obstáculos enfrentados por Claudio Olivier. Nascimento Moraes fez das coerções políticas que mediavam a expressão pública dos intelectuais nas primeiras décadas do regime republicano um princípio de organização formal de seu romance. O processo de escritura do opúsculo ao longo do romance possui um rico efeito de metalinguagem por meio do qual o próprio romance pode ser lido como um panfleto de síntese política e social.

Vale observar que a forma e o teor do opúsculo não destoam dos artigos de Nascimento Moraes publicados nos vespertinos de São Luís e revelam a importância da linguagem da imprensa na organização da narrativa. Seu realismo, os diagnósticos políticos sempre em busca da polêmica, o ataque desabrido a tipos reconhecíveis no meio social, a linguagem direta e ferina, a denúncia e seu tom, o autor deve à página de jornal. Algumas avaliações sobre o trabalho do escritor costumam deplorar e inferir que seu gosto diário pela polêmica jornalística lhe tirou o tempo necessário a uma grande obra artística. 8 8 Esse tipo de leitura é flagrante em Machado (1982), p. 7. Justo o contrário: foi precisamente essa prática que lhe deu ferramentas para escrever seu único romance.

Nos primeiros parágrafos do opúsculo, o tema é o contraste anômalo entre a abundância de recursos naturais, as boas condições do solo e o minguado desenvolvimento do estado; contradição aguçada pelo monopólio dos cargos públicos por membros das famílias tradicionais e funcionários públicos subservientes à oligarquia regional. Os quadros competentes seriam alvos do “indiferentismo esmagador dos homens da governança, pelos óbices que entravam as forças ativas de toda a coletividade, e o desprezo que lhe voltam, igual ao cuidado que egoisticamente se dispensam e aos amigos da grei, beneficiando-os” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 58). A indignação contida no panfleto é também motivada pelo desprezo sentido por homens de letras sem prestígio em face dos mandatários locais e para os quais a ausência de limites entre o público e o privado estaria na raiz da falência do Estado:

Verdade incontestável é, certamente, que muitos não conhecem o ponto onde acaba o partidário e começa o político e o patriota; mas é fato também que alguns, tendo pleno conhecimento de tudo, não trepidam, se bem que a consciência lhes censure os atos, em enveredar por escabrosas trilhas, sordidamente subjugados à canga inconfessável da cobiça, de mal interpretada prática de serviços pessoais que se estriba em dar propinas aos amigos e correligionários, sem troca de serviços reais ao Estado, como se o erário público fosse um cofre particular de que seu dono se pudesse dispor à vontade para satisfazer a vaidade, as pretensões, os desejos, e o bem-estar dos eleitos da amizade, na hipótese de ser esse suposto dono um anfitrião de contrapeso e medida. (idem, p. 59)

A questão do favorecimento ilícito, da repartição do bem público entre os eleitos da amizade ou da família é o lugar-comum da crítica do romance oitocentista à realidade política do país. Nos termos de Roberto Schwarz, “sendo mais simpático que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele [no favor] sua interpretação do Brasil, involuntariamente, disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção” (2000Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 16). O problema da oclusão da violência do cativeiro comparece na bela análise de Antonio Candido sobre o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Trata-se de uma obra em que a transposição artística da visão do setor mediano dos homens livres brancos da primeira metade do século XIX é realizada pela supressão, na narrativa, da experiência social das pessoas escravizadas e do universo senhorial dos grupos dirigentes, elidindo, assim, a polarização social que dava feições rígidas e brutais à sociedade escravista. “Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante fissurada pela anomia, que traduz a dança das personagens entre o lícito e o ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é outro” (Candido, 2004Candido, Antonio. “Dialética da malandragem”. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Ouro Sobre Azul, 2004., p. 38). Um mundo sem culpa no qual o trânsito livre entre a ordem e a desordem conformaria um ritmo característico da vida social no Brasil.

Muito do esforço de Nascimento Moraes no panfleto consiste em conectar diretamente à violência da escravidão essa “malandragem” de bem-nascidos e remediados indispostos a vencer pelo trabalho. A sanha brutal das elites no mundo do trabalho, representada pelo destino miserável dos que haviam sido escravizados, e seus meios de impetrar a falência da coisa pública, barrando a ascensão de reformadores sociais de origem popular, são duas faces da mesma moeda. Assim, é no topo da hierarquia social que se devem buscar as razões para os entraves ao desenvolvimento econômico e social do estado:

De 13 de Maio para cá começou o Maranhão a decair materialmente, não por falta de braços, como vulgarmente, erroneamente se propala por aí de toda a região brasílica […]. Começou a decair, a empobrecer, porque em grande parte não entendiam de lavoura e de criação os que acudiam aos honrosos qualificativos de lavradores, agricultores e fazendeiros.

Esses que se enfeitavam com as penas de pavão, gralhas da nova espécie, não passavam, na verdade, de simples proprietários, e levavam a vida repimpados em confortadoras poltronas, gozando a delícia dos ótimos dias que os céus lhe davam, e que os ares puros lhes proporcionavam, na intimidade e no aconchego da família. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , pp. 59-60)

Para o autor, o fim da escravidão marca o início de uma verdadeira crise social que, a despeito de todos os seus males, possui o efeito positivo de desnudar o caráter artificial da cultura aristocrática da velha elite senhorial. Essa gente, acostumada à “pompa nababesca das recepções fidalgas” (idem, p. 60), confrontada com os desafios econômicos da abolição, progressivamente entregues aos próprios méritos e competências, empurrou toda a sociedade rumo à estagnação e ao atraso econômico.

Nascimento Moraes elabora uma leitura muito própria da chamada “decadência da lavoura maranhense”, tema propalado em falas e discursos governamentais, no memorialismo senhorial, matérias jornalísticas e em textos literários durante todo o século XIX, e cuja influência marcou o pensamento social sobre a região no século XX. “As interpretações gravitam em torno da ‘falta de conhecimentos profissionais’, ‘falta de capitais’, ‘falta de braços’, ‘falta de comunicações apropriadas’ e ‘falta de terras por causa do gentio’” (Almeida, 2008Almeida, Alfredo Wagner B. Ideologia da decadência. Manaus: Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas, 2008., p. 22). O problema da “falta de braços”, em particular, identificava nas chamadas “classes inferiores”, no processo de libertação de cativos, uma das causas da decadência. A abolição, portanto, na perspectiva senhorial, seria o ponto culminante desse longo processo de declínio. Mas, no romance do escritor negro, os principais agentes da decadência são a própria oligarquia regional e a abolição, um marco da crise social, na medida em que revela os esforços dessa oligarquia para limitar o alcance político das reformas que conduziram ao fim da escravidão e à instituição do regime republicano.

Esse modo de imaginar o curso da história estrutura toda a organização de Vencidos e degenerados, que começa e se encerra com cerimônias políticas. O livro se inicia em meio às festas de celebração do 13 de Maio e termina com uma comemoração oficial do 15 de Novembro na primeira década do século XX, na qual a superficialidade do evento, a pompa das famílias tradicionais, a truculência e o preconceito com a gente do povo evidenciam que ali ninguém é cidadão. Nesse sentido, a forma do tempo no romance possui uma estrutura arqueada em que as transformações que conduzem da escravidão ao pós-abolição, do Império à República, não tomam a forma do progresso que se esboça com a emancipação dos cativos, mas caminham de uma forma de estagnação para outra.

FIGURA 1
A forma do tempo em “Vencidos e degenerados”

Essa forma do tempo que organiza a composição do romance aparece no sentimento de frustração e desilusão que toma diversos personagens negros e mestiços, a exemplo do abolicionista republicano João Olivier, que, logo antes de ouvir a leitura da primeira parte do panfleto, afirma para o seu mestre: “Eu esperava que depois do Treze de Maio por que trabalhei tanto; depois do Quinze de Novembro, com que me alegrei bastante, esperava que houvesse uma renovação social. […] Eu cuidava que a pública administração com luzes mais fortes e puras tomasse outro caminho que não esse que hoje nos infelicita” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 55). É essa a sensação de paralisia e imobilismo que Vencidos e degenerados registra e contra a qual se rebela.

Um dos pontos mais altos do livro é a passagem do panfleto na qual essa forma da história emerge em meio à violência que caracteriza o mundo da escravidão, onde o feitor aparece como o mediador e a síntese das relações de opressão e exploração. Uma dialética estranha, não resolvida, cuja mecânica poderia ser descrita como passagem do dois (senhores e escravos) ao um (feitor), na medida em que este último reúne em si mesmo as características polarizadas e engendradas pela relação entre o senhor e o escravo: entre o poder e o trabalho. Nesse sentido, é o feitor quem elucida a dinâmica das relações de poder que produzem a forma arqueada do tempo, a marcha da decadência. O trecho é longo, mas vale a pena ser lido na íntegra:

Quem trabalhava, quem representava a ciência e a arte de lavrar e criar era o feitor, esse homem terrível e bom, perverso e leal, a um tempo, porque só se o pode considerar por duas faces, pela do senhorio, a quem servia, e pela do escravo, que lhe obedecia. […] Ele era disciplina e o instrutor de baraço e chicote. Consultor indispensável do proprietário, nada se fazia sem que ele desse os gostos e as opiniões. Era amigo convencional, confidente e administrador dos bens do pseudofazendeiro a cujo serviço se alugara.

E por isso o “senhor” não tinha o outro jeito senão apoiar-lhe os atos de selvageria que praticava por sua conta própria, porque mais lhe fazia feitor, que era aquele descanso celestial em que ele se refastelava em plena bem-aventurança terrena. […] O feitor tinha manhas baixas e maneiras torpes que se adaptavam intrinsecamente ao meio, próprias daquela infeliz gente, inculta e ignorante que ele administrava.

A meia dúzia de escravos consentia ele em algum folgar, dispensava um sorriso, uma palavra de agrado, poupava, frequentemente, no trabalho. Fazia intrigas. Os escolhidos, por sua vez, pediam regalias e benefícios de alguns companheiros a quem eram afeiçoados. Semelhante procedimento produzia clamor e censura, da parte dos que eram barbaramente fustigados, sem tréguas e sem descanso no serviço.

Com as escravas o mesmo processo. Introduzidas no seio da família, que tinha as suas escolhidas que também eram favorecidas, eram dispensadas dos pesados encargos. E então vendiam estas desgraças por ignóbil preço, que era medido e limitado carinho, em que lhes repassavam a alma embrutecida, as outras vítimas de subjugo e vitupério, que lhes não eram afeiçoadas, ou que por frivolidades, ou despeito provocado por algum moço de família, não comiam com elas na mesma esteira…

O feitor protegia o malefício e cria nos seus poderes. Havia nas fazendas pequenas irmandades de diversos Santos. Sendo oficial uma das irmandades, as outras debatiam entre si contra a favorita. O proprietário aprendia com o feitor a crer nos feiticeiros, temia-os também, que a superstição era pegada ao seu espírito. As pretas “devoraram-se”, e aos pretos. Contavam-se nas senzalas e nos serões de família casos horríveis de tremendas agonias e tenebrosas mortes, sobre as quais pairavam suspeitas de serem obradas por envenenamentos ou camundongos. Não escapavam aos poderes do pajé pessoas mesmo da família do dono da fazenda, porque não raras vezes acontecia introduzirem-se no lar, qual peçonha, crenças diferentes; e em caso de luta na intimidade, dividia-se a família em partidos que surda e ferozmente se debatiam com prejuízo da ordem e do bem-estar de todos.

Eis aí o elemento principal de ação desse homem excepcional que acudia ao nome de feitor. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , pp. 59-63, grifos do original)

A solução de Nascimento Moraes, o elogio do feitor, é desconcertante. Vale a pena lembrar que na passagem de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo, provavelmente mirando a revolução haitiana (Buck-Morss, 2017Buck-Morss, Susan. Hegel e o Haiti. São Paulo: N-1, 2017., p. 88), é a luta de vida e morte dos escravizados pela liberdade que é capaz de transformar o quadro das relações econômicas e de reconhecimento entre os seres humanos, conferindo um novo movimento à história. Paul Gilroy demonstrou o quanto esse ponto de vista também estava presente na obra de abolicionistas negros no século XIX, com especial atenção a uma passagem célebre da vida de Frederick Douglass, narrada em suas três autobiografias, sobre como sua luta pessoal contra o feitor da fazenda em que vivia em cativeiro foi um momento crucial para a descoberta de sua própria humanidade: “Eu não era nada antes; agora eu era um homem. Ela [a briga] trouxe de volta à vida meu respeito próprio e minha autoconfiança esmagados, e me inspirou com uma determinação renovada de ser um homem livre” (apudGilroy, 2001Gilroy, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Centro de Estudos Afro-Asiáticos (Universidade Candido Mendes), 2001., p. 139). Por outro lado, uma das principais estratégias de desmoralização pública da escravidão brasileira e de luta pela dignidade do trabalhador negro no pós-abolição foi reconhecer nos africanos escravizados e seus descendentes um colonizador do Brasil, o seu mais genuíno, sofrido e dedicado trabalhador nacional (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. O abolicionismo. Londres: Abraham Kingdon & Ca., 1883., p. 21).

Em Vencidos e degenerados, porém, como estamos vendo, o feitor representa a “ciência e arte de lavrar”, verdadeiro soberano no mundo do trabalho. A penúltima frase do panfleto ratifica ainda mais esse ponto: Complementaríamos definitivamente o quadro, se tivéssemos tempo e espaço para mostrar num descritivo incisivo e forte o estado moral do escravo, já que não nos podemos referir ao intelectual, que este não existia” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 63). Portanto, no opúsculo, e ao longo de todo o romance, as pessoas escravizadas não são interpretadas nem sob o ponto de vista intelectual nem sob o ângulo do trabalho, mas apenas sob o aspecto moral. Essa descrição “intensa e forte” que não “coube” no panfleto será desenvolvida na trama como o grande dilema dos personagens que haviam sido escravizados.

É notável a complexidade de tal representação do feitor, que em nada se parece com aqueles personagens submissos à vontade inconteste dos senhores ou apaixonadamente cruéis no exercício da violência que encontramos na literatura brasileira. Em Vencidos e degenerados, a figura rica e ambivalente, “hedionda” e “extraordinária”, não é um personagem da narrativa, surge apenas no panfleto encarnando, pela violência e intriga, essa espécie “de resistência quase invencível, de que até hoje não conseguiram expurgar a sociedade maranhense” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 64). Nesse sentido, mais do que um tipo social ou histórico, o feitor é a síntese brutal e irresoluta de um país onde trabalho não confere liberdade e dignidade a ninguém, mas é uma atividade degradada, permeada de violência e humilhação, destinada a pessoas cujo estatuto de humanidade é permanentemente ameaçado pela miséria, pelos critérios de cor, sangue e linhagem, e pela indiferença moral das elites dirigentes. O feitor, esse arcaico mutável, alegoriza todo um conjunto de relações de poder que permaneceram estruturantes a despeito das transformações sociais implicadas pelo fim da escravidão e instituição do regime republicano.

A Figura 2 explicita a centralidade aqui conferida à passagem do feitor no opúsculo, tomado como artifício interpretativo para analisar como os processos sociais foram internalizados na composição do romance. Dialética do feitor é a forma abstrata de uma contradição histórica não superada, na medida em que a abolição e a república não conseguem dar origem a “novos tempos” de liberdade e igualdade. O que se sucede nas duas partes do romance e da leitura integral do panfleto é a narrativa da reconstrução política da dualidade que distingue senhores e escravos na divisão racial da sociedade entre brancos e negros.

Figura 2
Dialética do feitor

Um dos principais efeitos dessa dialética torpe é a desvalorização do trabalho. Os senhores dele se apartam, posto que alienam suas responsabilidades e competências a terceiros, ao passo que os escravos só podem reconhecê-lo como violência e degradação. Nesse sentido, a escravidão produz algozes e vítimas, muita gente humilhada na brutalidade do serviço pesado, mas não um “homem de trabalho”, previdente e disciplinado, conforme reza a ideologia capitalista. A inautenticidade dos poderosos e a opressão dos despossuídos são o espelho bifronte do feitor, cujo reflexo, imagem invertida, revela os limites da recente liberdade conquistada no 13 de Maio. A dialética do feitor descreve, enquanto movimento da história, a transmutação do arcaico, a emancipação do trabalho em meio à permanência da alienação e da sujeição violenta dos homens como a contradição mesma da modernidade brasileira naquele fim de século.

Observe-se que, na relação de violência e dominação entre o feitor e os escravos, todas aquelas “manhas baixas” e “maneiras torpes” utilizadas para conservar o poder são as mesmas que o autor acusa na elite política. Mas são alegorizadas a partir do universo violento do cativeiro, fora do mundo elegante dos salões, sem o bom discurso liberal que lhe emende a baixeza, sem tapas com luvas de pelica.

O feitor, essa persistente combinação entre poder, violência e exploração do trabalho originária do mundo do cativeiro, configura a ordem arcaica dos “novos tempos”, da vida que corre e nos deixa a sensação de atraso e imobilidade, o sentimento negro da dialética (Arantes, 1992Arantes, Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.; Camargo, 1961Camargo, Oswaldo de. 15 poemas negros. São Paulo: Edição da Associação Cultural do Negro, 1961.).9 9 Retomo aqui a expressão “sentimento da dialética” (Arantes, 1992) para dar à luz outra forma de “construção penosa de nós mesmos” presente na experiência intelectual dos afro-brasileiros. Aquela que o poeta Oswaldo de Camargo definiu como a “luta entre o ser nada e o ser demais” (Camargo, 1961, p. 37), entre a precariedade da vida e os esforços para ser gente, constituir um nome próprio, galgar livremente as formas disponíveis de reconhecimento social. Formas que implicam “ser demais”, posto que pretendem ultrapassar os limites da ordem racial. Problema visível nas agressões que Nascimento Moraes sofria na imprensa e que constitui o drama do mestiço João Olivier e seu afilhado Claudio em Vencidos e degenerados. Um movimento da história imaginado desde as frustrações que marcaram a formação do Brasil moderno. Em especial, os sentimentos e as esperanças de toda aquela gente negra que teve de se haver com a clivagem racial da cidadania nas primeiras décadas do regime republicano.

TRABALHO E DECADÊNCIA

Um dos elementos que nos permitem explorar os efeitos de metalinguagem do opúsculo na composição do romance é a homologia entre a denúncia das relações de dominação que conduzem ao atraso econômico e à decadência social, presente no panfleto, e a narrativa das experiências dos personagens antes e depois da abolição. Conforme mencionado, a maioria deles é apresentada ao leitor numa descrição ficcional detalhada do 13 de Maio em São Luís do Maranhão que consome os dois primeiros capítulos de Vencidos e degenerados. Nascimento Moraes anota da perspectiva dos escravizados os incidentes e as reações ao fim do cativeiro:

Eram cinco horas da tarde e a cidade fulgia de delírio, ardia na febre ruidosa e empolgante de sugestionadora alegria. Pelas ruas cruzavam-se grupos e grupos de escravos, a gritar, loucos de satisfação; outros berravam obscenidades que, como pedradas, iam bater nas janelas dos escravocratas: insultos soezes, ofensas terríveis, contra a família dos ex-senhores, que, temendo violências físicas, fechavam as portas, apenas acabavam de sair os últimos libertos.

Momentos depois de proclamada a lei, começou a divulgar-se a notícia de que uma escrava, ao passar pela rua dos Afogados, dera uma bofetada numa senhora que estava à janela. Diziam os que a conheciam que era uma mulher má, sedenta de cruéis castigos, e que se apontava, distinta, pela impiedade de sua cólera, pelo arrebatamento do gênio irascível e impensadas ações. […] Provocaram fortes gargalhadas e pilhérias picantes os inesperados cômicos que se deram: cozinheiras que abandonaram os patrões, sem lhes apresentar o jantar; outras que faziam compras e que se foram com dinheiro e balde.

Não obstante, alguns senhores não ficaram completamente abandonados porque não eram maus. Ao abrirem as portas, ao franquearem a saída aos de há pouco escravos, ofereceram abrigo aos que quisessem continuar na sua companhia. Muitos aceitaram os convites, na maioria os velhos, já inválidos para uma existência laboriosa, e moças que eram crias de muita estima e algum conforto, em geral filhos de escravas com senhores moços. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , pp. 12-3)

No relato acima, a ficção documenta e formula uma memória negra da abolição na periferia do Brasil. Com efeito, nos romances, contos e obras artísticas produzidos por intelectuais negros no pós-abolição, é possível deslindar uma narrativa alternativa sobre os eventos que marcaram a formação da sociedade brasileira moderna. Nesse sentido, vale destacar o modo como Nascimento Moraes caracteriza os sentidos da liberdade investidos nas reações dos libertos ao advento da abolição, a saber: como uma verdadeira revolução da ordem social. O fim da escravidão é imaginado, nesse primeiro momento, por libertos e outros negros, como a destituição das regras aristocráticas e estamentais de convívio na sociedade brasileira. A descrição dos insultos, ameaças e agressões físicas que os ex-escravos lançaram contra seus antigos proprietários nos informa das expectativas de romper em definitivo com as normas e regras de conduta social forjadas na escravidão. Assim, a própria ideia de “liberdade” é alargada de modo a abrigar aspirações igualitárias de transformação social.

Por outro lado, o autor também destaca como as experiências de terror e desumanização, vivenciadas sob a escravidão, fizeram da abolição um dia de euforia, comoção e loucura. O romance descreve algumas práticas e instrumentos senhoriais de tortura como cabos preparados com estilhaços de vidro, redes com lâminas lacerantes e pregos, “martelinhos para baterem na arcada do peito até o sangue espirrar ou golfar pelo nariz e pela boca”, “espetos de ferro que se levavam ao fogo” para queimar os olhos, a língua e partes genitais dos escravizados (idem, p. 7). Entre os casos que circularam na cidade no dia 13 de maio comentava-se o do “preto de nome Sabino, escravo do tenente-coronel Casemiro Souza, condenado a duros e cruéis castigos, quando sentiu que era livre, e lhe abriram de par em par as portas, enlouquecera. Igualmente se deu com a preta de nome Florença, escrava do sr. Silva” (idem, p. 21). O terror do cativeiro fez com que, para essa gente empurrada ao desatino, a abolição fosse uma explosão de emoções, um “delírio” desprovido de qualquer perspectiva de futuro, pois os recém-libertos estariam, segundo o autor, despreparados para transformar a liberdade conquistada numa nova concepção de mundo para toda a sociedade.

Nesse ponto, a aposta de Nascimento Moraes em Vencidos e degenerados dirige-se aos jovens talentosos de cor, ligados familiar e/ou afetivamente à sorte dos últimos cativos, e intelectualmente capazes de converter a abolição numa ampla reforma social. Setores intermediários que conheciam os sofrimentos dos de baixo e haviam cerrado as fileiras abolicionistas, apostando na República como regime capaz de erigir uma noção de cidadania que prescindia dos privilégios de linhagem familiar, cor e origem social. A esse estrato pertence João Olivier, um dos personagens principais do romance:

Era um rapaz alto, magro, moreno, rosto largo, olhos negros vivos, faiscando através das vidraças de pince-nez. […] Era mestiço e fora com dificuldade que se colocara na imprensa e se fizera guarda-livros de importante casa comercial. Era um cronista excelente, e sustentava no jornal as graças e as louçanias do dizer castiço e vernáculo. (idem, pp. 4-5)

A composição do personagem reúne o contraste entre as dificuldades impostas pela condição racial e pela boa educação. O retrato é aquele do mérito ameaçado pelo preconceito. “Adorava-o a classe média, que via nele um amigo […]. Adoravam-no os infelizes e os desgraçados, os da mais baixa estirpe, os sem nome, sem família e sem árvore genealógica distinta […] pouco se importando se o olhassem de soslaio os finos e os puros, os representantes da elite e os dinheirudos burgueses” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , pp. 49-50). As consequências do fim da escravidão serão apresentadas do ponto de vista dessas pessoas de cor livres para as quais a abolição estimulou anseios de renovação política e maiores expectativas de mobilidade social. Conforme afirmou João Olivier em meio à euforia das comemorações do 13 de Maio:

A liberdade dos negros vem contribuir para o desenvolvimento desta terra infeliz, e dar-lhes novas forças, novos elementos, novos aspectos… Esta fidalguia barata virá caindo aos poucos e o princípio de confraternidade virá acabar com estas supostas e falsas superioridades do ser, que têm sido um dos mais vis preconceitos de nossa existência política. (idem, p. 44)

Nesse sentido, sob o ponto de vista de mestiços e negros livres formalmente educados, as consequências da abolição precisariam ir além da liberdade para realizar suas expectativas de plena integração social. O problema para esses grupos medianos idealmente representados por abolicionistas republicanos é a igualdade. Daí sua defesa intransigente da “república que vinha fazer do preto cidadão” (idem, p. 73). O romance é um esforço para interpretar ficcionalmente por que esse projeto foi derrotado, como a antiga fidalguia se sustentou no poder a despeito das mudanças sociais e políticas, conservando critérios aristocráticos e estamentais de sangue e linhagem na repartição privativa de bens públicos. A obra desenvolve essa problemática apresentando a trajetória social dos personagens em meio às transformações dos critérios de distinção social e de formação de grupos implicadas pela abolição e pelo novo regime republicano.

A Figura 3, em que temos a posição social dos personagens organizada segundo os processos sociais descritos em Vencidos e degenerados, nos permite visualizar a dialética do feitor como forma do romance (Figuras 2 e 3). A narrativa ficcional da vida desses homens e dessas mulheres, quando tomados em conjunto, descreve uma sociedade imperial dividida entre cidadãos e escravos, transformando-se numa república cindida entre brancos e negros. Nascimento Moraes caracterizou os principais personagens do enredo antes e depois do 13 de Maio, com destaque para marcadores sociais como a cor, a ocupação, a moradia, o gênero, a instrução e alguns estigmas sociais (Figuras 3 e 5). No topo da hierarquia social, o autor enfatiza a estabilidade das posições sociais monopolizadas pelas famílias tradicionais que compõem a oligarquia, a despeito do contexto de crise econômica e suas práticas políticas notoriamente corruptas.

FIGURA 3
Posição social dos personagens em “Vencidos e degenerados”

FIGURA 4
A trajetória social dos personagens em “Vencidos e degenerados”

FIGURA 5
A São Luís de "Vencidos e degenerados"

De modo geral, a principal característica da estrutura social em Vencidos e degenerados é sua extrema rigidez, que é flagrante quando observamos as trajetórias sociais dos personagens em conjunto (Figura 4). A narrativa nos transmite a sensação paradoxal de que as coisas se transformaram, mas permaneceram no seu devido lugar, de que houve mutação pela via do arcaico. As chances concretas de ascensão social, ainda que muito baixas e marcadas por tremendos golpes de sorte, seriam possíveis somente para arrivistas brancos vindos de baixo e, em particular, para imigrantes portugueses enriquecidos pelo monopólio étnico do comércio, cuja brancura constituía um sólido capital para o ingresso na oligarquia por meio do casamento. O personagem do português João Machado é exemplar dessa surpreendente guinada para o alto que, todavia, não abala a rigidez da estrutura social, posto que palmilhada e condicionada pela subserviência política à fidalguia encastelada na direção do estado (Figura 4). O problema é explicitado na trajetória social dos personagens brancos quando se compara, por exemplo, o sucesso do pobre quitandeiro português com a progressiva decrepitude que engolfa o ilustrado professor Carlos Bento (Figura 4).

Um dos aspectos mais originais da descrição ficcional da estrutura da sociedade maranhense salta aos olhos quando analisamos a trajetória social dos personagens negros e mestiços. A sociologia das relações raciais tendeu a enfatizar as barreiras para a ascensão social no período pós-abolição, a degradação pelo cativeiro, a generalização do pauperismo, as desvantagens culturais, educacionais e o caráter cumulativo das desvantagens que lhe são decorrentes. No caso específico da região Nordeste, Carlos Hasenbalg chega a formular a seguinte hipótese: “a presença de uma numerosa classe de pessoas de cor livres muito antes da abolição deve ter atenuado a dicotomia que marcou o negro como escravo e o branco como livre. Isso facilitou a absorção do ex-escravo na estrutura social dessas regiões” (2005Hasenbalg, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UFMG/Iuperj, 2005., p. 163). Aqui, não desejo debater essa asserção que estudos contemporâneos sobre a relação entre raça e emancipação no Nordeste oitocentista convidam a refazer e qualificar,10 10 A respeito de interpretações contemporâneas sobre o processo de emancipação no Nordeste brasileiro, ver Gato, 2020; Amaral, 2012; Mata, 2007; Fraga Filho, 2006. mas apenas sublinhar, pelo contraste, a particularidade da interpretação de Nascimento Moraes.

Com efeito, a narrativa de Vencidos e degenerados enfatiza que aquele contexto também foi vivido, por alguns setores da gente negra, como um momento de declínio social. A trajetória de descenso experimentada por João Olivier revela como a luta política e a intensificação dos processos de racialização implicaram o rebaixamento de mestiços e negros ilustrados que galgaram posições mais próximas da oligarquia ainda no tempo do Império e da escravidão. Em paralelo, os infortúnios de Olympio Santos, homem negro livre, ligam-se ao analfabetismo, à desvalorização do trabalho manual, bem como à desfiguração dos critérios que, sob o cativeiro, hierarquizavam a gente negra com relação ao acesso à liberdade - alforriados, ingênuos de ventre livre, sexagenários, pessoas de cor nascidas livres e escravizados. Nos novos tempos da República o personagem finda cego em razão de suas péssimas condições de trabalho (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 82).

O pós-abolição é representado como um período de declínio e sensível piora na qualidade de vida de negros livres que haviam conquistado algum quinhão durante os tempos do cativeiro. Por outro lado, quando olhamos os personagens negros ainda menos favorecidos, peças fundamentais para que o romance transmita o senso de atraso e imobilidade daquela estrutura social, temos que as mudanças mais significativas da vida deles - como a possibilidade de acesso à educação para Claudio Olivier ou as alforrias de João da Moda e Daniel Aranha - foram conquistadas no tempo do cativeiro, porém socialmente desvalorizadas depois do 13 de Maio e do 15 de Novembro. O problema é visível mesmo para aqueles que, como Zé Catraia, foram libertados apenas com a abolição. “A liberdade, porém, não lhe trouxera propriamente vantagem que mereça menção. Era escravo de confiança de seu senhor, um velho decrépito que mais medo havia dele que ao diabo” (idem, pp. 22-3). Assim, para o personagem, o fim da tutela senhorial equivaleu ao abandono, à solidão e ao alcoolismo.

É nesse sentido que a trajetória social dos personagens como um todo encarna o dilema exposto pela representação do feitor tal como construída no panfleto: o retrato de uma sociedade em que o trabalho não emancipa pessoa alguma (Figuras 2 e 4). Confere nobreza à chamada “nata social”, que o delega a terceiros, e humilha e brutaliza a gente do povo. Nessa perspectiva, a sociedade brasileira do pós-abolição é aquela em que o trabalho permaneceu atrelado a uma lógica aristocrática e estamental de distinção social. Um dos trechos mais interessantes do livro é aquele em que Nascimento Moraes realiza uma interpretação da estrutura de classes em que cada uma delas é caracterizada a partir das convenções, dos sentimentos e das aspirações que exprimem sua relação distintiva com o mundo do trabalho:

[…] há os que trabalham por necessidade, os que são arrimos de seus pais […]. Conhece-se-os, à primeira vista, pela fisionomia e pelo trajo, pelo andar, e pelos modos, nem se unem eles com os mais, para que não se sintam frequentemente humilhados no seu estado precário.

São estes os futuros guarda-livros, os empregados de escritórios, os gerentes das grandes casas comerciais, porque, enquanto aqueles, deixando o serviço em que se distraem, correm aos folguedos, aos namoros e aos bailes, eles, os pobres e sacrificados que trabalham por necessidade, procuram habilitar-se nas aulas noturnas, onde estudam as matérias que são precisas para os mais importantes postos de sua profissão.

Os que trabalham por vaidade pertencem, na sua maioria, às antigas famílias do Estado, ou às que dela descendem. Os necessitados são, na maior parte, oriundos do povo, as famílias pobres e desprotegidas que não se misturam com as que representam a fina flor da sociedade. Os que trabalham por fatuidade são, como os portugueses, mandados buscar nas vilas de Portugal, os futuros patrões, os diretores de Banco, os proprietários e capitalistas. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 34)

O trecho nos permite uma nova mirada sobre a rigidez da estrutura social, apresentada pela narrativa a partir das origens e destinos sociais dos personagens, antes e depois da abolição, revelando, assim, como as posições sociais racializadas constituem a formação das classes sociais (Figuras 3 e 4). Entre aqueles que vivem o trabalho como necessidade estão pessoas que haviam sido libertadas no 13 de Maio, alforriadas no tempo do Império, ingênuos do ventre livre, negros e mestiços livres e muitos outros pobres cuja vestimenta, o jeito de andar, a vergonha de si mesmos, a dureza da vida e a experiência cotidiana da humilhação os tornavam socialmente reconhecíveis.

Nesse grupo, segundo o autor, os esforços por adquirir educação e cultura letrada, embora propiciem ocupações mais vantajosas, não possibilitam ascensão social, seja porque as desvantagens da origem social consomem seus recursos, situação dos arrimos de família, seja porque as reais possibilidades de mobilidade em termos econômicos são reguladas pelo campo da política, pela “fina flor” da sociedade. É essa situação de classe que intensifica os efeitos da racialização sobre personagens negros e mestiços instruídos como João Olivier e seu protegido Claudio no período republicano. Eles estão preparados para competir e colocar seus méritos à prova, mas o estado não possui uma burocracia profissional com recrutamento baseado em competências especializadas e o próprio mercado de trabalho não funciona plenamente à maneira concorrencial burguesa, como atestam as vantagens dos imigrantes portugueses entre os comerciantes.

Esse ponto nos remete à interpretação clássica de Florestan Fernandes sobre as relações entre raça e classe no Brasil: diante do impasse da persistência de valores e atitudes tradicionalistas em São Paulo, cujas raízes na escravidão e na sociedade imperial constrangiam a emergência de um estilo democrático de vida social, Florestan sugeriu - o que levaria a críticas da sociologia e da historiografia - que o pleno desenvolvimento do capitalismo poderia, no longo prazo, implicar a progressiva diminuição das desigualdades raciais. Chamo atenção para sua interpretação a fim de ilustrar a particularidade da leitura de Nascimento Moraes, que, situado numa região onde o capitalismo não adquiriu, imediatamente, feições metropolitanas, concentra seu foco nos mecanismos sociais de formação das elites e nos impasses da transformação política.

Para o autor, a decadência como forma do tempo que se atualiza na imobilidade de uma estrutura social em pleno contexto de mudança é posta em marcha pela manutenção do perfil social, político e ideológico da classe dirigente, responsável, no romance, pela falência do trabalho livre enquanto aporte das benesses da modernidade na periferia do Brasil. A concentração oligárquica do poder e do prestígio social fez que a libertação dos cativos não fosse uma reforma capaz de articular as relações de trabalho com o cultivo do valor republicano da igualdade. Em consequência, o racismo se intensifica, estabelecendo por entre as linhas de sangue, cor e fortuna que perfazem os círculos da “fina flor” os eleitos para o exercício do poder.

A EXPERIÊNCIA DA RAÇA

Na segunda parte do romance Vencidos e degenerados, a questão racial é diretamente abordada nas barreiras encontradas por Claudio Olivier, personagem principal do livro, nos espaços de formação cultural e reprodução social das classes dirigentes regionais. Nesse sentido, o fechamento do Liceu Maranhense aos potentados da cidade, o controle ideológico cerrado da imprensa pela oligarquia, as barreiras nas relações sexuais entre homens negros e mulheres brancas, mais os mecanismos tradicionalistas de ascensão social como o apadrinhamento, informam o significado político do racismo na cidade de São Luís.

A centralidade do problema do preconceito racial na trama tem inspirado aproximações entre Vencidos e degenerados e o romance O mulato (1881), do escritor maranhense Aluísio Azevedo, como fez Yves Mérian: “Aos que conheceram O mulato a leitura de Vencidos e degenerados traz a impressão de um mundo já conhecido e também a concepção de um sentimento de impotência de uma cidade decadente que vive a lembrança da época em que era a terceira metrópole do Brasil” (2000Mérian, Yves. “Vencidos e degenerados - documento sociológico”. In: Moraes, José do Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes , 2000., p. 7). Mas, nesse caso, as diferenças são mais importantes do que as semelhanças. Em O mulato, o drama do racismo é aquele do bacharel mestiço de posses, herdeiro de rica fortuna e dotado de educação europeia; um indivíduo de cor situado no topo da hierarquia social, rechaçado por uma sociedade atrofiada pela escravidão e pelo conservadorismo. Em Vencidos e degenerados, o sentimento de impotência se amplia, pois a experiência da subordinação racial se intensifica no curso da enorme transformação social impulsionada pela libertação dos escravos e pela instituição da República no país.

O problema do racismo ganha força na narrativa, porque a queda social de João Olivier e as dificuldades de ascensão de seu filho adotivo Claudio são descritas em paralelo à retumbante escalada do medíocre taverneiro português João Machado (Figura 4). Essa apresentação de conjunto reforça a representação do período do pós-abolição como um momento de sensível declínio das oportunidades para negros e mulatos livres e educados, que gozavam de alguns direitos no tempo do Império e da escravidão.

No dia 13 de maio, quando o jornalista mestiço e o português se conhecem, João Olivier estava colocado no maior jornal de São Luís e era guarda-livros de uma importante casa comercial da cidade. Embora remediado, conseguia sustentar a mãe e a irmã, tomando ainda o filho dos escravos Daniel Aranha e Andreza Vidal para garantir um futuro ao menino. Mas sua situação muda radicalmente alguns anos após o fim do cativeiro e a Proclamação da República.

O grupo político contrário ao que ele pertencia galgou o governo definitivamente. Olivier aguentou os primeiros anos de perseguição. Dava-lhe o ordenado de guarda-livros, o qual, por causa das péssimas condições do comércio, fora reduzido para as despesas mais urgentes. A crônica não lhe rendia nada.

[…] A perseguição de que era vítima, em parte ocasionada por essa mesma imprensa a quem ele servia por amor à arte, apresentou-se furiosa e insolente na casa comercial onde ele era empregado; impôs-se, por fim, ao patrão, e o desditoso guarda-livros começou a sentir o fel da indiferença que, contra a vontade, lhe dava a provar o seu velho e leal amigo de tantos anos. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , pp. 77-8)

Note-se que é no campo da política que se decidem os infortúnios do João Olivier tanto na esfera do mercado como no meio jornalístico e literário. A derrota do projeto republicano é lida como o enclausuramento social e provinciano dos mestiços talentosos e seu progressivo afastamento da direção ideológica do Estado.11 11 Conforme afirma o personagem João Olivier: “Quando se proclamou a liberdade dos escravos eu tinha a alma cheia de esperanças. Estava até certo ponto convencido de que nos bastaria um passo para atingirmos certo grau de prosperidade e começarmos a ser felizes. A Proclamação da República ainda mais esperanças me trouxe. Avigoraram-se-me as crenças e cheguei a sonhar com um Maranhão intelectualmente e moralmente livre, a ascender como um deus! Pois com tristeza lhe digo que bastou que transcorressem dois anos de vida republicana! Logo me persuadi de meu erro” (Moraes, 1915, p. 54). Sem meios de reaver seu prestígio, o jornalista muda-se para Belém, onde morre esquecido e proscrito de sua própria terra. O destino do personagem encarna a contradição explicitada pela representação do feitor quando acusa a alienação - nesse caso, a censura política na imprensa e a constituição de uma literatura oficial - e a sujeição à oligarquia como relações de poder que atualizam, no pós-abolição, os critérios hierárquicos de distinção social herdados da escravidão (Figura 2).

Em sentido inverso, ocorre a ascensão espetacular do quitandeiro português João Machado. Antes da abolição, sua condição humilde inspirava, até mesmo nos libertos e cativos que constituíam sua clientela, o apelido de Paletó Queimado. Era um “reles quitandeiro” e dormia no mesmo estabelecimento onde saboreava cigarros amarelos numa rede escura e suja quase junto ao chão. Porém, poucos anos depois do fim do cativeiro, amealhou uma fortuna. Foi ao descobrir o cofre de um velho, no meio de latas de manteiga vendidas por engano, num lance de sorte e trapaça, que o português abocanhou o capital necessário para converter-se num importante capitalista de São Luís. João Machado logo se tornou um dos diretores do Banco Comercial, sócio de um grande estabelecimento na rua da Estrela e dono de um comércio na rua Formosa, negócios que lhe franquearam o ingresso na oligarquia política - e o matrimônio com uma mulher de família tradicional.

A Figura 5 nos permite visualizar, no espaço urbano de São Luís, o sentido da ascensão e queda sociais vivenciadas pelos personagens brancos, em contraste com a situação de imobilidade dos personagens negros letrados e a pobreza extrema daqueles que haviam saído da escravidão.12 12 A indicação da moradia dos personagens em Vencidos e degenerados não é precisa. Em geral, o narrador nos informa o nome da rua e fornece indicações vagas. Entretanto, ao longo do romance, o autor estabelece uma compreensão do espaço social da cidade na qual associa as áreas da região Norte de São Luís à concentração da riqueza e do poder em contraste aos bairros populares como o Desterro e a região mais próxima do Cemitério e do Matadouro, onde vivem os personagens pobres e aqueles que haviam sido escravizados. Assim, as moradias foram escolhidas a fim de reforçar as hierarquias espaciais destacadas na narrativa. As informações sobre o tipo de residência são objetivamente assinaladas quando se trata dos personagens pobres, mas algo vagas para os personagens mais aquinhoados. A primeira residência da família Magalhães é referida como um “sobradinho na rua da Palma” (Moraes, 1915, p. 115), razão pela qual optamos por caracterizá-la como um sobrado de dois pavimentos, em contraste com o sobrado obtido por João Machado, “de pesado estilo barroco”, ao qual atribuímos três pavimentos, reforçando o sentido de sua ascensão social. Não há uma caracterização precisa da última morada do personagem Carlos Bento, mas ele é vizinho de personagens que habitam uma meia-morada descrita como uma “casinha” na rua do Passeio (idem, p. 277). Assim, o mais coerente foi atribuir ao personagem a mesma forma de moradia. De qualquer maneira, essas dúvidas são explicitadas na Figura 5, com o acréscimo de um ponto de interrogação ao lado da indicação do tipo de residência. A distribuição dos personagens no território e suas formas de moradia, quando contrastadas a primeira e a segunda fase do romance, antes e depois da abolição, apresentam uma cidade racializada onde os personagens negros não apresentam nenhuma mobilidade espacial em direção às áreas ricas que concentram os estabelecimentos comerciais e as instituições políticas do estado. Por outro lado, o empobrecimento dos brancos, caso da família Magalhães e do jornalista Carlos Bento, implica uma trajetória de maior proximidade espacial com os territórios habitados por negros nas cercanias da Igreja de São Pantaleão, a praça 13 de Maio, o Cemitério Municipal e a Quinta do Matadouro.

A construção ficcional da escalada de João Machado é representada por sua enorme mobilidade espacial ao longo da rua da Palma em direção à área da Praia Grande. O personagem, que vivia na região do Desterro, próximo dos cortiços habitados por gente escravizada como Andreza Vidal, posteriormente adquire uma meia-morada numa região valorizada de São Luís e, por fim, consegue instalar-se num antigo sobrado colonial que, “de pesado e barroco estilo, apresentava bonita iluminação: gás a fartar. Candelabros de prata prontos e dispostos em todos os compartimentos principais” (idem, p. 138). Poder social que também deveu muito ao domínio étnico dos portugueses nos comércios da Praia Grande (idem, p. 173). Na segunda fase do romance, João Machado torna-se o principal credor de João Olivier e o protetor social de seu filho adotivo. O projeto de emancipação e igualitarismo acalentado na campanha abolicionista converte-se em dependência e subordinação. A República, em vez de “fazer do preto cidadão”, reedita o pacto colonial, sustentando o domínio português no comércio de São Luís.

Não sem razão, o enorme deslocamento social do personagem branco e estrangeiro no espaço urbano de São Luís tem seu contraponto na imobilidade social e habitacional do jornalista mestiço João Olivier e de seus familiares. Tanto antes como depois da abolição, esse núcleo permanece na mesma meia-morada “acanhada e modesta” na rua de São Pantaleão. Assim, contra todas as expectativas do antigo militante abolicionista, a libertação dos cativos e a instituição da República não propiciaram melhores oportunidades de vida para aqueles mestiços ilustrados que estavam situados em posições sociais mais próximas da elite dirigente no tempo do Império. Ao contrário, os caminhos que levavam o jornalista na direção da área mais nobre da cidade - o emprego de guarda-livros numa casa comercial da Praia Grande e a atividade política e jornalística - são definitivamente barrados pela oligarquia.

O problema do declínio social dos negros livres que haviam amealhado algum recurso antes da abolição é ainda mais acentuado quando comparamos a trajetória ascendente do português João Machado com a mobilidade descendente do sapateiro Olympio Santos (Figuras 4 e 5). O personagem perde sua propriedade, uma meia-morada que dividia com o parceiro Daniel Aranha na rua da Cruz, por causa das dívidas que contraíra com um major abastado. O sapateiro era analfabeto, não possuía qualquer documentação de seus empréstimos, e viu-se completamente rebaixado diante do cobrador. A situação obriga Olympio Santos e Daniel Aranha a viver num quarto de cortiço úmido e escuro na rua do Monteiro. Um percurso de descenso social que revela as experiências urbanas de precarização que fizeram da cidade de São Luís um território marcado por clivagens raciais.

Essa articulação entre raça e espaço urbano no mundo social da ficção é ainda mais complexa quando observamos a trajetória dos treze de maio Zé Catraia e Andreza Vidal. O romance não indica a residência do personagem masculino antes de sua libertação, entretanto, sabe-se que morava com seu senhor, um velho que temia ver seus negócios de contrabando expostos pelo negro e “tratava-o otimamente, admirava-o e por fim acabara por nada fazer sem o consultar” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 23). Uma relação que tornava a vida de Zé Catraia mais segura e mais autônoma do que a da escravizada Andreza Vidal, que sofria exploração sexual. Porém, depois da abolição, o significado da diferença de gênero desses personagens se transforma e suas posições se invertem entre os mais despossuídos (Figura 4). Andreza passa a usufruir da proteção do filho Claudio e muda-se do quarto de cortiço na região do Desterro para a meia-morada da família Olivier, na rua de São Pantaleão: ela consegue trabalhar como “alugada”, ou seja, como diarista em casas de família e conta com o suporte do amásio Daniel Aranha. Zé Catraia, por sua vez, converte-se em “um bêbado que anda escornado pelas esquinas… um pobre diabo” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 128), quase sempre sujo e maltrapilho, exposto a toda sorte de violências, e cuja morada é o porão de uma casa no beco dos Craveiros.

A formação do personagem Claudio Olivier transcorre em meio a essas transformações que reconfiguram as hierarquias sociais e raciais da cidade de São Luís no pós-abolição. Nascimento Moraes situou o personagem em sua própria geração e lhe emprestou suas experiências pessoais no colégio, na imprensa e no meio literário. Mas seria um erro considerar o protagonista do romance uma mera projeção literária do autor, ainda que seja um notório instrumento de autoavaliação. “Aí onde se costuma ver uma dessas projeções complacentes e ingênuas do gênero autobiográfico, é preciso ver, na realidade, um trabalho de objetivação de si, de autoanálise, de socioanálise” (Bourdieu, 1996Bourdieu, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras , 1996., p. 40). Através de Claudio, o autor realizou um exame das oportunidades sociais para homens de sua condição, infundindo nos sentimentos do protagonista suas próprias expectativas de reconhecimento social e consagração literária. O personagem repisará passagens significativas do percurso social do escritor negro de modo a apresentar a experiência da subordinação racial.

O problema é abordado com relação às duas grandes heranças do personagem central. Claudio carrega consigo as marcas da escravidão na trajetória de seus pais biológicos, a desestruturação do seu núcleo familiar e o status rebaixado que a proximidade afetiva com os genitores lhe traz no espaço público. Em especial na relação com a mãe: “Andreza se entregara por último ao vício da embriaguez, e dava escândalos amiúde. Claudio, com paciência evangélica, acompanhava-a em todas as suas quedas. Ajuntava-a na rua, levava-a pelo braço até a casa, aturando-a e ouvindo-lhe os insultos” (idem, p. 82). O protagonista vive mesmo o dilema de abandonar ou não a mãe como estratégia para alcançar prestígio social numa cidade de convenções aristocráticas. “Muitos achavam que ele a devia negar, a exemplo de indivíduos que, de baixa condição, se elevavam pelo dinheiro ou pelo saber ao apogeu das grandezas e que tinham, em tempo oportuno, feito o mesmo às suas progenitoras” (idem, p. 83). Mas o amor pela mãe jamais lhe permitiu esse tipo de conduta.

A segunda herança é a que recebe de seu pai adotivo: uma formação educacional junto da elite da terra, aliada ainda a um projeto republicano socialmente inclusivo, preocupado em abolir as hierarquias herdadas do mundo senhorial e coibir a força do preconceito de cor. Afirma João Olivier:

Eu estou criando um homem de luta. Para trabalhar com vigor em benefício de sua raça […]. Um homem que tenha alguma coisa de leão é o que eu estou preparando. Instruo um cérebro e educo um coração. Cérebro que pense nos altos problemas de sua terra e de seu povo, coração que saiba amar e odiar, amar o bom e odiar o mau. (idem, p. 70)

O alto investimento cultural do jornalista mestiço em Claudio objetivava principiar uma reforma no perfil da classe dirigente regional. Apenas o deslocamento da fidalguia maranhense, a “elite postiça”, sem méritos pessoais, intelectuais e profissionais, poderia colocar o estado na senda do progresso. O protagonista encarna esse projeto para orgulho do pai de criação. O sistema educacional, centro de reprodução da antiga aristocracia senhorial nos postos públicos, ocupara um lugar de destaque na leitura de Nascimento Moraes sobre a imbricação entre raça e poder.

Depois do 13 de Maio o Estado precisava de um serviço de instrução pública de primeira ordem. Mas os concursos sendo abolidos, os lentes deixaram de penetrar para os estabelecimentos de instruções pelas portas abertas, como dantes: passaram a saltar pelas janelas, pela interinidade. O preconceito, o estúpido preconceito afastou o negro das escolas. Maltratados, ridicularizados, insultados, foram a pouco e pouco se retraindo, até se ausentarem de todo. (idem, p. 194)

Para o autor, depois do fim do cativeiro a situação do ensino deteriorou-se de modo a ampliar o contingente de analfabetos, pessoas formalmente excluídas da cidadania, sem direito a voto na República de 1889. O controle das escolas pela oligarquia política regional, o aparelhamento do funcionalismo público pela instituição de professores interinos e a ausência de investimentos no ensino gratuito destinado aos pobres precarizaram a educação. Mais uma vez, a política é colocada no centro das relações entre negros e brancos no Maranhão. Digno de nota é o argumento de que o preconceito de cor, a rotina de humilhações, maus-tratos e ridicularização são os principais responsáveis pela expulsão do negro das escolas no pós-abolição.

Claudio conhecerá de perto a realidade da discriminação no Liceu Maranhense. Todas as suas iniciativas políticas e literárias soçobraram por resistência de professores e colegas oriundos de famílias tradicionais. O jornal estudantil O Campeão, liderado por ele, sofreu séria retaliação na cidade. O desembargador Tomás Brito, “extremado fidalgo”, chegou mesmo a declarar sobre o periódico: “Vejam o futuro que há de vir por aí! Amanhã os filhos do desembargador Brito serão criados de um Claudio Olivier, de um Plácido Monteiro, que naturalmente virão a ocupar nesta sociedade as mais elevadas e honrosas posições” (idem, pp. 88-9). Assim, todas as ações culturais, por menores que fossem, capazes de ensejar a formação de uma liderança política e intelectual oriunda das camadas populares da sociedade eram rapidamente destruídas.

Não sem razão, parte significativa da formação cultural do personagem ocorre bem longe da escola, num circuito de boêmios que reunia ex-escravos, mulatas e moças brancas desonradas na juventude, poetas do povo, trovadores, negros e mestiços letrados numa região de marcada presença negra na cidade de São Luís. Lugares que, além de muita poesia, bebedeira e sexo, propiciavam aos jovens conhecer a história dos horrores da escravidão contada por antigos cativos, a origem injusta das fortunas que nutriam a vaidade dos comerciantes portugueses e das velhas famílias. Conforme declara um desses boêmios:

Aquele bairro é o meu predileto. Ali me sinto à vontade, ali respiro bem […]. Aquele povo nos adora. Não imaginas! Tudo que escrevemos ali se lê e se estima. Arranjam músicas para os nossos versos e cantam-nos, com amor e comoção, dando-lhes acentos puramente sentimentais, tons dulcíssimos, tocante expressão que nós nem tivemos quando os produzimos. Tu não imaginas como esses rapazes, a que vulgarmente chamam trovadores de esquina, nos interpretam, nos traduzem e nos compreendem. […] E essas mocinhas pobres com que delicadeza, mesmo com que graça, ferem as cordas do violão, e desferem com o queixume na voz as mágoas de nossas comoções! Já não me admiro dos rapazes que passam as noites de luar, pelas ruas, a fazer serenatas, acordando as suas apaixonadas com o eco de suas endeixas, a imaginação esbraseada no álcool! Esses, enfim, vivem no embate das paixões mundanas, no que a vida tem de mais lacerante, de mais embriagador, de mais deprimente, e de mais gozoso, que é o festim das orgias depravadas do largo de Santiago, dos bailes do Silva Santos, e das alcovas das barregas choramingas dos cortiços da rua das Crioulas. (idem, p. 176)

Nesses territórios que conformavam a cidade negra de São Luís, jovens letrados como o personagem principal do romance se apoderavam da memória social e da cultura popular maranhense. 13 13 Sobre a relação entre raça e espaço urbano na capital maranhense na segunda metade do século XIX, ver Gato (2018a). As rodas de boêmios da região eram “um refúgio dos desgraçados, dos perseguidos, dos vencidos da vida” (idem, p. 100), na frase do personagem João Moda que esclarece o título do romance. Aquela vida embriagada e romântica oferecia toda uma educação sentimental alternativa aos padrões aristocráticos de conduta ensinados no Liceu Maranhense e uma sociabilidade menos marcada pela vigência do preconceito de cor.

Tanto assim que é essa região empobrecida e boêmia da cidade, geograficamente oposta à área mais nobre de São Luís, que possibilita o encontro entre três personagens que se desconhecem, mas cuja história se entrelaçou, por um passado de mentira e violência. São eles o próprio Claudio Olivier, João da Moda e Armênia Magalhães, cujos dissabores íntimos e as barreiras que precisam enfrentar no mundo social estão ligados ao modo como a história familiar - no período que concerne à geração de seus pais - foi tramada pela escravidão e suas experiências formativas numa cidade provinciana e oligárquica.

FIGURA 6
Relações de parentesco em “Vencidos e degenerados”

Muito do destino de Claudio Olivier foi traçado pelas relações de exploração sexual e concubinato a que sua mãe foi sujeitada quando era escravizada pela família Magalhães. O alcoolismo de Andreza Vidal, as vezes em que era pega na rua ofendendo os transeuntes, sendo maltratada pela polícia, tinha origem no dia em que nem o medo a impediu de dizer: “Meu sinhô me desgraçou” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 104). Desde então, seu companheiro Daniel Aranha não foi mais o mesmo e jurou de morte o coronel Joaquim Magalhães. As muitas brigas em que o capoeira se metia e que o tornaram um homem temido na cidade de São Luís, afora a bebedeira sem parada, tinham origem na desdita de sua amásia. Para Daniel, muito da vida na escravidão foi sentido também como a experiência da desonra masculina. Essas dores íntimas do casal, aumentadas pela pobreza, fizeram seu filho ser adotado pela família Olivier.

A alforria de João da Moda também foi determinada por esses acontecimentos. Ele cresceu sem saber que era filho de seu senhor com Andreza Vidal. Seu nascimento fora habilmente escondido por Joaquim Magalhães, que vendera para fora do estado todas as escravizadas que lhe deram assistência no parto e retirara o bebê da mãe. Um dia o coronel precisou contar a verdade ao filho bastardo para defender-se da sanha assassina do capoeira e lhe disse: “João, eu vou mudar-me daqui; vou viver noutra parte, onde eu não veja a sombra deste cabra. Amanhã tu serás liberto; não quero que amanhã tu te unas com o Aranha para acabar comigo…” (idem, p. 105). Assim, na trajetória social de João da Moda, as experiências do cativeiro e da subordinação racial implicaram, subjetivamente, um misto de vergonha e desejo de amor e reconhecimento maternos: “Muitas vezes ao encontrar-se com ela tivera o ímpeto de a abraçar e de a chamar de mãe! Mas uma força, cuja resistência ele não podia vencer, detinha-lhe os passos, embargava-lhe a voz. E ficava de pé sem movimento no meio da rua, com os olhos pregados nela, que se afastava” (idem, p. 212).

Daniel Aranha nunca conseguiu assassinar o coronel Joaquim Magalhães. Mas um de seus escravos, irritado com uma surra, lhe desferiu três facadas mortais à luz do dia na rua de Santana. Incidente que principia o descenso social dessa família tradicional que era “no tempo do Império uma potência, uma estrela de primeira grandeza, […] foi, num plano inclinado, decaindo de sua opulência, dos respeitos com que a cercavam, da fama que granjeara, com a sólida fortuna que possuíra, e com as importantes posições políticas a que subiram seus membros” (idem, pp. 113-4). Um bom casamento para Armênia Magalhães era uma das vias possíveis para a família recuperar o antigo prestígio. Entretanto, a moça caíra em desgraça por ter perdido a virgindade com um professor de piano que fugiu sem desposá-la. Para o personagem, o declínio social familiar se confunde com a solteirice estigmatizada de uma mulher que, como ainda se diz no Brasil, já passou da idade de casar, mas cujo sobrenome guardava a força da linhagem nobre.

As relações de parentesco entre esses personagens também nos informam do modo complexo como Nascimento Moraes elabora a questão da mestiçagem em Vencidos e degenerados. Na segunda parte do panfleto, apresentada logo depois que o leitor toma ciência dos laços familiares descritos acima, o autor afirma:

Se não fosse o preconceito asfixiante que infelizmente domina em toda a sociedade, se não fosse o ressentimento impagável que lhe pegou na alma, a memória dos tempos passados; o renovo do sangue pelo cruzamento, fortificando a geração, daria em resultado uma auspiciosa colheita de homens fortes, de uma organização incontestavelmente superior. (idem, p. 190)

Uma aposta política na mistura de raças como via para transformar os critérios aristocráticos de linhagem e sangue que conformavam a elite dirigente (Gomes; Xavier, 2005Gomes, F.; Xavier, G. “Entre cores e hierarquias inventadas: sobre taxonomias raciais e literatura em São Luís (1865-1915)”. In: Coelho, Mauro Cezar et al. (orgs.). Meandros da história: trabalho e poder no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: Unamaz, 2005.). O escritor negro maranhense integra o conjunto de literatos e jornalistas da Primeira República que, por diferentes ângulos, matizaram e às vezes contestaram as teorias do chamado racismo científico, que condenava a miscigenação como causa da degenerescência e postulava a inferioridade inata, biológica, dos negros e mestiços.14 14 Sobre o racismo científico, ver: Schwarcz (1993); Skidmore (1976). Sobre os intelectuais que apresentavam um ponto de vista alternativo ao racismo científico, ver Dantas (2009); Silva (2018). “Essa terra é de mestiços”, costumava dizer o abolicionista e republicano João Olivier para alfinetar o preconceito racial.

Em Vencidos e degenerados, porém, o elogio da mestiçagem como marca distintiva do desenvolvimento nacional não se concentra na esfera íntima das relações entre senhores e escravos nem na troca cultural entre brancos, negros e indígenas, como no livro clássico Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre. No romance do escritor negro, os laços de sangue construídos no mundo da escravidão não ensejam o surgimento de uma nova civilização tropical, capaz de regular a tensão racial pela importância demográfica e pela integração controlada, mas alvissareira dos mulatos. Muito pelo contrário: a família Magalhães teve seu patriarca assassinado e sofreu descenso social; Andreza Vidal e Daniel Aranha nunca deixaram de ser apenas amásios, foram tragados pelo alcoolismo e tiveram de entregar o filho aos cuidados de terceiros; João da Moda passou a vida sem resolver o drama de sua origem e identidade.

O problema da mistura de raças se desenvolve na narrativa pelo romance entre Claudio Olivier e Armênia Magalhães - um caso escandaloso, uma vez que atacava os mecanismos de formação da família tradicional maranhense e, no limite, ameaçava ferir os critérios de linhagem que distinguiam a oligarquia política. No contexto das relações de poder, gênero e parentesco entre as famílias dos personagens, o interesse daquela mulher branca pelo filho de uma antiga escrava da família é uma subversão da ordem patriarcal. Por outro lado, em face da desonra de Daniel Aranha, o envolvimento de seu filho com a herdeira de seu rival é uma vingança sexual contra o homem branco. É precisamente esse sentimento de desonra que toma conta dos “pais de família” da cidade quando o caso se torna público. Com efeito, o problema da posse e do controle sobre o corpo das mulheres brancas faz a violência explodir no romance:

O orgulho ofendido nos pais de família não podia suportar tão grande desaforo, tamanha desfeita. Aquilo doía. Uma surra naquele patife não seria mal. Um carafuz desrespeitador e audaz era aquele Claudio, que não trepidava em conquistar uma moça de família, da respeitável família do Magalhães! Afrontava aquele biltre uma vizinhança honrada e séria! Um capitalista português, chefe de importante firma comercial, o Joaquim Serra Padilha, de parceria com um escriturário da alfândega, que acudia ao nome de Rabêlo Júnior, pensaram em escabrear o Claudio, com uma ameaça. Rabêlo mandou que dois marinheiros da Guardamoria fingissem uma agressão a revólver ao moleque carafuz, como o cognominaram eles para o matar com o ridículo. E uma noite, quando Claudio ia galgar a porta de Armênia, pelas onze horas da noite, os dois cabras, sacando de revólveres, avançaram para ele com insultos e impropérios. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 124)

A passagem é forte e guarda referências explícitas ao romance O mulato, em que o protagonista é assassinado, numa tocaia semelhante, em razão de um relacionamento proibido com a filha de um rico comerciante português. Mas a cena também revela a maneira como o autor transpôs suas experiências sociais na construção da ficção. Impossível não relacionar alguns elementos descritos acima ao relacionamento do escritor com sua primeira mulher, D. Ana Augusta, branca e descendente de uma família tradicional, relacionamento esse que causou escândalo em São Luís. O casamento às escondidas com um negro revoltou a família da moça, que vestiu luto e fechou sua morada durante quarenta dias, como se a filha tivesse morrido de fato (Rego, 1997Rego, E. C. Morais. O perfil de um negro na primeira metade do século XX em São Luís do Maranhão: José do Nascimento Moraes. Monografia. São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 1997., p. 58).

A tentativa de linchamento racial do protagonista reforça as queixas dos personagens de que, no pós-abolição, houve um endurecimento da linha de cor. A história familiar do personagem João Olivier serve de contraponto às dificuldades enfrentadas por Claudio e Armênia. O abolicionista mestiço era filho de um mulato de posses que desposou, a despeito de todos os preconceitos e orgulhos feridos de ambos os lados, uma moça que “descendia de uma das mais orgulhosas e ricas famílias de Alcântara” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 71). Agora, no entanto, um relacionamento desse tipo parecia mais difícil do que no passado.

Por outro lado, a história de Claudio e Armênia é também tumultuada por tensões raciais internas. O personagem principal sente que sua condição racial é manipulada pela moça com o propósito declarado de ofender a sociedade que a humilhou quando, ainda solteira, ela perdeu a virgindade. Uma humilhação racial infligida contra os fidalgos que mancharam sua honra, concebendo-a apenas como amante e jamais como esposa. Todavia, anos depois, a força do sobrenome Magalhães, somada a alguns contos de herança, permite que Armênia se case com um rico comerciante. Claudio, por sua vez, perde suas ralas oportunidades de ascensão social, pois é demitido do emprego de guarda-livros no comércio, e sua atividade jornalística e literária lhe veda o acesso a cargos do funcionalismo público controlados pela oligarquia política.

Os grandes sobrados da área nobre da cidade lhe fecham definitivamente as portas, e Claudio vive o impasse dos versos que servem de epígrafe a este ensaio: ser a luta entre o ser nada e o ser demais (Camargo, 1961Camargo, Oswaldo de. 15 poemas negros. São Paulo: Edição da Associação Cultural do Negro, 1961., p. 37), entre a precariedade da vida de seus pais biológicos e o desejo negado de reconhecimento social, visto como audácia de negro que não conhece o seu lugar e pretende ser alguém na vida, constituir um nome próprio, “ser demais” nos termos da ordem racial. Situação que, no fim do romance, força Claudio a deixar o Maranhão para viver no Amazonas, onde seus méritos e talentos são reconhecidos bem longe de sua terra. A expulsão social do jovem negro consuma a experiência social da raça na obra. Nascimento Moraes faz seu personagem atravessar os principais mecanismos de poder - sistema educacional, apadrinhamento, controle matrimonial das mulheres brancas, proselitismo étnico português, domínio do estado pela antiga fidalguia - que organizavam a seleção e o recrutamento dos membros da elite política e legitimavam os usos sociais da raça como critério de distinção social e subordinação de grupos. Coerções que impediam que a larga mestiçagem da terra desse impulso a uma nova civilização, moderna e democrática.

SOBRE A BARBÁRIE DOS BRANCOS

Nestas linhas finais, é importante ressaltar que um dos elementos mais ricos que a análise de Vencidos e degenerados oferece para a interpretação sociológica, quando comparamos as trajetórias dos personagens no mundo social da ficção, é a construção de uma narrativa sobre um processo de mudança social em que a reprodução da desigualdade se faz por caminhos criativos e imprevisíveis. A relativa homologia e estabilidade das posições sociais que distinguiam senhores e escravos no tempo do Império e aquelas que diferenciam negros e brancos nos primeiros anos do regime republicano exigem das elites dirigentes um trabalho constante e incansável de dominação política.

Uma violência rotineira cujas marcas são visíveis nas roupas surradas e na solidão de Zé Catraia, na escuridão que se fechou sobre os olhos de Olympio, nas vezes em que João da Moda se perguntava se era digno do abraço de sua mãe, no desvario de Andreza tomada pelo álcool, na disposição de Aranha para novas cicatrizes a cada briga de rua, na doença e decrepitude de Carlos Bento, na melancolia de João Olivier e na impotência de Claudio. Violência que conforma as fronteiras e os perigos de uma cidade segregada e hierarquizada em que qualquer deslize leva o transeunte a estar fora do lugar. Violência que medra a experiência da história, essa sensação de que o tempo passa e não eleva o gosto pela vida. Violência que se insinua nos detalhes, nas maneiras cotidianas, no trato comum das pessoas no dia a dia.

Como o que domina é a lei geral da apuração do tipo étnico, cada qual procurar destilar-se, e para o conseguir, para que os mais fiquem convencidos de que o homem é, na realidade, um nobre, ou coisa que com nobreza muito se pareça, usam de expedientes tão baixos, tão ridículos, tão deprimentes do próprio ser, que quem os observa, com espírito calmo e refletido, conclui, pelos fatos, que está em frente de um cretino, ou de um idiota. […]

Desconfia, leitor resignado e experiente da vida, desconfia do teu patrício insipiente, que não sufoca na garganta, que não tapa na boca a palavra - negro! que ele atira como insulto à cara do carregador que lhe levou a mala de um domicílio ao outro. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 199, grifos do original)

Nascimento Moraes inverte os sinais da ideologia do branqueamento. Longe de ser um caminho moral e biológico para novos tempos de progresso e modernidade na sociedade brasileira, tratava-se da própria consumação da barbárie. Essa “teoria geral” que em todos inspira o desejo de pureza, de brancura, a cada geração, levava a ruína às maneiras civilizadas de conduta, isto é, o trato pacífico, respeitoso e recatado pressuposto numa comunidade republicana de cidadãos iguais em direitos. E novamente o autor oferece uma imagem complexa da mudança social em meio à reprodução da desigualdade, da transmutação do arcaico, posto que ressignificação e legitimação da velha nomenclatura de cores, típicas do escravismo, pelo racismo científico não desclassificam inteiramente os valores aristocráticos do passado. De certa maneira, o conceito de branco atualizava a ideia de “nobre”. Assim, a nova ideologia do branqueamento biológico e moral, a tentativa dos indivíduos de se “destilarem”, era capaz de abrigar antigas etiquetas no tratamento dos pobres, velhos códigos de vestimenta e conduta, mas que agora sustentavam a insegurança da fidalguia maranhense, ameaçada pela queda do status senhorial numa região progressivamente periférica na economia, na política e na cultura do Brasil republicano.

Nesse sentido, o preconceito racial e o provincianismo se misturam, conformando o cenário da decadência. O racismo é narrado como a vigência de um colonialismo interno gerenciado por membros da velha fidalguia encastelada no Estado, favorecidos em todos os escalões do funcionalismo público, empregados na imprensa, apadrinhados no meio literário, junto dos velhos e novos ricos de um mercado tradicionalista, não concorrencial, à moda portuguesa. Mas, estranhamente, isso não é um efeito do passado. Como o narrador e os personagens negros e mestiços afirmam e reafirmam ao longo de todo o livro, as coisas parecem ter piorado no pós-abolição. Essa sensação de imobilidade e atraso que perfaz a experiência social do tempo entre os personagens negros e mestiços tem seu paralelo na saudade que invadia a opulência dos sobrados de São Luís:

Os antigos fazendeiros ainda se não esqueceram dos saudosos tempos que se foram!

Ainda veem nos filhos dos que foram seus escravos uma propriedade sua! Os filhos dos fazendeiros seguem o exemplo e não veem com olhos amigos esses rapazes mestiços que, destemidos e fortes, à custa de sacrifícios, estudam e aproveitam.

Uma calamidade o estado do Maranhão. A civilização ainda não penetrou mesmo nas camadas mais adiantadas. Ainda não se banharam nas suas águas lustrais os beneméritos, os escolhidos, os eleitos que encabeçam as primeiras linhas da sociedade e que se dizem seus diretores. (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , pp. 196-7, grifos do original)

Nessa perspectiva, formulada na periferia do Brasil, destaca-se a relação entre a esfera política e a persistência das desigualdades no pós-abolição. O bloqueio de duas gerações de mestiços e negros educacionalmente aptos para posições de mando e prestígio social, seja do ponto de vista da ascensão econômica, seja como participantes da luta cultural em instituições de ensino, na imprensa e em revistas literárias, deve-se à forma oligárquica de exercício do poder. Em outras palavras, deve-se à falta de civilização dos brancos, portadores de um tradicionalismo tacanho, arraigado nos hábitos e nos costumes, que os torna incapazes de conduzir as reformas políticas e econômicas modernizantes em sintonia com o novo contrato social aberto pela abolição e pela República. À força dos velhos e novos fidalgos para barrar a ascensão social e política de reformadores de origem popular, de indivíduos identificados e/ou afetivamente ligados à sorte dos últimos escravos, pessoas capazes de valorizar o trabalho como único critério de distinção social legítimo no pacto republicano, mediadores sociais capazes de aliar a cultura letrada com as aspirações da gente negra por liberdade e igualdade. A derrota política desse grupo é a experiência social e intelectual narrada em Vencidos e degenerados e é materializada na dialética do feitor: transformação sem mudança, liberdade sem emancipação.

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  • Este artigo é resultado de pesquisa financiada pela Fapesp (Processo 2011/50221-8).
  • 2
    Termo de época utilizado para se referir às pessoas libertadas pelo Decreto de Abolição, em 13 de maio de 1888.
  • 3
    Dados sobre a libertação de Nascimento Moraes e sua escolarização na infância encontram-se em Cruz (2017)______. “José do Nascimento Moraes: vida de intelectual e de negro em luta contra o racismo”. Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação, João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2017..
  • 4
    Uma apresentação pormenorizada da atuação pública de Nascimento Moraes nos anos 1900-1910 consta em Gomes (2015)Gomes, Elisangela Pereira. A trajetória docente de José do Nascimento Moraes na primeira metade do século XX. Dissertação (mestrado em educação). São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 2015..
  • 5
    Conforme as indicações de Nascimento Moraes na apresentação do livro, é provável que o romance tenha sido elaborado entre 1900, quando inicia uma colaboração mais sistemática em jornais e revistas literárias, e o fim de 1909, quando entrega o manuscrito à tipografia Ramos de Almeida (Diário do Maranhão, 17/11/1909, p. 1): “Já um pouco tarde vem este livro à luz da publicidade. Escrevi-o nos primeiros anos de vida literária, quando me rasgavam as primeiras linhas do horizonte, quando sentia as primeiras impressões. Quantos anos passados! […] Mas o livro sai assim mesmo. Não lhe altero uma linha sequer. Será sempre o meu ponto de referência” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 1).
  • 6
    Ver o capítulo “Literatura e ação pública”, em Sevcenko (2003)Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras , 2003..
  • 7
    Esse virulento excerto pertence a um conjunto de mais de vinte artigos anônimos contra o autor que foram publicados entre julho e agosto de 1910 nos dois jornais de maior circulação da capital maranhense, A Pacotilha e Diário do Maranhão. Para uma análise dessa polêmica, ver: Cardoso (2013)Cardoso, Patricia Raquel Lobato Durans. Lobo X Nascimento na Nova Atenas: literatura, história e polêmica dos intelectuais maranhenses na Primeira República. Dissertação (mestrado em história). São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 2013.; Cruz (2016)Cruz, Mariléia dos Santos. “A produção da invisibilidade intelectual do professor negro Nascimento Moraes na história literária maranhense no início do século XX”. Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, 2016, pp. 209-30..
  • 8
    Esse tipo de leitura é flagrante em Machado (1982)Machado, Nauro. “A escrita polêmica de José do Nascimento Moraes”. In: Moraes, José do Nascimento. Neurose do medo e 100 artigos. São Luís: Secma/Civilização Brasileira, 1982., p. 7.
  • 9
    Retomo aqui a expressão “sentimento da dialética” (Arantes, 1992Arantes, Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.) para dar à luz outra forma de “construção penosa de nós mesmos” presente na experiência intelectual dos afro-brasileiros. Aquela que o poeta Oswaldo de Camargo definiu como a “luta entre o ser nada e o ser demais” (Camargo, 1961Camargo, Oswaldo de. 15 poemas negros. São Paulo: Edição da Associação Cultural do Negro, 1961., p. 37), entre a precariedade da vida e os esforços para ser gente, constituir um nome próprio, galgar livremente as formas disponíveis de reconhecimento social. Formas que implicam “ser demais”, posto que pretendem ultrapassar os limites da ordem racial. Problema visível nas agressões que Nascimento Moraes sofria na imprensa e que constitui o drama do mestiço João Olivier e seu afilhado Claudio em Vencidos e degenerados.
  • 10
    A respeito de interpretações contemporâneas sobre o processo de emancipação no Nordeste brasileiro, ver Gato, 2020______. O massacre dos libertos: sobre raça e república no Brasil (1888-1889). São Paulo: Perspectiva, 2020.; Amaral, 2012Amaral, Sharyse Piroupo do. Um pé calçado e outro no chão: liberdade e escravidão em Sergipe. Salvador/Aracaju: Edufba/Editora Diário Oficial, 2012.; Mata, 2007Mata, Iacy Maia. “‘Libertos de treze de maio’ e ex-senhores na Bahia: conflitos no pós-abolição”. Afro-Ásia , n. 35, 2007, pp. 163-98.; Fraga Filho, 2006Fraga Filho, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006..
  • 11
    Conforme afirma o personagem João Olivier: “Quando se proclamou a liberdade dos escravos eu tinha a alma cheia de esperanças. Estava até certo ponto convencido de que nos bastaria um passo para atingirmos certo grau de prosperidade e começarmos a ser felizes. A Proclamação da República ainda mais esperanças me trouxe. Avigoraram-se-me as crenças e cheguei a sonhar com um Maranhão intelectualmente e moralmente livre, a ascender como um deus! Pois com tristeza lhe digo que bastou que transcorressem dois anos de vida republicana! Logo me persuadi de meu erro” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 54).
  • 12
    A indicação da moradia dos personagens em Vencidos e degenerados não é precisa. Em geral, o narrador nos informa o nome da rua e fornece indicações vagas. Entretanto, ao longo do romance, o autor estabelece uma compreensão do espaço social da cidade na qual associa as áreas da região Norte de São Luís à concentração da riqueza e do poder em contraste aos bairros populares como o Desterro e a região mais próxima do Cemitério e do Matadouro, onde vivem os personagens pobres e aqueles que haviam sido escravizados. Assim, as moradias foram escolhidas a fim de reforçar as hierarquias espaciais destacadas na narrativa. As informações sobre o tipo de residência são objetivamente assinaladas quando se trata dos personagens pobres, mas algo vagas para os personagens mais aquinhoados. A primeira residência da família Magalhães é referida como um “sobradinho na rua da Palma” (Moraes, 1915Moraes, Nascimento. Vencidos e degenerados . São Luís: Typ. Ramos d’Almeida & Comp. Succs, 1915. , p. 115), razão pela qual optamos por caracterizá-la como um sobrado de dois pavimentos, em contraste com o sobrado obtido por João Machado, “de pesado estilo barroco”, ao qual atribuímos três pavimentos, reforçando o sentido de sua ascensão social. Não há uma caracterização precisa da última morada do personagem Carlos Bento, mas ele é vizinho de personagens que habitam uma meia-morada descrita como uma “casinha” na rua do Passeio (idem, p. 277). Assim, o mais coerente foi atribuir ao personagem a mesma forma de moradia. De qualquer maneira, essas dúvidas são explicitadas na Figura 5, com o acréscimo de um ponto de interrogação ao lado da indicação do tipo de residência.
  • 13
    Sobre a relação entre raça e espaço urbano na capital maranhense na segunda metade do século XIX, ver Gato (2018a)Gato, Matheus. “Espaço, cor e distinção social em São Luís (1850-1888)”. In: Barone, Ana; Rios, Flavia. Negros nas cidades brasileiras. São Paulo: Intermeios, 2018a..
  • 14
    Sobre o racismo científico, ver: Schwarcz (1993)Schwarcz, Lilia K. Moritz. Espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras , 1993.; Skidmore (1976)Skidmore, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 1976.. Sobre os intelectuais que apresentavam um ponto de vista alternativo ao racismo científico, ver Dantas (2009)Dantas, Carolina Viana. “O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de cor na Primeira República”. Tempo, v. 13, n. 26, Niterói, 2009, pp. 56-79.; Silva (2018)Silva, Luara dos Santos. “‘O negro nunca foi estúpido, imoral ou ladrão’: Hemetério José dos Santos, identidade negra e as questões raciais no pós-abolição carioca (1888-1920)”. In: Abreu, Martha et al. (orgs.). Cultura negra, v. 2: Trajetórias e lutas de intelectuais negros. Niterói: Eduff, 2018..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2019
  • Aceito
    08 Maio 2020
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