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ENTRE BRUXOS E DOUTORES: Medicina, modernismo e vocação em Pedro Nava1 1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada à 2ª Conferência Medicina, Laboratório e Sociedade, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em outubro de 2013. Agradecemos especialmente a Isabel Amaral e a Cristiana Bastos os comentários ao trabalho.

Among Wizards and Doctors: Medicine and Modernism in Pedro Nava

RESUMO

Neste artigo pretendemos discutir algumas conexões possíveis entre medicina e modernismo em Pedro Nava. Ao contrário de se constituírem como duas experiências distintas na trajetória do autor, tentamos indicar como essas inserções se entrecruzam, numa série de encontros significativos tanto para o médico quanto para o escritor.

PALAVRAS-CHAVE:
medicina; modernismo; Pedro Nava (1903-1984); erudito e popular

ABSTRACT

This paper provides a discussion of some possible connections between medicine and Modernism in Pedro Nava’s works. Instead of two separate experiences in the author’s trajectory, we try to indicate how they are crossed in a series of significant encounters for both the doctor and the writer.

KEYWORDS:
medicine; modernism; Pedro Nava (1903-1984); popular and erudite

A história da medicina eu acho muito importante. Mas, pode ser uma opinião, uma telha intelectual, de modo que eu não sei se para todos isso é útil. Eu acho útil, para o sujeito não cair e fazer pesquisas que já foram feitas e se meter em caminhos errados. Eu conheci um português, era um historiador da medicina, que dizia: “A história da medicina é um pelourinho dos vaidosos e um estímulo para os ignorantes”. No estudo da história da medicina você tem o estímulo dado pelos grandes nomes, pelas grandes figuras, porque a gente fica admirando quando sabe o esforço que custou uma descoberta; é o pelourinho dos ignorantes quando alguém pensa, às vezes, descobrir coisa já descoberta2 2 Entrevista com Pedro Nava a Helena Bomeny, com a participação de Rene Peixoto Batista. Rio de Janeiro, 3 de abril de 1983, datilo. Acervo particular. Os autores agradecem a Helena Bomeny o acesso e a autorização para citar essa entrevista ainda inédita. .

Assim manifestava-se Pedro Nava, em entrevista inédita, a propósito da importância de um dos gêneros intelectuais que frequentou de modo relativamente diletante, a história da medicina, mas que acabou se mostrando extremamente importante para o seu próprio exercício profissional e, ainda mais, para o notável memorialista em que havia se transformado. E é o memorialista já consagrado pela crítica e pelo público quem concede a entrevista a Helena Bomeny e René Peixoto Batista, no Rio de Janeiro no dia 3 de abril de 1983, mas não para discutir suas Memórias, cujo sexto e último volume publicado em vida pelo autor, O círio perfeito, chegava justamente naquele momento às livrarias.

Pode ser que o tema principal da entrevista - as mudanças estruturais, por assim dizer, pelas quais a medicina estaria passando vistas a partir de aspectos centrais da trajetória profissional de Nava - tenha mesmo sido em parte motivado pela matéria do livro então recém-publicado, o qual forma com o volume anterior, Galo das trevas, (1981), a narrativa sobre a sua trajetória profissional e a que se somaria Cera das almas, interrompido pelo suicídio do autor em 13 de maio de 1984 (cujas 36 páginas permaneceriam inéditas até 1996). Nesses últimos livros, sentem-se, agudamente, o tom amargurado e a perspectiva bastante crítica, senão ressentida, que não deixam de trair justamente o olhar do médico aposentado, que, apesar de uma bem-sucedida carreira como reumatologista que lhe havia garantido reconhecimento, respeito e renome, também envolveu dificuldades, dissabores e desafetos.

Na entrevista ou nas Memórias, porém, o olhar crítico lançado sobre o longo percurso percorrido não é apenas o de uma subjetividade individual. O mesmo se pode dizer dos seus escritos sobre história da medicina, que desenvolvem os principais temas revistos na entrevista e os métodos narrativos que seriam empregados posteriormente nas Memórias, e dos quais nos ocuparemos neste artigo. Nesses textos, como no caso das Memórias, que nunca se deixam disciplinar inteiramente pelo paradigma do indivíduo, o olhar crítico de Pedro Nava demarca também processos e relações muito mais amplos sobre os sentidos assumidos pela medicina na sociedade e pelo seu exercício profissional3 3 Cf. Candido, Antonio. “Poesia e ficção na autobiografia”. In: A educação pela noite. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006; e Botelho, André. “As Memórias de Pedro Nava: autorretrato e interpretação do Brasil”. In: Nava, Pedro. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. .

As Memórias de Pedro Nava, longe de apenas iluminarem o autor e sua biografia, ou mesmo aquele que se constrói como sujeito da(s) memória(s), nos trazem uma narrativa em que é possível surpreender um vasto panorama e uma interpretação do Brasil, como já discutido4 4 Cf. Botelho, André. “Pedro Nava: memorialista e intérprete do Brasil”. Ciência Hoje, Rio de Janeiro: Instituto Ciência Hoje, v. 51, 2013. . Panorama tecido por meio de relações genealógicas, categorias espaciais, geográficas e regionais, objetos materiais, culinária, vestuário, sentimentos, sentidos, entre outras relações. Vistas dessa perspectiva, as Memórias oferecem menos um documentário sobre diferentes momentos da história brasileira e mais uma narrativa em que o passado brasileiro constitui meio de reconstrução permanente de possíveis identidades individuais e coletivas. Ao longo da narrativa, uma extensa rede de relações, desdobradas no tempo e no espaço, vai situando o narrador como parte de uma grande totalidade: laços genealógicos, relações de amizade, relações profissionais etc. De tal forma que o foco deixa de ser o narrador e este passa a ser uma espécie de mediação para dimensões que o transcendem. A memória, configurada em seu sentido clássico5 5 Cf. Yates, Frances. The art of memory. Chicago: University of Chicago Press, 1996; e Beaujour, Michel. Miroirs d’encre: rhétorique de l’autoportrait. Paris: Seuil, 1980. , funciona nas Memórias de Pedro Nava como uma espécie de acesso a esse mundo que transcende a biografia.

O aparecimento de Baú de ossos, em 1972, o primeiro volume das Memórias, foi acompanhado, para muitos, por grande surpresa com relaçãoao talentoliteráriodePedroNava, que olançouimediatamente ao lugar principal do memorialismo brasileiro. Como o médico renomado ia se metamorfoseando no memorialista mestre da língua portuguesa? Como observou seu amigo de toda a vida Carlos Drummond de Andrade:“Como foi que o danado deste homem, preso a atividades profissionais duríssimas, que lhe granjearam fama internacional, consegue ser o escritor galhardo, lépido, contundente que é?”6 6 Andrade, Carlos Drummond de. “Baú de surpresas”. In: Nava, Pedro. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 22. .

Desde o seu lançamento, a crítica especializada nas Memórias tem lembrado, sobretudo, das raízes intelectuais modernistas de Pedro Nava. Com razão, já que a sua experiência intelectual, iniciada na década de 1920 em Belo Horizonte, tem várias relações com o movimento modernista, e deu-se na companhia de colegas que se tornariam poetas de renome, como Drummond, Abgar Renault e Emílio Moura, entre outros que se destacariam na vida cultural e também política brasileira7 7 Cf. Bomeny, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994; Marques, Ivan. Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte. São Paulo: Editora 34, 2011; e Botelho, André. “O modernismo barroco de Pedro Nava”. In: Nava, Pedro. Beira-mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. . O próprio Nava, aliás, fez publicar naquele contexto alguns poemas seus em A Revista, mas ficaria conhecido como “poeta bissexto” em virtude de algumas de suas mais notáveis realizações poéticas, como “Mestre Aurélio entre as rosas” e “O defunto”, reeditadas por Manuel Bandeira, em 1946, na Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Também não resta dúvida de que essas raízes modernistas foram cultivadas e ampliadas ao longo da vida com os amigos escritores e outros em diferentes círculos intelectuais, como nos saraus literários promovidos pelo advogado e bibliófilo Plínio Doyle em sua casa em Ipanema, aos sábados, os conhecidos “Sabadoyles”, de que Pedro Nava tomava parte ativa até as vésperas de seu suicídio8 8 Sobre o Sabadoyle, cf. Senna, Homero. O Sabadoyle: histórias de uma confraria literária. Rio de Janeiro:Casa da Palavra, 2000. .

Ao lado do modernismo, e a ele associado em certos sentidos, porém, a experiência médica de Pedro Nava, em suas múltiplas dimensões constitutivas, também contribuiu para a definição do seu perfil de memorialista e em especial para o método de escrita das Memórias. É essa questão mais ampla que gostaríamos de explorar neste artigo. Sem que devam ser, necessariamente, considerados apenas uma preparação para as Memórias, não resta dúvida de que seus escritos sobre as histórias da medicina no Brasil, suas práticas populares desde a Colônia e alguns de seus personagens pioneiros, bem como seu empenho no colecionamento de materiais relacionados, como antigas receitas e curiosidades médicas, fotografias, recortes de jornais etc. , foram fundamentais para a escritura das Memórias. Se a vida, como observou novamente Drummond, quis torcer Pedro Nava para o rumo da medicina, esta não o despojou da faculdade, “meio demoníaca meio angélica”, de recriar pelas palavras o mundo feito de acontecimentos; mas “antes o enriqueceu com dolorida e desenganada, mas, ainda assim, generosa experiência do humano”, conferindo ao médico “o dom estético de, pela escrita, ressuscitar os mortos”9 9 Andrade, Carlos Drummond de. , op. cit. , p. 23. .

Também Davi Arrigucci Jr. já observou que a ciência médica parece ter aguçado no memorialista Pedro Nava um “senso material da realidade, que ele procura vasculhar com uma visada minuciosa, detalhista e muitas vezes implacável, em busca de um saber real das coisas e dos homens”10 10 Arrigucci Jr. , Davi. “Móbile da memória”. In: Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 91. . Na mesma direção, Joaquim Alves de Aguiar notou que, em seus escritos sobre medicina, Nava,

ao iluminar o trabalho e a vida dos grandes mestres do passado, procedia como se fosse buscar as próprias origens, os agentes da sua formação, os fundadores da “família” profissional a que pertencia, com a mesma paixão com que pintaria, anos depois, nas Memórias, os retratos dos integrantes da sua genealogia.11 11 Aguiar, Joaquim Alves de. “O médico historiador e o memorialista”. Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, no 53, março de 1999, p. 154.

Neste artigo, buscamos contribuir para a discussão sugerindo que medicina e modernismo, ao contrário de se constituírem como duas experiências distintas ou mesmo paralelas na trajetória de Pedro Nava, entrecruzam-se muitas vezes, numa série de encontros significativos determinantes tanto para o médico quanto para o escritor. Nesse sentido, talvez fosse apropriado dizer inclusive que a medicina aparece, para o nosso autor, por dentro do modernismo, entendido este como um movimento cultural abrangente, que envolve e entrelaça diferentes esferas sociais e também diferentes gerações e cujo principal objetivo é tornar o Brasil familiar aos brasileiros.

De modo a trabalhar os nexos modernismo-medicina, destacaremos uma das questões mais consideradas pela fortuna crítica das Memórias, as relações entre popular e erudito, que, como sabemos, foi também elemento crucial no modernismo, para o qual a valorização do folclore e das mais diferentes práticas culturais populares tornou-se o vezo de abrasileiramento e de contraponto às visões que opunham (e opõem) o erudito ao popular como figurações antitéticas e excludentes12 12 Cf. Botelho, André. De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012. . Nosso foco, no entanto, recairá principalmente nos textos de Nava escritos entre os anos 1930 e 1940 sobre a história da medicina brasileira, indicando assim como a preocupação (nem sempre livre de impasses e ambiguidades) em articular aquelas duas dimensões foi ao mesmo tempo constitutiva de sua forma de encarar a prática médica como também modelou, através da própria medicina, toda uma cosmologia que mais tarde seria incorporada nas Memórias, cuja redação se inicia justamente em 1968, quando, aos 64 anos de idade, o médico Pedro Nava ia se aposentando.

I

Quando pensamos no papel desempenhado pela medicina na estruturação da narrativa das Memórias de Pedro Nava, ao lado da crítica literária especializada que tem feito notar a presença nelas de artifícios e recursos estéticos identificados ao modernismo13 13 Cf. Botelho, André. “As Memórias de Pedro Nava: autorretrato e interpretação do Brasil”. In: Nava, Pedro. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. , não temos em vista, porém, nem a trajetória profissional do autor como médico nem a medicina como tema ou assunto da narrativa. Pensamos antes noutros recursos tomados à medicina, os quais desempenham um papel igualmente interno na estruturação das Memórias, como aqueles identificados ao modernismo14 14 Quanto aos processos formais modernistas de criação, vale destacar que a própria enumeração apontada pioneiramente por Antonio Candido como recurso estético que permite a ampliação do campo de significação das memórias individuais e familiares de Nava está imemorialmente presente na cultura popular brasi- leira, como nas louvações e nos can- tadores nordestinos, e se conserva ainda muito viva na memória coletiva (Candido, Antonio. “Poesia e ficção na autobiografia”. In: A educação pela noite. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006). Registro a partir do qual já havia sido transposta e transfigurada para o plano narrativo de uma das realizações capitais da cultura brasileira, embora igualmente de difícil classificação, com efeitos estéticos semelhantes aos alcançados pelas Memórias de Pedro Nava. Referimo-nos a Macunaíma, de Mário de Andrade, publicado em 1928, em que a enumeração, como mostrou Gilda de Mello e Souza, constitui recurso crucial para relativizar a pretensão enfática do temário europeu, retirar ao temário localista a inocência da marginalidade e dar sentido calcula- do e cômico aos desníveis narrativos que assinalam o desencontro dos postulados reunidos no livro. Souza, Gilda de Mello. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades, 1979. . Trata-se de uma determinada matriz de concepção da medicina que repercute de modo significativo no texto de suas memórias. E não apenas em relação à presença de termos médicos, situações, instituições e personagens da medicina. Na verdade essa matriz parece remeter a uma determinada tradição que poderíamos associar ao chamado “paradigma indiciário”15 15 Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. , pela escolha de pequenos detalhes como ponto de partida que pode levar a conclusões de maior alcance;ou a uma tradição na história da medicina ocidental que, na modernidade, veio progressivamente ocupar uma posição liminar - a chamada “medicina popular”, as práticas e crenças mágicas voltadas para formas de diagnóstico e cura.

Nossa leitura das Memórias passa, embora não se possa demonstrá-lo aqui passo a passo, para além do reconhecimento da sua presença como tema, pelo entendimento do papel que algumas categorias tomadas à medicina desempenham na estruturação formal da sua narrativa. Assim, teminteresseespecialomodocomoascategoriasrelativas às práticas da chamada medicina popular, a exemplo das “classificações primitivas” estudadas num texto clássico por Émile Durkheim e Marcel Mauss16 16 Durkheim, Émile; Mauss, Marcel. “Algumas formas primitivas de classificação”. In: Mauss, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. , articulam simultaneamente o indivíduo e a sociedade, os mortos e os vivos, o corpo e a alma, o passado e o presente, o macrocosmo e o microcosmo17 17 Cf. Botelho, André e Gonçalves, José Reginaldo S. “As Memórias de Pedro Nava: considerações preliminares”. In: “Memorialismo em perspectiva comparada”. 34º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, outubro de 2010, datilo. . E, como a valorização do popular, em suas mais diferentes figurações, constitui ponto crucial da agenda cultural e política aberta pelo modernismo, o interesse de Pedro Nava pelas práticas medicinais populares do passado brasileiro antes aproxima do que separa o médico e o memorialista que nele conviviam.

Nos seus textos sobre medicina, embora já fosse um profissional de prestígio amplamente reconhecido, Nava tece elogios significativos a personagens, práticas e formas de conduta médica que tendem a ser condenados e excluídos da chamada “medicina oficial”. As práticas e categorias da medicina popular expressam um pressuposto que será fundamental na articulação de sua narrativa ao longo das Memórias, qual seja, o vínculo sensível e incontornável entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o corpo humano e o universo. Esse pressuposto desempenha talvez um papel central na cosmologia que se configura ao longo das páginas das Memórias e implica igualmente uma visão humanista integradora da prática médica perdida ou marginalizada pelo desenvolvimento científico da medicina e sua fragmentação em diferentes e, às vezes, incomunicáveis especialidades (tema, aliás, recorrente na entrevista com que abrimos este artigo).

Foram dois os livros de história da medicina publicados em vida por Pedro Nava. Território de Epidauro (1947), cujo título alude à histórica cidade grega, famosa pelo santuário de Esculápio - que, segundo a própria epígrafe, atraía multidões desejosas por saúde e cura -, tem como subtítulo “Crônicas e histórias da história da medicina”. A ideia de multiplicidade também se faz notar em Capítulos da história da medicina no Brasil (1949), publicado originalmente como separata da revista Brasil Médico Cirúrgico ao longo de 1948 e início de 1949. Os títulos são precisos: não tenciona, nenhuma das duas obras, fazer história exaustiva e sistemática da medicina no país percorrendo suas etapas, ou seus grandes clínicos, ou ainda as principais instituições de tratamento e de pesquisa, ainda que nenhuma dessas dimensões esteja totalmente ausente delas. Antes, o que vemos são fragmentos, alguns mais panorâmicos, como em capítulos sobre as influências francesas e portuguesas no país, outros extremamente circunscritos, como na análise de algumas receitas caseiras do século XVIII.

Todos esses fragmentos são dedicados a contar aspectos diferentes, propositalmente parciais, como se cada um impusesse uma perspectiva distinta de perceber a formação da medicina no Brasil. Ao mesmo tempo que podemos ler artigos sobre as instituições médicas na cidade do Rio de Janeiro, ou sobre o histórico dos diversos tratamentos das doenças epidêmicas no país, também encontramos textos preocupados em analisar especificamente medicinas menos convencionais, que passam ao largo dos principais laboratórios ou casas de saúde. Assim, por exemplo, quando lemos um texto sobre o eminente doutor Carlos Chagas, logo em seguida descobrimos a existência de certo doutor Titara, médico suburbano que não consta nos tratados científicos;da mesma forma que, após um artigo de fôlego que oferece um erudito estudo técnico da especialização e suas consequências no interior das modernas pesquisas médicas, temos uma crônica sobre a importância (e a delícia) dos livros velhos de medicina, encontráveis apenas por iniciados na arte meio obscura do alfarrabismo.

Poder-se-ia argumentar que a diversidade dos temas, abordagens e mesmo formas narrativas é resultado de os livros reunirem artigos compilados, escritos, portanto, em contextos distintos e para publicações variadas, e indicaria antes falta de organicidade do que propriamente um método. Tentaremos, no entanto, propor uma hipótese alternativa, sugerindo que essa maneira de contar as histórias da medicina no Brasil é imprescindível para o tipo de abordagem evocada por Nava, que por sua vez faz parte de uma compreensão específica da própria medicina e de sua prática, questão que desenvolveremos mais adiante.

Nava propôs, mesmo que brevemente, algumas reflexões de cunho metodológico sobre o estudo da história da medicina, e nos parece importante começar por elas, mais especificamente por dois pontos particulares. Chama especial atenção a renúncia declarada a uma história pautada em datas ou em cronologias, vista por ele como inútil ou, no melhor dos casos, pitoresca. Uma boa história da medicina, ao contrário, deveria ser uma história das ideias médicas, que, por sua vez, “não pertencem a este ou àquele século, não são sucessivas e sim coexistentes”18 18 Nava, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil. São Paulo:Ateliê, 2003, p. 10. Daqui em diante CHMB. . Um pouco mais à frente Nava compara esse modelo não factual e não cronológico de fazer história à memória, mas de um tipo específico:

Memória - não como lembrança imobilizada e contemplação paleontológica das idades mortas, mas como representação dos caminhos que foram trilhados em vão e que não podem ser retomados; como a crítica dos erros pretéritos que é um aviso aos obstinados;como a análise do acerto antigo que é orientação atual da procura congênere.19 19 CHMB, p. 12.

Esse é o mesmo sentido utilizado para justificar a importância de se fazer biografias dos médicos, que não devem ter “interesse de data ou de anedota. O que nelas [nas biografias] interessa é o exemplo dado pelos que reúnem ciência e consciência, porque sua separação, como dizia Rabelais, significa apenas ruína da alma”20 20 Ibidem, p. 11. . É assim, aliás, que Nava justifica seu estudo mais elaborado nesse campo, embora jamais concluído, sobre o médico do Império João Vicente Torres Homem. Interessante perceber como parece estar em jogo uma noção de história (e de memória) enquanto exemplo, ou mais precisamente enquanto coleção de exemplos diversos, variedade de histórias dos mais diferentes matizes em detrimento de uma história única. O relevante é a capacidade que cada uma dessas histórias, casos e personagens tem para interpelar e, no limite, ensinar o leitor - médico ou não.

Convém notar, no entanto, que, se é verdade que essas histórias são permeadas de exemplos, estes não são reduto nem exclusividade dos médicos celebrados pelos grandes livros e pelos compêndios oficiais. Entramos, assim, no segundo aspecto fundamental de sua concepção de (história da) medicina: ela incorpora de maneira central as práticas populares, trazendo sem complexos para o interior de sua narrativa figuras e conhecimentos que passam ao largo dos círculos formais. Curandeiros, bruxos, curiosos, toda uma série de personagens obscuros e anônimos são vistos como atores importantes e imprescindíveis para que se possa compreender os rumos e as feições da medicina conforme praticada no país, seja em suas virtudes, seja em seus fracassos. Sublinhemos ainda que aqueles personagens marginalizados pelo processo de institucionalização da medicina não estão, nas histórias da medicina de Nava, propriamente à margem. Pelo contrário, não apenas o plural dos títulos flexiona as “histórias” ou os “capítulos” - e não a “medicina” (que esta é uma só) -, mas a medicina popular é estabelecida, na forma narrativa dos livros (principalmente em Território de Epidauro), lado a lado da erudita, sem hierarquias, sem apartes.

É principalmente nesse sentido que podemos falar de uma história da medicina modernista, na medida em que lança mão de um dos principais ganhos do movimento, qual seja, a percepção de que a valorização das práticas cotidianas implica uma aproximação ao povo, uma tentativa de conferir voz própria ao homem brasileiro. Mário de Andrade parece, aliás, ter papel direto e precípuo para a constituição dessa perspectiva de estudos na área médica, tendo em vista o pioneirismo de seu Namoros com a medicina, publicado em 1939, sobretudo quando recupera e analisa o que chama de “medicina dos excretos” em um sem-número de tradições populares. É o próprio Nava quem chama atenção para esse fato em Território de Epidauro, descrevendo Mário como “o admirável polígrafo paulista que no seu livro Namoros com a medicina inaugurou, no Brasil, um verdadeiro sistema de investigação das informações que o folclore pode fornecer ao estudo das concepções empíricas do povo, sobre a doença e os remédios”21 21 Nava, Pedro. Território de Epidauro: crônicas e história da história da medicina. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 50. Daqui em diante TE. .

II

Precisamos agora qualificar melhor como se estabelecem as relações entre medicina erudita e medicina popular para Pedro Nava. A tarefa não é fácil, sobretudo porque no autor essas duas matrizes, que, em tese, estariam separadas e mesmo se oporiam, comportam uma série de aproximações, vínculos, interações. Em sua busca de historiar e analisar a formação da medicina no Brasil, Nava desenvolve uma espécie de hipótese sobre a circulação das ideias e dos paradigmas médicos que leva fortemente em consideração a existência de variadas manifestações, vestígios muitas vezes fantasmáticos (a assombrar a medicina oficial) de elementos que em tese haveriam se perdido em outros tempos - o que nos coloca diretamente na questão do anacronismo e da heterocronia. Não se trata, no entanto, de apontar para determinadas expressões fossilizadas da cultura popular, mas antes captar suas pulsações, como um arcaísmo que não é inatual. No caso de Nava, essas permanências, algo desorientadoras por colocarem em tensão contínua a linearidade temporal, são percebidas em pelo menos duas direções.

De um lado temos o uso pela sabedoria popular de práticas eruditas tidas como desaparecidas, como no caso do estudo de um curandeiro português de finais do século xix que mobilizava manuais

científicos do século XVII22 22 TE, p. 182. , ou de importantes breviários brasileiros em que se podem ver, lado a lado, enunciados de magia negra ou de cartomancia e ensinamentos popularizados pela medicina erudita há muitoproscritos23 23 Ibidem, p. 183. . Assim, em uma série de casos, Nava vai mostrando como a cultura popular tende a se apropriar de formas muito particulares de práticas da alta medicina, de manuais que outrora foram fonte sofisticada do saber médico. O contrário, no entanto, não é menos verdadeiro: o autor também reconhece na medicina erudita uma série de dívidas para com as práticas populares de tradições imemoriais, o que compreenderemos melhor se nos detivermos brevemente em um caso específico por ele estudado, a medicina portuguesa.

Segundo Nava, até pelo menos a Reforma Pombalina e a criação das Escolas do Porto e de Lisboa, seria praticamente impossível separar, dentro da medicina lusitana, o elemento culto do vulgar. O caráter, sempre segundo o autor, extremamente vivaz, imaginativo e supersticioso do povo português leva-o a buscar no misticismo (cristão, judeu e árabe) a condição que está na “origem de um dos mais surpreendentes e copiosos arsenais da medicina popular, jamais observados entre as raças integradas no nosso ciclo de civilização”24 24 Ibidem, p. 39. . Paradigmático desse traço da medicina portuguesa seria a sua literatura médica do séc. XVIII, em que se percebe mais claramente como se entronca na sabedoria clássica (hipocrática, galênica, aristotélica) uma série de mitos fabulosos, crendices medievais envolvendo gnomos, serpentes e bruxas em pleno século de Voltaire e D’Alembert.

O estudo do caso português justifica-se porque é precisamente essa medicina que se transporta para o Brasil:

Esta arte confusa e conturbada transladou-se para o Brasil com o navegador, o degradado e o imigrante, aqui se fixou e continua viva na nossa Medicina Popular, que é um prodigioso exemplo da revivescência das velhas práticas peninsulares, tão nitidamente gravadas pela tradição que não é difícil descobrir nos breviários dos nossos curandeiros, sob a crosta das modificações resultantes de cópias sucessivas, o cerne das sentenças da “Atalaya”, ou mesmo de textos mais remotos, de onde deriva também o conteúdo curviano. As mais vigorosas raízes dos nossos processos vulgares de conhecer e tratar as doenças são essencialmente ibéricas, genuinamente portuguesas, e têm, provavelmente, muito mais importância que a contribuição congênere fornecida pelo africano e pelo índio.25 25 Ibidem, p. 41.

É notável nessa leitura que Nava propõe da história da medicina a ênfase na “circularidade cultural”, isto é, para falarmos como Ginzburg - que publicaria seu hoje clássico livro O queijo e os vermes três décadas depois -, um “influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica”26 26 Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 15. Ainda sobre o tema da circularidade cultural, cf. Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1987, publicado originalmente na década de 1940. . O estudo da medicina popular parece ganhar, assim, um novo sentido:o popular deixa de ser mera curiosidade ou resíduo27 27 Cf. Belmont, Nicole. “Le folklore refoulé, ou les séductions de l’archaïsme”. L’Homme. Paris: Éditions de l’EHESS, v. 26, nos 1-2, janeiro-junho de 1986. para adquirir dignidade própria, uma vez que se encontra mesmo no cerne da medicina brasileira. Mais do que andarem lado a lado, talvez fosse mais preciso dizer que popular e erudito, como as matryoshkas russas, saem continuamente um de dentro do outro.

Um dos textos em que fica mais explícita a importância da dívida da medicina erudita com a popular - e nesse caso em um escopo maior do que os casos brasileiro e português - tem o sugestivo título de “Entre bruxos e doutores”. Chamando a atenção para as poucas pesquisas sobre o tema, Nava levanta a tese de que teria sido a medicina de feiticeiros e alquimistas a responsável pela sobrevivência da terapêutica na “noite escura” compreendida entre a morte de Galeno e o Renascimento, período no qual as doutrinas médicas se encontrariam em crise, empobrecidas pela decadência do pensamento medieval. Mesmo contra todas as expectativas - e a eminência das fogueiras -, “bruxos e sagas procuram nos ermos e nas humildades sua farmácia maldita”28 28 TE, p. 110. . Foi nesse ambiente hostil e limitado que os feiticeiros empreenderam suas pesquisas, sobretudo em plantas, folhas e flores, e a partir delas construíram um manancial riquíssimo de conhecimentos que puderam ser legados à disciplina erudita. Nas palavras do autor, “a invenção de sua dosagem e, mais, das propriedades de benefício e malefício das gracíolas e anêmonas, dos narcíseos e acônitos, dos heléboros e cólquicos, e da posologia mortal dos cogumelos e das cinco cicutas, foram mérito e prestígio dos bruxos”29 29 Ibidem, p. 111. . Prestígio, inclusive, “que fez Paracelso declarar em Basileia, ao queimar seus livros de medicina, ‘não saber senão o que aprendera das feiticeiras’”30 30 Ibidem. .

Apesar da importância fundamental dessas figuras anônimas que agem sempre à margem, e por isso mesmo estão sempre à espreita, Nava constata que, “acastelados em sua ciência”, os modernos médicos as ignoram por completo. Aliás, não tão completamente assim. Consideram que herboristas e curadores devem receber toda a atenção. . . da polícia. O motivo? “Por exercerem por vocação a Arte que tantos têm apenas como profissão”31 31 Ibidem. . Voltaremos adiante a essa oposição entre vocação e profissão, mas, já adiantando um pouco o argumento, trata-se de um dos elementos cruciais para que possamos compreender a posição de Nava tanto em relação à medicina popular quanto à oficial ou erudita de seu tempo. É precisamente o sentido dessa oposição que parece em parte mover o nosso autor através daquelas duas matrizes da medicina ocidental.

Podemos agora tirar algumas implicações relativas à complexa relação entre o popular e o erudito nos textos de Nava. Afinal, a recuperação da medicina e das práticas populares enquanto fonte de estudo e de conhecimento se estabelece de maneira tensa para o autor, uma vez que não se faz sem impasses e expectativas. Já dissemos que Nava era um médico ativo e bastante cioso de seu trabalho como clínico e acadêmico, além de entusiasta e pesquisador das novas técnicas da medicina, como indicam seus vários textos focados exclusivamente nas origens eruditas e institucionais da medicina brasileira. São também prova disso sua posição na Academia Nacional de Medicina32 32 Nava foi empossado como membro titular na Academia Nacional de Medicina em 18 de julho de 1957, após apresentar uma tese intitulada Contribuição ao estudo clínico da osteoartrite do joelho, e teve atuação bastante ativa na instituição. , os inúmeros artigos científicos publicados33 33 A quantidade de artigos especializados publicados por Nava é enorme, e passariam dos trezentos ou quatrocentos. Cf. Vasconcelos, Eliane. “De bissexto a contumaz: o arquivo pessoal de Pedro Nava”. In: Vasconcelos, Eliane (org). Inventário do Arquivo Pedro Nava. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2001. O número é difícil de ser confirmado, pois ainda está por ser feito o levantamento exaustivo de todo esse material. No entanto, o curriculum vitae de Nava disponível nos arquivos da Academia Nacional de Medicina indica o impressionante número de 322 trabalhos, entre conferências publicadas, livros e artigos, somente até o ano de 1956. , a incessante atividade de catedrático e divulgador de sua especialidade médica, a reumatologia, bem como as várias viagens feitas ao exterior, sempre com o objetivo de se manter a par do que havia de mais avançado em sua época34 34 Segundo o já referido curriculum vitae disponível na Academia Nacio- nal de Medicina, Nava fez estágios na França em 1948, 1952 e 1955, além de participar de congressos inter- nacionais em 1948, 1950 e 1955. No mesmo documento, lemos que em 1951 foi designado pelo Ministério de Educação e Saúde para estudar na França, Inglaterra, Holanda e Suíça a organização das clínicas reumatoló- gicas. Monique Le Moing ainda faz referência a viagens de estágio e tra- balho para a França em 1961 e 1963. Le Moing, Monique. A solidão povoada: uma biografia de Pedro Nava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. . O interesse pelas práticas populares precisa, portanto, ser também visto à luz dessa posição. Seria praticamente impensável que o autor não impusesse restrições (e não seriam poucas) a diagnósticos e tratamentos que contrariassem os mais modernos cânones, sejam eles franceses, alemães ou americanos. Os casos mais flagrantes são suas duras críticas ao “baixo espiritismo” e à “macumba”, cujas práticas terapêuticas calcadas em necessidades rituais de sacrifício e purificação contribuiriam para a resistência a medidas de higiene pública e de terapêutica oficial, que, somadas ao gosto por tratamentos sobrenaturais, seriam responsáveis pela “agravação de nossos problemas nosológicos e de um sem-número de mortes”35 35 TE, p. 24. .

Por outro lado (e Nava parece um prodígio em ter muitos outros lados), reconhecer as consequências muitas vezes nefastas dessas condutas não faz com que o autor se furte a procurar entender as razões ou motivações desse tipo de orientação, e muito menos aceite a modalidade de solução mais comum para frear as medicinas populares: a criminalização, isto é, torná-las caso de polícia36 36 Referências a tipos e contextos diversos de criminalização e perseguição a práticas médicas populares no Brasil podem ser encontradas, por exemplo, em Maggie, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; Madel, Therezinha Luz. Arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. São Paulo: Dynamis, 1996; Giumbelli, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997; Chalhoub, Sidney (org. ). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora Unicamp, 2003; e Carvalho, Antonio C. D. de. Feiticeiros, burlões e mistificadores: criminalidade e mudança das práticas populares de saúde em São Paulo - 1950 a 1980. São Paulo:Editora Unesp, 2005. . Tratando particularmente da “macumba” e do “baixo espiritismo”, Nava chega mesmo a justificá-los, enxergando nos rituais das religiões afro-brasileiras uma enorme força de revolta e resistência:

Essa insurreição surda e latente introduzida profundamente pelas desigualdades sociais na essência de início apenas religiosa das macumbas e que agora é uma componente entranhada e inseparável delas (a brutalidade com que a ordem estabelecida combate policialmente as manifestações da religião negra e do baixo espiritismo serve de contraprova à hipótese que estamosaventando) - esse estado psicológico de insubordinação contra o que está em cima concorre provavelmente na resistência oferecida à medicina oficial e, mutatis mutandis, na manutenção e na preferência pelas formas de curar incorporadas à cultura do povo. Harmônica com essa cultura, a medicina dos candomblés é a mais conservadora possível e nela se podem encontrar todas as crenças e superstições amalgamadas pelas raças que se misturam no Brasil.37 37 TE, p. 210.

A citação é importante porque expressa não apenas a defesa firme de práticas das quais discorda, nas quais inclusive vê sérios malefícios, como nos dá também o que parece ser uma chave interessante para sua compreensão mais geral da medicina, e que diz respeito às conexões íntimas entre medicina e cultura, que, no entanto, tenderiam a se romper. Essa parece ser a mais profunda e penetrante crítica de Nava à medicina de seu tempo, sobretudo ao movimento, aparentemente inexorável, de especialização.

De acordo com Nava, o século xix observaria - em parte como consequência da invenção do microscópio, da criação da anatomia patológica e dos avanços da cirurgia - a ruína de qualquer filosofia médica de caráter abrangente38 38 Os séculos XVIII e XIX trouxeram, segundo Nava, uma espécie de guinada radical na compreensão da medicina que poderia ser resumida na perda de um fundo comum, de uma estrutura única que fizesse convergir as diversas doutrinas médicas. Mesmo que muitas vezes conflitantes, essas doutrinas obedeceriam sempre a certos princípios, dos quais Nava ressalta a subordinação da investigação médica à filosofia geral e, corolário desta, a orientação, de sentido especulativo, sobre a vida, a saúde, a doença e a morte em uma direção “centrípeta”, isto é, e citando o autor, “caminhando da generalização para o particular, da interpretação universal para a explicação no indivíduo”. TE, p. 182. , e com ela o surgimento de um novo princípio, o critério localista. Em um movimento de autonomização da disciplina, em que a história natural, a química e a física são relegadas a um segundo plano, o corpo humano também é fragmentado. Ao invés dos grandes temperamentos herdados da medicina antiga, o foco nas lesões específicas: “À noção do organismo como um todo sinérgico e único substitui-se a interpretação fragmentária que o considerava apenas como a expressão de um conglomerado de elementos capazes de adoecer ou entrar em cura isolados uns dos outros”39 39 TE, p. 185. . De um só golpe o corpo perde sua conexão com o universo (fundamento básico das teorias humorais) e se decompõe internamente40 40 Na origem das teorias humorais clássicas encontra-se a tese de que os quatro humores ou temperamentos (bile amarela, bile negra, fleuma e sangue) corresponderiam aos elementos cósmicos e coordenariam, por um princípio de combinações, o comportamento e o caráter dos indivíduos. Trata-se de uma tentativa de explicação do comportamento humano profundamente fundamentada em um princípio de harmonia entre esses humores, que deveriam, na saúde plena, encontrar-se em equilíbrio. A doença, pelo contrário, é justamente resultante do desequilíbrio humoral. Cf. Klibansky, Raymond; Panofsky, Erwin, Saxl, Fritz. Saturne et la melancolie: études historiques et philosophiques — nature, religion, medecine et art. Paris: Gallimard, 1989. Como resume Jackie Pigeaud: “Eles [os humores] fazem do homem um ser do contínuo, um todo orgânico. Mas, igualmente, esses quatro humores, cada um dos quais está ligado a uma estação, inscrevem o homem no mundo, ideia profundamente hipocrática. O homem vive no ritmo do universo; mas, sobretudo, adoece no ritmo do universo”. Pigeaud, Jackie. Metáfora e melancolia: ensaios médico - filosóficos. Rio de Janeiro: PUC Rio/Contraponto, 2009, p. 66. . Mesmo admitindo os avanços e descobertas muitas vezes espantosos que devem ser atribuídos à medicina localista do século XIX, Nava demonstra-se bastante cético em relação ao conjunto da disciplina, em risco precisamente pela ausência de uma perspectiva capaz de unificar as inúmeras descobertas e conferir sentido conjunto ao organismo normal ou patológico41 41 Com algum auspício, para o autor, estava o fato de que novas tendências, ainda tímidas, pareciam se desenhar no momento em que Nava escrevia (o autor assinala que o artigo foi escrito em 1937), como o ressurgimento das investigações bioquímicas e biofísicas e, principalmente, das teses do moderno humoralismo. Beneficiada pelos avanços da bioquímica, a nova teoria dos humores restauraria a importância de pensar o organismo não a partir do arbítrio ou da desordem, mas da integração dos aspectos morfológicos e funcionais em um conjunto harmônico [cf. nota anterior] (cf. TE, pp. 194-19). .

A despeito dos dilemas possíveis, há uma enorme força política e social por trás da valorização de formas não institucionalizadas do saber, além de uma percepção profunda das relações entre o macrocosmo e o microcosmo que a medicina oficial, a galope de um movimento mais amplo da modernidade, tenderia a romper. As práticas populares em sua complexidade corresponderiam, no limite, não só a fontes de conhecimento para a medicina dita oficial (esse parece ser inclusive um aspecto secundário), mas a uma espécie de resistência dos “de baixo” contra o elitismo autoritário da medicina erudita, além de terem a capacidade de humanizar e falar muito mais fundo aos anseios das populações marginalizadas, para quem a medicina oficial é pouco acessível.

Uma das consequências da especialização seria a perda de qualquer legado humanista da medicina. Humanismo, para Nava, é praticamente sinônimo de medicina francesa e é definido como o ensino da “informação desinteressada das artes e das letras, da investigação do Homem e do Mundo”, cujos objetivos seriam, antes de tudo, “conferir os conhecimentos que adestram no uso da razão e no exercício do pensamento - tomados como termo e finalidade na realização íntima do indivíduo”42 42 TE, pp. 133-4. . Não poderia haver contraste maior, segundo nosso autor, com o modelo que então grassava, objetivista, prático e utilitário, que consequentemente rejeita “a elevação do pensamento pelo pensamento, traço essencial do mediterrâneo nas Artes, nas Letras e na Especulação Filosófica”43 43 Ibidem, p. 134. É interessante notar o contraste implícito que Nava estabelece entre dois modelos de ensino (que encobrem concepções de mundo diversas), um mediterrâneo/latino e outro anglo-saxão. O tema, como sabemos, é um clássico do pensamento social brasileiro. Gilberto Freyre censura particularmente essa inclinação de Nava em valorizar a tradição médica francesa, que Freyre julga excessiva, ainda que faça questão de ressaltar que “[Nava] não seja de modo algum um simplista”. Sociologia da medicina. São Paulo: É Realizações, 2009, p. 98. .

A ausência de uma formação que fosse ao mesmo tempo abrangente e especulativa redundaria em uma mentalidade imediatista por parte do profissional. Aliás, faria florescer justamente o “profissionalismo desbragado”44 44 TE, p. 134. . A ciência fica, assim, subjugada, reduzida a mero meio: “Para os que esquecem seu destino, para só pensarem na sua carreira, é forçoso que a ciência se rebaixe e passe a representar o papel de um meio acessório de ganhar a vida, perdendo o aspecto superlativo de finalidade para a existência”45 45 Ibidem. Esse parece ter sido o sentido de um dos conselhos mais penetrantes que Nava teria dado ao sobrinho de sua esposa, também médico, Paulo Penido, que num momento de desilusão com a profissão ouviu de Nava as seguintes palavras: “Não desanime;se você tem vocação, o próprio exercício da profissão será sua melhor remuneração; aproveite a enorme e maravilhosa oportunidade de tratar as pessoas e às vezes curá-las”. Penido, Paulo. “Prefácio”. In: Nava, Pedro. O anfiteatro: textos sobre medicina. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 18. . Uma ciência estruturada em bases utilitaristas seria capaz de criar apenas “táticos exemplares” e “executores hábeis”46 46 TE, p. 137. , o que constitui, como notou Joaquim Alves de Aguiar47 47 Aguiar, op. cit. , um enorme “problema ético” para a medicina. Interessante notar como é precisamente a medicina popular que reservaria uma forma de exercício da Arte (como Nava gosta de chamar) muito mais orientada por um sentido de vocação, e não de profissão, o que carrega uma série de implicações48 48 Para uma discussão recente sobre a crise da medicina entendida enquanto Arte, cf. Kleinman, Arthur. “Catastrophe and caregiving: the failure of medicine as an art”. The Lancet. Londres: Elsevier, v. 371, nº 9606, janeiro de 2008. . Sobre os curandeiros Nava fala, por exemplo, que exercem a medicina “por uma espécie de gosto inato, de tendência e de vocação”49 49 CHMB, p. 207. . Sobre os “manejadores de ervas” e as “tradições órficas”, já vimos que são desprezados pelos “modernos pontífices da medicina” “por exercerem por vocação a Arte que tantos têm apenas como profissão”50 50 TE, p. 111. .

É no artigo “Médicos suburbanos de ontem e de hoje” que a questão aparece com mais clareza. Nesse texto, dividido em duas partes, Nava contrapõe aos médicos do Centro51 51 Referência ao centro do Rio de Janeiro, região que concentrava, até há bem pouco tempo, a maior parte dos principais serviços da cidade. , “engrenados no carreirismo elegante”52 52 TE, p. 113. , a figura do médico do subúrbio, que sofre do preconceito dos colegas situados numa posição profissional socialmente privilegiada. Se é verdade que aqui se trata de um médico profissional, no sentido em que se formou ou pelo menos estudou numa faculdade de medicina, e não de autodidatas ou curiosos, é notável o contraste estabelecido com os padrões e as tendências da medicina erudita que vimos acima e a aproximação com as práticas de caráter popular. Pedro Nava nota, por exemplo, como as circunstâncias que muito bem poderiam ser esterilizantes, como a defasagem tecnológica e mesmo a falta de aparelhos simples, como o de raios X, ganham feição positiva na medida em que enriquecem o médico do subúrbio da “força generalizadora que a facilidade dos exames complementares atrofia e que a especialização limita e mutila”53 53 Ibidem, p. 115. . Assim, o que seria uma deficiência tecnológica torna-se vantagem ao justamente proteger o médico de uma especialização excessiva e do avanço da técnica. Da mesma forma, o médico suburbano tenderia a se relacionar com o doente “num plano mais humano e menos comercial”, sendo ao mesmo tempo conselheiro, orientador e amigo de seus pacientes, recuperando a tradição, cada vez mais rara, do “médico da casa”54 54 Ibidem, pp. 115-6. Sobre o tema da medicina familiar e seus impasses entre especialização e totalidade nos contextos brasileiro e argentino, ver Bonet, Octavio. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014. . Em outras palavras, a virtude desses personagens ainda não feridos de morte pelo avanço das modernas tecnologias e pela rotação (ou implosão) dos paradigmas médicos estaria na capacidade de reconectar o mundo da cultura ao indivíduo doente.

Paradigmático desse tipo de médico suburbano é o doutor Santos Titara, recuperado apenas através de conversas e de um ou outro fragmento, a partir dos quais Nava reconstrói a figura daquele “papa e rei de todos os pobres do bairro de Todos os Santos”55 55 Ibidem, p. 116. . O doutor Titara é exatamente o paradigma do médico que entende sua prática como “finalidade para a existência”, portador do que Nava chama de “heroísmo de clínico”, uma vez que vivia exclusivamente para a medicina, superando toda e qualquer adversidade:

Clinicava incansavelmente, continuamente. Clinicava como um monstro, como uma máquina de clinicar. Amanhecia clinicando. Varava o dia clinicando. Almoçava prescrevendo. Jantava receitando. Entrava de noite adentro sarjando, escarificando, sangrando, colando cataplasmas, passando o “sedenho”, salpicando as “Moscas de Milão”, aderindo sinapismos. Infatigável, rápido, múltiplo e ubíquo - a pé e a cavalo, na casa do pobre e na casa do rico, nos morros, nas ruas, ao sol e à chuva do subúrbio. Clinicando até o fim, na cadeira de rodas onde o chumbou uma paralisia das pernas que comportava um tratamento feito com frio e calor, pela aplicação alternada de barras de gelo e de pontas de fogo nas extremidades paraplégicas.56 56 Ibidem, p. 120.

A eloquência com que a força da linguagem de Nava - que já deixa entrever no trabalho do historiador a poderosa prosa literária do memorialista - explica e ilustra o caráter quase sacrificial que a prática médica deveria assumir em tempos de “táticos exemplares” e de técnicos indiferentes e mecânicos. O doutor Titara, o herói popular de Nava equivalente ao erudito Torres Homem, na contramão da frieza do profissionalismo e da especialização, é dotado da “força de sedução pessoal” e da “tolerância, da inteligência e da participação sincera no sofrimento alheiro” capaz de “atrair o cliente e de fanatizá-lo, como outros tantos taumaturgos, arrastando multidões”57 57 Ibidem. .

III

De modo a deixar mais claro esse conjunto de tensões que estamos tratando, será interessante por fim recuperar o trabalho ainda inédito de Nava sobre Torres Homem, escrito entre 1945 e 1964, no qual muitos dos elementos que vimos acima reaparecem58 58 Nava, Pedro. Torres Homem. Manuscritos e datiloscritos depositados no Acervo de Pedro Nava da Fundação Casa de Rui Barbosa. . A obra e a atuação médica de Torres Homem são, não há dúvida, o que havia de mais erudito na medicina brasileira do século XIX, todo o oposto, portanto, de uma medicina “popular”, no sentido em que nos referíamos nas páginas acima. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, João Vicente Torres Homem foi lente da cadeira de Clínica Interna na mesma faculdade e filho de outro professor ilustre, Joaquim Vicente Torres Homem, além de fundador de uma das primeiras revistas especializadas da área, a Gazeta Médica do Rio de Janeiro59 59 Cf. Santos Filho, Licurgo de C. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1991. . Soma-se a isso o fato, não menos relevante, de ter sido durante muito tempo o médico pessoal de d. Pedro II.

Pedro Nava, no entanto, percebe e valoriza na prática de Torres Homem muitas daquelas características que vimos no doutor Titara: a dedicação irrestrita, o grande sentido de compaixão, a noção de sacrifício. Até mesmo o primado da ciência é algumas vezes colocado de lado por um médico que considera que sua prática é antes “trabalho do coração e mister da consciência” do que “tarefa da razão e empreitada da ciência”. Clinicar implica, antes de qualquer outra coisa, a abdicação de todo tipo de interesse que não o doente e seu sofrimento. O “seu”, aliás, refere-se tanto ao médico quanto ao paciente, afinal, lembrando uma citação do médico Miguel Couto, “Sofre cada um as suas dores, sofre o médico as de todos”. O médico, portanto, é colocado numa espécie de comunhão indissolúvel com aquele que precisa ser curado, e mil livros de medicina não substituirão essa sensibilidade, essa disposição para o outro:

Um indivíduo frio e insensível - mesmo quando altamente dotado de inteligência - nunca será um clínico completo: falta-lhe o empenho que vem da participação, o esforço que nasce do altruísmo, a diligência que é filha da comiseração e do amor. Pode resolver perfeitamente um diagnóstico - como quem deslinda uma charada ou como quem põe em equação um problema algébrico - mas ficará sempre impotente diante da humanidade trágica do doente: não o compreenderá, porque não teve dó, não o alcançará no indissolúvel complexo físico e moral da dor, porque não é dotado de acuidade para captá-la.

Há, portanto, algo de intangível, talvez mesmo de inapreensível, nas virtudes de um bom médico, sempre apresentadas e identificadas a partir de casos específicos, episódios clínicos narrados pelo próprio Torres Homem e que Nava reconstitui e aos quais confere sentido de conjunto. A obra inacabada, no entanto, está longe de se deixar resumir a uma série de exemplos que demonstrem a virtuose, digamos assim, de um médico excepcional, e por isso é importante que nos debrucemos um pouco mais sobre ela.

Os manuscritos e datiloscritos originais do estudo sobre Torres Homem ficaram conhecidos pelos pesquisadores da obra de Nava como uma biografia do médico do Império60 60 É o próprio Nava quem chama o texto de biografia, em trecho de Galo das trevas que relata inclusive os motivos que o teriam levado a abandonar seu projeto. Apesar de longa, a citação vale ser transcrita: “Essa biografia era, de minha parte, um trabalho de admiração pelo prodigioso mestre. Se derramava em ternura pela terra em que ele nascera. Com a punição dos assinantes do ‘Manifesto dos Mineiros’ — o coice que tomei daqueles dois, colocou-me em estado de náusea pelo governo. Esse nojo confundiu-se com o trabalho em que eu estava empenhado. É curioso: jamais pude juntar uma linha aos dois capítulos que tenho prontos na gaveta. São independentes um do outro e fazem dois ensaios que nas suas quase trezentas páginas podem dar um livro de tamanho apresentável”. Nava, Pedro. Galo das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 67. . O leitor desavisado que se dirija a esses originais depositados na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, esperando encontrar elementos da trajetória de vida do médico, seus dados profissionais ou mesmo um balanço de sua produção bibliográfica, no entanto, logo ficará surpreso ao perceber que se trata, na realidade, de outra coisa. O texto possui um objetivo muito claro, antecipado por Nava na introdução do trabalho: “a sistematização conjunta dos preceitos que caracterizavam seu [de Torres Homem] processo diagnóstico”, que, segundo Nava, apesar de fundamental, espécie de pedra angular para a história da medicina no Brasil, jamais fora recolhida ou exposta em uma suma, nem mesmo pelo próprio médico oitocentista. A apreciação dos datiloscritos pode levar então a perceber o texto muito mais como um estudo acadêmico metodológico, interessado em questões técnicas específicas, do que como uma biografia. O enquadramento do trabalho no gênero das biografias não é, contudo, um engano. Antes implica levar a sério o próprio conceito naviano de biografia que já indicamos, ou seja, menos preocupada em datas ou anedotas e sim em apresentar exemplos, e a bem-sucedida carreira de Torres Homem parecia ideal para esse objetivo61 61 Cabe frisar que a biografia de Torres Homem começou a ser escrita aproximadamente na mesma época em que Nava escreveu o texto anteriormente referido em que explicita sua compreensão do que é importante em uma biografia médica (“Introdução ao estudo da história da medicina no Brasil” é publicado como separata da revista Brasil Médico Cirúrgico em 1948 e compilado em Capítulos da história da medicina no Brasil em 1949). .

Inspirado, sobretudo, pelo médico francês León Rostan, o “processo de Torres Homem” para o exame e diagnóstico do doente compreenderia quatro etapas fundamentais e sucessivas. As duas primeiras, as únicas legadas pelo nosso autor (em conjunto com a introdução já referida), seriam a inspeção e o interrogatório, isto é, primeiro a observação bastante ampla e minuciosa do paciente62 62 A título de exemplo, somente a inspeção da face, a primeira e mais importante, deveria ser dividida em cinco grandes categorias: 1) a fisionomia (que por sua vez poderia ser indiferente, aterrorizada, retraída, animada etc. ) e a facies (hipocrática, stupida, amarílica etc. ); 2) as alterações quantitativas (emagrecida, encovada, vultuosa, entumescida, túrgida); 3) as alterações de cor (empalidecida, amarelada, ictérica, esverdinhada, lívida etc. ); 4) as condições dos músculos e tendões (contraturas, saliências, assimetrias, paralisia etc. ); e 5) a inspeção das regiões e cavidades, que por sua vez são seis, cada uma com uma série de especificidades: frontal, temporal, bochechas, ocular e palpebral, nasal e bucal. Seguindo à face, a inspeção geral do paciente deveria ainda ater-se sobre o crânio, o pescoço, o tórax, o abdômen, os órgãos genitais, os membros e, finalmente, a pele. , e em seguida o momento da troca de informações, em que o médico se dispõe a escutar o que o doente tem a dizer. Os dois capítulos, portanto, se dedicam a apresentar uma série de métodos, estratégias, teorias e revisões históricas do tratamento de doenças, de modo a compor um padrão procedimental do médico em face do paciente. Em resumo, Nava está interessado em compreender, organizar e sugerir um método de trabalho, segundo ele exemplar, e que por isso mesmo valeria a pena ser recuperado mesmo meio século após o desaparecimento de Torres Homem.

Ao mesmo tempo que evoca um arsenal técnico vastíssimo, e portanto pertencente à dimensão que aqui estamos tratando como a face erudita da medicina, Nava aprecia em Torres Homem seu incansável humanismo, que, apesar de remeter também a uma tradição acadêmica - a medicina francesa -, surpreende numa série de características por ele indissociáveis às grandes qualidades da medicina popular: a comunhão com o doente, a valorização de elementos que transcendem o indivíduo isolado (o meio, o trabalho, as diversas formas de alimentação, a cultura, enfim) e essa atitude quase “devocional” do médico, em que o tratamento do paciente se torna uma exigência, um valor em si mesmo. Talvez pudéssemos mesmo dizer que é nessa noção de “humanismo”, tão cara ao nosso autor, que se encontram mais claramente o popular e o erudito em sua perspectiva sobre o saber médico. Saber que, não obstante, foi produzido sempre na prática, na sua e na de seus colegas - Rostan e Titara, Juca Rosa e Torres Homem, feiticeiros e especialistas -, e a partir da qual Nava percebeu que há muito mais em comum entre médicos do subúrbio e catedráticos da Sorbonne do que supunha uma vã história da medicina.

Na biografia de Torres Homem, Nava compara sua profissão a um “sacerdócio”, o “sacerdócio da medicina”:

Expressão [“sacerdócio da medicina”] que para o vulgar levita transformou-se num lugar comum esvaziado e gasto, conserva quando usada por Torres Homem a plenitude de seu incomparável sentido, uma vez que corresponde literalmente a sua vida de homem raro para quem a Arte foi profissão sem deixar de ser também o instrumento de sua comunicação com o próximo e do exercício de sua solidariedade com os padecimentos que o afligem durante a doença e em face da morte.

A ideia de sacerdócio torna-se especialmente interessante se recuperarmos a discussão weberiana sobre o assunto, o que faremos à guisa de conclusão do artigo. Em Economia e sociedade, Max Weber situa as origens do sacerdócio num movimento de oposição à magia, isto é, ambos se apresentam como princípios concorrentes de se relacionar com o poder suprassensível. Em que consiste essa diferença? Os sacerdotes são definidos, sobretudo, como “funcionários profissionais” a serviço de Deus, que pertencem normalmente a uma empresa permanente e regular, estando assim sempre ligados a uma associação. Exatamente ao contrário dos magos, que, ao invés de Deus, “forçam os demônios” através da magia e agem quase sempre de modo individual e ocasional, refratários a se organizarem em associações63 63 Weber, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v. 2. Brasília/São Paulo: Editora da UnB/Imprensa Oficial, 1999, p. 294. . Há, no entanto, ainda outra distinção oferecida por Weber que nos parece particularmente decisiva. Os sacerdotes distinguem-se “como capacitados por seu saber específico, sua doutrina fixamente regulada e sua qualificação profissional, daqueles que atuam em virtude de dons pessoais (carisma) e da prova destes por milagre e revelação pessoal, isto é, de um lado, os magos e, de outro, os profetas”64 64 Ibidem. . O sacerdócio implica, portanto, uma forma de saber sistematizada, ensinada a partir de uma doutrina específica e bem estabelecida, e não um dom, necessariamente inexplicável.

Já foi sugerido que o sacerdote aparece na sociologia da religião de Weber como um tipo ideal de profissional, justamente por oposição ao mago, desprovido de treinamento racional e sistemático65 65 Cf. Ritzer, George. “Professionalization, bureaucratization and rationalization: the views of Max Weber”. Social Forces. Chapel Hill: Oxford University Press, v. 53, no 4, junho de 1975. . Essa distinção não parece se distanciar muito daquela que estamos acompanhando em Nava, que percebe a existência de duas exigências distintas na cultura médica, isto é, o dom pessoal e um conjunto de técnicas e procedimentos estabelecidos. Não podemos deixar que escape, no entanto, um dos elementos cruciais não apenas da distinção weberiana entre magos e sacerdotes, mas de toda a sua sociologia: “Na realidade, a oposição [entre magos e sacerdotes] é inteiramente fluida, como ocorre em quase todos os fenômenos religiosos”66 66 Weber, op. cit. , p. 294. . Assim, não é estranho encontrar, por exemplo, magos que controlem saberes específicos, ou então sacerdotes cuja função esteja ligada a um carisma pessoal.

É justamente naquela fluidez de que fala Max Weber que parece se mover o nosso médico-autor Pedro Nava. A biografia nos coloca diretamente no interior da tensão entre o que parecem ser duas formas a princípio distintas de perceber a medicina. Sem abrir mão de um debate acadêmico sobre a profissionalização, com seu primado da técnica, do treinamento, da sistematização dos saberes e a disputa pelo monopólio dos serviços67 67 Cf. Turner, Bryan S. For Weber: essays on the sociology of fate. Londres: SAGE, 1996. Na biografia de Torres Homem, Nava ressalta, por exemplo, que “um dos suplícios da vida do médico, um dos nossos calvários é aguentar com paciência os pegajosos, os prolixos, os repisadores de fatos, os interpretadores, os remoedores de informações”. Logo em seguida cita um longo trecho escrito por Torres Homem que exemplifica bem a ideia de disputa pelo monopólio da profissão: “Sendo a medicina de todas as ciências a menos acessível a quem não é profissional, é no entanto a única sobre a qual o vulgo se julga com direitos de emitir juízos; nada é mais comum de que ouvir homens e mulheres dotados da mais antiga supina ignorância [. . . ] fazerem diagnósticos [. . . ]. Admitem teorias extravagantes e absurdas, procuram para cada moléstia explicações que estejam ao alcance de sua inteligência, concedem virtudes especiais e misteriosas a certas plantas; explicam tudo pela acrimônia e podridão dos humores transportados à cabeça e ao peito [. . . ]”. , Nava identifica qualidades que deveriam ser inerentes a qualquer bom médico e que, não obstante, tenderiam a desaparecer como consequência da própria profissionalização excessiva que a medicina vinha experimentando naquela primeira metade do século XX. Não sem uma pitada de ironia, o progresso da medicina fazia agonizar algumas de suas próprias virtudes, mas que teimavam em resistir, ainda que sempre à margem daquele mesmo progresso, justamente (e de modo surpreendente) nas práticas populares.

Talvez possamos agora ao menos começar a recolocar de outro modo aquela indagação de Carlos Drummond de Andrade sobre, como vimos no início deste artigo, como teria podido Pedro Nava desenvolver seu estilo contundente e lépido em meio às obrigações de uma vida profissional extenuante. Como esperamos ter indicado, longe de ter sido prisão, a prática e o estudo da medicina foram mais propriamente um campo aberto de descobertas e experiências, encarado antes enquanto entrega vocacional do que encerrado no - para falarmos como o poeta - brejo das almas do ramerrão. E, como nunca é demais citar Drummond, a medicina parece ter justamente enriquecido sobremaneira aquele “mundo feito de acontecimentos”, dado o caráter sempre tenso e sinuoso com que foi vivida pelo médico-autor. Vistas as coisas por esse ângulo, possivelmente não exageraremos ao sugerir que foi inclusive pela, e não a despeito da, dedicação aos afazeres profissionais e ao exercício de imersão e abertura implicados que em parte podemos compreender melhor certos aspectos das Memórias, sem no entanto cair na tentação simplista de explicá-las unicamente pela trajetória profissional de Nava.

Uma descoberta modernista a seu modo, com a qual temos muito ainda a aprender não apenas sobre medicina e suas histórias, mas, com seus desdobramentos, sobre a sociedade em que a visão mais plural de civilização de Pedro Nava que fundamenta seu empenho acabou por se tornar utópica, senão francamente ultrapassada, a exemplo, aliás, do que ocorreu também, em grande medida, com as ideias de seu amigo, correspondente e paciente Mário de Andrade68 68 Botelho, op. cit. , 2013. . Ao resistir à tentação teleológica de buscar no passado apenas e simplesmente as origens de um presente inevitável, uma sociologia histórica das ideias abre-se à possibilidade de prospecção e reconhecimento de muitos outros projetos, de visões e vozes concorrentes que acabaram abafadas pelo triunfo de sentido em certos processos da vida social.

A visão empática que Pedro Nava manifesta em seus textos em relação à medicina popular, assim como, por outro lado, sua visão crítica sobre a crescente especialização técnica no exercício da profissão, embora nenhuma das duas esteja livre de ambiguidades como discutimos, codificam uma interpretação mais ampla do Brasil e nos ajudam a compreender o sentido homogeneizante, unilateral e pouco criativo que também os processos, relações e ações constitutivas da medicina parecem ter assumido em nossa sociedade. Daí que o interesse sociológico contemporâneo pelo modernismo não esteja tanto naquilo que os modernistas valorizaram, circunscrito ao seu contexto histórico, mas nos deslocamentos de significados mais amplos e duradouros que com suas interpretações do Brasil provocaram, e que nos chegam hoje, ao menos, como vozes dissonantes a nos alertar sobre os processos e as escolhas feitas no passado. E os escritos sobre medicina de Pedro Nava têm ainda muito a nos dizer, sociologicamente, tanto sobre suas Memórias, que persistem se recusando a uma ordenação simplista de gêneros e temporalidades, quanto sobre o “desencantamento”, para falar ainda uma vez como Max Weber69 69 Sobre desencantamento do mundo em Max Weber, ver Pierucci, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo: Editora 34, 2003. , das práticas médicas que, cedo ou tarde, nos atinge a todos.

  • 1
    Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada à 2ª Conferência Medicina, Laboratório e Sociedade, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em outubro de 2013. Agradecemos especialmente a Isabel Amaral e a Cristiana Bastos os comentários ao trabalho.
  • 2
    Entrevista com Pedro Nava a Helena Bomeny, com a participação de Rene Peixoto Batista. Rio de Janeiro, 3 de abril de 1983, datilo. Acervo particular. Os autores agradecem a Helena Bomeny o acesso e a autorização para citar essa entrevista ainda inédita.
  • 3
    Cf. Candido, Antonio. “Poesia e ficção na autobiografia”. In: A educação pela noite. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006; e Botelho, André. “As Memórias de Pedro Nava: autorretrato e interpretação do Brasil”. In: Nava, Pedro. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • 4
    Cf. Botelho, André. “Pedro Nava: memorialista e intérprete do Brasil”. Ciência Hoje, Rio de Janeiro: Instituto Ciência Hoje, v. 51, 2013.
  • 5
    Cf. Yates, Frances. The art of memory. Chicago: University of Chicago Press, 1996; e Beaujour, Michel. Miroirs d’encre: rhétorique de l’autoportrait. Paris: Seuil, 1980.
  • 6
    Andrade, Carlos Drummond de. “Baú de surpresas”. In: Nava, Pedro. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 22.
  • 7
    Cf. Bomeny, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994; Marques, Ivan. Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte. São Paulo: Editora 34, 2011; e Botelho, André. “O modernismo barroco de Pedro Nava”. In: Nava, Pedro. Beira-mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
  • 8
    Sobre o Sabadoyle, cf. Senna, Homero. O Sabadoyle: histórias de uma confraria literária. Rio de Janeiro:Casa da Palavra, 2000.
  • 9
    Andrade, Carlos Drummond de. , op. cit. , p. 23.
  • 10
    Arrigucci Jr. , Davi. “Móbile da memória”. In: Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 91.
  • 11
    Aguiar, Joaquim Alves de. “O médico historiador e o memorialista”. Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, no 53, março de 1999, p. 154.
  • 12
    Cf. Botelho, André. De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
  • 13
    Cf. Botelho, André. “As Memórias de Pedro Nava: autorretrato e interpretação do Brasil”. In: Nava, Pedro. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • 14
    Quanto aos processos formais modernistas de criação, vale destacar que a própria enumeração apontada pioneiramente por Antonio Candido como recurso estético que permite a ampliação do campo de significação das memórias individuais e familiares de Nava está imemorialmente presente na cultura popular brasi- leira, como nas louvações e nos can- tadores nordestinos, e se conserva ainda muito viva na memória coletiva (Candido, Antonio. “Poesia e ficção na autobiografia”. In: A educação pela noite. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006). Registro a partir do qual já havia sido transposta e transfigurada para o plano narrativo de uma das realizações capitais da cultura brasileira, embora igualmente de difícil classificação, com efeitos estéticos semelhantes aos alcançados pelas Memórias de Pedro Nava. Referimo-nos a Macunaíma, de Mário de Andrade, publicado em 1928, em que a enumeração, como mostrou Gilda de Mello e Souza, constitui recurso crucial para relativizar a pretensão enfática do temário europeu, retirar ao temário localista a inocência da marginalidade e dar sentido calcula- do e cômico aos desníveis narrativos que assinalam o desencontro dos postulados reunidos no livro. Souza, Gilda de Mello. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
  • 15
    Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • 16
    Durkheim, Émile; Mauss, Marcel. “Algumas formas primitivas de classificação”. In: Mauss, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.
  • 17
    Cf. Botelho, André e Gonçalves, José Reginaldo S. “As Memórias de Pedro Nava: considerações preliminares”. In: “Memorialismo em perspectiva comparada”. 34º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, outubro de 2010, datilo.
  • 18
    Nava, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil. São Paulo:Ateliê, 2003, p. 10. Daqui em diante CHMB.
  • 19
    CHMB, p. 12.
  • 20
    Ibidem, p. 11.
  • 21
    Nava, Pedro. Território de Epidauro: crônicas e história da história da medicina. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 50. Daqui em diante TE.
  • 22
    TE, p. 182.
  • 23
    Ibidem, p. 183.
  • 24
    Ibidem, p. 39.
  • 25
    Ibidem, p. 41.
  • 26
    Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 15. Ainda sobre o tema da circularidade cultural, cf. Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1987, publicado originalmente na década de 1940.
  • 27
    Cf. Belmont, Nicole. “Le folklore refoulé, ou les séductions de l’archaïsme”. L’Homme. Paris: Éditions de l’EHESS, v. 26, nos 1-2, janeiro-junho de 1986.
  • 28
    TE, p. 110.
  • 29
    Ibidem, p. 111.
  • 30
    Ibidem.
  • 31
    Ibidem.
  • 32
    Nava foi empossado como membro titular na Academia Nacional de Medicina em 18 de julho de 1957, após apresentar uma tese intitulada Contribuição ao estudo clínico da osteoartrite do joelho, e teve atuação bastante ativa na instituição.
  • 33
    A quantidade de artigos especializados publicados por Nava é enorme, e passariam dos trezentos ou quatrocentos. Cf. Vasconcelos, Eliane. “De bissexto a contumaz: o arquivo pessoal de Pedro Nava”. In: Vasconcelos, Eliane (org). Inventário do Arquivo Pedro Nava. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2001. O número é difícil de ser confirmado, pois ainda está por ser feito o levantamento exaustivo de todo esse material. No entanto, o curriculum vitae de Nava disponível nos arquivos da Academia Nacional de Medicina indica o impressionante número de 322 trabalhos, entre conferências publicadas, livros e artigos, somente até o ano de 1956.
  • 34
    Segundo o já referido curriculum vitae disponível na Academia Nacio- nal de Medicina, Nava fez estágios na França em 1948, 1952 e 1955, além de participar de congressos inter- nacionais em 1948, 1950 e 1955. No mesmo documento, lemos que em 1951 foi designado pelo Ministério de Educação e Saúde para estudar na França, Inglaterra, Holanda e Suíça a organização das clínicas reumatoló- gicas. Monique Le Moing ainda faz referência a viagens de estágio e tra- balho para a França em 1961 e 1963. Le Moing, Monique. A solidão povoada: uma biografia de Pedro Nava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
  • 35
    TE, p. 24.
  • 36
    Referências a tipos e contextos diversos de criminalização e perseguição a práticas médicas populares no Brasil podem ser encontradas, por exemplo, em Maggie, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; Madel, Therezinha Luz. Arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. São Paulo: Dynamis, 1996; Giumbelli, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997; Chalhoub, Sidney (org. ). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora Unicamp, 2003; e Carvalho, Antonio C. D. de. Feiticeiros, burlões e mistificadores: criminalidade e mudança das práticas populares de saúde em São Paulo - 1950 a 1980. São Paulo:Editora Unesp, 2005.
  • 37
    TE, p. 210.
  • 38
    Os séculos XVIII e XIX trouxeram, segundo Nava, uma espécie de guinada radical na compreensão da medicina que poderia ser resumida na perda de um fundo comum, de uma estrutura única que fizesse convergir as diversas doutrinas médicas. Mesmo que muitas vezes conflitantes, essas doutrinas obedeceriam sempre a certos princípios, dos quais Nava ressalta a subordinação da investigação médica à filosofia geral e, corolário desta, a orientação, de sentido especulativo, sobre a vida, a saúde, a doença e a morte em uma direção “centrípeta”, isto é, e citando o autor, “caminhando da generalização para o particular, da interpretação universal para a explicação no indivíduo”. TE, p. 182.
  • 39
    TE, p. 185.
  • 40
    Na origem das teorias humorais clássicas encontra-se a tese de que os quatro humores ou temperamentos (bile amarela, bile negra, fleuma e sangue) corresponderiam aos elementos cósmicos e coordenariam, por um princípio de combinações, o comportamento e o caráter dos indivíduos. Trata-se de uma tentativa de explicação do comportamento humano profundamente fundamentada em um princípio de harmonia entre esses humores, que deveriam, na saúde plena, encontrar-se em equilíbrio. A doença, pelo contrário, é justamente resultante do desequilíbrio humoral. Cf. Klibansky, Raymond; Panofsky, Erwin, Saxl, Fritz. Saturne et la melancolie: études historiques et philosophiques — nature, religion, medecine et art. Paris: Gallimard, 1989. Como resume Jackie Pigeaud: “Eles [os humores] fazem do homem um ser do contínuo, um todo orgânico. Mas, igualmente, esses quatro humores, cada um dos quais está ligado a uma estação, inscrevem o homem no mundo, ideia profundamente hipocrática. O homem vive no ritmo do universo; mas, sobretudo, adoece no ritmo do universo”. Pigeaud, Jackie. Metáfora e melancolia: ensaios médico - filosóficos. Rio de Janeiro: PUC Rio/Contraponto, 2009, p. 66.
  • 41
    Com algum auspício, para o autor, estava o fato de que novas tendências, ainda tímidas, pareciam se desenhar no momento em que Nava escrevia (o autor assinala que o artigo foi escrito em 1937), como o ressurgimento das investigações bioquímicas e biofísicas e, principalmente, das teses do moderno humoralismo. Beneficiada pelos avanços da bioquímica, a nova teoria dos humores restauraria a importância de pensar o organismo não a partir do arbítrio ou da desordem, mas da integração dos aspectos morfológicos e funcionais em um conjunto harmônico [cf. nota anterior] (cf. TE, pp. 194-19).
  • 42
    TE, pp. 133-4.
  • 43
    Ibidem, p. 134. É interessante notar o contraste implícito que Nava estabelece entre dois modelos de ensino (que encobrem concepções de mundo diversas), um mediterrâneo/latino e outro anglo-saxão. O tema, como sabemos, é um clássico do pensamento social brasileiro. Gilberto Freyre censura particularmente essa inclinação de Nava em valorizar a tradição médica francesa, que Freyre julga excessiva, ainda que faça questão de ressaltar que “[Nava] não seja de modo algum um simplista”. Sociologia da medicina. São Paulo: É Realizações, 2009, p. 98.
  • 44
    TE, p. 134.
  • 45
    Ibidem. Esse parece ter sido o sentido de um dos conselhos mais penetrantes que Nava teria dado ao sobrinho de sua esposa, também médico, Paulo Penido, que num momento de desilusão com a profissão ouviu de Nava as seguintes palavras: “Não desanime;se você tem vocação, o próprio exercício da profissão será sua melhor remuneração; aproveite a enorme e maravilhosa oportunidade de tratar as pessoas e às vezes curá-las”. Penido, Paulo. “Prefácio”. In: Nava, Pedro. O anfiteatro: textos sobre medicina. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 18.
  • 46
    TE, p. 137.
  • 47
    Aguiar, op. cit.
  • 48
    Para uma discussão recente sobre a crise da medicina entendida enquanto Arte, cf. Kleinman, Arthur. “Catastrophe and caregiving: the failure of medicine as an art”. The Lancet. Londres: Elsevier, v. 371, nº 9606, janeiro de 2008.
  • 49
    CHMB, p. 207.
  • 50
    TE, p. 111.
  • 51
    Referência ao centro do Rio de Janeiro, região que concentrava, até há bem pouco tempo, a maior parte dos principais serviços da cidade.
  • 52
    TE, p. 113.
  • 53
    Ibidem, p. 115.
  • 54
    Ibidem, pp. 115-6. Sobre o tema da medicina familiar e seus impasses entre especialização e totalidade nos contextos brasileiro e argentino, ver Bonet, Octavio. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.
  • 55
    Ibidem, p. 116.
  • 56
    Ibidem, p. 120.
  • 57
    Ibidem.
  • 58
    Nava, Pedro. Torres Homem. Manuscritos e datiloscritos depositados no Acervo de Pedro Nava da Fundação Casa de Rui Barbosa.
  • 59
    Cf. Santos Filho, Licurgo de C. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1991.
  • 60
    É o próprio Nava quem chama o texto de biografia, em trecho de Galo das trevas que relata inclusive os motivos que o teriam levado a abandonar seu projeto. Apesar de longa, a citação vale ser transcrita: “Essa biografia era, de minha parte, um trabalho de admiração pelo prodigioso mestre. Se derramava em ternura pela terra em que ele nascera. Com a punição dos assinantes do ‘Manifesto dos Mineiros’ — o coice que tomei daqueles dois, colocou-me em estado de náusea pelo governo. Esse nojo confundiu-se com o trabalho em que eu estava empenhado. É curioso: jamais pude juntar uma linha aos dois capítulos que tenho prontos na gaveta. São independentes um do outro e fazem dois ensaios que nas suas quase trezentas páginas podem dar um livro de tamanho apresentável”. Nava, Pedro. Galo das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 67.
  • 61
    Cabe frisar que a biografia de Torres Homem começou a ser escrita aproximadamente na mesma época em que Nava escreveu o texto anteriormente referido em que explicita sua compreensão do que é importante em uma biografia médica (“Introdução ao estudo da história da medicina no Brasil” é publicado como separata da revista Brasil Médico Cirúrgico em 1948 e compilado em Capítulos da história da medicina no Brasil em 1949).
  • 62
    A título de exemplo, somente a inspeção da face, a primeira e mais importante, deveria ser dividida em cinco grandes categorias: 1) a fisionomia (que por sua vez poderia ser indiferente, aterrorizada, retraída, animada etc. ) e a facies (hipocrática, stupida, amarílica etc. ); 2) as alterações quantitativas (emagrecida, encovada, vultuosa, entumescida, túrgida); 3) as alterações de cor (empalidecida, amarelada, ictérica, esverdinhada, lívida etc. ); 4) as condições dos músculos e tendões (contraturas, saliências, assimetrias, paralisia etc. ); e 5) a inspeção das regiões e cavidades, que por sua vez são seis, cada uma com uma série de especificidades: frontal, temporal, bochechas, ocular e palpebral, nasal e bucal. Seguindo à face, a inspeção geral do paciente deveria ainda ater-se sobre o crânio, o pescoço, o tórax, o abdômen, os órgãos genitais, os membros e, finalmente, a pele.
  • 63
    Weber, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v. 2. Brasília/São Paulo: Editora da UnB/Imprensa Oficial, 1999, p. 294.
  • 64
    Ibidem.
  • 65
    Cf. Ritzer, George. “Professionalization, bureaucratization and rationalization: the views of Max Weber”. Social Forces. Chapel Hill: Oxford University Press, v. 53, no 4, junho de 1975.
  • 66
    Weber, op. cit. , p. 294.
  • 67
    Cf. Turner, Bryan S. For Weber: essays on the sociology of fate. Londres: SAGE, 1996. Na biografia de Torres Homem, Nava ressalta, por exemplo, que “um dos suplícios da vida do médico, um dos nossos calvários é aguentar com paciência os pegajosos, os prolixos, os repisadores de fatos, os interpretadores, os remoedores de informações”. Logo em seguida cita um longo trecho escrito por Torres Homem que exemplifica bem a ideia de disputa pelo monopólio da profissão: “Sendo a medicina de todas as ciências a menos acessível a quem não é profissional, é no entanto a única sobre a qual o vulgo se julga com direitos de emitir juízos; nada é mais comum de que ouvir homens e mulheres dotados da mais antiga supina ignorância [. . . ] fazerem diagnósticos [. . . ]. Admitem teorias extravagantes e absurdas, procuram para cada moléstia explicações que estejam ao alcance de sua inteligência, concedem virtudes especiais e misteriosas a certas plantas; explicam tudo pela acrimônia e podridão dos humores transportados à cabeça e ao peito [. . . ]”.
  • 68
    Botelho, op. cit. , 2013.
  • 69
    Sobre desencantamento do mundo em Max Weber, ver Pierucci, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo: Editora 34, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2015
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