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SOBRE “UM ELEFANTE SENTADO QUIETO”1 1 Este artigo, em versão preliminar, foi apresentado no XVII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho: crises e horizontes do trabalho a partir da periferia, na modalidade remota, em setembro de 2021. Pude ainda debater o cinema de Hu Bo em reunião do grupo “Formas culturais e sociais contemporâneas”, sob a coordenação de Anderson Gonçalves, Edu Teruki Otsuka e Ivone Daré Rabello, a quem agradeço também pelas sugestões ao texto.

About “An Elephant Sitting Still”

RESUMO

O artigo analisa o longa-metragem chinês Um elefante sentado quieto (2018), de Hu Bo. A partir da configuração de situações individuais entendidas como sem saída, o filme mostra aspectos da conversão de um distrito popular através da atual economia de mercado. Considerando o tema da fuga na obra, o artigo discute como o ponto de vista narrativo internaliza uma experiência de tempo vivido como ameaça, no norte da China continental.

PALAVRAS-CHAVE:
Um elefante sentado quieto; Hu Bo; cinema chinês contemporâneo

ABSTRACT

This is an analysis of the Chinese feature film An Elephant Sitting Still (2018), by Hu Bo. From the configuration of individual situations understood as dead end, the film shows aspects of the conversion of a popular district through the current market economy. Considering the theme of fugue in the work, the article discusses how the narrative point of view internalizes an experience of time lived as a threat, in northern Mainland China.

KEYWORDS:
An Elephant Sitting Still; Hu Bo; contemporary Chinese cinema

Na primeira década do século XXI, quando o Brasil vivia seu momento de euforia neodesenvolvimentista, um dos cineastas mais estimados pela crítica internacional era Jia Zhangke, autor que, nas palavras de Zhang Xudong, figura um conjunto de “almas errantes e sonhos arruinados, cheio de revolta reprimida, desilusão e desespero tão profundos que, como uma doença crônica, tornam-se parte do cotidiano” (2011, p. 73). A ele se vinculava o cinema urbano da China continental, então uma novidade histórica.2 2 Feitos em parte na clandestinidade, os filmes da geração urbana ganharam alcance a partir de festivais cinematográficos do Ocidente, onde se projetaram nomes como Jia Zhangke, Zhang Yuan, Wang Xiaoshuai e Lou Ye. Sobre seus temas e procedimentos formais, ver Zhang (2007). No estudo de Otília Arantes sobre o hiperurbanismo chinês, encontra-se ainda uma imagem-modelo para essa produção. Em O mundo (2004), de Jia Zhangke, um longo travelling “acompanha a corrida em declive de uma figura feminina, estafando-se numa ‘long march to nowhere’”. Diz a autora: “É como se ela [a corrida] se desse numa esteira mecânica, onde, quanto mais se acelera, mais as energias futuras se esvaem num aqui e agora sem fim” (Arantes, 2011, p. 11). Surgida nos anos 1990, sob o impacto das reformas de Deng Xiaoping e do movimento da Praça da Paz Celestial, essa produção definia-se como “cronista ou historiador[a]” do período de abertura econômica (Berry, 2009Berry, Chris. “Jia Zhangke and the Temporality of Post-Socialist Chinese Cinema: in the Now (and Then)”. In: Khoo, Olivia; Metzger, Sean (orgs.). Futures of Chinese Cinema: Technologies and Temporalities in Chinese Screen Cultures. Bristol: Intellect, 2009., p. 121). Desde então, interpretações históricas divergentes disputam os sentidos da ascensão do poder global da China, projetando-se ali tanto o deslocamento sustentável do centro de acumulação capitalista quanto o “socialismo de mercado” - como se forças por definição antissociais (como valor, mercadoria e dinheiro) tivessem encontrado no Oriente seu limite racional, sob a tutela do Estado.3 3 Para uma breve reconstituição histórica da modernidade chinesa, de uma “isolada economia planejada pelo Estado para um centro integrado de produção capitalista”, ver Coletivo Chuang (2021). Maurilio Botelho e Marcos Barreira (2021) discutem esse problema à luz do alinhamento de parcelas da esquerda brasileira ao “capitalismo asiático”, que parece servir a autores e influencers progressistas que se veem impotentes ante a crise global e a radicalização da direita. De modo não apologético, Camila Moreno (2015) apresenta os vínculos objetivos entre a economia do Brasil e da China, sobretudo desde a bolha das commodities.

Visto em retrospectiva, o caráter de “testemunho” do cinema chinês recente, tal como o define Zhang Zhen (2007Zhen, Zhang (org.). The Urban Generation: Chinese Cinema and Society at the Turn of the Twenty-First Century. Durham/Londres: Duke University Press, 2007., pp. 1-45), não se sai mal em comparação com a historiografia oficial e sua dissidência liberal, cuja componente mistificada foi sublinhada pelos filmes. Basta lembrar, por exemplo, a obra-prima Em busca da vida (2006), filmada por Jia em Feng Jie, cidade de mais de 2 mil anos que estava prestes a ser submersa pela barragem das Três Gargantas. Ao representar a conversão chinesa à economia de mercado a partir do trabalho de demolição de Feng Jie, o sentido realista desse filme se configura por uma espécie de “redução” ou “suspensão da História” (Xudong, 2011Xudong, Zhang. “Poética da desaparição”. Novos Estudos Cebrap, n. 89, 2011, pp. 71-87.), numa cena infensa à lógica cumulativa e ascendente implicada no antigo modelo de desenvolvimento nacional.

Quando Um elefante sentado quieto (2018) estreou no Brasil, em fevereiro de 2019, esse único longa-metragem de Hu Bo - natural de Jinan, capital da província de Shandong - pareceu fora de esquadro em relação à própria estética de Jia Zhangke. Cecília Mello (2022_______. “Hu Bo’s Ethics of Realism”. In: Berry, Chris; Yu, Sabrina; Robinson, Luke (orgs.). Reassessing Chinese Independent Cinema. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2022 (no prelo).), por exemplo, menciona as “tomadas enigmáticas” da câmera semissubjetiva de Hu Bo, em que parece faltar “um sujeito no mundo diegético”, em meio a um “labirinto de escadas, grades, pontes, paredes antigas e túneis que povoam o filme” e prendem as personagens. Os célebres indivíduos migrantes de Jia Zhangke - em obras como O mundo (2004), Em busca da vida (2006) e Um toque de pecado (2013) - têm fisionomia social distinta. Eles buscam se inserir no “mundo adverso que o mercado lhes franqueia dentro do amplo desígnio nacional”, segundo Roberto Noritomi (2020Noritomi, Roberto. “Cinema na quarentena: Jia Zhangke e Hu Bo”. A Terra é Redonda, 10 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/cinema-na-quarentena-jia-zhangke-e-hu-bo/ >. Acesso em: 15/7/2021.
https://aterraeredonda.com.br/cinema-na-...
). Na confluência entre lícito e ilícito que caracteriza seu circuito de empregos, esses migrantes podem fracassar várias vezes (como é caso do mineiro Han Sanming), mas nenhum deles interrompe essa marcha expiatória, acompanhada pelos longos arcos temporais próprios ao cinema de Jia.

O roteiro de Um elefante é uma adaptação do conto homônimo escrito por Hu Bo em 2017 para a coletânea Huge Crack sob o pseudônimo de Hu Qian. E qian significa, justamente, “migrar”.4 4 Para uma análise comparativa entre os escritos literários e o filme de Hu Bo, ver J. X. Zhang (2021). Mas o filme, que tem quase quatro horas de duração, acompanha um único dia na rotina de quatro personagens, todas pertencentes às camadas subalternas e situadas à margem do mundo do trabalho. São dois estudantes secundaristas, o protagonista Wei Bu e a menina Huang Ling, o chefete da gangue local, Yu Cheng, e o ex-militar aposentado Wang Jin. Sentindo-se abandonados à própria sorte, cada um deles passa a tolerar muito mal a frustração e as humilhações acumuladas no cotidiano. “Minha vida é um contêiner de lixo. E o lixo continua se amontoando”, resume Yu Cheng.

A locação escolhida, por onde deambulam essas figuras sem destino aparente, é o distrito de Jingxing, em Shijiazhuang, a principal cidade da província de Heibei (região norte da China). Trata-se de uma paisagem marcada pela decadência da indústria do carvão, que, no período maoista, era o símbolo do esforço de modernização nacional. Essa continuada falta de perspectiva dos de baixo recebe aqui tratamento incomum. E que difere, em parte, do dever de memória assumido pelo cinema chinês, cujo tema recorrente é o fenômeno de chaiqian, referente à prática de demolição e remoção forçada de bairros e comunidades inteiras no país.5 5 Jean Ma fala em “obsessão pela memória” no cinema chinês recente, fundado num “profundo sentimento de perda” ante um “passado sempre prestes a se esvanecer” (Ma, 2010, p. 11). Já Cecília Mello, que também vê senso de “urgência” nessa cinematografia, procura enfatizar ali a “emergência do ‘eu’”, o que teria constituído “pontes entre o individual e o coletivo, entre a memória pessoal e a experiência histórica” (Mello, 2019, p. 91). Hu Bo não se compraz em explorar o enredamento no passado como campo de reparação simbólica. Tampouco se limita à dimensão psicológica da vingança, fermentada por esses retardatários do crescimento econômico. Não há passado recente a resgatar.

As personagens de Hu Bo sabem que perderam, isto é, que não há lugar para todos nesse novo capitalismo asiático. No filme, promessas de ascensão pessoal são abortadas precocemente, sob o esgotamento do sentido e da possibilidade de acumulação produzida pelo trabalho. “Não seja um inútil quando tiver a minha idade”, diz Yu Cheng ao jovem protagonista do filme, Wei Bu. “Qual a diferença se tiver alguma utilidade?”, pergunta o adolescente, destinado a ser “vendedor de comida na rua”, segundo o vice-diretor de seu colégio. Tratando, em particular, do sentimento de humilhação que desestrutura a linguagem e a percepção social das personagens, a obra não supõe sofrer com determinado alvo de relegação social (como postula parte da literatura e do cinema contemporâneos). Se assim fosse, caberia à crítica a compreensão do sentimento autêntico inscrito no lugar de fala do outro, o que lhe confere poder simbólico. É outra a situação de Um elefante. Hu Bo desconfia da tese de que a solução para o problema objetivo da invisibilização social do pobre seja conferir voz narrativa a ele. Nos longos silêncios e falas rancorosas desesperançadas, as personagens são anuladas. E os afetos negativos que atravessam o enredo não têm estatuto absoluto e atemporal - a começar pelo sentimento de ser supérfluo e descartável em meio à generalização dos critérios da economia de mercado.

Ainda assim, a obra serve a uma identificação direta com esses modos de vida à deriva, feita desde a primeira pessoa do crítico, que procura viver dramaticamente o fim de linha projetado na tela. Sobre a combinação de planos alongados em locação e câmera de foco curto, que limita o espaço ao quadro (e por meio da qual Hu Bo e o diretor de fotografia Fan Chao formalizam uma situação de desespero e intensificação do sofrimento social), Cássio Starling Carlos afirma que a obra nos leva a “identificar o longínquo norte da China como o lugar onde estamos” (2019). Desse modo, parte da recepção do filme entendeu o problema de forma dramática, numa espécie de contínuo psicológico entre sujeito e objeto.

Este artigo incorpora como unidade de análise do filme essa percepção difusa de tempo vivido como ameaça (fantasmática ou não), a partir da qual as personagens parecem oscilar entre a evitação de perigos cotidianos que se supõem iminentes e a desvinculação irrestrita em relação a esses riscos. Essa situação narrativa, que se acompanha a partir da paráfrase sobre a caracterização dos sujeitos e a organização do enredo, deixa ver uma angústia social que já não encontra consolo no mundo narrado. Dito ainda em termos demasiado gerais, Hu Bo supõe o fim dos nexos práticos entre esferas sociais como trabalho, povo e nação na China. O que libera uma energia destrutiva atual, que não se confina às formas de evocação nostálgica do passado, e à qual interessa a Hu Bo dar significação estética e talvez política.

Um elefante busca o espelhamento recíproco entre esse sentimento popular de tédio e raiva difusa das personagens e a notação ampla sobre a inviabilidade da vida contemporânea, que se faz sentir no conjunto da trama. A obra tenta acolher a aliança de faculdades tida como inimigas: a matéria escapadiça do rancor, sem nome e sem limites no filme, e o conhecimento refletido a partir de situações de beco sem saída. Isso se manifesta, sobretudo, nos usos específicos do tropo da fuga, que determina as estações do entrecho, mas não se explica apenas pelo motivo de autoconservação subjetiva. De fato, as personagens se veem desde o início como não pessoas sociais em conflagração permanente com seu meio. Servindo a Hu Bo como imagem de destituição da significação social do futuro, essa hostilidade objetiva teve consequências imediatas. Ao filme do diretor chinês, que tirou a própria vida em outubro de 2017 (aos 29 anos de idade), não foi concedido o “Selo do Dragão”, o que impede a distribuição e exibição comercial dessa obra na China. Ante a impossibilidade de Um elefante buscar seu destinatário social, a realidade imita e prolonga a condição indefinidamente suspensiva do filme.

OS QUE SOBRAM NA OFICINA DO MUNDO

A primeira sequência de Um elefante sentado quieto tem unidade interna a partir de referências elaboradas fora do campo. Enquanto as cenas se alternam entre as personagens principais e a imagem do vazio nevado, a palavra está com o contraventor Yu Cheng. É dele a voz off que narra o caso do suposto elefante imóvel de Manzhouli, no norte do mundo chinês, próximo à fronteira com a Rússia. Situado nesse território liminar, portanto, o elefante teria interrompido seus números no circo. Mas a desobediência não implica o encerramento do show, que prescinde de seus antigos malabarismos. O lugar torna-se foco de peregrinação. E a gente que para lá acorre ora espeta, ora atira alimentos no animal recalcitrante, que ignora o mundo. Essa rotina reduzida a ataques e assédios não o faz retornar à disposição anterior nem põe fim definitivo ao espetáculo que se alimenta de seu suplício (que, não tendo imagem, não se torna comensurável para as personagens). O que intriga e fascina Yu Cheng é o caráter inconcludente dessa recusa, que não se consuma nem esboça prenúncio de uma etapa superior.

Não interessa tanto aqui a interpretação isolada do simbolismo dessa figura. Seria fácil pensar na alegoria do elefante circense que se recusa à exploração e tenta retornar à imobilidade na natureza. Também seria cabível pensar na capacidade de memória atribuída a esse animal. Mais importante, porém, é analisar o modo como a imagem, por assim dizer, imaterial do elefante inerte ganha significação interna pela trama das vozes no filme. Na mesma sequência de abertura, a ação gira em torno de um assunto baixo. Trata-se do lixo que se acumula na entrada do prédio onde vivem as personagens, e que ninguém recolhe. O mau cheiro se infiltra nos apartamentos, para exasperação geral. A câmera acompanha de perto Wei Bu respondendo ao pai que o odor fétido entra pela janela da cozinha. “A lixeira cheira melhor do que o seu quarto nojento”, retruca o pai.

No corte seguinte, Yu Cheng observa da janela e do alto um bate-boca entre pobres (que não vemos na tela) sobre o destino a ser dado aos rejeitos. “Queime aqui mesmo!”, grita ele. A frase serve bem de introdução ao filme, circunscrevendo as condições de produção de seu sentido. Entre outros aspectos, porque a montagem permite a associação entre essa cena inicial e a autossimbolização da personagem, que, como visto, concebe-se como um repositório de detritos sociais. Por meio dessa continuidade alusiva, o próprio tempo no filme se expressa em condição bifronte. Num sentido determinado, afirma-se um estado suspensivo, a partir do qual o dia narrado se anuncia como prolongamento indefinido do mesmo (“Merda, começa mais um péssimo dia”, diz o pai de Wei Bu). Ao mesmo tempo, surge uma disposição de caráter ofensivo e inflamável que visa interromper uma decomposição que já aconteceu, ainda que seja ao custo da destruição final desses sujeitos e objetos degradados (o que torna a referida distinção inefetiva).

A ação decorre num distrito chinês em escombros, inteiramente revolvido pelo que se entendia ser progresso. Smartphones, tênis e agasalhos de marca, suvs e armas de fogo - a parafernália dos fluxos globalizados do capital - surgem constelados na degradação das condições de existência objetiva. Não se trata, portanto, de uma província insuficientemente alcançada pelas leis de mercado, mas de um espaço-tempo ficcional em que se consuma uma acumulação econômica feita à base de dessocialização do trabalho. Por meio de planos-sequência que unificam a casa e a rua como um todo arruinado, as figuras de Hu Bo vagueiam entre complexos habitacionais, vielas e fábricas desativadas que servem de moradia, local de entulho ou futuro canteiro. Há indicações de que segue a extração de minérios no entorno da cidade. A mãe de Wei Bu, por exemplo, vende roupas aos trabalhadores. Mas eles nunca entram em cena. A produção econômica estruturada em larga escala, referida em sua dimensão extrativista-predatória, caminha em faixa própria, sob desconexão relativa do núcleo do enredo. Há vestígios dessa riqueza nas reconfigurações do espaço urbano central. No entanto, é nos desvalidos e em sua fúria mal contida que o olhar do diretor se concentra, numa relação sinedóquica com os detentores do dinheiro. Daí a dilatação dos tempos de tomada em contraste com o ritmo ágil da atividade econômica, que, desvinculada das necessidades vitais, tem caráter de fim em si mesmo.

Para formalizar essa matéria social, Hu Bo pode contar com uma acumulação estética significativa, embora de caráter relativamente recente. Até a década de 1990, a experiência urbana era quase ausente da cinematografia chinesa. A chamada “Quinta Geração”, formada nos anos 1980 por diretores como Zhang Yimou (O sorgo vermelho, 1987) e Chen Kaige (Terra amarela, 1984), situava os filmes num passado rural remoto, relativamente indeterminado em termos históricos e geográficos. Essa cena se altera a partir de meados dos anos 1990, sob os efeitos da modernização denguista. Se é possível dizê-lo de modo tão breve, o dinheiro torna-se a “nova forma de autoridade”, que “deslocou as decisões oficiais e transformou o papel do poder burocrático” (Zhang, 2001Zhang, Li. Strangers in the City: Reconfiguration of Space, Power, and Social Networks within China’s Floating Population. Redwood City: Stanford University Press, 2001., p. 40). Nesse momento, a “Sexta Geração”, cujo principal expoente é Jia Zhangke, configura o que Zhang Xudong chama de “retorno à rua”. Refutando o estilo elevado anterior, essa produção narra a experiência da juventude periférica, dos trabalhadores e dos aspirantes a artista em meio à dissolução da cultura maoista. Figuras que, a partir dali, expressam-se sob a forma de uma “agônica batalha na última fronteira do capitalismo global” (Xudong, 2011Xudong, Zhang. “Poética da desaparição”. Novos Estudos Cebrap, n. 89, 2011, pp. 71-87., p. 87).

Nesse sentido, Hu Bo redimensiona, por exemplo, o problema social e estético de A oeste dos trilhos (2003), obra contemporânea à ascensão da Sexta Geração. O documentário de Wang Bing acompanha trabalhadores às voltas com o declínio e o fechamento de fábricas no complexo industrial de Tiexi, entre 1999 e 2001. Construído sob a ocupação japonesa no nordeste da China, Tiexi foi importante no processo de modernização industrial do país no século XX.6 6 As fábricas erguidas sob ocupação japonesa (1931-45), marcadas pela brutalidade sem limites das formas de recrutamento e condições de trabalho, iniciam na China a “transição para um modo de produção explicitamente capitalista, dominado pela produção de valor”, segundo a periodização do Coletivo Chuang (2021). E os quadros monumentais de sua ruína, articulados a imagens de demolição dos casebres operários, servem a Wang Bing como metáfora da decomposição da classe trabalhadora chinesa constituída no pós-guerra. De modo expressivo, a duração distendida de seus planos procura responder a um momento em que o motor da luta de classes, em seu sentido tradicional (implicando desenvolvimento das forças produtivas articulada à formação e integração social no plano do trabalho), parecia deixar de ser força estruturante do cotidiano social e político-institucional chinês, o que aumentava o mal-estar histórico.

Um elefante opera a partir desse diagnóstico de época internalizado no filme de Wang Bing. Afinal, aqui o trabalho assalariado deixa de fato o primeiro plano, o que se revela no próprio recorte social e etário definido para as personagens principais. Sob diferentes modos, os estudantes Wei Bu e Huang Ling, o criminoso Yu Cheng e o ex-militar Wang Jin entendem a si mesmos como indivíduos que ainda não são ou deixaram de ser vendáveis do ponto de vista da produção de valor, embora não estejam apartados do consumo de bens materiais e simbólicos, que avança muito de Wang Bing a Hu Bo, juntamente com os surtos de impaciência das personagens.

UM PLANO SOB ESTADO DE TRINCHEIRA

O protagonista Wei Bu frequenta um colégio de péssima reputação, prestes a ser demolido pelo governo sem consulta prévia ou apelação. O vice-diretor, que contabiliza seus ganhos monetários com a transferência iminente, alude à “construção de um novo bairro”, que supõe a destruição do existente. Nas cenas escolares, que dominam a primeira parte do enredo, instaura-se um microcosmo social marcado por tomadas de decisão discricionárias, como castigos, pancadas, bullying etc. São mecanismos de apassivamento filmados e expostos nas redes sociais pelos próprios participantes, configurando-se - ao menos para os apenados - um presente infernal que se dilata e se volta sobre si mesmo.7 7 Sobre o vínculo atual entre as noções de “espera” e “punição”, enquanto disciplina social exigida pelo capitalismo contemporâneo para que populações ditas de risco possam ser geridas, remeto o leitor aos trabalhos recentes de Paulo Arantes, em especial “Zonas de espera”, em O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência (2014, pp. 141-98), e O mundo como alvo (2021). Essa presença punitiva é um elemento importante de caracterização, pois constitui a ambiência do todo narrado. Ao longo da trama, não se distinguem linhas divisórias nítidas entre as práticas ad hoc de controle e contenção dos chefes locais, às voltas com jovens destinados a buscar seu sustento nos interstícios da ordem social, e os desígnios meio intangíveis da burocracia estatal e da especulação urbana. A eficácia visual do filme se apoia também nessa autonomização do circuito da violência, que, em parte, prescinde de figura disciplinar central. Isso se expressa no cinismo desideologizado do vice-diretor, que anuncia aos estudantes: “A vida simplesmente não melhora. Tudo gira em torno de agonia. Essa agonia começou desde que você nasceu”.

De fato, o filme não dispõe de centro dramático para a figura do crime e da delinquência. O ato transgressor é constitutivo de uma representatividade social fundada na anomia. Assim, Yu Cheng não se afirma como a figura central de ação na obra. Ele ocupa o baixo escalão numa rede de compadrio que envolve crime, polícia e aparato estatal, como os negócios de uma concessionária de automóveis e a prática de golpes ilícitos no varejo (como a venda de bilhetes falsos em estações de trem). Quando assume a vingança pela agressão de Wei Bu a seu irmão, Yu Cheng o faz após insistência dos pais. Na hora do acerto de contas com o adolescente, decide não puni-lo, alegando que o alvo seria capturado de qualquer maneira. Nesse sentido, a história pregressa de Yu Cheng tem sua exemplaridade: mantém relação clandestina com a namorada do amigo, até que é apanhado por ele, vendo em seguida o ex-colega atirar-se pela janela. Diz querer fugir por um tempo, mas volta aos mesmos lugares, certo de que não haverá consequência para aquela traição. Ao mesmo tempo, insiste em reatar com a ex-mulher que o rejeita, atribuindo-lhe a culpa pela morte do colega, uma vez que, segundo sua lógica peculiar, a causa da traição ao amigo é a ruptura com a mulher desejada. Uma das poucas ocasiões em que ele age diretamente é no episódio de incêndio da cantina popular, limitando-se, assim, a provocar e conter situações de emergência. Na impossibilidade de coadministrar o desastre social a sua volta, Yu Cheng já não assegura proteção aos próprios pares. De modo indireto, o vice-diretor delega a ele, e não à polícia, a resolução da briga na escola, que provocará a morte de seu irmão. Mas a soberania exercida por Yu Cheng é de tipo restrita, que nem de longe pode se alçar a uma hegemonia social, e encontra-se em coalizão competitiva com a burocracia governamental.

O dínamo do tênue fio dramático do filme fica mesmo com o adolescente Wei Bu. Em litígio com o pai, um ex-policial corrupto e torturador, ele quer sair de casa. A residência da avó, que era quem lhe repassava algum dinheiro, aparece como opção viável, mas lá também não há calefação, diz ele. Então Wei Bu permanece, até que a situação se torna insustentável. Numa reação de solidariedade ao amigo que se dizia alvo de bullying no colégio, ele empurra o irmão de Yu Cheng escada abaixo. A ação precipita sua fuga, e Wei Bu se constitui como a personagem que acirra e sofre mais diretamente as consequências do conflito. Mesmo perseguido pelo submundo do crime, o jovem encontra ocasião para manifestar consciência culposa. Ele vai ao hospital onde está internado o irmão de Yu Cheng e tenta verificar seu estado de saúde. De qualquer modo, embora o protagonista tenha feição própria, suas ações são referidas a um calvário arbitrário e não individual, vivido como sem saída.

Veja-se, a esse respeito, a situação do velho Wang Jin. Ele é um ex-militar que não tem cobertura previdenciária e dorme na varanda envidraçada de seu apartamento, que divide com o filho, a nora e a neta. O velho está sendo pressionado para se mudar de vez para um asilo. E o único empecilho reconhecido pela família é a presença do cachorro, que não seria aceito no lugar. Logo no início do enredo, porém, o problema aparentemente se resolve, de modo desfavorável a Wang Jin: o animal é encurralado e morto numa viela por outro cão maior e mais forte.

Do mesmo modo, a menina Huang Ling insere-se numa dinâmica de rebaixamentos e humilhações mútuas com a mãe alcoólatra. Ela se liga clandestinamente ao vice-diretor do colégio, noutra relação abusiva em que acredita, ao menos, ter encontrado uma “casa limpa e arrumada”. Essa tentativa de criação de vínculos com um simulacro de autoridade protetora, porém, será desautorizada pelo ponto de vista narrativo, na medida em que Huang Ling também é descartada (como “lixo”) quando vaza o vídeo íntimo em que se explicita a relação de intimidade entre ela e o vice-diretor.

A montagem entrelaça a trajetória dessas personagens de modo a sinalizar o colapso de qualquer integração sistêmica entre as partes, sem redenção aparente que possa ser decidida no interior dessa sociedade. Aliás, a dimensão “social” da obra liga-se a uma sequência de atos despóticos de subordinação direta, que vão de fúteis e violentas altercações na rua a fantasmagorias de aniquilação irrestrita. O filho de Wang Jin, por exemplo, vê o pai encurralado na escadaria do prédio e retira-se da cena. A menina atribui o banheiro alagado à negligência da mãe, que aproveita para lhe infligir uma dose suplementar de humilhação. Wei Bu provoca idosos na praça e quase recebe um mata-leão. O vice-diretor, que quando muito jovem presenciara um gato sendo paulatinamente esmagado, rememora o caso com evidente gozo perverso, no momento em que dizia não ter nada a ver com a briga ocorrida na escola (em que o destino de Wei Bu parece ser selado na punição ou na fuga improvável). O playboy anabolizado, cujo cão dilacerara o animal de Wang Jin, acusa o velho de tentativa de extorsão, após ele cobrar responsabilidades pelo acontecido. Wang Jin, por sua vez, termina por arremessar seu cachorro morto dentro de um saco de lixo no rio seco já entulhado de dejetos.

Os embates entre as personagens, que deixam sem chão firme o juízo moral, são intercalados por pausas e falas de caráter sentencioso, ditas em primeira pessoa e montadas em sessões descontínuas: “A vida é repugnante”, “A vida é um terreno baldio”, “Tudo é uma questão de agonia”, “O mundo é simplesmente asqueroso”, “A vida é inoportuna” etc. Nesses juízos condenatórios, que vão do registro seco ao colérico, abole-se o intervalo entre a vivência subjetiva e o narrado, num tempo presente que já não se processa por acumulação de forças. Ao contrário, a imagem predominante é de uma aniquilação continuada de possibilidades sociais, sem retorno possível nem desejável ao momento anterior à decomposição, que parece não ter fim determinado. Sem perspectiva de transformação, os indivíduos se mostram impelidos a essa autoafirmação ritual sobre sua condição de não pessoas sociais.

Ocorre que esse sentimento autodepreciativo e o rancor, cujo destinatário é o “mundo” em geral, dizem respeito à construção de uma situação narrativa específica. Vistas em conjunto, e a despeito mesmo de seu efeito de pungência, essas vozes que se sobrepõem à cena são perfeitamente intercambiáveis. E a montagem desses fragmentos não postula uma camada de sentido autônoma em relação ao que é mostrado na ação. De fato, por meio dessas interrupções, marcadas pela realidade suprapessoal dos discursos, a relação formal entre voz e cena incorpora em si uma dimensão objetiva de redundância. Ou seja, vale como regra de composição do plano justamente a ênfase no resto, a parte sobrante e excedente da cena. Trata-se, assim, de uma codificação que extrai sua força da inadequação e da insuficiência desses juízos ante a lógica destrutiva interna à racionalidade gestionária do mercado, que implica o sacrifício dos “inúteis” ou não rentáveis do ponto de vista das formas de socialização capitalistas.

Se é verdade, portanto, que há convergência entre as rupturas formais e o tema do filme, existe custo evidente em termos de concentração dramática. Esses preenchimentos, por assim dizer, residuais no enredo não constituem propriamente fios narrativos. E a forma do filme relativiza essas condenações morais da sociedade, que respondem a uma mise en scène reflexiva e relativamente limpa de sentimentalismo. Veja-se o modo conciso como se registra o encontro (não motivado) entre Wei Bu e o aluno que cumpre castigo esfregando o chão do corredor em frente à sala do vice-diretor. A cena não explica nem comenta os critérios da infração, que permanecem insondáveis. A câmera posiciona-se na altura da nuca de Wei Bu, colada ao seu campo de visão. Enquanto vai e volta com o esfregão em punho, executando uma tarefa sem sentido, o aluno dirige-se ao protagonista: “O mundo é um terreno baldio”. Seu sentimento de humilhação é enquadrado friamente, e a expressão facial de pavor permanece fora de foco, contra um horizonte que não se sustenta no fundo do plano. Até que a pausa, deliberadamente solene, também é interrompida. “É citação de um livro”, diz ele. “Estou comovido.” A imagem opaca desse sujeito, sem interioridade a ser revelada, assim como o autocomentário posterior, desmancham a gravidade inicial, refutando a identificação dramática. Desse modo, o espectador se vê às voltas com estruturas algo impenetráveis, que já não canalizam a agressividade e circulam sem dirigir-se a um objeto específico.


O encontro entre Wei Bu e o aluno que cumpre punição é mostrado pela câmera semissubjetiva, predominante nos planos do filme.

Em meio à atomização dos diálogos, é constante o recurso a um tipo definido de inversão narrativa, a partir do qual se projeta na fala do outro uma dimensão confiscatória. No filme, o sujeito esboça uma demanda qualquer, externaliza-a ao interlocutor, e isso é entendido como ameaça ou retaliação pessoal. Ato contínuo, torna-se alvo de um contra-ataque preventivo, em que a desmedida parece ser a regra. “Você quer me chantagear, não é? O que você está tramando?”, reage o pitboy quando o velho Wang Jin lhe pergunta sobre o ataque ao seu cachorro. Nesses deslocamentos, os atributos particulares de cada personagem tornam-se etéreos, não sendo generalizáveis para além do choque direto. Esse tipo de apreciação insultuosa, assim como o sentimento de usurpação que lhe garante voltagem própria, inclinam-se para a eliminação real ou simbólica do outro, cuja demanda se converte numa ameaça permanente. Desse modo, é vertiginosa a oscilação entre o sentimento de nulidade de si e as fantasias de onipotência, suprimindo-se quaisquer mecanismos sociais de inibição ou mesmo de entraves subjetivos para um espírito de concorrência tornado total, que não se deixa mediar.

A esse respeito, notem-se ainda o teor intransitivo e o gesto meio automático, repetitivo, que caracterizam a sequência de empurrões que levam Wei Bu ao chão, quando tenta reagir com uma pedra na mão às intimidações do dono do cachorro (que passa a perseguir o velho Wang Jin por achar que ele o perseguirá). O foco encontra-se no próprio ato de impingir um superávit de humilhação e sofrimento desacoplado de interesse superior. Cada queda do adolescente não se configura como meio para atingir objetivo definido. E a lenta construção formal da cena, exasperante para quem assiste a ela, procura tornar inteligível e articulada essa autorreferencialidade vazia da violência, que se encontra talvez no núcleo de sua matéria histórica.

No filme, alternam-se essas cenas estacionárias de atonia, em que a significação deriva quase inteiramente da duração e do movimento interno ao plano, e cortes feitos de explosões e golpes súbitos, que são deslocados para fora do campo. É o que ocorre nos episódios de suicídio (do marido traído pela esposa e por Yu Cheng, e do adolescente alvo de bullying), na queda do irmão de Yu Cheng na escadaria da escola, na paulada desferida pela jovem Huang Ling no vice-diretor e em sua esposa (que tinha invadido a casa para agredi-la), na morte do cachorro de Wang Jin, no incêndio da cantina etc. Entre outros aspectos, esse andamento narrativo faz com que o “tempo morto” de Um elefante, referido amplamente pela recepção do filme, apresente-se como uma trégua oca até o próximo golpe, trivializado pela montagem. Assim, o presente diegético se estrutura nos limites do tédio agônico e de uma impaciência que já se põe transbordando o ato, dada a incapacidade generalizada de continuar sofrendo sem se desesperar.

O ângulo e os movimentos da câmera, que se posiciona muito próxima do rosto e na altura dos ombros da personagem, formaliza e dá realidade cinematográfica a essa situação de impotência e acossamento social tido como praticamente irrecorrível. Pressionando e recuando em relação à figura para construir a ação, com raro uso do plano geral, a câmera de Hu Bo opera sob um estado de trincheira indefinido. Além de reproduzir a pressão do perigo e da necessidade a que as personagens estão submetidas, parte-se da disjunção consumada entre um indivíduo percebido como vulnerável e seu entorno material ruinoso, que deixa de ser mapeável no interior do quadro.8 8 Além disso, a fala das personagens é próxima ao putonghua (mandarim padrão), desvinculado do dialeto local, o que refrata ainda a paleta de cores reduzida do filme, marcado sobretudo por tonalidades de cinza, em que marcadores temporais básicos (como o amanhecer, o pôr do sol etc.) perdem função transitiva, como observa J. X. Zhang (2021). A figura e o décor sofrem, assim, o mesmo processo de anulação ou equalização formal. Assim, as personagens carregam o fardo de ordenar sua vida social e sua segurança por meio de arranjos cotidianos feitos mais ou menos por conta própria. No entanto, para cada sujeito que se entrincheira, redobram-se forças internas que anseiam por apressar o fim dessa aflição. Em meio ao confronto na escola, quando a menina Huang Ling lembra a Wei Bu que Yu Cheng poderia matá-lo, o jovem afirma: “Isso seria perfeito”.

DIMENSÕES DA FUGA

Como visto, as personagens de Um elefante são a todo momento atravessadas por sobressaltos que não podem ser antecipados segundo cálculos de interesse entre meios e fins, na medida em que a tendência para a eliminação do outro e a própria dinâmica bélica do entrecho tornam-se um fim em si, no qual a ação dos sujeitos pouco vale. Por exemplo, quando Wei Bu e seu colega são encurralados na escola pelo irmão de Yu Cheng, eles se dispõem a comprar um celular novo para o sujeito, que fora roubado. Imaginam que a reparação material pode estancar a raiva dirigida contra eles. “Porcaria nenhuma”, responde o rapaz. “Cantem uma cantiga de ninar de joelhos. Depois me comprem um celular.” O que prevalece na trama é esse estado indefinido de prontidão, marcado pela finalidade tautológica da violência e da humilhação. E também por um poder-fazer sem restrições de ordem legal, que, porém, não torna eficaz a reação legítima.

Ao mesmo tempo, o que está por vir assume no enredo um caráter de previsibilidade total. Narrando uma fuga incerta, a cena de Hu Bo aproxima-se por vezes da perspectiva de um neodarwinismo social, que excede o indivíduo e se dá no âmbito da história contemporânea.9 9 Hu Bo relaciona a falta de perspectivas da juventude chinesa ao “vazio que os selvagens comedores de carne enfrentam na floresta, ou que um soldado moribundo encara no campo de batalha”. A imagem é de secessão total em relação ao seu meio, num contexto de asselvajamento moral e supressão do mais fraco. Ver: “Entrevista com Hu Bo”, Zeta Filmes, material de divulgação. Disponível em: <http://www.zetafilmes.com.br/filme.php?id=74>. Acesso em: 3/7/2021. O espelhamento entre a cena do diálogo do filho com o velho Wang Jin, que antecede os créditos de abertura, e o plano filmado no asilo exemplifica o que se está dizendo. Na primeira passagem, o filho anuncia ao pai a intenção de desalojá-lo de seu próprio apartamento. A câmera registra o velho em primeiro plano, com o rapaz ao fundo, emoldurado por uma vidraça. O jovem fala sobre os custos do aluguel e a necessidade de morar perto de um colégio melhor para a filha, para que ela não seja “maltratada”. O âmbito é o da notação crua de interesses, num discurso afetivo e violento. O enquadramento e a organização do espaço acirram a sensação de sufoco, de vida sitiada. Mas parte da tensão da cena reside ainda na relação entre figura e fundo, que desloca o problema da esfera da psicologia individual. No quadro, a mãe veste e alonga a filha, a quem imagina futura bailarina. A menina reluta e sente a falta de sentido desses exercícios preparatórios. “Por que eu tenho que me alongar de manhã?”, pergunta ela. “Eles dizem que eu sou boa o suficiente.” Para as personagens, perde-se inteiramente a força persuasiva contida na ideia de um presente que se projeta para um momento não idêntico, situado em algum ponto futuro e capaz de nortear ações práticas. A própria experiência da passagem do tempo passa a ser vivida como algo inútil e hostil.

Vejamos o plano filmado no asilo. Por meio da câmera subjetiva, constituída a partir do olhar do velho, a mise en scène torna-se mais controlada. A lentificação no deslocamento da câmera, sob a melodia extradiegética, busca acentuar o aqui e agora da situação narrada, que ganha caráter de testemunho. Na tela, figuras isoladas são vistas através de vidraças (como o filho de Wang Jin no diálogo citado anteriormente), numa dimensão puramente biológica, como corpos vivos sem porvir. A configuração do plano supõe mesmo a simultânea separação e indissolubilidade entre a visão subjetiva do velho e uma espécie de câmera-vigia, que mimetiza o olhar de um regime institucional de mero processamento de pessoas. Pela composição da cena, a exposição desses corpos anônimos, confinados apenas para a garantia de uma sobrevivência física prorrogada, alude ao esvaziamento da cotidianidade narrada, na qual soberanias vulneráveis se entrechocam sucessivamente sob o futuro interditado.


No alto, cena do diálogo entre Wang Jin e seu filho e, abaixo, imagem do plano-sequência no asilo.

O filósofo alemão Günther Anders, num ensaio de 1954 em que se discute a peça Esperando Godot (1952), de Samuel Beckett, afirma que a representatividade social de personagens como Vladimir e Estragon - enquanto “homens normais da massa” no pós-guerra europeu - supõe a incapacidade de ser “niilista”. “Assim como diante de uma cadeira ou de uma casa eles poderiam admitir que estas estão apenas ‘aí’ e ‘para nada’, não entra em sua consideração interpretar sua própria existência como ‘nada’ ou nula” (Anders, 2011_______. “Ser sin tiempo”. In: La obsolescencia del hombre, v. 1. Valência: Pre-Textos, 2011, pp. 209-24., p. 216). Assim, mesmo na situação mais desesperadora, eles seriam “incapazes de renunciar ao conceito de sentido”, padecendo do que o autor chamaria de “cegueira do apocalipse” (idem, 2006, p. 44). É a partir desse descompasso, segundo Anders, que se estrutura a comicidade sombria da parábola beckettiana, bem como seu caráter paródico, em que o trabalho aparece como falsa atividade, de caráter irresponsável, configurando destinos sociais previamente condenados. Entre outros aspectos, o recurso à paródia em Godot teria a função de “colocar em movimento” um tempo que ameaça ficar paralisado, empurrando-o sem pausa para a frente, “algo que na vida ativa ‘normal’ não é uma meta, mas uma consequência do fazer” (idem, 2011, p. 219).

Num âmbito mais geral, a cena de Um elefante se configura a partir dessa percepção de um tempo social sobrante, vivido sob as injunções da ideia de prazo ou de contagem regressiva para um fim de linha que há muito chegou. O submundo do trabalho degradado, por exemplo, prefigura-se na dimensão de penalização ou castigo escolar, em que o aluno deve sofrer para depois aceitar empregos sub-remunerados. No entanto, o páthos agônico das figuras de Hu Bo tem significado histórico próprio, que não coincide com a matriz beckettiana lida por Anders. Diferentemente da clownerie de Beckett, não há aqui preenchimento paródico para a esfera do trabalho destituída de sentido. Entre outros motivos, porque a imagem de uma decomposição social sem télos torna-se dominante no próprio modo como o indivíduo se identifica e se posiciona em relação ao mundo, respondendo pelo conjunto da estruturação formal do filme. E isso de modo algum restitui a “autonomia do sujeito”, tal como se entendia no intervalo histórico em que a norma moderna exercia ainda alguma função mobilizadora para a imaginação social e política. “Eles estão com medo de mim. A maioria não sentirá esse orgulho”, diz, antes de disparar o tiro fatal, o colega de Wei Bu (apenas uma das personagens suicidas), compreendendo a si mesmo como um encalhe sacrificial na oficina chinesa do mundo.10 10 O bastão de beisebol que Huang Ling mantém na soleira da porta, o taco de sinuca que Wei Bu e, depois, Wang Jin carregam para todo lado e o porrete do protagonista (que o pai utilizava em sessões de tortura) tornam-se os signos dessa promiscuidade violenta incorporada ao dia a dia narrado, o qual se configura sob formas de guerra. Esses objetos ganham expressividade cênica fora do comum, pois inscrevem no gesto de cada personagem tanto o movimento de autoproteção quanto a ausência da dimensão de reciprocidade própria à ideia de combate. O que se entende como “niilismo” do cinema de Hu Bo tem generalidade social, na medida em que a sociedade contemporânea parece não ter mais respostas a essa população dispensável, que, com manifestações locais específicas, lidam com a certeza da “própria nulidade” (Jappe, 2021Jappe, Anselm. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021., p. 270).

Imagem do
plano geral noturno que encerra o filme: as personagens jogam jianzi (peteca) na estrada deserta.

No plano final, entretanto, encena-se uma espécie de encontro, no qual não há ou não se escutam diálogos. Wei Bu, Huang Ling, o velho Wang Jin e sua neta estão a caminho de Manzhouli. A câmera fixa registra à distância o ônibus estacionar à beira de uma estrada vazia. Eles descem e, sem marcação prévia, improvisam ali um jogo de peteca. A iluminação focal, interna à cena, vem do farol do veículo, que permanece apontado para o grupo de espezinhados. A presença do elefante é metonímica: antes dos créditos finais ouvem-se bramidos, que se confundem com o apito do trem (no qual eles não conseguiram embarcar). Trata-se de um dos únicos planos gerais do filme. E sua fotografia é feita por contraste direto, sem mediação aparente entre o fio luminoso estático e o breu que, afinal, define seu contorno. Esse desfecho, que não consola nem anuncia despertar político, carrega uma dimensão aspiracional difícil de precisar. Não apenas porque resiste mal à interpretação alegórica, mas também porque a cena se detém ante uma busca ativa desses assujeitados, que, sem sentido determinado, vagueiam entre fantasmagorias de sua própria dinâmica supérflua de reprodução social. Daí as imagens que pertencem à ordem do incomensurável, daquilo que não tem ou não encontra medida comum com o outro. Essa ordem que produz sujeitos excedentes e inintegráveis aparece, então, como pura abstração, cifrada na figura do elefante inerte.

Esse tipo de expectação pós-colapso, vindo de existências destituídas de mundo social (sem identificação ativa com trabalho, classe ou nação), não se explica diretamente como emblema do enquadramento “mítico” do filme. É historicamente significativo que a imagem da fuga se fixe nesse espaço liminar, de fronteira, em que as figuras parecem estar simultaneamente dentro e fora do mundo narrado.11 11 Essa intransitividade social e sua lógica endógena de destruição são concebidas, assim, como índices de um real concreto que se torna força ordenadora interna à obra. Nesse sentido, Hu Bo se afasta do andamento de alegoria presente em filmes de seu mestre Béla Tarr. Por exemplo, em O cavalo de Turim (2011), o último longa-metragem do diretor húngaro, toda a cadeia imagética se estrutura em torno de uma espera sem sentido reconhecível: pai e filha aguardam num casebre a passagem do que parece ser uma tempestade de fim de mundo. A obra busca dar significado crítico a formas de reprodução da vida em condições radicalmente proibitivas — e, no limite, absurdas —, como se fosse viável uma normalidade em meio à catástrofe. Devo essa observação a Ivone Rabello. De fato, as personagens deixam de aspirar a uma mudança interna ao processo de generalização da forma-mercadoria, que já aparece sem brechas para os de baixo. A fuga não se deve a um a priori ético, mas à verificação empírica de que a promessa de integração sistêmica via mercado se desfez, não sendo sustentada por esferas efetivas de poder no filme. Nesse sentido, a partir da figura-limite do elefante imóvel de Manzhouli, que fusiona o morto e o vivo, o que toma feição absurda é a própria ideia de empoderar vozes relegadas rumo a uma concorrência mais diversa na economia de mercado, tal como ela se configura na obra.

Esse ponto de vista narrativo se sustenta, em parte, pelo recorte do autor em seu amplo material histórico, referido à situação das camadas subalternas na China. O filme se desvia do retrato direto dos mingongs, os migrantes rurais impelidos a um deslocamento sem fim em busca de trabalho, sobretudo no campo da construção civil. Foi a partir da experiência local do mingong que parte do cinema chinês recente pôde pôr em perspectiva o teor de devastação social e psíquica das décadas de crescimento econômico (Zhang, 2007Zhen, Zhang (org.). The Urban Generation: Chinese Cinema and Society at the Turn of the Twenty-First Century. Durham/Londres: Duke University Press, 2007., p. 6). A novidade é que os pobres da ficção de Hu Bo entendem-se como definitivamente rifados nessa guerra civil do trabalho. E eles não se conformam ao existente nem se revoltam a partir de vínculos de solidariedade genérica.

Quando Wei Bu relata na escadaria da escola a fala do vice-diretor (“Quando vocês se formarem, a maior parte vai virar vendedor de comida na rua”), seu amigo Li Kai reage: “Não, ele mentiu para você”. Então o protagonista afirma: “Eu sei. Mas eu acho que faz sentido”. A indiferença de seu gesto exausto, e o semblante como que empacotado em close-up, conferem carga aleatória à frase, como sente o espectador. É como se nada ali estivesse em disputa. Daí a deriva da fuga, a impressão de não existir no mundo, a hipótese suicida latente e a sequência de gestos e imagens que remetem à ideia de uma conflagração total. Essa dimensão de recusa desprovida de corpo social, que confere dignidade excepcional às personagens, dá coerência interna ao filme, ao mesmo tempo que assinala seu limite histórico. Pois trata-se ainda de fazer essa recusa incluir e ultrapassar o âmbito da obra individual, incidindo talvez em formas comuns de produção do vivo nas guerras que virão. Os entrincheirados de Hu Bo cansaram de esperar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Zhen, Zhang (org.). The Urban Generation: Chinese Cinema and Society at the Turn of the Twenty-First Century. Durham/Londres: Duke University Press, 2007.
  • 1
    Este artigo, em versão preliminar, foi apresentado no XVII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho: crises e horizontes do trabalho a partir da periferia, na modalidade remota, em setembro de 2021. Pude ainda debater o cinema de Hu Bo em reunião do grupo “Formas culturais e sociais contemporâneas”, sob a coordenação de Anderson Gonçalves, Edu Teruki Otsuka e Ivone Daré Rabello, a quem agradeço também pelas sugestões ao texto.
  • 2
    Feitos em parte na clandestinidade, os filmes da geração urbana ganharam alcance a partir de festivais cinematográficos do Ocidente, onde se projetaram nomes como Jia Zhangke, Zhang Yuan, Wang Xiaoshuai e Lou Ye. Sobre seus temas e procedimentos formais, ver Zhang (2007Zhen, Zhang (org.). The Urban Generation: Chinese Cinema and Society at the Turn of the Twenty-First Century. Durham/Londres: Duke University Press, 2007.). No estudo de Otília Arantes sobre o hiperurbanismo chinês, encontra-se ainda uma imagem-modelo para essa produção. Em O mundo (2004), de Jia Zhangke, um longo travelling “acompanha a corrida em declive de uma figura feminina, estafando-se numa ‘long march to nowhere’”. Diz a autora: “É como se ela [a corrida] se desse numa esteira mecânica, onde, quanto mais se acelera, mais as energias futuras se esvaem num aqui e agora sem fim” (Arantes, 2011Arantes, Otília Beatriz Fiori. Chai-na. São Paulo: Edusp, 2011., p. 11).
  • 3
    Para uma breve reconstituição histórica da modernidade chinesa, de uma “isolada economia planejada pelo Estado para um centro integrado de produção capitalista”, ver Coletivo Chuang (2021Coletivo Chuang. “Aço e sorgo: desenvolvimentismo socialista e a forja da China. Parte I: A invenção da China na modernidade”. Igrá Kniga, 27 out. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.igrakniga.com/post/sorgo-e-aço-parte-1 >. Acesso em: 27/11/2021.
    https://www.igrakniga.com/post/sorgo-e-a...
    ). Maurilio Botelho e Marcos Barreira (2021Botelho, Maurilio; Barreira, Marcos. “‘Capitalismo asiático’ e crise global”. Margem Esquerda, n. 37, 2021, pp. 59-69.) discutem esse problema à luz do alinhamento de parcelas da esquerda brasileira ao “capitalismo asiático”, que parece servir a autores e influencers progressistas que se veem impotentes ante a crise global e a radicalização da direita. De modo não apologético, Camila Moreno (2015Moreno, Camila. O Brasil Made in China: para pensar as reconfigurações do capitalismo contemporâneo. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2015.) apresenta os vínculos objetivos entre a economia do Brasil e da China, sobretudo desde a bolha das commodities.
  • 4
    Para uma análise comparativa entre os escritos literários e o filme de Hu Bo, ver J. X. Zhang (2021Zhang, J. X. “The Roar of the Elephant”. New Left Review, n. 131, 2021, pp. 67-85.).
  • 5
    Jean Ma fala em “obsessão pela memória” no cinema chinês recente, fundado num “profundo sentimento de perda” ante um “passado sempre prestes a se esvanecer” (Ma, 2010Ma, Jean. Melancholy Drift: Marking Time in Chinese Cinema. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2010., p. 11). Já Cecília Mello, que também vê senso de “urgência” nessa cinematografia, procura enfatizar ali a “emergência do ‘eu’”, o que teria constituído “pontes entre o individual e o coletivo, entre a memória pessoal e a experiência histórica” (Mello, 2019Mello, Cecília. The Cinema of Jia Zhangke: Realism and Memory in Chinese Film. Londres: Bloomsbury Academic, 2019., p. 91).
  • 6
    As fábricas erguidas sob ocupação japonesa (1931-45), marcadas pela brutalidade sem limites das formas de recrutamento e condições de trabalho, iniciam na China a “transição para um modo de produção explicitamente capitalista, dominado pela produção de valor”, segundo a periodização do Coletivo Chuang (2021Coletivo Chuang. “Aço e sorgo: desenvolvimentismo socialista e a forja da China. Parte I: A invenção da China na modernidade”. Igrá Kniga, 27 out. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.igrakniga.com/post/sorgo-e-aço-parte-1 >. Acesso em: 27/11/2021.
    https://www.igrakniga.com/post/sorgo-e-a...
    ).
  • 7
    Sobre o vínculo atual entre as noções de “espera” e “punição”, enquanto disciplina social exigida pelo capitalismo contemporâneo para que populações ditas de risco possam ser geridas, remeto o leitor aos trabalhos recentes de Paulo Arantes, em especial “Zonas de espera”, em O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência (2014, pp. 141-98), e O mundo como alvo (2021).
  • 8
    Além disso, a fala das personagens é próxima ao putonghua (mandarim padrão), desvinculado do dialeto local, o que refrata ainda a paleta de cores reduzida do filme, marcado sobretudo por tonalidades de cinza, em que marcadores temporais básicos (como o amanhecer, o pôr do sol etc.) perdem função transitiva, como observa J. X. Zhang (2021Zhang, J. X. “The Roar of the Elephant”. New Left Review, n. 131, 2021, pp. 67-85.). A figura e o décor sofrem, assim, o mesmo processo de anulação ou equalização formal.
  • 9
    Hu Bo relaciona a falta de perspectivas da juventude chinesa ao “vazio que os selvagens comedores de carne enfrentam na floresta, ou que um soldado moribundo encara no campo de batalha”. A imagem é de secessão total em relação ao seu meio, num contexto de asselvajamento moral e supressão do mais fraco. Ver: “Entrevista com Hu Bo”, Zeta Filmes, material de divulgação. Disponível em: <http://www.zetafilmes.com.br/filme.php?id=74>. Acesso em: 3/7/2021.
  • 10
    O bastão de beisebol que Huang Ling mantém na soleira da porta, o taco de sinuca que Wei Bu e, depois, Wang Jin carregam para todo lado e o porrete do protagonista (que o pai utilizava em sessões de tortura) tornam-se os signos dessa promiscuidade violenta incorporada ao dia a dia narrado, o qual se configura sob formas de guerra. Esses objetos ganham expressividade cênica fora do comum, pois inscrevem no gesto de cada personagem tanto o movimento de autoproteção quanto a ausência da dimensão de reciprocidade própria à ideia de combate.
  • 11
    Essa intransitividade social e sua lógica endógena de destruição são concebidas, assim, como índices de um real concreto que se torna força ordenadora interna à obra. Nesse sentido, Hu Bo se afasta do andamento de alegoria presente em filmes de seu mestre Béla Tarr. Por exemplo, em O cavalo de Turim (2011), o último longa-metragem do diretor húngaro, toda a cadeia imagética se estrutura em torno de uma espera sem sentido reconhecível: pai e filha aguardam num casebre a passagem do que parece ser uma tempestade de fim de mundo. A obra busca dar significado crítico a formas de reprodução da vida em condições radicalmente proibitivas — e, no limite, absurdas —, como se fosse viável uma normalidade em meio à catástrofe. Devo essa observação a Ivone Rabello.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2021
  • Aceito
    03 Dez 2021
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