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Keynes, Sraffa e a tradição de Cambridge: notas sobre a diversidade de paradigmas

Keynes, Sraffa and the Cambridge tradition: notes on diversity of paradigms

Resumo

Este artigo examina a interpretação da teoria econômica de John Maynard Keynes inspirada na obra de Piero Sraffa sobre os preços. Após breve introdução, a segunda seção considera até que ponto o multiplicador, tal como proposto por autores sraffianos, exaure o princípio da demanda efetiva sem levar em conta a tradição de abordagem psicológica da economia desenvolvida em Cambridge, bem como a concepção de incerteza formulada na Teoria Geral. A terceira seção trata dos aspectos monetários do pensamento de Keynes e de sua compatibilidade com o conceito de preços de reprodução de Sraffa calculados com base numa taxa uniforme de lucro. Na quarta seção analisa-se a controvérsia sobre o retorno de técnicas, a sua conexão com a multiplicidade de taxas internas de retorno, bem como a relação entre configuração produtiva e distribuição de renda. Nas considerações finais, os pontos de bifurcação entre os paradigmas analíticos keynesiano e sraffiano são ressaltados.

Palavras-chave:
demanda efetiva; expectativas; centro de gravitação; produtividade do capital; taxas de lucro

Abstract

This paper reviews the interpretation of John Maynard Keynes’s economic theory inspired by the perspective of Piero Sraffa’s work on prices. After some initial remarks, the second section asks whether the multiplier, as advanced by Sraffian authors, exhausts the principle of effective demand without taking into account the Cambridge tradition of economic analysis through psychological lenses, as well as the notion of uncertainty put forward in the General Theory. Section three deals with the monetary aspects of Keynes’s thought, examining its compatibility with Sraffa’s definition of normal prices assuming a uniform profit rate. The fourth section revises the controversy over the reswitching paradox, its connection with the multiplicity of internal return rates, and the relationship between productive structure and income distribution. The concluding remarks highlight the bifurcation points between the Keynesian and the Sraffian theoretical paradigms.

Keywords:
effective demand; expectations; gravitational center; capital productivity; profit rates

1 Introdução

Nos anos de 1970, tomou corpo projeto de articulação entre a contribuição de Piero Sraffa à teoria dos preços e o princípio da demanda efetiva de John Maynard Keynes em trabalhos elaborados por economistas como Pierangelo Garegnani (2012GAREGNANI, P. On the present state of the capital controversy. Cambridge Journal of Economics, 36(6), 1417-1432, 2012.; 1979; 1978), Luigi Pasinetti (2001PASINETTI, L.L. The principle of effective demand and its importance in the long run. Journal of Post-Keynesian Economics, 23(3): 383-390, 2001.; 2000; 1988), John Eatwell (2012EATWELL, J. The theory of value and the foundations of economic policy: In memoriam Pierangelo Garegnani. Contributions to Political Economy, 31: 1-18, 2012.) e Murray Milgate (1983).1 1 Uma visão geral da escola sraffiana pode ser encontrada em Bellofiore e Carter (2014), Levrero, Palumbo e Stirati (2013, 3 v.), além de Cozzi e Marchionatti (2001). No Brasil, grupo destacado de economistas tem elaborado análises originais a partir do legado sraffiano, com foco nas implicações dinâmicas do conceito de supermultiplicador (Serrano; Freitas; Bhering, 2019; Moreira; Serrano 2018; Serrano; Freitas, 2017). Buscava-se, com tal síntese, a integração da teoria keynesiana do emprego formulada em The General Theory of Employment, Interest, and Money (Keynes, [1936] 2013, doravante Teoria Geral) com o modelo sraffiano de determinação dos preços de reprodução desenvolvido em Production of Commodities by Means of Commodities (Sraffa, 1960, doravante Produção de Mercadorias). O presente artigo avalia a possível congruência entre os fundamentos dos paradigmas sraffiano e keynesiano tanto do ponto de vista analítico quanto epistemológico, contemplando na jornada argumentos fundamentados na história do pensamento econômico.

Sraffa entendia que o abandono da interpretação clássica do valor, a qual se centrava nos requisitos materiais de produção, em favor de uma análise econômica eminentemente subjetiva, tal como propugnada pela corrente marginalista em Cambridge, representara um programa de pesquisa degenerativo, motivado pela finalidade de se esvaziar as implicações socialistas da teoria ricardiana (Porta 2012PORTA, P.L. Sraffa early views on classical political economy. Cambridge Journal of Economics, 36(6), 1357-1383, 2012.; Kurz; Salvadori, 2000SALVADORI, N. Sraffa on demand: A textual analysis. In: KURZ (Ed.). Critical Essays on Piero Sraffa’s Legacy,181-197, 2000.). Não obstante a relevância dos elementos comportamentais no pensamento keynesiano, diferentemente da objetividade proposta pela abordagem sraffiana, diversos economistas modernos recomendam a unificação de ambos os paradigmas em virtude de seus aspectos comuns, particularmente a crítica à teoria neoclássica, o reconhecimento das limitações dos mercados, assim como a necessidade da intervenção estatal para a correção de tais deficiências (Bortis, 2013BORTIS, H. Piero Sraffa and Shackle’s Years of High Theory: Sraffa’s Significance in the History of Economic Theories. In: LEVRERO et. al. (Eds.). Sraffa and the Reconstruction, v. 3: 55-83, 2013.: 55-83; Chiodi; Ditta, 2013CHIODI, G.; DITTA, L. Sraffa and Keynes: Two Ways of Making a ‘Revolution’ in Economic Theory. In: LEVRERO, E. et. al. (Eds.). Sraffa and the Reconstruction, v. 1, 218-240, 2013.: 218-240; Lavoie, 2013LAVOIE, M. Sraffians, other Post-Keynesians, and the Controversy over Centres of Gravitation. In: LEVRERO et. al. (Eds.). Sraffa and the Reconstruction, v. 3: 34-54, 2013.: 34-54). Outros, todavia, consideram que os sraffianos, por compartilharem um núcleo dedutivo similar ao dos teóricos neoclássicos, aceitam, por conta disso, o compromisso de se elaborar modelos formais fechados (closed) e incompatíveis com a natureza aberta da proposta keynesiana (Dow, 2017DOW, S. Cambridge’s Contribution to Methodology in Economics. In: CORD (Ed.). Palgrave Companion, v. 1: 27-49, 2017.: 27-49; Roncaglia, 2009RONCAGLIA, A. Piero Sraffa. London: Palgrave Macmillan, 2009.: 138-161; Pratten, 1997PRATTEN, S. The ‘closure’ assumption as a first step: Neo-Ricardian economics and Post-Keynesianism. Review of Social Studies, 54(4), 423-443, 1997.; Dutt; Amadeo, 1990DUTT, A.K.; AMADEO, E. Keynes’s Third Alternative. The Neo-Ricardian and the Post-Keynesians. Cheltenham: Edward Elgar, 1990.: 60-84).2 2 A colaboração teórica entre Keynes e Sraffa se concentrou, principalmente, no exame das teses do Treatise on Money pelo Cambridge Circus, bem como na controvérsia entre ambos e Friedrich von Hayek em torno dos determinantes das taxas de juros (Ranchetti, 2001: 311-332; Potier, 1991: 7-20, 44-75).

No que segue, argumenta-se que os pontos essenciais de divergência entre os economistas sraffianos e keynesianos residem, inicialmente, no papel atribuído pelos primeiros aos fatores objetivos na determinação do investimento, enquanto os aspectos psicológicos subjacentes a tais decisões ocupam posição central na teoria econômica de Cambridge. Na sequência, contesta-se a hipótese de nivelamento das taxas de lucro no cálculo dos preços de reprodução constituintes dos centros de gravitação de longo prazo no universo sraffiano. Elencam-se, em conexão com esse ponto, fatores presentes na teoria keynesiana capazes de preservar certa estabilidade na atividade econômica destarte as flutuações no investimento. Finalmente, reitera-se a validade da relação inversa entre taxa monetária de juros e nível de investimento, refutada por Sraffa e seguidores em decorrência do conceito de retorno de técnicas (reswitching). Para tanto, a exposição estrutura-se como segue. A seção 2 examina a compatibilidade entre demanda efetiva, expectativas de longo prazo e objetividade científica. Já as relações entre moeda, taxas de lucro e centros de gravitação são analisadas na seção 3. A seção 4 trata da célebre controvérsia do capital e da definição de taxa interna de retorno, buscando mostrar como o debate, de fato, revolve em torno de contingências específicas do processo de investimento. Nas conclusões finais, avalia-se a pertinência de se associar a teoria da demanda efetiva a um centro de gravitação de longo prazo.

2 Demanda efetiva, expectativas e objetividade científica

A ênfase dos autores sraffianos originais, notadamente Pierangelo Garegnani, John Eatwell e Murray Milgate, em circunscrever o princípio da demanda efetiva à ação do multiplicador como fator de compatibilização entre as variações no investimento e na poupança, embora encontre amparo óbvio na Teoria Geral, decorre de razões de caráter mais profundo (Eatwell, 2012; Garegnani, 2012; 1979; 1978; Milgate, 1982: 77-142). Na interpretação de Sraffa, como observado, o advento da economia neoclássica, centrada na utilidade e no método de análise marginalista, representara um retrocesso na evolução da ciência econômica, especialmente com referência ao pensamento clássico, no qual os preços dependeriam, em última instância, dos custos físicos de produção. Nos seus apontamentos sobre o desenvolvimento da teoria do valor, assinalou o economista italiano:

A decomposição ocorreu em velocidade espantosa de 1820 a 1870: veja-se a abstinência proposta por Senior e a confusão da coisa toda criada por Mill. (...) Simultaneamente, um passo muito mais largo foi dado no processo de deslocar a base do valor do universo material para o psíquico: Jevons, Menger, Walras. Isso representou imensa ruptura com a tradição da E[conomia] Pol[ítica]. De fato, significou a destruição da E[conomia] P[olítica] e sua substituição, sob a antiga designação, pelo Cálculo do Prazer e da Dor (Sraffa Papers, D3/12/4, fólio 1).3 3 As traduções constantes no presente artigo são de nossa autoria.

Impõe-se lembrar aqui, no entanto, que por influência do idealismo britânico surgido no século XIX e propugnado por Thomas Green e outros filósofos contemporâneos, inspirados nas obras de Immanuel Kant e Georg W. F. Hegel, a tradição neoclássica em Cambridge sempre conferiu proeminência à percepção mental dos indivíduos no tocante à realidade econômica.4 4 O movimento idealista britânico surgiu na década de 1860 e persistiu até os anos de 1930, tendo como representantes mais destacados Thomas Hill Green (1836-1882), Edward Caird (1835-1908) e Francis Herbert Bradley (1846-1924). Seus principais centros de difusão foram as universidades de Oxford e Glasgow. Os idealistas acreditam que a esfera do entendimento compreenderia a interação do homem com as coisas, enquanto a esfera da razão abarcaria as reflexões sobre a liberdade, a virtude e a eternidade. As ideias não resultariam unicamente reflexo da realidade material, possuindo, com efeito, o poder de modificá-la e alcançar inclusive o reino espiritual (Barnett, 2017: 111-133; Mander, 2011: 13-129; Allard, 2003: 43-59). Alfred Marshall, por exemplo, considerava as conexões psíquicas induzidas pelas sensações provenientes do mundo real fenômenos integrantes da instância mais primitiva do ser humano. Num plano mais elevado, formar-se-ia a autoconsciência, a qual possibilitaria ao indivíduo refletir racionalmente sobre o seu próprio conhecimento, gerando assim novas associações mentais além daquelas induzidas pelo mero estímulo sensorial (Knight, 2018KNIGHT, K.L. A.C. Pigou and the Marshallian Thought Style. London: Palgrave Macmillan, 2018.: 152-166; Cook, 2009COOK, S.J. The intellectual foundations of Alfred Marshall's Economic Knowledge. Cambridge: CUP, 2009.: 120-49; 189-226). Na sua juventude, Marshall estudou seriamente a obra de Hegel, particularmente o livro Philosophy of History e, na maturidade, visitou a Alemanha duas vezes para se familiarizar com as teses dos filósofos germânicos (Groenewegen, 2003GROENEWEGEN, P. Marshall and Hegel. In: ______. Classics and Moderns in Economics, v. 1. London: Routledge, 181-198, 2003.: 181-198; 1995: 187-226).

Nos Principles of Economics de Marshall, o longo capítulo histórico (Livro V, cap. XIII) baseia-se tanto no progresso temporal da liberdade, como imaginado por Hegel, quanto na concepção de continuidade evolucionária divisada por Charles Darwin, compondo amplo painel analítico no interior do qual as ideias caminham à frente das mudanças históricas. O processo todo confluiria, eventualmente, a um estado superior da sociedade quando sucederia, enfim, a conciliação definitiva entre os interesses pessoais e coletivos. Para esse propósito, afirmou Marshall, fazia-se indispensável o avanço moral da nação, devendo a classe abastada reduzir o seu consumo suntuário e reforçar o investimento, enquanto melhores condições de vida aos mais pobres, doravante compromissados com a educação dos filhos, reforçariam as faculdades humanas em geral, a fonte mais importante da riqueza comum (Marshall, [1890] 1920: 689-753). Como o próprio Marshall assinalou ao analisar as transformações econômicas e comportamentais sob a era industrial: “Mas este é um crescimento e, portanto, ainda gradual, de modo que as mudanças na nossa organização social são também graduais, devendo aguardar a nova natureza humana em formação” (Marshall, [1890] 1920: 752).

Embora reconhecendo a importância da investigação histórica, Marshall entendia que os fenômenos econômicos compreendiam uma diversidade de forças guiadas por eventos nascidos de uma realidade contemporânea singular (Marshall, [1885] em Pigou, 1925: 152-174). A especificidade da ciência econômica situava-se na possibilidade de apreensão cognitiva das motivações psicológicas individuais, formadas no plano da autoconsciência, mediante os seus efeitos em variáveis reais mensuráveis, fosse no seu desdobramento imediato, fosse em seus impactos futuros não previstos. Nos Principles consta o seguinte trecho esclarecedor:

Ela [a economia] se preocupa essencialmente com os desejos, aspirações e outras fontes da natureza humana cuja manifestação exterior, na forma de incentivos à ação, pode ser estimada e medida com alguma precisão, sendo, portanto, afeita ao tratamento científico (Marshall, [1890] 1920: 15, destaque nosso).

Na tradição de estudo das flutuações industriais desenvolvida em Cambridge, Marshall, Frederick Lavington (1921LAVINGTON, F. The English Capital Market. London: Methuen, 1921.: 102-101), Dennis H. Robertson (1915ROBERTSON, D.H. A Study of Industrial Fluctuation. London: The London School of Economics and Political Science, 1915.: 156-164) e Arthur C. Pigou dedicaram longas reflexões à evolução das expectativas dos homens de negócios nas diferentes etapas do ciclo econômico (Bigg, 1990BIGG, R.J. Cambridge and the Monetary Theory of Production. The Collapse of Marshallian Economics, London: Palgrave Macmillan 1990.: 114-184; Bridel, 1987BRIDEL, P. Cambridge Monetary Thought. The Development of the Saving-Investment Analysis from Marshall to Keynes. New York: St. Martin’s, 1987.: 52-156). Em Industrial Fluctuations (1927), Pigou conferiu importância central aos erros de previsão dos investidores. Fenômenos como quebra de safras, inovações, alterações na demanda, ou então a eclosão de distúrbios monetários, poderiam gerar diferenças entre os resultados esperado e efetivo dos investimentos. Esse descompasso tenderia a ser exacerbado pela facilidade de participação do público leigo na aquisição de ações, pela inexistência de informações fidedignas sobre a condição financeira das empresas ou mesmo pela ausência de coordenação entre os planos individuais de investimento. Ademais, a estreita conexão entre os homens de negócios, abarcando inclusive o sistema financeiro, operaria não apenas no sentido de concentrar os erros de previsão, como também de amplificá-los com grande rapidez (Pigou, 1927: 65-90). Eis como Pigou descreve o advento de súbita contração no crédito:

Esse movimento inevitavelmente reage sobre a confiança nos negócios. Sob a sua influência, o moribundo erro de otimismo faz nascer um erro de pessimismo. O novo erro não nasce uma criança, mas um gigante. Pois tendo sido a prosperidade industrial um período de forte excitação emocional, isso faz com que o homem comum passe mais facilmente de uma forma de excitação à outra, em vez de ingressar num estado de moderação (Pigou, 1927PIGOU, A.C. Industrial fluctuations. London: Frank Cass, 1927.: 85).

Retornando a Keynes, em suas reminiscências escritas em 1938 sobre o tempo de juventude no Bloomsbury Group, reconheceu ele que as reflexões do filósofo e professor de Cambridge George E. Moore foram aceitas pelo grupo como uma espécie de religião desprovida, contudo, de obrigações morais. “Estávamos numa idade na qual as crenças moldavam os comportamentos. (...) Os hábitos de sentimento forjados à época ainda persistem em grau considerável” (Keynes, 1959: 247). Moore, no livro Principia Ethica, de 1903, distanciou-se do idealismo por entender que o movimento invocava uma realidade supersensível, ou o absoluto eterno, em relação ao qual nenhum princípio ético de melhoria do mundo poderia ser aplicado. Tal postura, no entanto, não significava repúdio ao domínio intelectual, porquanto as finalidades imateriais da existência, compreendidas na afeição aos semelhantes, na apreciação do belo e na expansão do conhecimento dependeriam das condições materiais da civilização moderna. Os deveres morais de cada indivíduo, no entanto, careceriam de critérios objetivos para o seu estabelecimento que não o comportamento social (common sense), haja vista que o cálculo da medida na qual determinada ação concorreria ao bem-estar individual ou coletivo redundaria inviável (Moore, [1903] 1922: 110-223; veja-se também Carabelli; Cedrini, 2018CARABELLI, A.M.; CEDRINI, M. A. Great expectations and final disillusionment: Keynes, ‘‘My Early Beliefs’’ and the ultimate values of capitalism. Cambridge Journal of Economics, 42(5): 1183-1204, 2018.). Toda a ação humana, pondera Moore, apresentar-se-ia envolta numa aura de dúvida decorrente da propriedade corrosiva do futuro sobre os impactos prospectivos de atos presentes.

A fim de demonstrar que uma ação corresponde a um dever, é necessário conhecer quais são as outras condições que, juntamente com ela, determinam os seus efeitos, além de saber exatamente todos os eventos que, de alguma forma, resultarão afetados por nossas ações no futuro infinito (...) É óbvio que o nosso conhecimento por si só é por demais incompleto para nos assegurar deste resultado, ou seja, que uma certa ação constitui um dever; jamais poderemos restar confiantes que determinada ação produzirá o maior valor possível (Moore, [1903] 1922: 149).

Keynes, durante os seus estudos para o exame do serviço civil em 1905, preparou extensas notas sobre os livros Analytical Psychology (1865), de George F. Stout, e Outlines of Psychology (1884), de James Sully. Tais apontamentos, como se sabe hoje, viriam a perpassar em grande medida a abordagem econômica de Keynes, especialmente a Teoria Geral, obra na qual as propensões psicológicas, a intuição e as percepções individuais e coletivas desempenham papel central (Davis, 2020DAVIS, J. Belief reversals as phase transitions and economic fragility: a complexity theory of financial cycles with reflexive agents. Review of Evolutionary Political Economy, 1(1): 67-84, 2020.; Barnett, 2015BARNETT, V. Keynes and the psychology of economic behavior: From Stout and Sully to The General Theory. History of Political Economy, 47(2): 307-33, 2015.). Nesse aspecto, em correspondência a Ralph Hawtrey, ao final de 1935, Keynes reconhece o débito com os predecessores em Cambridge na sua análise dos fatores determinantes das decisões de investimento, em oposição ao hábito do oficial do Tesouro em visualizar a acumulação de capital unicamente por meio do impacto das vendas sobre o volume de estoques:

Mas isso não é o que Marshall ou Pigou ou a maioria dos economistas modernos fazem. A demanda que determina as decisões sobre quanto utilizar do equipamento deve relacionar-se necessariamente com as expectativas. E eu, nesse aspecto, simplesmente tento colocar com maior precisão o que está implícito em grande parte da economia contemporânea (Keynes, 1987KEYNES, J.M. The General Theory and After: Part I-Preparation. In: MOGGRIDGE (Ed.). JMK, v. XIII, 1987.: 602).

Adiante, no ano de 1937, Roy Harrod definira um caminho de crescimento equilibrado da economia mediante certa fórmula conjugando o multiplicador e o acelerador (relation). Keynes, em correspondência com o amigo, mostrou-se relutante em aceitar a possibilidade de uma fórmula invariante para a expansão temporal do investimento. Além de argumentar que o decréscimo no multiplicador, induzido pelo crescimento da renda, exigiria aumento compensatório do acelerador a fim de manter constante a taxa de crescimento equilibrado, Keynes contestou a relevância atribuída por Harrod à influência do consumo presente sobre o investimento. Sob tais circunstâncias, restariam minimizados os efeitos das expectativas de longo prazo sobre as aquisições de novo capital fixo, as quais apenas incidentalmente assegurariam a prevalência de uma expansão econômica estável.

Até aqui, excluímos a possibilidade de mudanças nas expectativas. De fato, porém, a taxa de investimento não depende do consumo corrente, mas das expectativas (embora elas possam ser influenciadas, talvez indevidamente, pelo consumo corrente). Assim, a menos que as expectativas sejam de caráter constante, pode-se prever variações de curto prazo na relação (Keynes, 1973KEYNES, J.M. The General Theory and After. Part II. Defence and Development. In: MOOGRIDGE (Ed.). JMK, v. XIV,1973.: 172; sobre a correspondência, consulte-se Besomi, 1995BESOMI, D. From the Trade Cycle to the ‘Essay in Dynamic Theory’: The Harrod-Keynes correspondence, 1937-38. History of Political Economy, 27(2), 309-343, 1995.).

Se os autores sraffianos insistem que a renda e, por consequência, a poupança, dependem do volume de investimento, tal conexão se manifesta justamente porque o investimento independe da renda (Possas, 2015POSSAS, M.L. Uma interpretação de pontos controversos da Teoria Geral de Keynes. Brazilian Keynesian Review, 1(1): 71-95, 2015.). Não se trata simplesmente de artifício semântico, mas do fato de a primeira posição privilegiar o componente de automatismo da economia, trazendo implícita consigo uma omissão quanto à relevância das expectativas de longo prazo num ambiente de incerteza, assim como de sua relevância na explicação das flutuações do emprego e da produção. Noutras palavras, o passado calculável sobrepõe-se ao elemento de dúvida envolvendo as ações futuras. Por esse caminho, torna-se compreensível a tentativa de formalização da influência do estado psicológico dos homens de negócios sobre a trajetória temporal da economia, iniciativa recorrente nos escritos sraffianos. O gambito permite a conversão de um elemento inerentemente instável em fator objetivo e analiticamente manejável, distante, no entanto, da concepção subjacente às decisões de investimento enunciadas na Teoria Geral.

3 Moeda, taxas de lucro e centros de gravitação

Uma vez que a poupança seja definida como resultante do investimento, este último somente pode ser efetivado em presença de alguma estrutura capaz de gerar poder de compra além da renda corrente. Mais precisamente, via operações de crédito concedidas pelo sistema bancário. Esse traço institucional das economias capitalistas modernas se afigura tão mais importante no contexto do pensamento keynesiano quando se tem presente que as expectativas dos agentes financeiros repercutem igualmente sobre o curso real da economia, posto que as suas avaliações de longo prazo podem, em muitos casos, divergir daquelas dos investidores devido à natureza distinta de seus objetivos. Basta admitir que uma expansão do investimento pode ser barrada por súbita restrição no crédito, embora nunca por escassez de poupança. Na primeira hipótese, teria início um processo recessivo sem que a eficiência marginal do capital houvesse sofrido alteração. Keynes é claro a esse respeito:

Se um empreendimento for arriscado, a pessoa que toma emprestado necessitará de uma margem mais ampla entre sua expectativa quanto ao retorno e a taxa de juros à qual lhe parece vantajoso contrair a dívida, ao passo que justamente a mesma razão levará a pessoa que empresta a exigir uma margem maior entre a sua remuneração e a taxa de juros que basta para induzi-lo a emprestar. (...) A esperança de um resultado muito favorável, capaz de compensar o risco na mente do tomador do empréstimo, não é adequada para tranquilizar aquele que empresta (Keynes, [1936] 2013: 145).

A relevância da moeda em Keynes deve-se à propriedade desse instrumento constituir o elo entre as perspectivas dos agentes sobre o comportamento futuro da economia e as condições presentes em função do grau de incerteza reinante, pois como reserva de valor a moeda influencia a alocação da riqueza entre os seus diferentes usos possíveis (Davidson, 2001DAVIDSON, P. The principle of effective demand: Another view. Journal of Post Keynesian Economics, 23(3): 391-409, 2001.). Assim, ao se opor à concepção clássica de uma economia de trocas reais, Keynes, em 1933, já definira a essência daquilo que, na sua perspectiva, configuraria caracterização apropriada do modus operandi de uma economia capitalista moderna:

A teoria que objetivo desenvolver trataria, em contraposição a isso, de uma economia em que a moeda desempenha papel singular e afeta motivos e decisões. Em resumo, ela seria um dos fatores em operação na situação, de modo que o curso dos eventos não poderia ser predito, fosse no longo ou no curto prazo, sem o conhecimento do comportamento da moeda entre o estado inicial e o terminal (Keynes, 1987KEYNES, J.M. The General Theory and After: Part I-Preparation. In: MOGGRIDGE (Ed.). JMK, v. XIII, 1987.: 408-409).

O ponto a ser ressaltado aqui, porém, relaciona-se à ausência desse instrumento no modelo de determinação dos preços formulado em Produção de Mercadorias.5 5 Nos anos de 1920 Sraffa estudou a evolução do sistema financeiro italiano e europeu, bem como a natureza dos juros no contexto da teoria quantitativa, ressaltando os aspectos históricos, políticos e distributivos em suas análises sobre os bancos e o sistema monetário internacional (De Cecco, 2013: 154-188; Panico; Pinto; Anyul, 2012: 285-310). Em suas reflexões sobre a natureza do conhecimento, Sraffa revelou-se crítico inflexível da abordagem marginalista por julgar que os seus proponentes adotavam conceitos intangíveis como a utilidade e a produtividade marginal. Entendia ele, primeiramente, que abstrações do gênero conduziam ao uso indevido de contrafactuais, isto é, situações imaginárias sem contrapartida no mundo real. Em segundo lugar, Sraffa criticou a noção de equilíbrio parcial de Marshall por julgar que, ao se raciocinar dessa maneira, as conexões da parte com o todo restariam indevidamente omitidas. Por fim, em sua visão, não bastava que as teorias mostrassem certa conformidade com os fatos, porquanto tal correspondência poderia haver emergido de desenvolvimento lógico falho das premissas. As teorias, insistia Sraffa, deveriam não apenas adotar pressupostos realistas e compreensíveis, como também trabalhar com quantidades objetivas, evitando a interveniência sub-reptícia de juízos de valor na análise econômica, como acreditava ele ser comum entre os autores neoclássicos (Martins, 2012; Kurz, 2009KURZ, H. ‘If some people looked like elephants and others like cats, or fish …’ On the difficulties of understanding each other: the case of Wittgenstein and Sraffa. European Journal of the History of Economic Thought, 16(2): 361-374, 2009.: 264-279; Salanti; Signorino, 2001SALANTI, A.; SIGNORINO, R. From the 1925-6 articles to the 1960 book. Some notes on Sraffa's not so implicit methodology. COZZI; MARCHIONATTI (Eds.). Sraffa's Political Economy, 165-186, 2001.: 165-186).

Excluída a moeda do sistema de preços formulado por Sraffa, decorre que os produtores valoram a sua oferta unicamente pelo respectivo custo de produção, incluindo aí os lucros normais, sejam tais bens transacionados ou não no mercado. Por certo, o intercâmbio entre os itens componentes do capital resulta facilitado por conta do requisito de reprodução do sistema. Tal exigência, contudo, não alcança o produto líquido (excluindo-se a fração correspondente aos salários de subsistência), já que este, por definição, envolve aqueles bens em excesso das quantidades requeridas pela renovação do processo produtivo. Tampouco o consumo em si justificaria a totalidade das trocas, vez que, após a dedução da parcela salarial, afigura-se improvável que um bem básico possa constituir-se a um só tempo insumo produtivo ou objeto de consumo capitalista. Apenas no sistema padrão o produto líquido apresentaria conformação física capaz de viabilizar a expansão proporcional de todas as indústrias. Seja como for, Sraffa adota como hipótese crucial de seu raciocínio a taxa de lucro uniforme entre todos os produtores (Sraffa, 1960: 20-28).

Numa economia de trocas diretas, todavia, não fica devidamente elucidada a motivação das transações mercantis no tocante ao produto líquido, pois para qualquer composição do excedente se revela possível calcular-se um conjunto de preços relativos de igual lucratividade para todos os produtores, descartando-se, de imediato, a possibilidade de frustração de expectativas. Inclusive, visto que a configuração produtiva original usualmente difere do sistema padrão, algumas mercadorias básicas serão produzidas em quantidade distinta daquela exigida pela expansão proporcional da economia, consistindo a reprodução estática do sistema em instância particular do caso geral com taxa de acumulação nula. Aceitando-se dadas as técnicas de produção e, portanto, a ausência de substituição entre os recursos produtivos, permanece inexplicado como a produção excedente é absorvida pela economia quando a taxa de lucro uniforme prevalece de maneira incondicional. Dito de outra forma, omitido o meio de troca no sistema de preços de Sraffa, torna-se difícil conceber como a demanda efetiva venha a determinar alguma posição de longo prazo da economia.6 6 Luigi Pasinetti (2001: 383), ao criticar o modelo neoclássico de equilíbrio geral, inadvertidamente chega à conclusão aplicável também ao sistema de determinação dos preços de Sraffa: “Permitam-me afirmar que presumo ser geralmente aceito entre os participantes deste seminário que o princípio da demanda efetiva não encontra lugar no contexto dos modelos econômicos ortodoxos (mainstream) simplesmente porque tais modelos são formulados com características de uma economia (primitiva) à base de trocas puras.” No tocante às implicações analíticas da inserção de transações monetárias no sistema de Sraffa, consulte-se Hodgson (1981).

Em Produção de Mercadorias, pouco se esclarece a respeito das condições sob as quais o nivelamento das taxas de lucro viria a prevalecer. Ao examinar certo sistema produtivo com excedente, Sraffa admite uma oferta de 575 quarters de trigo para um consumo produtivo de 400 quarters, enquanto a produção de ferro alcança 20 toneladas, exatamente o suficiente para cobrir o consumo produtivo da mesma quantidade do metal pelo conjunto da economia. Nesse caso, os 175 quarters de trigo excedentes são distribuídos entre os dois ramos de atividade na razão de 15 quarters de trigo por 1 tonelada de ferro, perfazendo taxa de lucro comum calculada em 25% (Sraffa, 1960: 7). A peculiaridade desse exemplo reside na propriedade de o trigo excedente poder ser consumido pelos capitalistas na forma de lucro, mas sem a alternativa de acumulação devido à limitada oferta de ferro.

Imagine-se agora situação similar, verificando-se, contudo, um excedente de ferro e uma deficiência em trigo, como representado na Tabela 1. Assumam-se as mesmas condições técnicas de produção definidas por Sraffa, mas com uma disponibilidade final de 380 quarters de trigo, insuficiente, por conseguinte, à reprodução do sistema, juntamente com uma oferta acrescida de 30 toneladas de ferro, conformando um excedente de 10 toneladas do metal. A razão de troca, em tais circunstâncias, atinge 6,05 quarters de trigo por tonelada de ferro, perfazendo taxa de lucro comum r=7,7%. Claramente, verifica-se repartição inadequada do capital e do trabalho na economia. O preço do ferro em termos de trigo deveria diminuir a fim de promover a utilização mais efetiva dos recursos produtivos e viabilizar o crescimento econômico com maior disponibilidade de alimentos. Assumir a demanda previamente determinada à análise em nada auxilia no deslinde do problema. A taxa comum de lucro, assim como os respectivos preços de produção, quando deveriam viger taxas de lucro distintas, afiguram-se estritamente numéricos. Como observou Amartya Sen (2003SEN, A. Sraffa, Wittgenstein, and Gramsci. Journal of Economic Literature, 41(4): 1240-1255, 2003.), a solução quantitativa do sistema conforma tão somente uma operação algébrica, sem envolver qualquer conteúdo explicativo.7 7 Neri Salvadori (2000: 181-197) trata do tema, mas sem prover esclarecimentos substanciais à questão em virtude da parcimônia de Sraffa ao discorrer sobre a demanda em Produção de Mercadorias.

Tabela 1
Exemplo de Sraffa modificado

Admitindo-se que os investidores busquem as alternativas mais promissoras num ambiente de competição irrestrita e livre mobilidade de capitais, bases da uniformidade nas taxas de lucro, o sistema econômico estaria afeito à instabilidade porquanto qualquer assimetria na rentabilidade entre as indústrias engendraria largo deslocamento de recursos numa única direção haja vista a ausência de coordenação entre os planos de investimento. Quando grande contingente de indivíduos reproduz o comportamento de um grupo de referência, emerge então o conhecido comportamento de manada (herd behavior), inclusive em investimentos produtivos (Joyeux; Milunovich, 2015JOYEUX, R.; MILUNOVICH, G. Speculative bubbles, financial crises, and convergence in global real estate investment trusts. Applied Economics, 47(27): 2878-2898, 2015.; Rook, 2006ROOK, L. An economic psychological approach to herd behavior. Journal of Economic Issues, 40(1): 75-95, 2006.; Scharfstein; Stein, 1990SCHARFSTEIN, D. S.; STEIN, J. C. Herd behavior and investment. The American Economic Review, 80(3): 465-479, 1990.). Marshall, cabe notar, desenvolve a sua teoria do ciclo econômico em Industry and Trade (1919) e Money Credit and Commerce (1923) a partir de tal perspectiva, explicando que o aprofundamento da fase expansiva da economia, alimentada por um barateamento indevido do crédito, tem lugar quando especuladores profissionais bem-informados, responsáveis por antecipar as necessidades reais do mercado, passam a ser seguidos por amadores estranhos ao ofício, os quais amplificam indevidamente os movimentos naturais na demanda. Tão pronto os especuladores profissionais e os banqueiros percebam que o processo de endividamento e reajuste dos preços atingiu escala insustentável, descarregam os seus estoques e cortam o crédito, deflagrando a fase recessiva (Marshal, [1919] 1932: 250-268; [1923] 1929: 246-251; veja-se também Meyrelles Filho; Arthmar, 2016; Dardi; Gallegati, 1992DARDI, M.; GALLEGATI, M. Marshall on speculation. History of Political Economy, 24(3): 571-594, 1992.).

Recentemente, Antonio D’Agata e Stefano Zambelli mostraram que a proposição de nivelamento geral dos lucros não teria, em verdade, sido adotada pelos autores clássicos, incluindo-se aí Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, os quais consideravam, outrossim, a existência de rentabilidades diferenciadas no interior da economia, trabalhando tais autores com uma taxa média de lucro na determinação dos preços naturais (D’Agata, 2018; Zambelli, 2018).8 8 Ricardo, ao introduzir tal pressuposto nos Principles, reconheceu como extremamente difícil traçar os passos mediante os quais o nivelamento das taxas de lucro viria a se estabelecer, admitindo inclusive como normal a circunstância de os capitalistas abrirem mão permanentemente de certa margem dos lucros devido a vantagens como segurança, simplicidade e facilidade na condução dos negócios (Ricardo, [1821] 2002: 88-92). Além disso, caso a hipótese de competição perfeita seja descartada por conta de seu irrealismo, como sugerido pela metodologia de Sraffa, então condições semimonopolistas prevalecem e os preços encontram-se, por consequência, largamente predeterminados. Sob tais especificações, o sistema analítico desenvolvido em Produção de Mercadorias comporta uma infinidade de vetores de preços naturais conducentes, cada qual, a um correspondente vetor de taxas de lucros heterogêneas, sem que se comprometa a reprodução do sistema econômico (D’Agata, 2018, Zambelli, 2018; consulte-se, igualmente, Benetti; Bidard; Klimovsky, 2013BENETTI, C.; BIDARD, C.; KLIMOVSKY, E. Disequilibrium and Reproduction Prices: Some Extensions of Sraffa’s Model. In: LEVRERO, E. et al. (Eds.). Sraffa and the Reconstruction, v. 3: 129-149, 2013.: 129-149; Harris, 1988HARRIS, D. On the classical theory of competition. Cambridge Journal of Economics, 12(1): 139-167, 1988.). Tal reversão de perspectiva analítica autoriza o reconhecimento da existência de um sem-número de constelações de preços de produção com diferentes taxas de lucros associadas capazes de satisfazer o sistema de Sraffa e que se candidatam, com idêntica legitimidade, a configurar múltiplos centros de gravitação da economia.9 9 Marshall jamais postulou a existência de taxas de lucro uniformes. Ademais, no cálculo da taxa média de lucro, alertou ele, deveriam contabilizar-se as perdas de todos os empreendimentos que não sobreviveram aos riscos do mercado. O capital fixo já existente (specialiased capital), por seu turno, usufruiria uma quase-renda determinada pelas condições específicas de demanda e que poderia ser distribuída entre proprietários e trabalhadores, compondo remuneração diferenciada daquela a ser auferida pelo novo capital disponível na forma livre (free capital) (Marshall, [1890] 1920: 609-628; no mesmo sentido, veja-se Pigou, 1912: 109-214).

Se a uniformidade da taxa de lucro, assumida por Sraffa como princípio organizador da produção social, não se constitui condição essencial de reprodução material da economia, como poderia o sistema operar ao longo do tempo sem sofrer instabilidades explosivas recorrentes? Marshall, por exemplo, observa que em economias industriais avançadas o investimento representa fração reduzida do capital acumulado pela sociedade, de modo que flutuações na demanda por capital livre (free capital) carregariam potencial limitado de subverter a totalidade da estrutura econômica existente materializada em bens de capital duráveis com longa amortização (Marshall, [1890] 1920: 236). Keynes, de sua parte, acreditava que períodos de estabilidade mostrar-se-iam recorrentes em razão do comportamento convencional de produtores e investidores, os quais projetariam a continuidade do presente no futuro perante a ausência de motivos de maior envergadura para uma revisão das expectativas, sem referência a centros de gravitação afastados no tempo. Além disso, em suas considerações sobre o ciclo econômico, Keynes aponta a durabilidade dos bens de capital existentes, a acumulação de estoques e o rápido desinvestimento em capital circulante como fatores de moderação da intensidade dos processos recessivos (Keynes, [1936] 2013: 147-64, 313-324; Carvalho, 1990CARVALHO, F.J.C. Keynes and the long period. Cambridge Journal of Economics, 14(3), 277-290, 1990.).

Nos modelos sraffianos modernos, o investimento é determinado pela busca de utilização da capacidade produtiva em seu nível normal, definido pela média histórica ao longo das flutuações econômicas. Tal informação, porém, simplesmente inexiste para os novos ramos produtivos. Caso se deseje maior realismo da teoria, é mister considerar o surgimento de produtos ou ramos produtivos baseados nas inovações de tipo schumpeteriano, desfazendo-se aí, no entanto, o sistema de preços atrator quando o passado deixa de ser referência para o futuro (Dutt; Amadeo, 1990DUTT, A.K.; AMADEO, E. Keynes’s Third Alternative. The Neo-Ricardian and the Post-Keynesians. Cheltenham: Edward Elgar, 1990.: 84; Harcourt, 1981HARCOURT, G. Marshall, Sraffa, and Keynes: Incompatible bedfellows? Eastern Economic Journal, 7(1): 39-50, 1981.). Em termos formais, estaria comprometida a condição de estabilidade dinâmica do sistema e, por conseguinte, a convergência da economia à uma posição de longo prazo, como assumido pelos intérpretes sraffianos de Keynes (consulte-se Serrano; Freitas; Bhering, 2019SERRANO, F.; FREITAS, F.; BHERING, G. The trouble with Harrod: The fundamental instability of the warranted rate in the light of the Sraffian supermultiplier. Metroeconomica, 70(2): 263-287, 2019.: 269-272; Serrano; Freitas, 2017: 70-78).10 10 A convergência do modelo dinâmico de Freitas e Serrano repousa em uma intensidade moderada de resposta do investimento às flutuações na demanda e ao crescimento de longo prazo dos gastos autônomos, de modo que a propensão a consumir e a “propensão a investir” resultem inferiores à unidade (Serrano; Freitas 2017: 75-76; tal condição de estabilidade estrutural foi originalmente adiantada por Lloyd Metzler (1950)). Em artigo recente, Oreiro, Da Silva e Santos criticam os modelos sraffianos baseados no princípio do acelerador por tornarem o investimento endógeno, isto é, por assumi-lo sujeito a uma fórmula invariante ligada às condições de oferta, desconsiderando o caráter incerto das expectativas de longo prazo próprio à mensagem de Keynes (Oreiro; Da Silva; Santos, 2020).

De resto, no tocante ao nivelamento das taxas de lucro, é oportuno recuperar a contribuição de Sraffa em seu debate com Hayek sobre a obra deste último intitulada Production and Prices, publicada em 1932. Ao criticar a noção de taxa de juros natural adiantada pelo economista austríaco em contraposição à taxa puramente monetária, Sraffa esclarece que todas as mercadorias possuiriam uma taxa de juros natural particular ij, a qual dependeria dos seus preços nos mercados à vista (spot) Pjs e futuro (forward) Pjf (Sraffa, 1932). Em equilíbrio, tais preços permaneceriam inalterados, e as taxas de juros de cada mercadoria (commodity rates) reproduziriam então a taxa monetária im, de acordo com a fórmula a seguir:

i j i m ( P j f P j s P j s )

Em números: se um empréstimo de £100 à taxa de juros de 6% ao ano permite adquirir uma tonelada de ferro ao preço à vista de £100, então, se o preço futuro cair para £98, ao final de um ano o devedor incorrerá numa perda aproximada, em termos da mercadoria ferro, de 8%. Caso o preço futuro da tonelada de ferro aumente para £108, então a taxa de juros dessa mercadoria particular será negativa em -2%, acarretando ganho ao devedor no evento de o empréstimo haver sido destinado à aquisição de ferro. Keynes, no capítulo 17 da Teoria Geral, adota inicialmente a definição de Sraffa para o que designa taxa própria de juros (own-rates of interest), isto é, como um custo (positivo ou negativo) a recair sobre o devedor. Logo, porém, Keynes adota ótica reversa e passa a tratar o conceito como indicador da rentabilidade dos detentores de cada mercadoria ou ativo específico, a qual estaria determinada pelos atributos de liquidez (l), custos de carregamento (c) e rendimento (q) (Keynes, [1936] 2013: 225-229).

Essa reformulação permite a Keynes conceber um alinhamento das taxas próprias de cada ativo à taxa de juros monetária, porquanto na hipótese de a primeira superar a segunda, novos investimentos aumentariam a oferta dos bens em questão e reduziriam a sua rentabilidade ao nível da taxa monetária em vigor. O aspecto decisivo da análise, no entanto, jaz na circunstância de Keynes admitir que no curso de uma retração econômica não mais prevaleceria o nivelamento das taxas próprias de juros com a taxa monetária. Tal desajuste surgiria em virtude de a queda nos preços derrubar a rentabilidade geral dos ativos, inclusive a dos equipamentos de capital, enquanto a moeda permaneceria com o seu prêmio de liquidez intocado por conta de sua incapacidade de ser produzida ou substituída com facilidade, atributos característicos dos demais produtos da economia. Nessa assimetria fundamental entre os rendimentos proporcionados pelos bens materiais vis-à-vis o dinheiro, violando assim a hipótese de nivelamento da lucratividade através da economia, ocultar-se-ia a causa última do desemprego. Como se lê na Teoria Geral:

O desemprego cresce, pode-se dizer, porque as pessoas querem a Lua; os homens não podem conseguir emprego quando o objeto de seus desejos (isto é, o dinheiro) é algo que não pode ser produzido e cuja demanda não pode ser facilmente contida. O único remédio consiste em persuadir o público de que a Lua e o queijo verde são praticamente a mesma coisa, e a fazer funcionar uma fábrica de queijo verde (isto é, um banco central) sob o controle do poder público (Keynes, [1936] 2013: 235).

Sraffa discordou de Keynes por julgar que a definição original das taxas próprias de juros denotaria um elemento de custo da atividade comercial no curto prazo, de modo que o argumento do capítulo 17 teria sido melhor articulado caso o termo “taxa própria de juros” houvesse sido substituído por “eficiência marginal do capital”, indicando o retorno de ativos físicos no longo prazo. A divergência, contudo, não parece haver se dirigido à substância do raciocínio, conquanto Sraffa concebesse o desalinhamento das taxas próprias com a taxa monetária como um processo inverso ao descrito na Teoria Geral por conta da diferença conceitual indicada (Grieve, 2015GRIEVE, R.H. Keynes and Sraffa on own-rates: A present-day misunderstanding, Contributions to Political Economy, 34(1): 1-16, 2015.; Naldi, 2015NALDI, N. Sraffa and Keynes on the concept of commodity rates of interest. Contributions to Political Economy, 34(1): 17-30, 2015.: Ranchetti, 2001RANCHETTI, F. On the Relationship between Keynes and Sraffa. In: COZZI; MARCHIONATTI, (Eds.). Sraffa’s Political Economy, 311-332, 2001.: 311-332).11 11 Em Produção de Mercadorias, Sraffa reconhece que a taxa de lucros em seu sistema de preços poderia ser estabelecida, em última instância, pela taxa de juros: “A taxa de lucros, como tal, possui um significado independente de quaisquer preços e pode, muito bem, ser ‘dada’ antes que os preços sejam definidos. Ela é, portanto, suscetível de ser determinada por fora do sistema de produção, em particular pelo nível das taxas de juros monetárias” (Sraffa,1960:39).

4 Paradoxo do capital, taxa interna de retorno e distribuição

Alternativas de investimento, em sua forma geral, podem ser definidas como a utilização de recursos produtivos específicos por períodos distintos a fim de se obter um fluxo de outros bens a serem vendidos com certo lucro. A possibilidade de retorno de técnicas (reswitching) é comumente apontada pelos autores sraffianos como fator impeditivo de se estabelecer uma relação inversa bem definida entre a taxa de juros e a demanda por capital. Por se localizar aí pressuposto fundamental da teoria neoclássica, afirmam eles, constituir-se-ia esse o aspecto mais frágil da crítica keynesiana à ortodoxia de seu tempo, isto é, a suposta interação entre a curva de eficiência marginal do capital e a taxa de juros monetária (Eatwell, 1983EATWELL, J. The long-period theory of employment. Cambridge Journal of Economics, 7(3-4): 269-285, 1983.; Garegnani, 1979GAREGNANI, P. Notes on consumption, investment and effective demand: II. Cambridge Journal of Economics, 3(1), 63-82, 1979.).12 12 O fenômeno de reswitching significa que uma técnica produtiva, anteriormente abandonada devido a uma elevação da taxa de juros, pode se tornar atrativa novamente quando a taxa de juros alcança patamar ainda maior. Cabe diferenciar tal situação daquilo que se entende por aprofundamento reverso do capital (reverse capital deepening), quando uma redução (aumento) da taxa de juros enseja a adoção de técnicas produtivas mais (menos) intensivas em trabalho por unidade de produto (Petri, 2016: 63-65).

Vejamos a questão mais de perto. Admitam-se duas técnicas produtivas A e B que se estendam durante quatro períodos e voltadas à produção de certa quantidade de vinho com valor de 40 unidades monetárias.13 13 O exemplo foi concebido originalmente por Paul Samuelson, inspirado em Knut Wicksell, durante o debate sobre a controvérsia do capital (Samuelson, 1966). O processo A utiliza apenas sete unidades de trabalho no segundo período, ao salário de uma unidade monetária, enquanto o processo B requer duas unidades de trabalho no primeiro período e seis unidades no terceiro. Os custos totais de cada alternativa produtiva, bem como a receita do vinho no último período, podem ser descontados para o período inicial, de sorte que o valor presente de cada alternativa estará dado por VP(A,i)=7(1+i)+40(1+i)3 e VP(B,i)=26(1+i)2+40(1+i)3, supondo-se que as despesas e receitas ocorram ao início de cada período. Para uma sequência de taxas de juros, podemos encontrar os sucessivos valores presentes, como representado na Tabela 2.

Tabela 2
Retorno de técnicas

Para taxas de juros anuais inferiores a 50%, a alternativa A é mais atrativa. Quando as taxas de juros se situam entre 50% e 100%, a alternativa B afigura-se mais interessante. Acima de 100%, a técnica A volta a ser mais lucrativa. É possível, todavia, calcular-se o fluxo de caixa incremental BA, ou seja, (-2, 7, -6, 0). Nessa situação, BAapresenta duplicidade de taxas internas de retorno, ou seja, r1=50% e r2=100%, replicando os percentuais nos quais os valores presentes das duas técnicas se igualam. A coincidência não é acidental. A estrutura temporal de desembolsos e receitas de cada um dos processos produtivos, isto é, a particularidade de cada fluxo de caixa, determina o comportamento aparentemente paradoxal dos valores presentes calculados.14 14 Taxas múltiplas de retorno surgem quando projetos de investimento são executados em estágios, implicando desembolsos futuros de capital que tornam o fluxo de caixa negativo em determinados períodos. A taxa interna de retorno, porém, satisfaz VP=∑j=0nAj(1+i)j=0ou, utilizando-se o denominador comum (1+i)j, resulta ∑j=0nAj(1+i)n−j(1+i)j=0. Expandindo-se o polinômio no numerador de VP, tem-se f(i)=A0(1+i)n+ A1(1+i)n−1+…+An=0.Remanejando-se os termos, chega-se a f(i)=B0(i)n+ B1(i)n−1+…+Bn=0. Se esta última expressão contar com mais de uma inversão de sinal dos coeficientes Bj então, pela regra de Descartes, podem existir múltiplas raízes positivas i em número máximo ao da inversão dos sinais (Panton, 1999). Se as alternativas não são excludentes, cada qual possui taxa interna de retorno específica, a saber, rA=139,0% e rB=134,9%, sendo ambas atrativas para taxas de juros monetárias aquém de tais valores (Milana, 2019MILANA, C. Solving the reswitching paradox in the Sraffian theory of capital. Applied Economics and Finance, 6(6): 97-125, 2019.; Hazen, 2003HAZEN, B. A new perspective on multiple rates of return. The Engineering Economist, 48(1): 31-51, 2003.; Yeager, 1976YEAGER, L.B. Towards understanding some paradoxes in capital theory. Economic Inquiry, 14(3): 313-346, 1976.).15 15 A propósito, esclarece Ben Hazen: “Assim como não há sentido em comparar taxas internas de retorno entre projetos mutuamente excludentes, tampouco faz sentido comparar diferentes taxas internas de retorno para um mesmo projeto. Tudo o que deve importar sobre a taxa interna de retorno é se ela supera a taxa de juros de mercado. A magnitude da taxa interna de retorno não oferece qualquer outra informação relevante” (Hazen, 2003: 43).

O fenômeno do retorno de técnicas apontado pelos economistas sraffianos explicita propriedades da análise de investimentos para fluxos de caixa assaz peculiares, mas não excepcionais, nos quais prevalecem duas ou mais taxas internas de retorno. Abrir-se-ia assim, segundo tal interpretação, a possibilidade de curvas de demanda por capital não negativamente inclinadas, as quais redundariam em equilíbrios múltiplos ou mesmo em instabilidade estrutural da economia para variações triviais nos juros, comprometendo irremediavelmente o conjunto da estrutura teórica neoclássica (Baranzini; Mirante, 2018: 225-38; Garegnani, 2012GAREGNANI, P. On the present state of the capital controversy. Cambridge Journal of Economics, 36(6), 1417-1432, 2012.). Não obstante, mesmo que substituíssemos o arcabouço neoclássico por aquele construído por Sraffa, as dificuldades subjacentes às decisões de investimento permaneceriam análogas. Pois nesta última situação, os custos associados a cada técnica produtiva dependeriam do vetor dos preços de reprodução, assim como da distribuição de renda prevalecente em cada configuração do sistema. A tarefa do investidor individual sraffiano, a quem caberia conhecer tais informações na sua totalidade, redundaria monumental e comensurável ao tâtonnement executado pelo célebre leiloeiro walrasiano (Bridel; Huck, 2010BRIDEL, P.; HUCK, E. Yet another look at Léon Walras’s theory of tâtonnement, European Journal of the History of Economic Thought, 9(4): 513-540, 2010.: Young, 1994YOUNG, J. T. Keynes’s Third Alternative. Book review. History of Political Economy, 26(3): 523-528, 1994.).

Em conexão com esse aspecto, como argumenta Pasinetti, o fato de a distribuição funcional da renda ser tratada como dado exógeno no modelo de Sraffa não significa, entretanto, que a questão pudesse comportar qualquer gênero de explicação. A fim de que uma teoria distributiva se conformasse aos fundamentos desenvolvidos em Produção de Mercadorias, deveria ela contemplar conjuntamente duas restrições: (a) definida a participação de uma variável distributiva no produto líquido (deduzida já a renda fundiária), à outra caberá a parcela restante, calculada juntamente com os preços de reprodução, e (b) a configuração produtiva da economia é inalterável. O resultado de ambas as condições consiste em que, para qualquer arcabouço teórico, necessariamente se mantém a oposição entre salários e lucros (Pasinetti, 1988). Se assim deve acontecer, a teoria keynesiana mostra-se novamente incompatível com tais fundamentos. Pois, conforme Keynes, variações em quaisquer categorias de renda devem ter seus efeitos examinados segundo o respectivo impacto sobre a demanda efetiva e, daí, sobre o produto e o emprego.

A receita corrente dos empresários é função da demanda efetiva que depende, dada a propensão a consumir da comunidade, das expectativas de longo prazo, as quais não guardam conexão imediata com o nível dos salários, pois embora este seja um dos condicionantes dos retornos esperados, não é o único. Por sua vez, eventual redução salarial, por exemplo, ocasionará contração na demanda agregada no setor de bens de consumo, seguida por diminuição no produto agregado, contrariando, por essa via, a segunda restrição de Sraffa.16 16 Michal Kalecki, no mesmo sentido, acreditava que um aumento salarial redundaria em efeito mínimo sobre os lucros totais, dado que estes dependeriam exclusivamente dos gastos capitalistas em consumo e investimento, os quais dificilmente sofreriam revisão após a mudança distributiva (Kalecki, 1971). Na percepção de Keynes, o erro crucial da concepção clássica sobre os salários residia na suposição de que a demanda agregada manter-se-ia constante após uma variação salarial:

Ninguém pensaria, pois, em negar a proposição de que uma redução dos salários nominais, acompanhada de demanda efetiva agregada idêntica a níveis anteriores, é seguida por um aumento de emprego; mas a questão que se propõe é justamente saber se os salários nominais reduzidos serão ou não acompanhados por uma demanda agregada efetiva que, medida em dinheiro, seja igual à demanda anterior, ou pelo menos não tenha sofrido uma redução plenamente proporcional à dos salários nominais (Keynes, [1936] 2013: 259-260, destaque no original).

Quando uma alteração na distribuição induz modificação do produto por intermédio de sua influência sobre o consumo ou o investimento, então a condição de invariância da configuração produtiva sraffiana não é mais obedecida e a oposição salários-lucros daí deduzida se desalenta sob a vigência do princípio da demanda efetiva.

5 Considerações finais

A assimilação sraffiana da contribuição teórica de Keynes na Teoria Geral, embora detenha o mérito de situar a questão do desemprego além das formulações tradicionais que o qualificam meramente consequência de desequilíbrios e imperfeições do paradigma competitivo neoclássico, perde lustro teórico ao desconsiderar as limitações de sua própria abordagem. Entre as dificuldades inerentes à teoria sraffiana dos preços, observe-se, inicialmente, a visão determinista das decisões de investimento, eliminando a incerteza e o componente psicológico do cenário analítico. Em acréscimo, a noção de taxa de lucro uniforme implícita nos preços de reprodução de um sistema econômico desprovido de moeda é aplicada sem referência às condições de demanda, tornando o centro de gravitação de longo prazo da economia uma construção puramente abstrata, com duvidoso impacto sobre o comportamento efetivo da economia. Sraffa, nesse aspecto, certamente excedeu-se ao condenar o pretenso irrealismo do aparato teórico de Marshall que, assim como Pigou, Keynes e outros na tradição de Cambridge, privilegiou a aplicação prática de seus escritos à promoção do bem-estar social, da estabilidade econômica e do emprego. As incompatibilidades entre o pensamento de Keynes e Sraffa, possivelmente, sejam derivadas da circunstância de que na economia clássica, nos moldes em que Ricardo a imprimiu, o produto esteja limitado unicamente pelas condições de oferta, de sorte que todas as conclusões sobre o valor e a distribuição restam apoiadas nessa hipótese. Já em Keynes, o princípio da demanda efetiva responde pelo volume de emprego e pelo nível de produção, com os gastos em consumo e investimento condicionados por fatores psicológicos e institucionais, tanto racionais quanto intuitivos, em vista da incapacidade de se estimar com precisão a totalidade dos efeitos futuros das decisões humanas.

Os autores agradecem os valiosos comentários dos pareceristas da Nova Economia, bem como o suporte financeiro do CNPq, bolsa 304978/2018-3.

Referências

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  • Códigos JEL:

    B22, B24, B41
  • JEL Codes:

    B22, B24, B41
  • 1
    Uma visão geral da escola sraffiana pode ser encontrada em Bellofiore e Carter (2014BELLOFIORE, R.; CARTER, S. (Eds.). Towards a New Understanding of Sraffa. Insights from Archival Research. London: Palgrave Macmillan, 2014.), Levrero, Palumbo e Stirati (2013LEVRERO, E.; PALUMBO, A.; STIRATI, A. (Eds.). Sraffa and the Reconstruction of Economic Theory. 3 v. London: Palgrave Macmillan, 2013., 3 v.), além de Cozzi e Marchionatti (2001COZZI, T.; MARCHIONATTI, R. (Eds.). Piero Sraffa’s Political Economy. A Centenary Estimate. London: Routledge, 2001.). No Brasil, grupo destacado de economistas tem elaborado análises originais a partir do legado sraffiano, com foco nas implicações dinâmicas do conceito de supermultiplicador (Serrano; Freitas; Bhering, 2019SERRANO, F.; FREITAS, F.; BHERING, G. The trouble with Harrod: The fundamental instability of the warranted rate in the light of the Sraffian supermultiplier. Metroeconomica, 70(2): 263-287, 2019.; Moreira; Serrano 2018MOREIRA, V.G.; SERRANO, F. Demanda efetiva no longo prazo e no processo de acumulação: o debate sraffiano a partir do projeto de Garegnani (1962). Economia e Sociedade, 27(2): 463-492, 2018.; Serrano; Freitas, 2017).
  • 2
    A colaboração teórica entre Keynes e Sraffa se concentrou, principalmente, no exame das teses do Treatise on Money pelo Cambridge Circus, bem como na controvérsia entre ambos e Friedrich von Hayek em torno dos determinantes das taxas de juros (Ranchetti, 2001RANCHETTI, F. On the Relationship between Keynes and Sraffa. In: COZZI; MARCHIONATTI, (Eds.). Sraffa’s Political Economy, 311-332, 2001.: 311-332; Potier, 1991POTIER, J.P. Piero Sraffa. Unorthodox Economist (1898-1983). London: Routledge, 1991.: 7-20, 44-75).
  • 3
    As traduções constantes no presente artigo são de nossa autoria.
  • 4
    O movimento idealista britânico surgiu na década de 1860 e persistiu até os anos de 1930, tendo como representantes mais destacados Thomas Hill Green (1836-1882), Edward Caird (1835-1908) e Francis Herbert Bradley (1846-1924). Seus principais centros de difusão foram as universidades de Oxford e Glasgow. Os idealistas acreditam que a esfera do entendimento compreenderia a interação do homem com as coisas, enquanto a esfera da razão abarcaria as reflexões sobre a liberdade, a virtude e a eternidade. As ideias não resultariam unicamente reflexo da realidade material, possuindo, com efeito, o poder de modificá-la e alcançar inclusive o reino espiritual (Barnett, 2017BARNETT, V. Cambridge in Mind: Economics and Psychology on the Cam. In: CORD (Ed.). Palgrave Companion, v. 1: 111-33, 2017.: 111-133; Mander, 2011MANDER, W.J. British Idealism. A History. Oxford: OUP, 2011.: 13-129; Allard, 2003ALLARD, J. Idealism in Britain and the United States. In: BALDWIN, T. (Ed.). The Cambridge History of Philosophy 1870-1945. Cambridge: CUP: 43-59, 2003.: 43-59).
  • 5
    Nos anos de 1920 Sraffa estudou a evolução do sistema financeiro italiano e europeu, bem como a natureza dos juros no contexto da teoria quantitativa, ressaltando os aspectos históricos, políticos e distributivos em suas análises sobre os bancos e o sistema monetário internacional (De Cecco, 2013: 154-188; Panico; Pinto; Anyul, 2012PANICO, C.; PINTO, A.; ANYUL, M.P. Income distribution and the size of the financial sector: A Sraffian analysis. Cambridge Journal of Economics, 36(6): 1455-1477, 2012.: 285-310).
  • 6
    Luigi Pasinetti (2001PASINETTI, L.L. The principle of effective demand and its importance in the long run. Journal of Post-Keynesian Economics, 23(3): 383-390, 2001.: 383), ao criticar o modelo neoclássico de equilíbrio geral, inadvertidamente chega à conclusão aplicável também ao sistema de determinação dos preços de Sraffa: “Permitam-me afirmar que presumo ser geralmente aceito entre os participantes deste seminário que o princípio da demanda efetiva não encontra lugar no contexto dos modelos econômicos ortodoxos (mainstream) simplesmente porque tais modelos são formulados com características de uma economia (primitiva) à base de trocas puras.” No tocante às implicações analíticas da inserção de transações monetárias no sistema de Sraffa, consulte-se Hodgson (1981HODGSON, G. Money and the Sraffa system. Australian Economic Papers, 20(36): 83-95, 1981.).
  • 7
    Neri Salvadori (2000SALVADORI, N. Sraffa on demand: A textual analysis. In: KURZ (Ed.). Critical Essays on Piero Sraffa’s Legacy,181-197, 2000.: 181-197) trata do tema, mas sem prover esclarecimentos substanciais à questão em virtude da parcimônia de Sraffa ao discorrer sobre a demanda em Produção de Mercadorias.
  • 8
    Ricardo, ao introduzir tal pressuposto nos Principles, reconheceu como extremamente difícil traçar os passos mediante os quais o nivelamento das taxas de lucro viria a se estabelecer, admitindo inclusive como normal a circunstância de os capitalistas abrirem mão permanentemente de certa margem dos lucros devido a vantagens como segurança, simplicidade e facilidade na condução dos negócios (Ricardo, [1821] 2002: 88-92).
  • 9
    Marshall jamais postulou a existência de taxas de lucro uniformes. Ademais, no cálculo da taxa média de lucro, alertou ele, deveriam contabilizar-se as perdas de todos os empreendimentos que não sobreviveram aos riscos do mercado. O capital fixo já existente (specialiased capital), por seu turno, usufruiria uma quase-renda determinada pelas condições específicas de demanda e que poderia ser distribuída entre proprietários e trabalhadores, compondo remuneração diferenciada daquela a ser auferida pelo novo capital disponível na forma livre (free capital) (Marshall, [1890] 1920: 609-628; no mesmo sentido, veja-se Pigou, 1912PIGOU, A.C. Wealth and Welfare. London: Macmillan 1912.: 109-214).
  • 10
    A convergência do modelo dinâmico de Freitas e Serrano repousa em uma intensidade moderada de resposta do investimento às flutuações na demanda e ao crescimento de longo prazo dos gastos autônomos, de modo que a propensão a consumir e a “propensão a investir” resultem inferiores à unidade (Serrano; Freitas 2017: 75-76; tal condição de estabilidade estrutural foi originalmente adiantada por Lloyd Metzler (1950)). Em artigo recente, Oreiro, Da Silva e Santos criticam os modelos sraffianos baseados no princípio do acelerador por tornarem o investimento endógeno, isto é, por assumi-lo sujeito a uma fórmula invariante ligada às condições de oferta, desconsiderando o caráter incerto das expectativas de longo prazo próprio à mensagem de Keynes (Oreiro; Da Silva; Santos, 2020).
  • 11
    Em Produção de Mercadorias, Sraffa reconhece que a taxa de lucros em seu sistema de preços poderia ser estabelecida, em última instância, pela taxa de juros: “A taxa de lucros, como tal, possui um significado independente de quaisquer preços e pode, muito bem, ser ‘dada’ antes que os preços sejam definidos. Ela é, portanto, suscetível de ser determinada por fora do sistema de produção, em particular pelo nível das taxas de juros monetárias” (Sraffa,1960:39).
  • 12
    O fenômeno de reswitching significa que uma técnica produtiva, anteriormente abandonada devido a uma elevação da taxa de juros, pode se tornar atrativa novamente quando a taxa de juros alcança patamar ainda maior. Cabe diferenciar tal situação daquilo que se entende por aprofundamento reverso do capital (reverse capital deepening), quando uma redução (aumento) da taxa de juros enseja a adoção de técnicas produtivas mais (menos) intensivas em trabalho por unidade de produto (Petri, 2016PETRI, F. Capital theory. In: FACARELLO, G.; KURZ, H. (Eds.) 40-69, Handbook on the History of Economic Analysis. v. III. Developments in Major Fields of Economics. Cheltenham, Edward Elgar: 40-69, 2016.: 63-65).
  • 13
    O exemplo foi concebido originalmente por Paul Samuelson, inspirado em Knut Wicksell, durante o debate sobre a controvérsia do capital (Samuelson, 1966).
  • 14
    Taxas múltiplas de retorno surgem quando projetos de investimento são executados em estágios, implicando desembolsos futuros de capital que tornam o fluxo de caixa negativo em determinados períodos. A taxa interna de retorno, porém, satisfaz VP=j=0nAj(1+i)j=0ou, utilizando-se o denominador comum (1+i)j, resulta j=0nAj(1+i)nj(1+i)j=0. Expandindo-se o polinômio no numerador de VP, tem-se f(i)=A0(1+i)n+ A1(1+i)n1++An=0.Remanejando-se os termos, chega-se a f(i)=B0(i)n+ B1(i)n1++Bn=0. Se esta última expressão contar com mais de uma inversão de sinal dos coeficientes Bj então, pela regra de Descartes, podem existir múltiplas raízes positivas i em número máximo ao da inversão dos sinais (Panton, 1999PANTON, D.B. Descartes, Budan, and Sturm on multiple internal rates of return. Journal of Financial Education, 25: 12-17, 1999.).
  • 15
    A propósito, esclarece Ben Hazen: “Assim como não há sentido em comparar taxas internas de retorno entre projetos mutuamente excludentes, tampouco faz sentido comparar diferentes taxas internas de retorno para um mesmo projeto. Tudo o que deve importar sobre a taxa interna de retorno é se ela supera a taxa de juros de mercado. A magnitude da taxa interna de retorno não oferece qualquer outra informação relevante” (Hazen, 2003: 43).
  • 16
    Michal Kalecki, no mesmo sentido, acreditava que um aumento salarial redundaria em efeito mínimo sobre os lucros totais, dado que estes dependeriam exclusivamente dos gastos capitalistas em consumo e investimento, os quais dificilmente sofreriam revisão após a mudança distributiva (Kalecki, 1971).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    02 Fev 2021
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