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De Kant a Popper: Razão e Racionalismo Crítico nos Estudos Organizacionais

Resumo

O objetivo deste ensaio é revisitar a construção teórica do Racionalismo Crítico, partindo da filosofia da razão kantiana, contida nas obras A crítica da razão pura e A crítica da razão prática, até a sua respectiva influência na obra de Karl Popper. Visamos, com esse exercício, lançar luz sobre a abordagem racionalista crítica nos Estudos Organizacionais. Nosso argumento é que o pensamento kantiano abriu espaço, por um lado, para uma filosofia negativa que considera o idealismo, as pré-noções e o conhecimento a priori fundamentais para a concepção criativa do conhecimento, e, por outro, para uma ciência hipotético-dedutiva que visa aproximar-nos da verdade por meio da crítica. A base do racionalismo crítico reside na busca da razão e da verdade transcendental. Esse é um chamado não apenas para a produção de teorias, mas para a dedicação ao teste de sua validade – o que não tem recebido tanta atenção dos pesquisadores no campo dos estudos organizacionais.

Immanuel Kant; Karl Popper; razão; racionalismo crítico; estudos organizacionais

Abstract

The objective of this essay is to revisit the theoretical construction of Critical Rationalism, starting from the philosophy of Kantian reason contained in the works Critique of pure reason and Critique of practical reason to discuss their respective influences over the work of Karl Popper. We aim, with this exercise, to shed light on the critical-rationalist approach in Organization Studies. Our argument is that Kantian thought has been conducive, on the one hand, to a negative philosophy that considers idealism prior notions and a priori knowledge fundamental to the creative conception of knowledge and, on the other hand, to a hypothetical-deductive science that seeks to bring us closer to truth through criticism. The basis of critical rationalism lies in the search for reason and transcendental truth. This is a call not only for the production of theories, but for dedication to test their validity – a problem that has not received much attention from researchers in the field of organization studies.

Immanuel Kant; Karl Popper; reason; critical rationalism; organization studies

Introdução: a razão entre o transcendentalismo e o empirismo

A razão está em todo e qualquer fato ou ação cotidiana que o ser humano experimenta ao longo da vida – seja na leitura deste texto, seja na nossa prática de escrita, seja na solução de problemas complexos ou na capacidade de fazer planos para atender nossas necessidades mais básicas. Ora, fazemos porque acreditamos no que fazemos. Acreditamos que tomar uma determinada ação vai levar a um determinado resultado, que pode ou não nos interessar. Compreender e vindicar um conceito de razão universal é uma tarefa que seduziu vários filósofos e estudiosos desde os primórdios da civilização humana. Platão (427-347 a.C.), foi um dos primeiros filósofos a enunciar noções sobre a razão. O seu “mito da caverna”, até os dias atuais, é ensinado nos bancos da graduação para que os alunos compreendam a transcendentalidade do conhecimento, acessível apenas àqueles que conseguem se desvencilhar das correntes da experiência para testemunhar o conhecimento real, privilégio concedido apenas àqueles filósofos mais iluminados, capazes de discursos e ideias universais.

As construções filosóficas de Platão se deram, como bem aponta Châtelet (1994)Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., a partir da constatação de que os homens são infelizes; são infelizes porque sofrem e cometem injustiças – e que não havia remédio proposto empiricamente que fosse capaz de superar a dor causada pela injustiça. A ideia de Platão, ao tratar da razão, é fazer desta o remédio para ação humana. A ação, nesse sentido, seria o discurso universal ou um conjunto de enunciados coerente, bem-organizado, legitimado em seu desenvolvimento de modo que um indivíduo de boa-fé se veja forçado a se submeter a ele. Esse discurso seria capaz de responder a todas as perguntas que o homem é capaz de fazer e, para isso, o discurso deveria ter uma correspondência no real. É necessária a certeza de que o discurso não é vazio, de que algo lhe corresponde, e que há dados consistentes que o suportam. A força-motriz do discurso, para Platão, é a ideia – que corresponde à abstração transcendental em que o homem encontra a matriz do conhecimento verdadeiro para, assim, libertar-se do sofismo (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

A ideia, para Platão, é um arquétipo. O mundo das aparências se apresenta como o real, sobre o qual podemos ter grande diversidade de interpretações ou opiniões a respeito (diversidade denominada “doxa”, por Platão), que é guiada pela paixão, pelo interesse, pelo desejo e pelas circunstâncias de cada indivíduo. Platão considera que “cada um vê o real como lhe convém, e chama de ‘realidade’ a tudo o que corresponde às suas disposições subjetivas” (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 37). Mas o discurso universal, a verdadeira realidade, é composta pelas ideias – que são imutáveis –, diferentemente das aparências – que mudam incessantemente. A realidade cognoscível nada mais é do que o produto dessas ideias: uma imitação imperfeita. Compreender a realidade é a tarefa do filósofo, que se apresenta como legítimo idealista (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Aristóteles (384-322 a.C.), em contrapartida, acreditava que o filósofo deveria se formar como ele é, no mundo sensível no qual ele crê, pois é a partir da experiência, das opiniões e crenças, que se constroem as certezas. Uma vez existindo a experiência, conforme o pensamento aristotélico, ao ser humano é permitido formular discursos e construir teorias que, se convincentes, devem corresponder à experiência do outro. Isso porque “a adesão [a um discurso] é não apenas o sinal de que o discurso está bem construído, mas é também a prova de que aquele que o recebe se convence e vê as coisas como as vê o emissor do discurso” (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 44). Chamamos esse tipo de raciocínio de bom senso, que desvenda o real como aquilo que uma coisa tem o hábito de ser (tau ti en ênai), ou seja, o real é a essência da aparência (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Esse embate entre o conhecimento a partir do mundo das ideias (idealismo) e do mundo da vida (materialismo) ainda não foi superado nem pela filosofia, nem pelas ciências sociais. A pergunta sobre “o que é o real” ainda se constitui como um dos grandes dilemas humanos; essa divergência não diz respeito apenas à ontologia do real, mas também à posição epistemológica dos pesquisadores que optam por se filiar a uma ou outra corrente.

Immanuel Kant (1724-1803) é um dos grandes representantes do movimento idealista, e um dos grandes pensadores metafísicos do Século XIX. O objetivo deste ensaio é revisitar a construção teórica do Racionalismo Crítico, partindo da filosofia da razão kantiana, contida nas obras A crítica da razão pura e A crítica da razão prática, até a sua respectiva influência na obra de Karl Popper. Visamos, com esse exercício, lançar luz sobre a abordagem racionalista crítica nos Estudos Organizacionais. Nosso argumento é que o pensamento kantiano abriu espaço, por um lado, para uma filosofia negativa que considera o idealismo, as pré-noções e o conhecimento a priori fundamentais para a concepção criativa do conhecimento e, por outro, para uma ciência hipotético-dedutiva que visa aproximar-nos da verdade por meio da crítica. A base do racionalismo crítico reside na busca da razão e da verdade transcendental. Esse é um chamado não apenas para a produção de teorias, mas para a dedicação ao teste de sua validade.

Ciência e filosofia, segundo Friedman (2001)Friedman, M. (2001). Dynamics of reason. Stanford: CSLI Publications., estão intimamente relacionadas ao longo da nossa história intelectual. Além de nascerem juntas, na Grécia, entre os séculos VI e III a.C., floresceram juntas no período medieval, na renascença e na modernidade (Séc. XIII a XVII). Seu desenvolvimento histórico deu origem à filosofia e às ciências modernas que praticamos hoje – não havia distinção rigorosa entre esses conceitos até o fim do Séc. XVII. A filosofia, enquanto investigação transcendental, não é apenas diferente de todas as ciências empíricas, mas também das construções teóricas apriorísticas que idealizamos para explicar a realidade (como a geometria, como a própria epistemologia etc.). O que interessa à filosofia é a distinção dos objetos da realidade – e a razão é, em termos kantianos, o modelo de cognição desses objetos, na medida em que é possível conhecê-los a priori (Friedman, 2001Friedman, M. (2001). Dynamics of reason. Stanford: CSLI Publications.).

O dever da Filosofia, nas palavras do próprio Kant (1781/2012), é “suprimir as fantasias surgidas da falta de clareza, por mais que muitas ilusões apreciadas e amadas se vissem assim reduzidas a nada” (p. 19). O objetivo da filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos; filosofia não é uma doutrina ou um corpo de dogmas, mas sim uma atividade. Logo, um trabalho filosófico consiste essencialmente da elucidação (Friedman, 2001Friedman, M. (2001). Dynamics of reason. Stanford: CSLI Publications.; Wittgenstein, 1992Wittgenstein, L. (1992). Filosofiska undersökningar. Stockholm: Thales.). Nesse sentido, para Kant (1781/2012), a razão pura é uma unidade tão perfeita e confiável que seria capaz de responder a todas e quaisquer perguntas a ela submetidas. Isso se dá porque “a razão humana tem o peculiar destino […] de ser atormentada por perguntas que não pode recusar, posto que lhe são dadas pela natureza da própria razão, mas que também não pode responder, posto ultrapassarem todas as faculdades da razão humana” (Kant, 1781/2012, p. 17).

Kant rejeita o fundamento da razão pela experiência ao basear-se na distinção entre fenômenos e coisas-em-si, ou seja: considera que o objeto não é passível de total compreensão apenas por meios empíricos, uma vez que, por mais que o conhecimento humano se inicie inevitavelmente no curso da experiência, ele é infindavelmente questionado até que o seu refúgio ultrapasse todo uso possível da experiência e se fundamente em princípios que, em última instância, são transcendentais e pouco contato possuem com a práxis, dado o seu grande nível de abstração, amplitude e generalização – esses princípios são denominados metafísicos.

A metafísica kantiana, portanto, “tem a tarefa de descobrir as forças inerentes das coisas, as primeiras causas das leis do movimento e os constituintes últimos da matéria” (Beiser, 2009, p. 52) – e não apenas isso, mas também de obter, desse conhecimento, princípios universais que regem o conhecimento humano sobre a realidade. Diferentemente da física empírica, em que se analisam a mecânica da natureza e as leis dos movimentos, a metafísica kantiana se propõe a nos dar um conhecimento racional do mundo inteligível (Beiser, 2009). A base da metafísica kantiana é distinguir entre as faculdades de conhecimento/sensibilidade e a racionalidade. A sensibilidade, nesse sentido, é a receptividade do sujeito, por meio da qual ele é afetado pelos objetos em sua experiência. A racionalidade, em contrapartida, é a atividade do sujeito, por meio da qual ele cria representações a priori não dadas nos sentidos. Esses conceitos, não advindos da experiência, são exprimidos por fórmulas matemáticas que, por exemplo, derivam da reflexão que o homem faz sobre determinado objeto – a sua capacidade de teorizar. De acordo com Wartenberg (2009), o que Kant apresenta é “uma interpretação do uso dos conceitos teóricos no desenvolvimento de teorias científicas sob a rubrica de uso regulativo da razão” (p. 276).

Entendemos, neste ensaio, que compreender a razão kantiana significa não apenas analisar a nossa própria capacidade de teorizar, mas também buscar aproximar o pensamento, as ideias e a reflexão crítica sobre o empírico. Sobre essa última, aplicamos o racionalismo crítico de Karl Popper (1902-1994) – sua visão da falseabilidade das teorias e da ciência hipotético-dedutiva atribuiu grande potência aos escritos de Kant, dando corpo a uma forma de conceber o conhecimento científico em conformidade à concepção metafísica do saber real.

Propomos, então, reconstruir esse movimento teórico para explicar os fundamentos da razão pura e do racionalismo crítico, transpondo essas construções para o campo dos estudos organizacionais. Para tal, serão revisitados aspectos históricos relacionados à figura de Immanuel Kant, os seus principais argumentos sobre a razão transcendental, sua influência no racionalismo crítico de Karl Popper e, por fim, as considerações finais.

Sobre o filósofo iluminista Immanuel Kant (1724-1803)

Vários autores dedicaram sua trajetória acadêmica a análises e tratados sobre o pensamento de Immanuel Kant. Seus textos, ainda que carregados de uma linguagem rebuscada e, muitas vezes, caracterizada por redundância, dispõem da essência de um pensamento idealista que valoriza a capacidade de inspiração e reflexão do homem ante o empirismo. O ensaio biográfico de Guyer (2009) sobre Kant retrata a história de um professor nascido em vielas estreitas de uma pequena cidade denominada Könisberg, que não existe mais, tendo sido destruída na Segunda Guerra Mundial e substituída pela base naval russa Kaliningrado. A trajetória do acadêmico Kant se inicia pelo seu ingresso à universidade aos 16 anos, após uma educação preparatória sustentada financeiramente pelo pastor da família e complementada por aulas dadas que não garantiam mais do que uma sobrevivência pobre. Apenas aos 46 anos de idade Kant foi indicado à cadeira de metafísica, após uma década de publicações contínuas, em 1770. Ao assumir a apropriada posição, Kant caiu numa década de silêncio, que deve ter dissuadido “muitos de que sua longa espera por uma cadeira, mesmo numa universidade provinciana como aquela, fora totalmente merecida” (Guyer, 2009, p. 19).

No entanto, da monotonia de seus estudos silenciosos, surge um dos grandes autores filosóficos de um tipo raramente testemunhado antes; iniciando sua obra em 1781. Quando já tinha 57 anos, Kant publicou uma grande obra a quase cada ano, por mais de uma década e meia (Guyer, 2009). Desse período resultam as obras mais maduras de Kant, especialmente suas três grandes críticas: A crítica da razão pura (1781, revista em 1787) ofereceu novos fundamentos para o conhecimento humano pela desconstrução dos principais aspectos da metafísica tradicional; A crítica da razão prática (1788) liga inextrincavelmente a liberdade humana à moral, enquanto reconstrói as bases da metafísica em fundamentos práticos ao invés de teóricos; por fim, A crítica da faculdade do juízo (1790) traz ostensivamente os tópicos da estética e do juízo teleológico, também lutando para refinar (e até mesmo revisar) algumas de suas concepções básicas anteriores sobre as razões prática e teórica (Guyer, 2009).

Beiser (2009) subdivide a carreira de Kant em quatro fases: a primeira fase (1746-1759) é o período da obsessão em dar uma fundamentação à metafísica e ao desenvolvimento de uma epistemologia racionalista que poderia justificar a possibilidade do conhecimento de Deus e das primeiras causas da natureza; a segunda fase (1760-1766) é o período da desilusão, em que Kant rompe com a sua epistemologia racionalista inicial e se inclinou para o ceticismo, rejeitando em definitivo a possibilidade de uma metafísica que transcendesse os limites da experiência; a terceira fase (1766-1772) é um período de reconciliação parcial, em que Kant retorna à metafísica na crença de que poderia finalmente dar a ela uma fundamentação sólida e, por fim, a quarta fase (1772-1780) é o período de divórcio, em que Kant passa a perceber que sua confiança renovada na metafísica não poderia resolver um problema fundamental: “como seriam válidos os princípios sintéticos a priori da experiência se não derivados da experiência?” (Beiser, 2009, p. 46). De 1772 em diante, dedicou sua vida e seus estudos filosóficos a formular sua doutrina crítica madura sobre a possibilidade da metafísica (Beiser, 2009).

Como muitos filósofos desde a época de René Descartes e Thomas Hobbes, Kant tentou explicar tanto a possibilidade do novo conhecimento científico quanto a possibilidade de liberdade humana; Kant acreditava que “a validade das leis do céu estrelado acima, bem como a lei moral dentro, tinha de ser buscada no poder legislador do próprio intelecto humano” (Guyer, 2009, p. 18). A ideia de Kant, segundo Guyer (2009), é que podemos estar certos nos fundamentos da ciência física porque fomos nós mesmos que impomos, ao menos, a forma básica das leis científicas sobre a natureza que é dada a nós pelos sentidos; e é exatamente por essa razão que estamos livres para olhar para o mundo por um ponto de vista em que somos agentes racionais, cujas ações são escolhidas e não simplesmente previstas de acordo com leis deterministas. Em outras palavras, nós damos a interpretação e definimos as leis do universo a partir de nossas ideias; somos livres porque nada nos impede de pensar outras ideias para interpretar o mundo, e não há lei determinista que nos limite a ressignificar a realidade.

Entretanto, Kant nunca considerou que nossa liberdade é completa. Para o autor, embora seja possível legislar sobre as formas mais básicas das leis da natureza e, com efeito, trazer essas leis cada vez para mais perto dos detalhes da natureza por meio de conceitos concretos, só podemos fazê-lo de maneira incompleta: há uma distância insuperável entre a percepção e a experiência humana e a realidade da natureza, dada a sua extensionalidade infinita e a vastidão da matéria no espaço e tempo – assim, nunca teremos o pleno conhecimento da natureza, bem como nunca teremos noção de sua real dimensão (Guyer, 2009). Por isso, é importante ressaltar que a filosofia de Kant entende que, embora possamos legislar sobre leis racionais para nossas ações, devemos sempre buscar compreender a natureza não somente fora de nós, mas dentro de nossa própria razão – pela qual constituímos e somos constituídos.

. . . Kant transformou radical e irreversivelmente a natureza do pensamento ocidental. Depois que ele escreveu, ninguém poderia jamais conceber ou a ciência ou a moralidade como uma questão de recepção passiva de uma realidade ou verdade externa. Na reflexão sobre os métodos da ciência, assim como em muitas áreas específicas da própria ciência, o reconhecimento daquilo que nós mesmos acrescentamos ao mundo que alegamos conhecer se tornou inevitável. Na esfera prática, poucos podem ainda levar a sério a ideia de que o raciocínio moral consiste na descoberta de normas externas – por exemplo, perfeições objetivas no mundo ou na vontade de Deus – como se estivessem opostas à construção para nós mesmos da maneira mais racional de conduzir nossas vidas […]. É claro que nem mesmo Kant poderia ter transformado sozinho a autoconcepção de toda uma cultura; mas, ao menos no âmbito filosófico da transformação da concepção ocidental do ser humano, de mero espectador do mundo natural e mero sujeito no mundo moral para um agente ativo na criação de ambos, ninguém mais desempenhou papel maior do que Immanuel Kant. (Guyer, 2009, p. 19)

Para Châtelet (1994)Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., Kant não partilha do programa cartesiano de domínio da natureza, mas é ambicioso no que se refere ao homem, pois acredita que ele pode aperfeiçoar-se. Para Kant, por meio da razão pura, o homem é capaz de atribuir sentido e legislar sobre a natureza. Muitas de suas construções surgiram para se contrapor às de David Hume, filósofo que retoma as ideias de John Locke de que todo conhecimento vem da experiência. A relação Kant e Hume é, em muito, semelhante à relação de Platão e Aristóteles, dado que ambas as partes acreditam na dicotomia existente entre a iluminação do homem versus a realidade natural para a descoberta da verdade. Para Hume, o mero analisar ou refletir sobre a realidade natural não é capaz de definir causas e conexões necessárias entre os objetos; apenas experimentações controladas permitem ao ser humano perceber que a natureza obedece a leis ora simples, ora complexas (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Nesse sentido, é a natureza, tal como a descobrimos, através da experimentação, que deve comandar; e não um pensamento fruto de reflexões preconcebidas.

Guyer (2009) entende, da mesma forma, que Kant desenvolveu sua filosofia contrariamente ao sonho de todos os filósofos racionalistas desde Descartes, e afirmava que a filosofia não poderia se apropriar dos mesmos métodos da matemática. Enquanto a matemática poderia começar com definições e então provar possíveis resultados construindo objetos de acordo com aquelas definições, “a filosofia jamais poderia começar com definições, mas somente com ‘certos juízos primários fundamentais’ cuja análise levaria às definições e às suas conclusões, não ao seu começo” (Guyer, 2009, pp. 24-25). Para Kant, as afirmações empíricas sobre relações de causa e efeito, substância e ação poderiam servir apenas como pontos de partida para a filosofia; contudo, quanto mais se aprofunda sobre as relações do objeto, mais ampla a atividade filosófica se mostra, e nunca podemos entender a complexidade do real de maneira plena apenas pela experiência, sem o exercício da reflexão atribuído à razão.

Nas palavras de Deleuze (2000), a definição kantiana de filosofia é ser essa “a ciência da relação entre todos os conhecimentos e os fins essenciais da razão humana” (p. 9). Deleuze reconhece que Kant trava uma dupla luta: uma contra o empirismo, e outra contra o racionalismo dogmático. Para o empirismo, a razão não é a faculdade dos fins – pois os fins remetem para uma afetividade primordial, para uma ”natureza” capaz de os estabelecer. Assim, a originalidade da razão consiste numa certa maneira de realizar fins comuns ao homem e à natureza. Os fins supremos da razão, ainda segundo Deleuze (2000), formam o sistema da cultura; na filosofia kantiana, “o fim último é um fim de tal ordem que a natureza não pode bastar para o efetuar e realizar em conformidade com a ideia, pois tal fim é absoluto” (pp. 9-10).

É pela realização da metafísica, nas palavras do próprio Kant (1781/2012), que se faz possível uma ciência com o acabamento perfeito da razão – de tal modo que não sobre nada para a posteridade a não ser adequá-la didaticamente a nossos propósitos, sem, por isso, ampliar em nada o seu conteúdo: “a razão é não mais do que o inventário de tudo aquilo que possuímos por meio da razão pura organizado sistematicamente” (Kant, 1781/2012, p. 23); isso porque o conhecimento buscado pela razão é constituído de conceitos puros, sem que algo da experiência, ou mesmo uma intuição particular (que devesse conduzir a uma determinada experiência) tenham qualquer tipo de influência no sentido de estendê-la ou aumentá-la (Kant, 1781/2012). Compreender a razão e seus limites é fundamental para o entendimento sobre a teorização da realidade, bem como sobre a possibilidade de superação e de aprimoramento do conhecimento do homem. Esse assunto será mais bem discutido na próxima seção.

A razão em Kant: o conhecimento a priori, a principiologia e o racionalismo crítico

Os grandes tratados sobre a razão nas obras de Kant encontram-se nos livros A crítica da razão pura (1781/2012) e A crítica da razão prática (1788/2008). Nessas obras, o autor começa a delinear os principais sentidos que fundamentariam a sua metafísica e a física newtoniana (Friedman, 2001Friedman, M. (2001). Dynamics of reason. Stanford: CSLI Publications.). Conhecer esses fundamentos permite aos pesquisadores de Estudos Organizacionais repensar o teorizar nas organizações por meio da reflexão sobre a experiência. Algumas das ideias dessas duas obras seminais serão, ainda que de forma não exaustiva, analisadas mais detidamente a partir de agora.

Partimos do pressuposto de que dois grandes elementos se constituem como motor da ciência humana: a curiosidade e a razão – essa última pela impossibilidade do uso da fé como fonte de conhecimento validamente científico. Kant (1781/2012) entende que, na medida em que a razão deve estar presente nas ciências, algo nelas tem de ser conhecido a priori, e tal conhecimento deve se relacionar ao objeto de dois modos: (a) pela conceituação do objeto, ou (b) pela sua concretização. O primeiro tipo de conhecimento Kant denominou conhecimento teórico; o segundo, conhecimento prático. A parte pura de ambos, segundo o autor, é aquela na qual a razão determina seu objeto inteiramente a priori. Essa tem de ser apresentada sozinha de antemão e não deve misturar-se àquilo que vem de outras fontes. Pode parecer difícil, em um primeiro contato, entender a diferença entre ambos os tipos de conhecimento, mas Kant busca explicar de maneira mais detida essa proposição da seguinte forma:

Quando Galileu fez rolar suas esferas em um plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli fez com que o ar suportasse um peso que ele acreditara de antemão ser igual ao de uma coluna de água por ele conhecida, ou quando Stahl, em tempos mais recentes, transformou metal em cal, e esta novamente em metal, simplesmente retirando e devolvendo algo a esses materiais: assim ocorreu uma luz a todos os pesquisadores da natureza. Eles compreenderam que a razão só entende aquilo que ela mesma produz segundo seu projeto, e que ela tem de colocar-se à frente, com os princípios de seus juízos segundo leis constantes, e forçar a natureza responder às suas perguntas em vez de apenas deixar-se conduzir por ela . . .; pois do contrário as observações, contingentes e feitas sem nenhum plano previamente concebido, não seriam articuladas sob uma lei necessária, algo que a razão busca e necessita. A razão tem de dirigir-se à natureza com seus princípios numa mão, os únicos sob os quais fenômenos coincidentes podem valer como leis, e com o experimento que concebeu a partir deles na outra; e isso para de fato aprender com ela, mas não na qualidade de um aluno que recita tudo o que o professor quer, e sim na de um juiz constituído que força as testemunhas a responder às perguntas que lhes faz. (Kant, 1781/2012, p. 28)

O conhecimento, para Kant (1781/2012), vem de dentro do indivíduo, e não de fora, como se pensava até então. O autor rejeita a proposição de que nossos conhecimentos devem ser regulados pelos objetos; pensa, ao contrário, que os objetos devem regular-se pelos nossos conhecimentos, o que coaduna a possibilidade de conhecimentos apriorísticos. O conhecimento, na mesma medida, não é composto pela experiência, mas pela ideia – isso porque “a experiência é ela própria um tipo de conhecimento que exige o entendimento, cuja regra eu tenho de pressupor em mim antes que os objetos me sejam dados” (Kant, 1781/2012, p. 30), e é expressa em conceitos apriorísticos pelos quais todos os objetos da experiência terão que se ajustar. Em outras palavras, a experiência pressuporá o entendimento, que, por sua vez, é fundamentado por conhecimentos prévios advindos das ideias fundamentais que nós fazemos de um objeto (Deleuze, 2000; Wartenberg, 2009).

Dessa indução da faculdade de conhecer a priori, Kant sente-se perturbado ao concluir que não poderemos nunca, com a faculdade de conhecer humana, ultrapassar os limites da experiência possível em relação aos fenômenos (e não à coisa-em-si), que é o que perfaz, no entanto, o interesse mais essencial da ciência (Kant, 1781/2012). A epistemologia (ou a ciência do conhecer) traduz bem o pensamento de Kant; não é possível conhecer como conhecemos, mas, sim, podemos especular formas pelas quais tornamos reais nossos conhecimentos e, a partir dessas construções ideais, podemos presumir os meios pelos quais articulamos nossa convicção.

Entretanto, para Kant, não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento se inicia na experiência, dado que é pelo estímulo de nossos sentidos que a nossa faculdade de conhecimento é despertada. Esses sentidos, ao mesmo tempo em que produzem representações por si mesmos, colocam em movimento a atividade de nosso entendimento, levando-nos a compará-las, conectá-las e separá-las de tal forma a transformar a matéria bruta sensorial das impressões em um conhecimento de objetos (Kant, 1781/2012). Mesmo assim, defende o autor, por mais que nosso conhecimento comece com a experiência, ele não surge apenas da experiência – isso porque todo o saber poderia ser um composto do que sentimos mais o que a nossa própria faculdade de conhecer ou interpretar produz por si mesma. Discorre Kant que há um tipo de conhecimento que independe da experiência ou da impressão dos sentidos:

Tais conhecimentos são denominados a priori, e se diferenciam dos empíricos, que têm suas fontes a posteriori, i.e., na experiência. Pois se costuma dizer, de muitos conhecimentos derivados de fontes da experiência, que nós somos capazes ou participantes deles a priori, na medida em que não os derivamos imediatamente da experiência, mas sim de uma regra universal que, no entanto, tomamos emprestada da própria experiência. Assim, diz-se de alguém que solapou os fundamentos de sua casa que ele poderia saber a priori que ela cairia, i.e., ele não precisava esperar pela experiência em que ela de fato caísse. Inteiramente a priori, contudo, ele não poderia mesmo sabê-lo. Pois teria de aprender antes, por meio da experiência, que os corpos são pesados e, por isso, caem quando lhes é retirado o suporte. No que segue, portanto, entenderemos por conhecimentos a priori aqueles que se dão não independentemente desta ou daquela, mas de toda e qualquer experiência. . . . . Dentre os conhecimentos a priori, contudo, denominam-se puros aqueles em que não há nada de empírico misturado. Assim, a proposição “toda mudança tem uma causa”, por exemplo, é uma proposição a priori, mas não é pura, porque “mudança” é um conceito que só pode ser derivado da experiência. (Kant, 1781/2012, p. 46)

Por exemplo: se uma proposição é pensada juntamente com sua necessidade, ela será um juízo a priori: “quando como, elimino a fome”. Entretanto, se, além disso, ela não é deduzida de nenhuma proposição a não ser daquela, então ela é absolutamente a priori: “comer elimina a fome”. Nesse sentido, Kant entende que a experiência não dá jamais aos seus juízos uma universalidade verdadeira ou estrita, mas apenas suposta e comparativa. Em outras palavras, a experiência define o que percebemos até hoje como desprovido de exceções: “até que se prove o contrário, comer elimina a fome”. Por isso, quando um juízo é pensado como estritamente universal, ele não é deduzido da experiência, mas simplesmente apriorístico. A universalidade empírica, dessa maneira, “é tão somente um crescimento intencional da validade, que passa daquilo que vale na maioria dos casos para aquilo que vale em todos” (Kant, 1781/2012, p. 47).

Para assegurar a robustez do conhecimento, as investigações devem ser cuidadosas sobre as fundamentações de um dado objeto. Kant entende que a razão especulativa é a mola da produção rápida de muitos conhecimentos; admite, entretanto, que o maior trabalho da razão consiste na decomposição dos conceitos que já temos dos objetos – isso nos fornece uma variedade de conhecimentos que, embora não sejam mais do que esclarecimentos do que já fora pensado em nossos conceitos, nos permite ampliar nossa visão sobre a matéria (Kant, 1781/2012).

A metafísica, para Kant (1781/2012), é uma ciência indispensável em virtude da natureza da razão humana; ela deve conter conhecimentos a priori e, portanto, não lida apenas com a decomposição ou com o esclarecimento analítico de conceitos que fazemos das coisas; em razão disso, fazem-se necessários princípios tais que acrescentem ao conceito dado algo que não estava nele contido, e que vão tão longe que a própria experiência não pode acompanhá-los. Os princípios, no sentido kantiano, são a expressão mais pura do conhecimento, ou seja: a proposição que se sabe aprioristicamente e da maneira mais pura sobre um determinado objeto; tão pura que só poderia ser estabelecida por um senso de razão pura, mas que não define a coisa-em-si, mas apenas o limite que nossa experiência poderia saber sobre aquela coisa.

A razão, nesse sentido, passa a ser “a faculdade que fornece os princípios do conhecimento a priori. Por conseguinte, a razão pura é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori” (Kant, 1781/2012, p. 59). Destarte, a ciência é um mero julgamento da razão pura, de suas fontes e limites, como propedêutica a um sistema da razão. Tal ciência não teria de denominar-se uma doutrina, mas, sim, a crítica da razão pura; sua utilidade seria apenas negativa, não direcionada para a ampliação de conhecimentos, mas sim para purificar nossa razão e mantê-la livre de erros (O'Neill, 2009).

O conhecimento passa a ser transcendental quando não se ocupa com os objetos mais do que com o nosso conhecer em si, na medida em que isso se torna possível a priori (Deleuze, 2000). A filosofia transcendental de Kant é “a ideia de uma ciência para a qual a crítica da razão pura deve traçar um plano completo arquitetonicamente, i.e., a partir de princípios, com total garantia de completude e segurança em todas as peças que constituem esse edifício” (Kant, 1781/2012, p. 61). Os princípios se constituem como a máxima genérica e pura do conhecimento estabelecido a priori, do qual deriva o conhecimento aplicado à realidade empírica. Nas palavras do autor:

Eu denominaria conhecimento por de princípios […] aquele em que conheço o particular no universal através de conceitos. Assim, todo silogismo é uma forma da derivação de um conhecimento por de um princípio. Pois a premissa maior fornece sempre um conceito que faz com que tudo que seja subsumido sob a sua condição seja conhecido a partir dela segundo um princípio. Uma vez, porém, que todo o conhecimento universal pode servir como premissa de um silogismo, e o entendimento fornece semelhantes proposições universais a priori, então estas podem, no que diz respeito ao seu uso possível, ser denominadas princípios. Se, no entanto, considerarmos esses princípios do entendimento puro em si mesmos, segundo sua origem, então eles são tudo menos conhecimentos a partir de conceitos. (Kant, 1781/2012, p. 279)

A razão, conforme Kant, “é impulsionada por uma tendência de sua natureza a ir além do uso empírico, arriscar-se em um uso puro e, através de meras ideias, ultrapassar os limites extremos de todo conhecimento, só encontrando repouso na completude de seu círculo” (1781/2012, p. 580). O propósito da razão pura é apenas, portanto, seu uso negativo para refinar nosso conhecimento advindo da razão especulativa (ou hermenêutica) sobre o objeto, para, assim, chegar aos princípios que regem os limites da experiência sobre o conhecimento – os axiomas. O conhecimento passa a ser, portanto, subjetivamente histórico; isso porque, onde quer que um conhecimento seja originalmente dado, ele ainda passará pelo crivo da crítica da razão pura.

De acordo com Wartenberg (2009), adotar a perspectiva kantiana da razão significa acreditar que o uso das ideias na teorização científica implica uma rejeição de uma concepção instrumentalista da ciência. As ideias teóricas, nesse sentido, se constituem como uma base para se interrogar a natureza – isso porque as ideias de fato fornecem ao cientista instruções específicas sobre o que procurar quando ele se volta à experimentação. Essa visão da prática científica eleva a um alto nível de importância a experimentação, ao mesmo tempo em que delimita que o experimento estará sempre à luz das ideias. Para Wartenberg (2009), “os experimentos não são simples observações do mundo fenomênico, mas interrogações da natureza dirigidas que acontecem de acordo com objetivos colocados pela prática da própria ciência” (p. 293). As ideias, portanto, são legitimadas pelas descobertas e podem constituir a perfeição do conhecimento – tão ilimitado quanto o potencial das ideias.

Dadas essas premissas, julgamos que, ao estabelecer sua filosofia transcendental, Kant idealizou um verdadeiro racionalismo crítico (Châtelet, 1994Châtelet, F. (1994). Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.; Deleuze, 2000), cujo propósito é o uso regulativo da razão, aplicável ao conhecimento gerado pela prática da pesquisa.

Resta-nos ainda entender a relação entre a razão pura e a razão prática aplicada à pesquisa convencional. Se o uso teórico da razão diz respeito à faculdade de conhecer, o uso prático da razão deverá ocupar-se com fundamentos determinantes da vontade – o que significa buscar entender como se dá a faculdade de produzir objetos correspondentes às representações, ou de determinar a sua causalidade (Kant, 1788/2008). Aqui, Kant observa que a razão, no seu sentido prático, aborda a questão do interesse do cientista por trás de suas representações; o autor não considera o conhecimento neutro. A razão pura, contraposta à prática, quer despir da subjetividade individual o conhecimento sobre o objeto, visto que a razão é mediada pelo interesse:

No conhecimento prático, isto é, naquele que tem a ver simplesmente com fundamentos determinantes da vontade, as proposições fundamentais que formamos não são ainda leis, às quais inevitavelmente nos submetemos, porque no que é prático a razão tem a ver com o sujeito, ou seja, com a faculdade de apetição, com cuja natureza particular a regra pode conformar-se de múltiplos modos. A regra prática é sempre um produto da razão, porque ela prescreve como visada a ação enquanto meio para um efeito. Mas para um ente, cuja razão não é total e exclusivamente o fundamento determinante da vontade, essa regra constitui um imperativo, isto é, uma regra que é caracterizada por um dever-ser, o qual expressa a necessitação objetiva da ação e significa que, se a razão determinasse totalmente a vontade, a ação ocorreria inevitavelmente segundo essa regra. (Kant, 1788/2008, p. 34)

A razão prática pura, conforme o pensamento de Kant, diz respeito à vontade universal, aquela que, desprovidos os interesses do indivíduo e de seus apetites, prevaleceria em todos os casos por se constituir como imperativos para os indivíduos (Kant, 1788/2008). As máximas da ciência seriam os imperativos hipotéticos quando dizem respeito a relações casuísticas entre elementos e imperativos categóricos quando determinassem leis práticas que determinam a vontade. Os imperativos hipotéticos são preceitos práticos intencionais, específicos, mas não são leis, pois estas devem determinar a vontade enquanto vontade, de forma genérica, pura (Kant, 1788/2008).

Em outras palavras, a crítica da razão prática é a busca de imperativos que consigam despir a vontade humana de apetites individuais que constituem imperativos hipotéticos. Ao realizar sua crítica, Kant reconhece que nem os filósofos, nem os cientistas conseguem ser neutros na produção de seus conhecimentos, pois visam, antes de tudo, a própria felicidade e o próprio bem-estar ao buscar o conhecimento. Compreender a vontade por trás do conhecimento se torna uma tarefa importante para purificar o saber. Assim, a razão pura vem purificar o conhecimento impuro; a razão prática pura busca compreender que o conhecimento gerado foi estabelecido com motivações legítimas, voltadas não ao bem-estar do filósofo, mas a intenções superiores capazes de direcionar ao conhecimento puro, à essência da verdade contida na coisa-em-si. Essas leis Kant denomina como leis morais – direcionadas a um bem superior (Deleuze, 2000), que constituem a vontade superior, ou os imperativos categóricos que regem a vontade.

O pensamento kantiano é idealista por se voltar para uma noção de bem puro. Teorizar é um ato reflexivo que se volta à crítica de tudo que destitui o tom de pureza do conhecimento – seja a experiência e a hermenêutica do empírico, seja a vontade do indivíduo. Kant foi um filósofo idealista e acreditava no potencial do homem de transcender a sua própria humanidade. Ao mesmo tempo em que estabelece uma filosofia em que buscamos sempre refinar nossos conhecimentos, reconhece que o objeto em si, mesmo existindo e sendo real, será sempre inalcançável – sempre teremos mais o que conhecer sobre a coisa-em-si. Resta-nos, por meio da razão, questionarmos o conhecimento e a maneira pela qual o conhecimento é gerado.

A influência de Kant em Popper: racionalismo crítico nos estudos organizacionais

Um dos grandes legados de Kant foi a possibilidade de pensar o conhecimento a partir de um viés idealista, estritamente pautado no conhecimento a priori, na razão negativa e na capacidade de revisão dos conhecimentos. Sir Karl Raimund Popper (1902-1994) foi um dos grandes herdeiros do pensamento crítico de Kant, e suas ideias originaram a filosofia do racionalismo crítico como o conhecemos hoje (Chiappin, 2008Chiappin, J. R. (2008). Reconstrução racional da concepção popperiana de ciência: o racionalismo crítico como um termo médio entre o dogmatismo e o relativismo. Khronos, (1), 149-191. doi:10.11606/khronos.v0i1.97241
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; Ferrarin, 2016Ferrarin, A. (2016). Reason in Kant and Hegel. Kant Yearbook, 8(1), 1-15. doi:10.1515/kantyb-2016-0001
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). Nesta penúltima seção deste artigo, exploramos o racionalismo crítico como uma atitude democrática, marcada pela autonomia e modéstia intelectuais, bem como uma abordagem de pesquisa necessária aos estudos organizacionais contemporâneos – cujo corpus é caracterizado pela produção em grande escala de estudos justificacionistas (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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).

Popper, como Kant, acreditou que todos os homens e mulheres são providos de razão e, portanto, são potencialmente filósofos. O autor parte dos pressupostos kantianos de que o conhecimento da verdade é inalcançável, e que nenhuma indução é genuína; nesse sentido, reforça a ideia de que a observação pura, na qual a mente do pesquisador deve estar livre de pressupostos e hipóteses, não passa de um mito filosófico. Logo, toda observação é feita à luz de uma teoria, pois essa seria a única forma possível de se realizar inferências (Chiappin, 2008Chiappin, J. R. (2008). Reconstrução racional da concepção popperiana de ciência: o racionalismo crítico como um termo médio entre o dogmatismo e o relativismo. Khronos, (1), 149-191. doi:10.11606/khronos.v0i1.97241
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; Popper, 1934/2004). Assim, “toda observação se orienta sempre por expectativas teóricas, conscientes ou inconscientes. Ou seja, nosso corpo de teorias e expectativas sobre a realidade orientam o que do campo perceptual nós destacaremos como relevante para observação” (Castañon, 2007Castañon, G. A. (2007). Cognitivismo e racionalismo crítico. Psicologia Argumentativa, 25(50), 277-290. Retrieved from https://bit.ly/3qNv9rR
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, p. 280).

Karl Popper foi um dos grandes responsáveis pelo declínio do positivismo lógico – que acreditava na busca das leis universais como incontestes. Popper não só contradisse, mas também refutou todas as principais posições assumidas pelo positivismo lógico, além de criticar o princípio da verificação como critério de demarcação, substituindo-o por um conceito quase oposto: o de falseabilidade (Castañon, 2007Castañon, G. A. (2007). Cognitivismo e racionalismo crítico. Psicologia Argumentativa, 25(50), 277-290. Retrieved from https://bit.ly/3qNv9rR
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; Popper, 1934/2004). O autor foi um dos grandes responsáveis pela queda do método indutivo, trocando-o por seu oposto: o método hipotético-dedutivo – na defesa de uma ciência perfectível, que rejeitasse plenamente a anti-metafísica positivista, estabelecendo a metafísica como celeiro de ideias científicas (Galván, 2016Galván, M. (2016). Critical rationalism and interpretation. Ideas y Valores, 65(160), 239-251. doi:10.15446/ideasyvalores.v65n160.44191
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; Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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).

Em resumo, Popper considerou a falsificação como um critério-chave da demarcação entre o que seria a ciência ou a pseudociência, e argumentou que uma teoria seria mais ou menos verossímil em função da quantidade de vezes pelas quais passou por tentativas de falsificação. A justificativa para a manutenção de uma teoria seria a sua capacidade de resistir aos testes da razão negativa (Popper, 1934/2004). Inicialmente, sua visão foi considerada como um “conservadorismo intelectual”, dado o apego ao impulso de falsificação de teorias ser maior do que o desejo por maior variedade de pensamentos e visões teóricas sobre o objeto real (Castañon, 2007Castañon, G. A. (2007). Cognitivismo e racionalismo crítico. Psicologia Argumentativa, 25(50), 277-290. Retrieved from https://bit.ly/3qNv9rR
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; Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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). Contudo, tais críticas sucumbiram à consistência de sua visão de que o exercício da razão reside na solução de problemas e na busca ininterrupta para detectar e eliminar os erros – em busca da verdade.

O falsificacionismo é, para o Racionalismo Crítico, o novo critério de demarcação entre as assertivas científicas e as não-científicas. Esse critério vem substituir o combalido critério da verificação na demarcação das proposições científicas. Portanto, isso implica numa mudança do olhar científico que será absolutamente vital para as pretensões científicas: não é a observação direta de determinados fenômenos que deve fornecer as hipóteses a serem testadas. Elas podem ser criadas de qualquer maneira possível. O que as fará integradas ou não ao campo do conhecimento científico é o fato de gerarem ou não consequências passíveis de falsificação. Isso porque elas estão no início do processo, e não na sua conclusão. Uma hipótese é falsificável se existe uma proposição de observação qualquer, logicamente possível, que, se estabelecida como verdadeira, implicaria em sua rejeição como falsa. (Castañon, 2007Castañon, G. A. (2007). Cognitivismo e racionalismo crítico. Psicologia Argumentativa, 25(50), 277-290. Retrieved from https://bit.ly/3qNv9rR
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, p. 281)

Sua teoria, portanto, é universal de crítica e erro. O racionalismo crítico de Popper se opõe radicalmente a quaisquer tipos de racionalismo clássico (que se traduz nas formas contemporâneas da racionalidade instrumental, substantiva ou comunicativa, por exemplo), pois estes devem ser provincializados como algo que deriva do sujeito, e não da verdade em si. O cerne do argumento crítico de Popper é que o exercício do racionalismo clássico é, em essência, autoritário e unilateral, uma vez que impõe uma visão como real a partir de justificações ancoradas em observações do sujeito interpretadas à luz de sua experiência. Ora, se toda a razão é negativa (refutação), toda racionalidade assume um viés positivo (construção) pautado em algum tipo de justificação (movimento denominado justificacionismo). Se os pressupostos da razão de Kant e de Popper estavam certos – e o conhecimento é influenciado pelas teorias anteriores e pela percepção prática do sujeito –, quaisquer justificativas para pautar um pensamento é unilateral, autoritário e presume que as construções da teoria estão, a priori, corretas e verdadeiras – o que é inaceitável no âmbito da razão pura (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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).

Ora, o que justifica que organizações devem ser entes lucrativos? O que justifica o capitalismo como sistema econômico? O que justifica que a melhor forma de organização do trabalho se dá pela divisão das tarefas? O que justifica as teorias mainstream dos estudos organizacionais? Para Popper, nada justifica um conhecimento além das crenças e das construções que os seres humanos impõem aos seus pares. Nesse sentido, não há como se falar em uma “administração científica”, ou mesmo uma “ciência dos estudos organizacionais” que tratem modelos e premissas prescritivas como conhecimentos certos e dados. Toda afirmação assertiva sobre organizações é falível e inválida quando considerada sob a lente científica da razão.

“O que eu sei sobre organizações? Sei que não sei quase nada”. Ao trazer esse tipo de afirmação, assumo, enquanto pesquisador, a postura antiautoritária acerca do que são as organizações, bem como não imponho, de maneira alguma, minha perspectiva ante os demais por meio de confirmações obtidas a partir de testes em dados (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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). Dados empíricos, portanto, nunca podem ser utilizados para confirmar teorias, mas sempre para refutá-las, uma vez que não há validade na indução (Chiappin, 2008Chiappin, J. R. (2008). Reconstrução racional da concepção popperiana de ciência: o racionalismo crítico como um termo médio entre o dogmatismo e o relativismo. Khronos, (1), 149-191. doi:10.11606/khronos.v0i1.97241
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; Galván, 2016Galván, M. (2016). Critical rationalism and interpretation. Ideas y Valores, 65(160), 239-251. doi:10.15446/ideasyvalores.v65n160.44191
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). Essa visão traz uma verdadeira inspiração para a conduta cética, humilde e democrática do pesquisador, dado que o condiciona a ser menos pretensioso em suas afirmações, e mais concentrado no seu dever racional de desafiar e provocar o pensamento até os seus limites cognoscíveis. Nesse sentido, nenhum conhecimento é definitivo, e nenhuma premissa pode ser tida como verdade.

Como ficaria o mundo se a atitude do racionalismo crítico fosse amplamente adotada? É uma atitude peculiar porque aceita que algumas afirmações e teorias podem ser verdadeiras e algumas podem ser falsas – mas ao mesmo tempo, sustenta que ninguém saberá qual é com certeza. Os racionalistas críticos teriam de exercer a sua autonomia pessoal, adotando o que está em vigor com uma preferência crítica em aceitar uma afirmação básica, ou uma teoria, sabendo que a preferência crítica não tem permanência necessária. (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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, p. 30)

Entendemos, como Thomas (2010)Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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, que as teorias tradicionais do conhecimento em Estudos Organizacionais procuram sua fonte no justificacionismo. Nesse sentido, compreendemos que o campo dos estudos organizacionais tem sido permeado mais pelo racionalismo clássico do que pela razão crítica – “o racionalismo clássico instalou a autoridade do intelecto, enquanto o empiricismo instalou a autoridade dos sentidos” (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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, p. 13). Nesse sentido, afirmamos que estudos funcionalistas, hermenêuticos, estruturalistas radicais e até mesmo humanistas clássicos têm sido mais pautados pela erudição/eloquência de argumentos baseados em dados quali-quantitativos do que pela dialética negativa que submete teorias a testes lógicos voltados ao falseamento de suas bases. Isso leva, inevitavelmente, ao avanço da pseudociência por meio: (a) do “argumento de autoridade”, ou seja, do poder que é exercido por alguns atores de dizer o que é correto (e o que não é) na ciência, o que se dá por meio de avaliações por blind-review, e (b) pela regressão tautológica infinita das justificações, porque toda justificativa utilizada para defender um argumento é pautada em outros pressupostos que, não necessariamente, são verdadeiros e também demandam justificações. O resultado é uma cadeia emaranhada de justificativas pautadas em paradigmas que, por si só, são falseáveis (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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).

O problema no argumento da autoridade é que estamos, mais uma vez, tratando de visões unilaterais de agentes que se pautam pelas justificações de suas crenças para afirmar “o que é” – o que é inadmissível na dimensão da razão (Popper, 1934/2004). Da mesma forma, para publicarmos trabalhos científicos, precisamos de uma extensa rede de argumentos teóricos para atribuir "validade" aos nossos pensamentos. Precisamos justificar cada escolha ao longo do trabalho: o critério de seleção dos autores, o critério de amostra dos dados, os paradigmas epistemológicos nos quais nos ancoramos, entre tantas outras escolhas que são expostas a questionamentos dos mais variados tipos. Todas essas escolhas são submetidas ao crivo da “autoridade” de alguém que, fatalmente, verifica a adequação do artigo ao campo de estudos conforme as suas crenças prévias, amplamente justificadas por suas pré-noções, sem um maior cuidado de verificar criticamente se há sentido lógico no argumento proposto, nem se há alguma ideia refutada. Para Thomas (2010)Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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, o justificacionismo é um convite ao relativismo e ao conservadorismo que legitima os conhecimentos daqueles dotados de reconhecimento social em relação às ideias alternativas que emergem de pesquisadores menos celebrados na academia.

Essa descrição do último parágrafo não é a ciência que a razão kantiana defende. Popper defendia que “autoridades iluminadas” não poderiam ser encontradas, bem como as filosofias justificacionistas não teriam o poder de veridicção científica, mas sim (a) o poder de impulsionar a criatividade do homem a novas ideias a serem cientificamente testadas, e (b) o poder de descrever as percepções prevalentes acerca do objeto em diferentes disciplinas. O conhecimento, nesse sentido, seria muito humano e falho demais para não ser propenso a erros, caprichos individuais e arbitrariedades (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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).

Todo conhecimento que se julga pretensamente verdadeiro é criticável para a razão kantiana e para o racionalismo crítico popperiano (Galván, 2016Galván, M. (2016). Critical rationalism and interpretation. Ideas y Valores, 65(160), 239-251. doi:10.15446/ideasyvalores.v65n160.44191
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). No racionalismo crítico, não encontramos nenhum tipo de síntese, visto que a conjectura ou interpretação é temporária; da mesma forma, a interpretação popperiana não organiza o que vem do mundo, uma vez que isso já está organizado pelas teorias inventadas pelos cientistas, que as derivam de suas observações do mundo. O que a visão popperiana faz é criar um momento separado da constituição do conhecimento – um momento fechado, justaposto, em que são postos à prova da lógica todos os saberes obtidos empiricamente. O que se busca é a verificação conclusiva de conhecimentos gerados (Chiappin, 2008Chiappin, J. R. (2008). Reconstrução racional da concepção popperiana de ciência: o racionalismo crítico como um termo médio entre o dogmatismo e o relativismo. Khronos, (1), 149-191. doi:10.11606/khronos.v0i1.97241
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; Galván, 2016Galván, M. (2016). Critical rationalism and interpretation. Ideas y Valores, 65(160), 239-251. doi:10.15446/ideasyvalores.v65n160.44191
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). O Quadro 01 traz uma síntese de potenciais objetos de análise crítica, considerando as premissas até então analisadas.

Tabela1
Possíveis objetos para crítica popperiana

A partir das ideias de Immanuel Kant, Karl Popper pôde desenvolver um sistema de pensamento bastante coeso, criando uma filosofia sistemática na grande tradição central do sujeito; sua preocupação primordial seria separar a ciência da pseudociência, sendo aquela centrada na razão como um fim em si mesmo, um dever ético do ser humano de prover a si mesmo com a verdade transcendental (Ferrarin, 2016Ferrarin, A. (2016). Reason in Kant and Hegel. Kant Yearbook, 8(1), 1-15. doi:10.1515/kantyb-2016-0001
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). Nesse sentido, o racionalismo crítico pode ser visto como uma ação razoável de se buscar a verdade por meio do argumento e do compromisso; da mesma forma, o racionalismo crítico permite, a partir de sua premissa de que todo conhecimento é transitório e falseável, uma postura mais aberta ao diálogo a partir de diferentes visões (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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; Popper, 1934/2004).

Para o campo dos estudos organizacionais, a abordagem do racionalismo crítico pode ser interessante para questionar os modelos e crenças trazidas ao campo em várias frentes; neste artigo, alguns exemplos de objetos de crítica foram tratados. Defendemos, neste artigo, que o espírito popperiano, fundamentado na razão kantiana, é muito mais um compromisso do pesquisador com uma postura profissional do que de uma adesão irrestrita ao método hipotético-dedutivo. Entendemos que a base do racionalismo crítico reside na busca da razão e da verdade transcendental. Esse é um chamado não apenas para a produção de teorias, mas para a dedicação aos testes de sua validade – o que não tem recebido tanta atenção dos pesquisadores no campo dos estudos organizacionais, que têm dedicado expressiva porção de esforços para produzir pesquisas que transpõem teorias para as mais variadas situações empíricas.

Por fim, entendemos, como Thomas (2010)Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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, que a postura racionalista crítica é necessária para a contemporaneidade. O racionalista é “aquele que questiona tudo, incluindo padrões, objetivos, critérios, autoridades, decisões, e, especialmente, qualquer outro modo de vida” (Thomas, 2010Thomas, R. (2010). What is the relevance of Karl Popper’s critical rationalism to management studies and practice? Philosophy of Management, 9(1), 5-38. doi:10.5840/pom20109116
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, p. 27). Tal postura, ironicamente, demanda fé. Uma fé irracional na razão, que passa a ser vista como o único caminho verdadeiro para uma transcendência que nos torne, como seres humanos, mais próximos da verdade.

Considerações transitórias

O objetivo deste ensaio foi revisitar a construção teórica dos conceitos de razão na obra de Kant e delinear a sua influência no Racionalismo Crítico popperiano. Alguns pontos podem sumarizar a discussão sobre a obra de Kant proposta neste artigo e resumir os seus achados: (a) a filosofia kantiana valoriza a criatividade e o idealismo, estimulando a produção de ideias e conhecimentos a priori que contribuam para o refinamento da nossa forma de interpretar o mundo; (b) cabe à razão, portanto, munida dessas ideias, realizar o seu trabalho negativo de “eliminar os erros” existentes em nosso pensamento; (c) a razão pura é a verdade inconteste, e não pode ser plenamente alcançada por estar num plano metafísico do conhecimento; logo, sempre haverá falhas no conhecimento humano; (d) a razão prática é a base de interesses e motivações que constituem o desejo pela descoberta de novos saberes, e varia conforme os indivíduos – portanto, a nossa produção de conhecimento não é neutra, pois é influenciada por nossos vieses ideológicos e subjetivos (apetites) e, por fim, (e) o ser humano tem o dever moral de se engajar no aperfeiçoamento do conhecimento, para assim alcançar o status transcendental.

Cada uma dessas contribuições de Kant à filosofia trouxe implicações ao trabalho de Karl Popper, que resumimos também para fins de organização dos argumentos propostos: (a) toda teoria é imperfeita e falseável, e o trabalho do cientista é submeter persistente e continuamente suas visões a tentativas de falsificação; (b) o método indutivo não é o mais apropriado por se filiar ao racionalismo clássico e ao justificacionismo, que se pautam na persistente tarefa de se comprometer com uma visão teórica e com a defesa de seu potencial de explicar os fenômenos no campo; (c) o justificacionismo não é suficiente, porque não há que se falar em “autoridade”, nem em consistência da complexa rede de justificações teóricas que se constroem para embasar uma determinada visão teórica; (d) o método hipotético-dedutivo seria uma forma interessante de constituir testes de validade às teorias; (e) não há objeto que não seja passível de falsificação, o que permite uma ampla variedade de possibilidades.

As contribuições dos dois autores trazem uma grande figura em que a ciência assume uma nobre função de ser a força-motriz do autoaperfeiçoamento humano por meio do conhecimento. Permite que os pesquisadores façam um exercício de autocrítica em relação ao seu papel na sociedade: afinal, para quê (e para quem) estamos construindo a ciência? Que tipo de verdade(s) estamos buscando ao exercer nosso trabalho de pesquisa? Em que medidas estamos abertos à crítica da validade de nossas visões teóricas? Quantos mecanismos criamos para mantermos vivas nossas próprias linhas de pensamento no campo científico? São provocações relevantes para os dias atuais, especialmente em um contexto no qual ampla parcela dos trabalhos publicados no campo dos Estudos Organizacionais tem se dedicado a transposição de teorias para diferentes contextos empíricos, sem o devido questionamento de sua validade local.

Esperamos, com essas considerações, chamar a atenção para o dever do pesquisador em recorrer à razão no desempenho de seu papel científico. A multiplicidade de visões teóricas existentes no campo dos Estudos Organizacionais constitui um rico campo para estudos que adotem a abordagem racionalista crítica. Falta-nos, portanto, levar em consideração nosso real poder de veridicção: não podemos afirmar o que é, tão somente afirmar o que não é. Esse é o trabalho do cientista, e é essa a vocação dos intelectuais adeptos da tradição kantiana.

Agradecimentos

À Professora Kettle Duarte Paes, cujas provocações e discussões culminaram nas inspirações e perguntas necessárias ao desenvolvimento deste artigo. Aos pareceristas, que contribuíram com provocações e questionamentos que permitiram um amadurecimento da proposta do artigo.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2017
  • Aceito
    06 Fev 2020
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