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Escravidão contemporânea e oyotismo

Modern slavery and toyotism

Resumo

Neste artigo, estamos identificando relações entre a gestão toyotista, como formulada por seu criador, Taiichi Ohno, e praticada por várias empresas, e elementos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo. Nossos referenciais reúnem a psicodinâmica dejouriana, o aporte que descreve o trabalho escravo contemporâneo e formulações de Ohno, em seu O sistema Toyota de produção. Confrontando os dois primeiros elementos com as concepções e a prática toyotistas, podemos associar esse discurso corrente entre as organizações e nas próprias escolas de gestão com a incidência da escravidão contemporânea. A conclusão a que chegamos é de que há um recuo histórico a padrões primitivos do capitalismo, com ilimitada disposição para cortar custos e, nesse contexto, crescente desapreço pelos custos sociais. Isto está levando ao aparente paradoxo de constatar-se, muito além de reminiscências feudais ou escravagistas, a difusão e naturalização das condições coloniais-escravocratas de trabalho no modo de produção capitalista.

Palavras-chave:
Trabalho Escravo Contemporâneo; Toyotismo; Intensificação; Flexibilidade; Jornada Exaustiva

Abstract

In this article, we identify the relations between Toyota’s management practices, as those formulated by its creator, Taiichi Ohno, and practiced by several companies, and elements that characterize the contemporary slave work. Our references bring together Dejour’s psychodynamics, modern slavery descriptions and Ohno’s principles, from his Toyota’s Production System book. When we confront the first two elements from the previous statement with Toyota’s characteristics, we can associate this discourse, mainstream in organizations and even in schools of management, with the incidence of modern slavery patterns. The conclusion we reached is that there is a historical regression to primitive capitalist standards, with unlimited disposition to cut costs, and, in this context, an increasing despise for social costs. We can verify a clear paradox, far beyond feudal and enslaving remnants, of the spreading and naturalization of colonial-enslaving working conditions inside the capitalist production system.

Keywords:
Modern Slavery; Toyotism; Intensification; Flexibility; Exhaustive Working Day

Introdução

O tema do trabalho é bastante estudado por muitos filósofos e pesquisadores, de clássicos a contemporâneos. Referimo-nos não a um trabalho específico, mas ao trabalho em geral, fonte de valor, considerado como o ponto de partida da economia moderna. Para o pensamento dominante na Antiguidade esse trabalho era um ato de subsistência humana, próprio de seres inferiores, o que naturalizava a sujeição do indivíduo a uma situação forçada (RUIZ; CASTOR, 2014RUIZ, B.; CASTOR, M.M. A potência da ação. Uma crítica ao naturalismo da violência. Kriterion: Revista de Filosofia, v. 55, n. 129, p. 41-60, 2014.). Aristóteles entendia o trabalho como atividade servil demandada de homens que necessitavam dele para sobreviver. A sobrevivência de natureza animal não conversava com a condição de sujeito dos homens livres. O escravo, por isso, era considerado um não-cidadão, cujo trabalho se fazia necessário para excluir essa realidade servil da vida do homem livre, da vida honrada feita da política e da contemplação. Como observa Wood (2011WOOD, E. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 191),

[...] tanto para Platão quanto para Aristóteles a distinção entre liberdade e servilismo, douleia, corresponderia não apenas à diferença jurídica entre homens livres e escravos, mas à diferença entre os que são livres da necessidade de trabalho e os que são obrigados a trabalhar para viver.

Essa caracterização se difundiu entre os povos dominantes, as nações imperiais e se transmitiu às suas colônias. Durante séculos os principais países conviveram com a escravidão e tiraram dela a sua riqueza - até o momento em que razões econômicas e políticas esgotaram o modo de produção escravista. Nem por isto a situação degradante do trabalho foi suprimida, registrando-se no primórdio do capitalismo situações de extrema exploração e sofrimento de crianças, mulheres e homens de todas as idades, cuja descrição documentada Leo Huberman (1970HUBERMAN, L. A história da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.) nos oferece em seu livro significativamente intitulado A história da riqueza do homem.

Mas as perspectivas capitalistas moderna e contemporânea pretenderam se distinguir disso. Nelas, o trabalhador do tempo presente é preso contraditoriamente por sua situação de trabalhador livre, já então como portador de uma mercadoria a ser vendida: a força de trabalho. Ele se agrilhoa ao capitalista não porque lhe é inferior enquanto gênero humano, nem por causa da violência a que é submetido, mas porque sem essa relação comercial - de compra e venda da força de trabalho - não sobrevive, ainda que, por outro lado, o mesmo aconteça com o capital na busca incessante do lucro, da extração da mais-valia e da acumulação (MASCARENHAS; DIAS; BAPTISTA, 2015MASCARENHAS, A.O.; DIAS, S.L.; BAPTISTA, R.M. Elementos para Discussão da Escravidão Contemporânea como Prática de Gestão. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 55, n. 2, p. 175-187, 2015.). Marx, no desdobramento de sua abordagem sobre o “trabalho em geral” e o capital, faz essa distinção fundamental dizendo que

[...] a diferença entre a produção do capital e a produção de estágios anteriores é ainda simplesmente formal. Rapto de seres humanos, escravidão, tráfico de escravos e trabalho forçado de escravos, aumento dessas máquinas trabalhadoras, máquinas que produzem produtos excedentes, aqui tudo isso é posto diretamente pela violência; no caso do capital é mediado pela troca (MARX, 2011MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo , 2011., p. 644).

Tanto o capitalismo e seus modelos de gestão - em busca de motivações para o trabalhador em condições de trabalho alienado - quanto a reforma religiosa, em ação correlata, além da coincidência, quiseram imprimir ao trabalho um valor moral dignificante. A isto, e no mesmo sentido de humanização do trabalho, se acrescentaram as rebeliões e os pensamentos críticos iluminista e socialista. A noção atual de trabalho, portanto, foi sendo desenvolvida como algo que levaria o homem à riqueza material e ética, quando não à sublimação divina. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo,Weber (1981WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1981.) nos fala da relação entre a reforma religiosa e a dignificação do trabalho.

Apesar desse novo discurso sobre o trabalho e o uso de novos modelos de gestão, permaneceu o questionamento se as práticas de sujeição do trabalhador continuam as mesmas, sob formas aparentemente diferentes (BERNARDO, 2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.). Nesse questionamento incluímos agora uma específica indagação sobre qual o alcance do modelo de produção toyotista em sua relação com a lógica de submissão do trabalhador e a precarização do trabalho, apontada por alguns autores (SATOSHI, 1985SATOSHI, K. Japão: a outra face do milagre. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.; GOUNET, 2002GOUNET, T. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. 1a ed. 1a reimp. São Paulo: Boitempo , 2002.; ANTUNES, 2009ANTUNES, R.L.C. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2 ed. 10 reimpr. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.). Mais: perguntamo-nos em que sentido as condições do modelo toyotista, sua teorização e prática, contribuem para a assimilação de formas coloniais-escravocratas de exploração do trabalho, até o limite do que se denomina hoje escravidão contemporânea?

Para responder a essa pergunta recorremos à literatura que reflete sobre o sofrimento no trabalho e aquela que procura descrever os traços e o significado de trabalho escravo contemporâneo. Examinamos textos que analisam o toyotismo, como modelo de gestão, e em especial observamos as ideias de Taiichi Ohno, expressas em seu livro O sistema Toyota de produção, em que se revela o pensamento e a prática que o engenheiro japonês desenvolveu a partir da própria montadora que dirigiu.

A seguir colocamos ao leitor a reflexão sobre o impacto teórico e prático de concepções de um modelo de gestão que ganhou o respeito mundial por sua criatividade e, principalmente, eficiência. Nessa reflexão estão presentes tanto as consequências concretas e diretas das práticas toyotistas, como a repercussão difusa de seus eixos centrais sobre as sociedades (e suas empresas), em particular sociedades em que o processo civilizatório ainda é marcado mais pelo formalismo do que pela efetiva aplicação dos avanços da civilidade, como a brasileira (GUERREIRO-RAMOS, 1966GUERREIRO-RAMOS, A. Administração e Estratégia do Desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da administração. Rio de Janeiro: FGV, 1966.; RIGGS, 1968RIGGS, F. Administração nos países em desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1968.).

O movimento de redução do tempo e as novas formas de organização da produção, apresentadas pelo modelo de produção toyotista, são apontados há algum tempo, por alguns autores já citados e outros, como agravantes das condições precarizadas do trabalhador. Isto se daria pelos métodos adotados por Ohno para obter melhores resultados em eficiência que os obtidos pelo fordismo, sem entretanto produzir lotes volumosos de um único bem. Diz Ohno, distinguindo o seu sistema do sistema Ford, que “[...] há duas maneiras de aumentar a eficiência: aumentar as quantidades produzidas ou reduzir o número de trabalhadores” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 77). É essa opção por reduzir o número de trabalhadores e suas formas de viabilização que nos chamaram a atenção para os possíveis efeitos graves dos postulados defendidos e praticados pelo toyotismo. A inclusão do trabalho escravo contemporâneo como tema da gestão e a expansão do problema, tanto no exterior como no Brasil, realçam a possibilidade de associação desse fenômeno com o modelo toyotista e seus mecanismos de obtenção da eficiência.

O texto de Crane, autor de Modern slavery as a management practice: exploring the conditions and capabilities for human explotation, título que expressa suficientemente sua tese, traz ao papel da escravidão contemporânea um caráter diferenciado daquele que considera essa condição de trabalho uma conduta marginal e acidental (CRANE, 2013CRANE, A. Modern slavery as a management practice: exploring the conditions and capabilities for human explotation. Academy of Management Review, v. 38, n. 1, p. 49-69, 2013.).

Em entrevista publicada no sítio da Deutsche Welle, em agosto de 2009, e reproduzida pelo sítio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Benjamin Skinner (2009SKINNER, B. A Crime So Monstrous: face-to-face with modern-day slavery. New York: Free Press, 2009.), autor A Crime So Monstrous: Face-To-Face with Modern-Day Slavery, estima que haja milhões de escravos contemporâneos em vários países do mundo. A entrevista tem o título de Há mais escravos hoje do que em qualquer outro momento da história da humanidade (CPT, 2009COMISSÃO PASTORAL DA TERRA - CPT. Nunca houve tantos escravos como na atualidade, diz pesquisador. 2009. Entrevista publicada no site da Comissão Pastoral da Terra Nordeste II. Disponível em: https://www.cptne2.org.br/index.php/publicacoes/noticias/trabalho-escravo/2496-nunca-houve-tantos-escravos-como-na-atualidade-diz-pesquisador . Acesso em: 08/02/2017.
https://www.cptne2.org.br/index.php/publ...
).

O Relatório da Organização Internacional do Trabalho-OIT, de 2010, versando sobre o Brasil, diz que “[...] 12,3 milhões de pessoas no mundo sofrem as penas do trabalho forçado. Apenas no Brasil, conforme os dados da CPT, 25 mil, anualmente, são submetidas ao trabalho escravo” (COSTA, 2010COSTA, P.T.M. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: International Labour Office/ILO Office in Brazil/OIT, 2010., p. 56).

Em sua edição de 2006, o relatório da OIT define que as formas assumidas pela escravidão contemporânea vão da prostituição ao trabalho forçado. Nos Estados Unidos, no México, na Índia, na vasta e surpreendente relação de países divulgada pela OIT, estão principalmente mulheres, crianças, indígenas e migrantes, ilegais ou legais, estes últimos frequentemente com seus passaportes retidos e dívidas contraídas com a empresa, no processo de legalização da sua migração (OIT, 2006ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT. Trabalho escravo no Brasil do Século XXI. 1a ed. Leonardo Sakamoto (coord. do estudo). Brasília: OIT. 2006. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_227551.pdf . Acesso em: 20/11/2016.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

Vale observar que a localização geográfica do trabalho escravo no Brasil, comumente identificada no meio rural, já não corresponde à realidade. Lyra (2014LYRA, A.R.T. da C. O enfrentamento do trabalho em condição análoga à de escravo. Estudos Avançados, v. 28, n. 81, p. 213-227, 2014.) registra que, no ano de 2013, o número de trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão no meio urbano superou o do rural, dando destaque para os setores da construção civil e indústria têxtil. Grandes estados da Federação, não apenas das regiões Norte e Nordeste, aparecem destacadamente nesse cenário, como é o caso de Minas Gerais, antes ausente nos relatórios da OIT de 2005ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT. Aliança global contra o trabalho escravo. Genebra: Secretaria Internacional do Trabalho, 2005. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/documentos/relatorio_global2005.pdf . Acesso em: 19/11/2016.
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e 2010ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT. Riscos emergentes e novas formas de prevenção num mundo de trabalho em mudança. Genebra: Secretaria Internacional do Trabalho , 2010. Disponível em: https://pt.slideshare.net/mastermendes/relatorio-oit-2010-dia-mundia-da-sade-e-segurana-do-trabalho . Acesso em: 20/11/2016.
https://pt.slideshare.net/mastermendes/r...
.

São essas informações, em planos internacional e nacional, que imprimem relevo a esse debate, além, evidentemente, do prestígio e influência que a chamada “administração japonesa” adquiriu ao longo do tempo, inclusive no que diz respeito paradoxalmente às relações sociais de trabalho que teriam com ela evoluído (LIPIETZ; LEBORGNE, 1988LIPIETZ, A.; LEBORGNE, D. O pós-fordismo e seu espaço. Revista Espaço & Debates, n. 25, São Paulo: USP, 1988.; AOKI, 1991AOKI, M. Économie japonaise - information, motivation et marchandages. Paris: Economica, 1991.; TAUÍLE, 1994TAUÍLE, J.R. Apresentação. In: CORIAT, B. Pensar pelo avesso. Rio de Janeiro: Revan e UFRJ, 1994.).

Escravidão contemporânea

A descrição e caracterização do trabalho escravo contemporâneo encontram variados aportes teóricos, de autores e instituições. Segundo Mascarenhas, Dias e Baptista (2015MASCARENHAS, A.O.; DIAS, S.L.; BAPTISTA, R.M. Elementos para Discussão da Escravidão Contemporânea como Prática de Gestão. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 55, n. 2, p. 175-187, 2015.), a escravidão contemporânea pressupõe o aparecimento de três elementos para sua caracterização: o controle de um indivíduo sobre o outro, a apropriação da força de trabalho e o uso de força violenta ou ameaça para concretização do controle do trabalho. Entre os mecanismos que permitem o controle estão o uso da força física e a opressão psíquica, ambos materializados pela presença de jagunços e vigilância armada, restrição de locomoção, ou pela já conhecida prisão por dívida - onde o empregado tende a sentir-se responsabilizado pelo “prejuízo” que dá a seu patrão/senhor (COSTA, 2008COSTA, P.T.M. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, v. 31, p. 173-198, 2008.).

Para Antero (2008ANTERO, S.A. Monitoramento e avaliação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 5, p. 791-828, 2008.), o trabalho escravo vai além do descumprimento das leis trabalhistas, ele provoca a desumanização do trabalhador, caracterizada pelo cerceamento da liberdade, desconstrução do direito ao exercício da cidadania e degradação das condições de trabalho. Antero ressalta a objetificação do ser humano, constituindo-se um produto plástico, apto para consumo, enquanto estiver produzindo, e pronto para descarte após a perda de sua funcionalidade. Em seu estudo, o autor identificou quesitos comuns nos relatórios de fiscalização e inspeção do Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil em 2004. Entre eles estão a restrição de liberdade com vigilância armada, a situação geográfica da propriedade, se muito perto ou longe dos centros urbanos, onde há mais facilidade de fiscalização, e as condições adversas de trabalho, com acidentes e doenças, dificuldade de acesso à água potável, retenção dolosa dos salários, informalidade dos contratos de trabalho, ausência de equipamentos de proteção e violência cometida por seguranças (ou “gatos”).

Costa (2008COSTA, P.T.M. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, v. 31, p. 173-198, 2008.), além dos elementos já citados e explorando aspectos mais simbólicos da relação de escravidão, cita o desenraizamento social, originado de um movimento migratório do futuro trabalhador para seu local de aprisionamento em busca de melhores condições de vida e de oportunidades. Segundo a autora, existe uma pesada carga simbólica no ato de escravizar um trabalhador, o que explica um episódio em que um trabalhador escravo, após ser capturado depois de uma tentativa de fuga, foi forçado a praticar sexo oral no funcionário que o capturou diante de todos os outros trabalhadores. Sua percepção sobre o processo de escravização do indivíduo em uma situação de trabalho irregular começa pelas teias de aliciamento dos “gatos”, funcionários de fazendeiros que vão “aprisionar” mão de obra jovem em locais distantes, passando por um processo de perda de identidade do trabalhador, alienado de seu local de origem e de suas raízes sociais. Para ela, o trabalhador transforma-se em um “não-cidadão”, ou seja, um ser sem possibilidades de exercer seus direitos de reunião, voto, garantias trabalhistas (e sem conhecimento destas), tornando-se, por fim, alvo de violência física e psicológica.

Segundo Monteiro e Fleury (2014MONTEIRO, L.A.; FLEURY, S. Elos que libertam: redes de políticas para erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 21, n. 69, p. 255-273, 2014.), a questão do trabalho escravo envolve também relações de poder, propriedade e prestígio social, ou seja, ainda é uma relação de trabalho baseada na subordinação opressora delimitada pela posição social e status do patrão fazendeiro, dono de terras, sobre o “peão”, desprestigiado, pobre, oprimido. Essa relação não é somente material e explícita, pois envolve a noção de honra (ROMANO, 2009ROMANO, J.O. Política nas Políticas: um olhar sobre os estudos na agricultura brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica, RJ: EDUR, 2009.), avançando para aspectos subjetivos das relações de trabalho. Ainda segundo Monteiro e Fleury (2014MONTEIRO, L.A.; FLEURY, S. Elos que libertam: redes de políticas para erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 21, n. 69, p. 255-273, 2014.), as raízes do escravismo brasileiro permanecem presentes na mentalidade do empregador rural, o que em outras palavras significa dizer que o empregador brasileiro mantém vivos os moldes de relação trabalhista característicos de um sistema arcaico de produção. Sempre é bom lembrar que no Brasil a revolução burguesa, enquanto processo, a industrialização e a urbanização se deram com os “homens de negócio”, aqueles que transitaram do campo para a cidade atraídos pelos lucros da indústria e do comércio (FERNANDES, 1975FERNANDES, F. A revolução burguesa. São Paulo: Zahar Editores, 1975.).

Podemos dizer, tendo em conta essa memória, que o imaginário opressor do empregador brasileiro ainda não foi ultrapassado. As relações de poder observadas nas organizações mostram não somente o distanciamento de interesses entre trabalhador e patrão, mas não raramente também as condições degradantes de trabalho como algo natural à condição do trabalhador, em particular do trabalhador manual. O patrão, nesse caso, se vê como um benfeitor, alguém que oferece oportunidade de sobrevivência a um despossuído. Daí a dificuldade em conceituar “trabalho escravo contemporâneo” de modo consensual e a inclinação a sentir-se e supor-se um excesso crítico, digamos, um exagero dos que denunciam essa degradação como trabalho escravo. A expressão condições análogas ao trabalho escravo, que reemergiu recentemente nos documentos e livros sobre o assunto, de certo modo é uma resposta/concessão a esse tipo de juízo, em parte pela memória que a história registra do grau de sofrimento da escravidão clássica, em parte porque até os denunciantes, no contexto de dominação ideológica, sentem-se inseguros de suas próprias denúncias. Pelo critério de comparação, seria um exagero tratar como escravidão as condições descritas. Mas a verdade é que a contemporaneidade dessa escravidão é relativização suficiente para compreendermos o sentido preciso das palavras.

O Código Penal Brasileiro (BRASIL, 2003BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Rio de Janeiro, 4. ed. 2003.) é outra importante referência na delimitação do tema. Em seu artigo 149, o código estabelece quatro condutas para imputação criminal da sujeição de alguém à condição de trabalhador escravo: submeter o trabalhador a trabalho forçado, impor restrição a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou o preposto, condições degradantes de trabalho e/ou jornada exaustiva. É importante ressaltar que essas condições não são exigidas em seu todo para a caracterização do ilícito, ou seja, podem ser identificadas em conjunto ou isoladamente. Basta um critério ser preenchido para a configuração do crime.

Sobre essas quatro condutas a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), instituída no âmbito do Ministério Público do Trabalho (MPT), chama a atenção para dois pontos, alvos dos contraditórios de alguns legisladores da bancada ruralista no Congresso e de parte da sociedade desejosos em descaracterizar a prática do trabalho escravo: a jornada exaustiva e as condições degradantes. O primeiro ponto é entendido pelo MPT como jornada de trabalho cuja “[...] intensidade, frequência e desgaste ou outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua dignidade, e decorra de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua vontade” (BRASIL, MPT, 2002BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT). O trabalho escravo está mais próximo do que você imagina. Cartilha do Trabalho Escravo. 2002. Disponível em: https://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/11344af7-b9d7-4fcc-8ebe-8e56b5905129/Cartilha%2BAlterada_3-1.pdf?MOD=AJPERES&CONVERT_TO=url&CACHEID=11344af7-b9d7-4fcc-8ebe-8e56b5905129 . Acesso em: 20/11/2016.
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, p. 9). O segundo, ainda nas palavras do MPT, são as condições degradantes de trabalho que “[...] configuram desprezo à dignidade da pessoa humana, pelo descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes à higiene, saúde, segurança, moradia, repouso, alimentação e outros [...]” (BRASIL, MPT, 2002BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT). O trabalho escravo está mais próximo do que você imagina. Cartilha do Trabalho Escravo. 2002. Disponível em: https://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/11344af7-b9d7-4fcc-8ebe-8e56b5905129/Cartilha%2BAlterada_3-1.pdf?MOD=AJPERES&CONVERT_TO=url&CACHEID=11344af7-b9d7-4fcc-8ebe-8e56b5905129 . Acesso em: 20/11/2016.
https://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect...
, p. 10).

É necessário, pela importância dos dois pontos, determo-nos um pouco mais sobre ambos, a jornada exaustiva e as condições degradantes. A jornada exaustiva se configura pela inter-relação entre as duas manifestações da jornada de trabalho - a intensidade e a extensividade. A jornada intensiva é caracterizada pelo ritmo, pela repetição das atividades e pela frequência com que elas são conduzidas. É o empenho do trabalhador ao longo da jornada, associado às formas de organização do trabalho, métodos de gestão e novas tecnologias. A segunda, a jornada extensiva, por sua vez, tem a ver com a amplitude da ação, com o tempo em que ela se desenvolve e com a duração da atividade. Em Marx (1996MARX, K. O Capital. São Paulo: Nova Cultura. v. 1, 1996.), temos um exemplo claro de empregadores que exploravam o sobretrabalho extensivo de mulheres, jovens e crianças sob o sistema de turnos, excedendo quanto não muito as 10 horas de trabalho, de maneira que seu repouso eram “horas de ociosidade forçada”, onde “[...] o trabalhador tinha de engolir sua refeição ora em um ora em outro fragmento de tempo não utilizado” (MARX, 1996MARX, K. O Capital. São Paulo: Nova Cultura. v. 1, 1996., p. 404).

Em vista da tendência global de declínio da jornada, ao longo do último século, (LEE; MCCANN; MESSENGER, 2009LEE, S.; MCCANN, D.; MESSENGER, J.C. Duração do Trabalho em Todo o Mundo: tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas numa perspectiva global comparada. Brasília: OIT/Secretaria Internacional do Trabalho. 2009.), a extensividade da jornada, de certa maneira, apresenta queda - uma vez que não computemos o chamado trabalho invisível. Em contraposição, percebe-se o aumento da intensidade, seja pelo emprego de mais tecnologia ou de recursos metodológicos, seja pelo emprego mais denso do trabalho. Para além do cenário especulativo, a escravidão contemporânea vale-se de ambas as formas de exploração da capacidade física e mental do trabalhador, além de serem dimensões frequentemente observadas nas empresas, desobedecendo limites impostos pelo corpo humano e, às vezes, pela lei.

Segundo a ONG Repórter Brasil (2012ONG REPÓRTER BRASIL. Especial Flagrantes de Trabalho Escravo na Indústria Têxtil. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2012/07/especial-flagrantes-de-trabalho-escravo-na-industria-textil-no-brasil /. 2012. Acesso em: 17/10/2016.
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), em um de seus esclarecimentos sobre o tema e disponível no sítio da organização, os conceitos de condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva não têm apenas a ver com liberdade e extensão do tempo de trabalho, mas correspondem à ideia de dano à dignidade da pessoa humana e prejuízo à saúde em direção ao esgotamento físico e mental de maneira sistemática, de forma a pôr em risco a vida do trabalhador.

As definições jurídicas, por sua vez, remetem ao campo empírico, ou seja, são advindas da observação de dano, quando reclamadas pelo trabalhador, que precisa se deslocar à esfera jurídica para reclamar seus direitos. No caso do trabalhador escravo, sua situação é marcada pela alienação, tanto no sentido da ignorância da lei e falta de consciência sobre sua condição, quanto pela conformidade e tolerância à organização do trabalho praticada - muitas vezes pelo sentimento de insegurança ou medo. No Brasil, a lista de empresas denunciadas por trabalho escravo não foi publicada de 2014 a 2016, tendo retornado em março de 2017. A suspensão de sua publicidade nesses anos significou a supressão de importante inibidor da prática que envolve grandes estados federativos, em diferentes ramos de produção, tais como construção civil e confecções. Vale ainda frisar que, apesar da modernidade e do pioneirismo do Brasil no combate à escravidão (OIT, 2006ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT. Trabalho escravo no Brasil do Século XXI. 1a ed. Leonardo Sakamoto (coord. do estudo). Brasília: OIT. 2006. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_227551.pdf . Acesso em: 20/11/2016.
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), até hoje, a maioria dos acusados permanece em liberdade e poucos são efetivamente condenados. Empregadores rurais e outros empresários pagaram, no máximo, cestas básicas e/ou fizeram serviços comunitários. Essas circunstâncias também concorrem para a sobrevivência dos regimes de trabalho exaustivo e/ou degradantes nas empresas, sob o olhar condescendente das autoridades e da sociedade.

É sabido que a sobrejornada, quando se lança mão de horas extras para obter o aumento produtivo, não constitui por si só dano ao trabalhador, segundo o entendimento predominante no âmbito jurídico. Todavia é interessante citar uma sentença judicial de 2015, pronunciada pelo Tribunal Superior do Trabalho e disponibilizada em seu sítio oficial, que caracteriza como dano existencial a prática reiterada de horas extras e uma jornada de trabalho de 14 dias consecutivos, sem folga, impostas a uma bancária. No próprio processo, dano existencial é identificado quando

[...] o trabalhador sofre dano/limitações à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo empregador, impossibilitando-o de estabelecer a prática de um conjunto de atividades culturais, sociais, recreativas, esportivas, afetivas, familiares etc., ou de desenvolver seus projetos de vida nos âmbitos profissional, social e pessoal. (BRASIL. TST, 2015BRASIL. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Recurso de Revista. Dano Moral. Dano Existencial. Submissão A Jornada Extenuante. Prejuízo Não Comprovado. Processo TST-RR-1443-4.2012.5.15.0010, Relatora: Maria de Assis Calsing. Data de Julgamento: 15.4.2015, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17.04.2015. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/105045895/trt-15-judiciario-25-11-2015-pg-2862/pdfView . Acesso em: 19/11/2016.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1050...
, p. 8).

Há, portanto, algum acúmulo, apesar das adversidades, no reconhecimento da intensidade e extensividade como causas da exaustão do trabalhador e essa exaustão como uma conduta a que cabe a classificação de trabalho escravo contemporâneo.

Finalmente, é Lyra (2014LYRA, A.R.T. da C. O enfrentamento do trabalho em condição análoga à de escravo. Estudos Avançados, v. 28, n. 81, p. 213-227, 2014., p. 221) que nos traz a sentença proferida por um juiz federal, onde se verifica a distinção necessária à melhor compreensão do conceito de escravidão contemporânea:

Hoje temos as formas modernas de escravidão, operadas de maneira mais sutil, mais dissimuladas, em que a privação da liberdade se dá por outros meios, mediante a coação econômica, psicológica e, em alguns casos, até mesmo física. Não há senzala, mas existe o alojamento sem a mínima condição de conforto e de higiene; não há o pelourinho, mas o trabalhador se acorrenta pelas dívidas que contrai compulsoriamente; não há o chicote, mas há dor pela indignidade submetida.

Os compromissos no mercado são determinados pelas relações de troca, mas nas negociações explícitas e implícitas entre patrões e empregados os termos atuais da regulação tendem a criar condições profundamente assimétricas entre as partes. São essas condições que impõem regimes de trabalho onde os signos da escravidão clássica podem não estar presentes, mas as suas consequências sim.

As interseções com o toyotismo

Após essas definições de trabalho escravo, parece improvável a identificação destas práticas com a proposta toyotista, visto que esta última sugere a relação entre empregados e patrões mais “humana”, valendo-se de uma gestão horizontalizada, participativa e flexível (CORIAT, 1994CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad. E. S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994.). Entretanto, entendemos que, na fábrica e na formulação toyotista não são colocados limites para economizar e cortar “gorduras” fabris e predomina o discurso da imprecisão da relação entre contingente de trabalhadores e meta de produção. Implicitamente significa ignorar não só a exaustão do trabalhador, mas o próprio conceito de trabalho exaustivo. Aliás, sua primeira ação, a ação fundante do sistema Toyota de produção, foi cortar 1.600 postos de trabalho e ainda assim considerar o contingente como suficiente (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997.; CORIAT, 1994CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad. E. S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994.). É o que faz Alves comentar que

[...] ao auto-intitular-se lean production ou ‘empresa enxuta’, o toyotismo expõe seu caráter de produção destrutiva, ativando, como salienta Mészáros, ‘o selvagem mecanismo de expulsão em quantidades massivas de trabalho vivo do processo de produção’ (ALVES, 2008ALVES, G.A.P. Trabalho e Subjetividade: o metabolismo social da reestruturação produtiva do capital. Marília: UNESP, 2008., p. 16).

Após relatar os acontecimentos que em 1950 levaram “à redução da sua força de trabalho” em 1.600 trabalhadores Ohno comenta que a Guerra da Coréia trouxe demandas diversas e conclui: “[...] nós atendemos essa demanda apenas com o pessoal suficiente e ainda aumentamos a produção” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 83). Escrevendo já nos anos 1990 sobre esses acontecidos, o fundador do toyotismo encerra essa passagem dizendo que “[...] desde então, temos produzido o mesmo que outras companhias, mas com 20 a 30% menos trabalhadores” (p. 83). Ainda nas palavras de Ohno “[...] reduzir o número de operários quer dizer que uma linha de produção ou uma máquina pode ser operada por um, dois, ou qualquer número de operários” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 124). Para não deixar dúvida sobre o que está dizendo, ele afirma na sequência da frase anterior, que “A ideia surgiu pela necessidade de refutar o imperativo de um número fixo de operários por máquinas” (p. 124). Essa concepção de que não há limites humanos, em face da meta fixada, vai inspirar sua emblemática frase “Na verdade, sempre digo que a produção pode ser feita com a metade dos operários” (p. 124). Forma mais simples de dizer o que já havia afirmado em página passada:

[...] se considerarmos apenas o trabalho que é necessário como trabalho real e definimos o resto como desperdício, a equação a seguir será verdadeira, sejam considerados trabalhadores individuais ou a linha inteira: Capacidade atual = trabalho + desperdício (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 39).

O seu relato de um diálogo com o chefe de sessão de motores da Toyota é definitivamente esclarecedor dessa concepção de falta de limites na atribuição do volume de trabalho por trabalhador:

Atualmente podemos fazer cálculos muito rapidamente, e isto pode causar problemas. O seguinte incidente aconteceu no final de 1966 [...] Os Corolas [...] vendiam bem. [...] Eu instrui o chefe da seção de motores para que ele produzisse 5.000 unidades e usasse menos de 100 operários. [...] ele relatou: ‘nós podemos produzir 5.000 unidades utilizando 80 operários’ [...] perguntei a ele: ‘Quantos operários podem produzir 10.000 unidades?’ Ele respondeu imediatamente: ‘160 operários’. Então eu gritei com ele: ‘na escola primária eu aprendi que duas vezes oito é igual a dezesseis. Depois de todos esses anos, você acha que eu devo aprender isso de você? [...] acha que eu sou idiota?’ Não muito depois, 100 operários estavam produzindo mais de 10.000 unidades (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 84).

No texto de Santos, Siqueira e Mendes, Tentativas de suicídio de bancários no contexto das reestruturações produtivas, publicado em 2010, os autores relataram casos envolvendo bancários e operadores do setor financeiro relacionados com as reestruturações produtivas pós-fordistas, no Brasil da década de 1990. Em função do desemprego estrutural e do downsizing que o acompanhou, o setor bancário foi um dos primeiros a sofrer o impacto negativo dessa onda. Segundo o documento, apenas no 2º semestre de 1996, quase 150.000 vagas foram eliminadas. A condução de bancários a programas de desligamento forçava-os a assumir a culpa por sua suposta “incompetência”. Termos como karoshi - morte por excesso de trabalho, e karojisatu - suicídio decorrente da mesma causa, resultados de quadro depressivo severo por aumento desproporcional de responsabilidades no trabalho, são usados pelos autores para explicar a deterioração mental dos trabalhadores. Nessa pesquisa, foram realizadas entrevistas com dois bancários que tentaram suicídio pela administração excessiva de remédios e outro por envenenamento. Os bancários relataram o trabalho desumano e a violação da individualidade gerados pelas cobranças por produtividade, levando-os a pensar que “se [...] morresse, [...] não teria mais de voltar para o setor” (SANTOS; SIQUEIRA; MENDES, 2010SANTOS, M.A.F.; SIQUEIRA, M.V.S.; MENDES, A.M. Tentativas de Suicídio de Bancários no Contexto das Reestruturações Produtivas. RAC, Curitiba, v. 14, n. 15, p. 925-938, 2010., p. 932).

Este é o mesmo princípio norte da escravidão enquanto modelo de gestão, que busca não cortar trabalhadores simplesmente, mas valer-se da apropriação do tempo, do medo, da alienação e da fragilidade de trabalhadores subjugados (FIGUEIRA, 2004FIGUEIRA, R. R. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.). Atento aos aspectos da subjetividade, Dejours (1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992., p. 113) caracteriza essa relação como uma “instrumentalização pelo medo”. Não é à toa que, avaliando as condições históricas da implantação de um dos seus recursos mais efetivos, a multifuncionalidade, Ohno comenta que “[...] o sistema de ‘um operador, muitas máquinas’ ou ‘um operador, muitos processos’ (que) aumentou a eficiência em duas e três vezes [...] foi possível no Japão porque não tínhamos sindicatos estabelecidos por tipo de tarefa como os da Europa e dos Estados Unidos” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 34). O sindicalismo reformado no Japão, o sindicalismo de empresa, “cuja característica essencial é ser reputado como bem mais cooperativo” (CORIAT, 1994CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad. E. S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994., p. 84), não ajuda o trabalhador a perder o medo na relação trabalho/capital, antes o contrário. A intimidade entre o sindicato e a empresa vai se fazendo de tal ordem que, não raramente, o dirigente sindical, posteriormente ao seu mandato, se converte em diretor ou chefe do departamento de pessoal da empresa. A propósito disso, diz Coriat que se trata de

[...] um sindicalismo integrado: no sentido em que a burocracia sindical de empresa é construída segundo suas próprias linhas hierárquicas, paralelas às da empresa. Em muitos casos, a passagem pelo sindicato é uma condição para ascender a funções de responsabilidade - e notadamente em matéria de gestão do pessoal - na própria empresa (CORIAT, 1994CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad. E. S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994., p. 86).

No entender de Bernardo (2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.), o modelo toyotista não rompe com os mecanismos disciplinares típicos do taylorismo/fordismo, mas busca desenvolvê-los, com novas e mais numerosas ferramentas de controle, que possibilitam a intensificação do trabalho e seu posterior mascaramento através de um discurso contraditório com a prática. Esse discurso paradoxal, imerso na lógica gerencial mais simplista, onde a palavra “colaborador” pretende ser um atestado de civilidade, é também percebido na prática escravista contemporânea. É ele que acompanha o capitalismo global corporativo (KEMPADOO, 2016KEMPADOO, K. Revitalizando o imperialismo: campanhas contemporâneas contra o tráfico sexual e a escravidão moderna. Cadernos Pagu, v. 47, Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016.) e legitima a submissão de homens e mulheres às mais diversas condições desumanas de trabalho. Se percebermos a escravidão contemporânea como um recurso de gestão (CRANE, 2013CRANE, A. Modern slavery as a management practice: exploring the conditions and capabilities for human explotation. Academy of Management Review, v. 38, n. 1, p. 49-69, 2013.), a que têm recorrido pequenas e grandes corporações, entenderemos porque para ela contribui esse discurso técnico que transforma a redução de custo no “abre-te sésamo” do sucesso, e que não se sente constrangido em dizer que “[...] a redução da força de trabalho significa aumentar a proporção de trabalho com valor agregado” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 75). Antes, ele já havia comentado didaticamente que “[...] na Toyota, como em todas as indústrias manufatureiras, o lucro só pode ser obtido com redução de custos” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 30) e que considerava “[...] uma política de redução da mão de obra como um meio para conseguir redução de custo” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 69).

A lógica de intensificação do trabalho industrial procura desmontar a ideia de jornada exaustiva encontrada no trabalho escravo, justificando isto com a subjetividade do conceito, pois qual afinal é/pode ser a resistência de cada trabalhador à exaustão? A noção ohnista de que sempre se pode fazer o mesmo com a metade dos operários (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997.) suprime gradualmente os limites postos pelos estudos, pelas leis e pela razoabilidade da regulamentação da jornada de trabalho. Segundo Bernardo (2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.), através de entrevistas com operários de duas fábricas japonesas no Brasil, soube-se que o tempo de produção caiu de seis para três minutos e meio, aumentada a intensidade do trabalho. O objetivo hoje é repetir a mesma meta japonesa, de um carro por minuto. Isso conduziu a descompensações e afastamentos. Um dos fatos narrados foi o desespero de um funcionário que largou a linha de montagem e, chorando, retirou-se da fábrica. Outros funcionários, segundo relatos, ficavam paralisados ao pegar o ônibus da empresa para ir trabalhar. Outros ainda adquiriram síndrome do pânico (BERNARDO, 2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 152). Não se trata mais de assegurar o cumprimento da carga horária contratada de acordo com a capacidade média de resistência do trabalhador, não lhe permitindo hiatos de relaxamento ou “vadiagem”, como diria Taylor (1963TAYLOR, F. Princípios de administração científica. São Paulo: Editora Atlas, 1963.). Agora o que se consolida é a prevalência da produtividade e conveniência da empresa acima do que se considera humanamente adequado. Aliás, concretamente significa dizer que não há o humanamente adequado, mas apenas o organizacionalmente adequado. Nega-se a ponderabilidade da capacidade produtiva do trabalhador e se assume a afirmação de Ohno de que não existe relação fixa entre contingente de trabalhadores e meta de produção. Essas considerações cabem perfeitamente para as discutidas jornadas de 12 horas e os intervalos de 30 minutos para o almoço que fazem parte da reforma trabalhista no Brasil (UOL ECONOMIA, 2016UOL ECONOMIA. Temer diz, em vídeo, que jornada de 12 horas seria para 4 dias de trabalho. São Paulo. 2016. Disponível em: http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2016/09/14/temer-diz-em-video-que-jornada-de-12-horas-seria-para-4-dias-de-trabalho.htm . Acesso em: 06/02/2017.
http://economia.uol.com.br/noticias/reda...
). A proposta ilustra bem o grau de assimilação a que se chegou dessa concepção de falta de referência para os limites físicos e mentais do trabalhador. O então presidente Temer, a título de esclarecimento, se pronunciou sobre a reforma em vídeo divulgado pelas principais agências de notícia brasileiras, dizendo que

[...] talvez o trabalhador, se quisesse trabalhar 12 horas por dia, ele trabalharia apenas 4 dias por semana, somando, portanto, 48 horas - 44 normal e, ainda, 4 horas extras. Mas, com isso, ele teria ou 3 dias de folga, ou, se quisesse, esses 2 ou 3 dias ainda poderia trabalhar em outra empresa (UOL ECONOMIA, 2016UOL ECONOMIA. Temer diz, em vídeo, que jornada de 12 horas seria para 4 dias de trabalho. São Paulo. 2016. Disponível em: http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2016/09/14/temer-diz-em-video-que-jornada-de-12-horas-seria-para-4-dias-de-trabalho.htm . Acesso em: 06/02/2017.
http://economia.uol.com.br/noticias/reda...
).

Observe-se que a iniciativa reformista é esclarecida pelo presidente da República à época de um modo que acentua o problema, ao invés de amenizá-lo. Esse trabalhador não só teria jornadas exaustivas de 12 horas durante quatro dias, como ainda se admite que poderia destinar a outro emprego seus dois ou três dias de hipotética folga. Parece faltar, mesmo em contexto de explicação e defesa de uma proposta sob crítica, qualquer percepção de que o fundo dessa própria crítica é a exposição do trabalhador a um regime exaustivo, danoso física e mentalmente, revelando-se o quanto isto se banalizou entre as autoridades. Essas “flexibilização” e tolerância com a intensificação da jornada de trabalho ignoram e questionam a caracterização do abuso, do excessivo, enfim da exaustão dos trabalhadores. Vale dizer que também entre os trabalhadores evolui essa consciência, digamos, flexibilizada. A propósito, observa Alves (2008ALVES, G.A.P. Trabalho e Subjetividade: o metabolismo social da reestruturação produtiva do capital. Marília: UNESP, 2008.) que o toyotismo é uma “ideologia orgânica” de reestruturação produtiva que utiliza a captura da subjetividade do trabalho vivo para aumentar a produtividade e a acumulação. Com “captura” da subjetividade, ele está se referindo ao “engajamento moral-intelectual dos operários e empregados na produção do capital” (ALVES, 2008ALVES, G.A.P. Trabalho e Subjetividade: o metabolismo social da reestruturação produtiva do capital. Marília: UNESP, 2008., p. 41), a fluidez subjetiva da força de trabalho, o envolvimento pró-ativo do operário (ALVES, 2008ALVES, G.A.P. Trabalho e Subjetividade: o metabolismo social da reestruturação produtiva do capital. Marília: UNESP, 2008., p. 45) e nova disposição dos trabalhadores em cooperar com a produção (ALVES, 2008ALVES, G.A.P. Trabalho e Subjetividade: o metabolismo social da reestruturação produtiva do capital. Marília: UNESP, 2008., p. 58). Entretanto, mesmo considerando que contratos leoninos poderão ocorrer com a concordância do trabalhador, negociados diretamente com o empregador, sabemos que as leis e a ética de proteção ao trabalho subentendem condições desiguais nessa negociação.

Os afastamentos médicos podem servir como indicadores objetivos para compreendermos a exaustão advinda do trabalho, nessas condições adversas. Em um estudo com comerciários do Carrefour, realizado por França-Junior (2009FRANÇA-JUNIOR, L.B. A precarização do trabalho e o comerciário do Carrefour. Revista Pegada Eletrônica, v. 10, n. 1, p. 94-112, 2009.), o esgotamento físico e mental dos empregados explicita o nexo entre o trabalho e a exaustão. A alta incidência de afastamentos por LER (lesão por esforço repetitivo) e inúmeros casos de estresse relacionados à empresa, ao intenso ritmo de trabalho e às violações do descanso intrajornada, são exemplos citados do cotidiano dos trabalhadores dessa área. Além disto, como observa Dal Rosso (2008DAL ROSSO, S. Mais Trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008.), a multifuncionalidade, como um recurso de intensificação do trabalho e redução de custo, se difunde nas organizações, com contratos que se referem a “operadores”. Se antes havia açougueiros, estoquistas e caixas, hoje, o uso da palavra “operador” tornou-se símbolo da flexibilização, pois o trabalhador pode ser o que for mais conveniente para a empresa, sem qualquer respeito às categorias e demandas específicas de cada profissão. Ademais, enquanto “operadores” o trabalhador vê comprometida sua identidade e a própria assistência sindical.

Em outras palavras, a escravidão contemporânea não se deve exclusivamente à falta de assistência social do Estado, ao racismo, à pobreza, à discriminação étnica e a outros problemas sociais de nosso tempo. Deve-se também a uma lógica de acumulação, técnica e teoricamente respaldada, em que os trabalhadores são reduzidos a unidades produtivas, cuja condição e limites humanos são secundarizados. Uma contradição aberta com o processo civilizatório e um retrocesso diante dos esforços que correntes teóricas da própria administração fizeram para destacar a humanização do trabalho (FOLLET, 1949FOLLET, M. P. Creative experience. New York: Longmans Green, 1949. ; MAYO, 1957MAYO, E. The Social Problems of an industrial civilization. London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1957.; BARNARD, 1971BARNARD, C. As funções do executivo. São Paulo: Atlas, 1971.). Até porque uma das promessas da revolução burguesa é impulsionar o capitalismo de forma a promover mudanças para melhor, tirar as pessoas da pobreza e se constituir em efetivo e avançado modelo de sociabilidade humana (KEMPADOO, 2016KEMPADOO, K. Revitalizando o imperialismo: campanhas contemporâneas contra o tráfico sexual e a escravidão moderna. Cadernos Pagu, v. 47, Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016.).

Como vimos, o principal aspecto que coopera para a jornada exaustiva, enquanto elemento caracterizador do trabalho escravo contemporâneo, é a intensidade produtiva (DAL ROSSO, 2006DAL ROSSO, S. Intensidade e imaterialidade do trabalho e saúde. Trabalho, Educação e Saúde, v. 4, n. 1, p. 65-91, 2006.). Por intensificação, relembrando, entende-se aumento do número de atividades pelo mesmo tempo no trabalho, ou seja, produção de mais valores com todas as outras condições imutáveis (DAL ROSSO, 2011DAL ROSSO, S. Ondas de intensificação do labor e crises. Perspectivas, São Paulo, v. 39, p. 133-154, 2011.). Segundo Bernardo:

Um trabalhador contemporâneo, cuja atividade seja altamente complexa e que cumpra um horário de sete horas por dia, trabalha muito mais tempo real do que alguém de outra época, que estivesse sujeito a um horário de quatorze horas diárias, mas cujo trabalho tinha um baixo grau de complexidade (BERNARDO, 2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 46).

Em Dejours (1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992.) o tempo pode ter papel crucial no estudo do sofrimento psíquico do trabalhador em um trabalho prolongado e contínuo. A continuidade manifesta pelo ritmo e frequência de trabalho é essencial para entendermos a jornada exaustiva. A violência praticada pela tensão nervosa da polivalência, da intensidade e da extensão conduz a descompensações na saúde do trabalhador, forçando-o a sucumbir frente às demandas do trabalho (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992.) e entregando-se à exaustão. Há, nas relações “normais de trabalho”, mais criticamente de escravidão contemporânea, uma “carga psicossensorial” negativa (DEJOURS, 1992; DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 2014DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. 1a ed. 15a reimp. São Paulo: Atlas , 2014.), fruto da vigilância, da tensão na relação com os superiores (que podem ser o “gato”, o fazendeiro, o patrão do imigrante, a/o patroa/patrão da doméstica, o gerente da fábrica, o dono do restaurante etc) e da produtividade demandada do trabalhador que podem ajudar a sanar as dúvidas sobre o conceito de jornada exaustiva.

É exatamente essa jornada exaustiva, à qual o trabalhador é submetido, que pertence à lógica toyotista de intensificação do trabalho, onde se insere sua multifuncionalidade ou no dizer de Ohno “o sistema de um operador, muitos processos” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 34). No Japão, colapsos fisiológicos, os já referidos Karoshi, identificados inicialmente na década de 1980, causaram a morte súbita por excesso de trabalho a diversos trabalhadores, geralmente entre 30 e 49 anos (CHEHAB, 2013CHEHAB, G.C. Karoshi: a morte súbita pelo excesso de trabalho. Rev. TST, Brasília, v. 79, n. 3, 2013.). Em seu estudo com trabalhadores de montadoras japonesas de automóveis que adotam o modelo de produção toyotista, Bernardo (2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.) descreve táticas de defesa dos trabalhadores, a que Dejours (1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992.) chama de ideologia defensiva. Riscar carros na linha de produção ou amassá-los dolosamente, mesmo sabendo que estão sujeitos a penalidades, configuram respostas dos trabalhadores às pressões de seus superiores como forma de revide. A ideologia defensiva representa uma resistência à violência da organização do trabalho como ela é posta. Bernardo (2009)BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009. aponta essas atitudes como resultados de ações reflexivas, indicadoras de que limites físicos e psicológicos estão sendo ultrapassados. É nessas estratégias defensivas que precisamos “ler o sofrimento operário” (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992., p. 138).

Figueira (2004FIGUEIRA, R. R. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.) relata que, quando entrevistava trabalhadores no campo que estavam em situação de escravidão, eles usavam a palavra “humilhado” para referirem-se a si mesmos, pois mal sabiam o que era ser um trabalhador “escravo”. Nas entrevistas de Bernardo (2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.) com trabalhadores de duas empresas cujo modelo de produção era japonês, as palavras eram semelhantes, quando não as mesmas: “[...] expressões como ‘assédio moral’, ‘pressão psicológica’ e ‘humilhação’ foram utilizadas por diversos entrevistados [...]” (BERNARDO, 2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 138). A humilhação apresenta tantas faces que, às vezes, é impossível uma descrição completa. Mas, para além dessa identidade na linguagem com que esses trabalhadores expressaram seu sofrimento, apenas a ideia de haver humilhação no lugar em que se trabalha já nos parece bastante penoso.

É importante salientar que o sofrimento do trabalhador enquanto efeito do modelo de Ohno e o sofrimento do trabalhador inserido no modelo escravagista constituem-se em outro ponto de interseção entre essas duas formas distintas de produção. A desumanização do trabalhador para o que Dejours alerta é fruto das relações sociais de trabalho do modo de produção capitalista, ou seja, da relação do capital com a força de trabalho. Mas acessoriamente se agrava com a “[...] divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa [...], o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade” (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992., p. 25) e principalmente as condições físicas de trabalho. O aumento do ritmo de trabalho (ou intensificação do trabalho), como adverte o autor, provoca uma série de descompensações ergonômicas e psíquicas no trabalhador, de forma a atingir níveis patológicos e ultrapassar limites aceitáveis. Como ilustração, ele narra o fim da semana de trabalho de uma fábrica bastante conhecida:

[...] quebram-se ferramentas, aumentam as peças quebradas, durante a produção, e rejeitadas ao final. Explode, diretamente, a agressividade contra as chefias. É geralmente nesses momentos que se vê também algumas brigas de socos. Com a desordem instalada, muitas vezes a linha de produção pára; qualquer anomalia ou irregularidade, até mesmo a parada da produção, provoca irrupções coletivas de agressividade. No fim, os carros que saem da fábrica naqueles dias têm muito mais defeitos do que os que saem no começo da semana. Os trabalhadores que têm problemas com seus carros próprios costumam dizer, entre si: “é um carro de sexta-feira” (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. Trad. A. I. Paraguay; L. L. Ferreira. 5a ed. ampliada. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992., p. 121).

Esse exemplo indica a (in)tolerância dos trabalhadores aos níveis de estresse a que são submetidos ao longo de uma semana pelo ritmo intenso de produção e de trabalho. Essas condições, que fazem as montadoras Toyota serem denominadas “fábricas tensas”, submetidas ao “gerenciamento by stress”, segundo Gounet (2002GOUNET, T. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. 1a ed. 1a reimp. São Paulo: Boitempo , 2002., p.29), se apresentam como procedimentos técnicos eficientes, ou seja, “boas práticas” que contribuem para a aceitação e adoção de relações de trabalho humanamente aviltadas. O deslizamento dessas práticas para a realidade da escravidão contemporânea é apenas uma questão de circunstância, às vezes geográfica, às vezes étnica, às vezes política ou social, como é o caso dos tantos migrantes, internos e externos, encontrados em regime de escravidão no Brasil.

Outro aspecto dessa interseção a que nos referimos, já então reunindo as duas características, trabalho exaustivo e condições degradantes, é a flexibilização dos contratos de fornecimento e de parcerias, através da terceirização. Comenta Gounet, que

[...] a Toyota impõe aos fornecedores seu sistema de produção: máxima flexibilidade, [...] Aproveitando as condições mais penosas de trabalho das subcontratadas (os custos salariais são geralmente 30% a 50% inferiores), a montadora fixa as condições (GOUNET, 2002GOUNET, T. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. 1a ed. 1a reimp. São Paulo: Boitempo , 2002., p. 28).

Essa relação com as terceirizadas e/ou parceiras, denominadas por Ohno de “associadas”, destina-se mais uma vez à redução de custos (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997.). Não é difícil supor que essa pressão, acompanhada do comportamento leniente com o trabalho exaustivo, revelada pela própria empresa principal, induza suas “associadas” a avançar na direção de formas primitivas de relação capital/trabalho em busca do baixo custo. A fadiga intensa, o que denominamos de exaustão, causada pela carga psíquica negativa do trabalho, figura em diversas atividades e exemplos clínicos, segundo Dejours, Abdoucheli e Jayet (2014DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. 1a ed. 15a reimp. São Paulo: Atlas , 2014.). A elevada correlação das diferentes formas de adoecimento com as variáveis de trabalho fica ainda mais evidente no caso de trabalhadores da agroindústria avícola, na região do Paraná, como informam Machado, Murofuse e Martins (2016MACHADO, L.F.; MUROFUSE, N.T.; MARTINS, J.T. Vivências de ser trabalhador na agroindústria avícola dos usuários da atenção à saúde mental. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 110, p. 134-147, 2016.). A cadência da esteira de aves para desossar, o controle rígido do tempo até para ir ao banheiro, a pressão do supervisor por produtividade são, com muita razoabilidade, associados pelos autores às patologias mais frequentes. Dos 14 entrevistados, sete estavam com doenças relacionadas ao trabalho, especificamente três episódios depressivos e quatro casos de alcoolismo crônico. Bernardo (2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 144), na montadora japonesa pesquisada, ao entrevistar um representante sindical, escutou-o dizer que “[...] a maioria das pessoas, principalmente na linha de montagem, [...] tem que levar uma garrafinha com água, mesmo tendo um bebedouro a poucos metros, porque o ritmo de trabalho não permite que ele se afaste do seu posto nem por alguns segundos.”

A busca por flexibilização e baixo custo das atividades não essenciais aos core competences de empresas demandam o fenômeno da terceirização, que, por sua vez, fomenta as relações de trabalho análogas à escravidão na busca pela redução de custos, em particular sobre o contingente dos trabalhadores, aquecendo ainda mais um sistema globalizado de exploração de mão de obra escravizada (KEMPADOO, 2016KEMPADOO, K. Revitalizando o imperialismo: campanhas contemporâneas contra o tráfico sexual e a escravidão moderna. Cadernos Pagu, v. 47, Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016.). O movimento em formato de ondas que a terceirização produz vai demandando baixo custo a cada nível inferior ao longo da cadeia produtiva, de maneira que cada nível de terceirizada precisa diminuir seus custos em relação ao nível superior. Ao longo e ao final da cadeia, o trabalhador estará sujeito a relações críticas de servidão (BERNARDO, 2009BERNARDO, M.H. Trabalho duro, discurso flexível: uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.). Para ilustrar, é Marcelino (2002MARCELINO, P.R.P. A logística da precarização: terceirização do trabalho na Honda do Brasil. 2002. 241 p. Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. 2002. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/279268 . Acesso em: 02/08/2017.
http://repositorio.unicamp.br/jspui/hand...
) que cita o caso de precarização do trabalho de terceirizados da Honda, indústria localizada no estado de São Paulo. A terceirização, usada fundamentalmente como uma estratégia de redução de custos, estabelece um novo padrão para os subcontratados diante da organização produtiva. Os 19 trabalhadores subcontratados entrevistados relatam, além da dificuldade de organização enquanto categoria, para a defesa de direitos, a falta de “estabilidade”, o registro em carteira como “operador de logística de materiais” para igualar salários por baixo, a impossibilidade de ascensão profissional, o desnível salarial em relação aos funcionários da Honda e o esgotamento físico e mental, pelo alto nível de pressão. A despreocupação moral com a diferença de salários, benefícios e outras concessões permeia a relação entre as duas empresas.

Nesse contexto, ainda se inscrevem os “trabalhadores temporários”. São aqueles usados para promover os ajustes em face de instabilidade da demanda feita à montadora e, por consequência, a suas “associadas”. Coriat, em sua obra já citada, tratando do toyotismo, anota que

[...] são evidentemente os trabalhadores sob regime de contratos temporários que pagam o preço destes ajustes. O Diário de um operário sazonal, de K. Satochi (1977) fornece um testemunho impressionante sobre a dureza das condições de trabalho (CORIAT, 1994CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad. E. S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994., p. 80).

Ao nos referirmos a terceirizações e parcerias, estamos tratando de um dos mais caros conceitos/ferramenta do toyotismo, o just-in-time, um dos “pilares de sustentação do sistema Toyota de produção”, segundo o seu criador (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 25). Sua característica distintiva é a formação de uma rede horizontal de fornecedores terceirizados, a título de “associadas”, em que tendencialmente todos esses aviltamentos do trabalho podem ser praticados. Vale dizer, praticados não por alguma distorção moral dos seus operadores, mas pela lógica da constante e sacralizada redução de custos, denominada eufemisticamente de “eliminação do desperdício” - pedra de toque do toyotismo, segundo as palavras do próprio Ohno em sucessivas passagens, algumas já nossas conhecidas: “A base do sistema Toyota de produção é a absoluta eliminação do desperdício” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 25); “Capacidade atual = trabalho + desperdício” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 39); “Na verdade, sempre digo que a produção pode ser feita com a metade dos operários” (OHNO, 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 124). Em síntese,

No sistema Toyota de produção pensamos economia em termos de redução da força de trabalho e de redução de custo. A relação entre esses dois elementos fica mais clara se considerarmos uma política de redução da mão de obra como um meio para conseguir redução de custo (OHNO 1997OHNO, T. O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Bookman. (Obra original publicada em 1975), 1997., p. 69).

É esta lógica que constitui o trabalho exaustivo pela intensidade e pressão e o trabalho degradante, pela exigência imposta aos fornecedores terceirizados de custos cada vez mais baixos. Um contingente de trabalhadores cada vez menor, para uma massa de trabalho cada vez maior. Não é por outra razão que antes de Gounet se referir ao sistema Toyota como “o gerenciamento by stress”, já se olhava a montadora japonesa como Toyota, l’usine du désespoir (1976), denominação de uma das obras de Kamata Satoshi sobre o tema, “cujo título, admitamos, fala por si próprio”, segundo o comentário de Coriat se referindo ao livro (CORIAT, 1994CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad. E. S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994., p. 110). A obra de Satoshi foi publicada no Brasil sob o título de Japão: a outra face do milagre (1985SATOSHI, K. Japão: a outra face do milagre. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.), chamada tão sugestiva quanto aquela da edição francesa. É um livro escrito por um jornalista que não só entrevistou trabalhadores, como vivenciou por sete meses a condição de operário sazonal na Toyota. São testemunhos diretos das “[...] jornadas de trabalho prolongadas, falta de proteção social, insalubridade, entraves à vida sindical, superexploração dos trabalhadores”, como se lê na apresentação da edição brasileira.

É dessa maneira que o modelo toyotista dialoga com a escravidão contemporânea. No seu próprio sistema e espaço, de modo concreto, e enquanto discurso formador de uma consciência social em que se erigem à eficiência procedimentos que ignoram os limites e o caráter humanos do trabalho - a exemplo do que se conheceu no modo de produção escravagista.

Conclusão

As formas degradantes de trabalho e o trabalho exaustivo fazem parte da história do trabalho, em todos os modos de produção que sucederam as formas primitivas de sobrevivência. Mas também é verdade que no decorrer do tempo se inscrevem na história muitos esforços práticos e teóricos no sentido de dar ao trabalho condições de menor sofrimento e maior dignidade.

É por esses esforços que se chegou a um sistema de regulação em que o trabalho passou a ser protegido, como parte de uma lógica em que razões humanistas e razões pragmáticas, relacionadas com o desenvolvimento econômico e disputas ideológicas, se tornaram determinantes. Motivações religiosas e políticas, éticas e administrativas, econômicas e sociais, foram se reunindo para fortalecer os instrumentos que fizeram do trabalho e do trabalhador objeto e sujeito a serem respeitados e protegidos.

As teorias organizacionais, a partir das críticas de Mary Parker Follet, avançando pela Escola das Relações Humanas e seus sucessores, trataram o tema, imprimindo nas relações de trabalho preocupações no mesmo sentido. Em certa medida, essas teorias associaram produtividade ao bem-estar do trabalhador e ao seu sentimento de adesão em face da organização. Isto inspirou, em particular, teorias da motivação e quase sempre formulações que jogam com valores ideológicos, metáforas e analogias com o objetivo de induzir os trabalhadores à ação e à cooperação.

Essa regulação, que talvez tenha alcançado o seu ponto máximo no Welfare State, foi acompanhada de legislação e fiscalização, além da criação de organismos nacionais e internacionais de atenção para com as condições de trabalho.

As crises econômicas que se sucederam a partir dos anos 1970 trouxeram em especial o questionamento da base técnica fordista e desse sistema de regulação que melhor lhe correspondia, onde se inseriam as políticas sociais de um modo geral e nela a valorização do trabalhador.

Duas correntes de pensamento administrativo emergem nesse novo contexto: a administração flexível e o toyotismo, este advindo da experiência singular do Japão dos anos 1950, como o próprio Ohno, seu criador, explica ao se referir aos problemas da empresa, à demissão de centenas de trabalhadores e às demandas da Guerra da Coréia (1950-1953).

As concepções expressas nas duas correntes, administração flexível e toyotismo, têm em comum a inovação e a diversidade - obsolescência ultra-rápida e grande variedade dos produtos - constituindo uma unidade que se colocou, se não como substituta do fordismo, como protagonista teoricamente hegemônica, justificando a referência a uma era industrial pós-fordista.

Nessas condições que o toyotismo se destaca como base técnica e exerce, sob título de modelo japonês, grande influência sobre a administração, em particular sobre a administração da produção. As concepções toyotistas são recepcionadas pelas escolas de gestão, pela imprensa especializada e pelas empresas. Dentre essas concepções, destacam-se a multifuncionalidade e o just-in-time, ambas as concepções associadas a corte de custos - pedra angular da lucratividade da empresa ou das empresas, como vimos repetidamente nas palavras de Ohno. Seja a multifuncionalidade, com sua falta de limites para as possibilidades do trabalhador - enquanto variedade de processos e enquanto jornada intensiva - como o just-in-time, como gerador de uma cadeia externa de fornecedores/parceiros/associados, ambos os métodos concorrem, sob a exigência do corte de custos, para a exaustão e a degradação.

A partir das análises sobre o trabalho escravo contemporâneo e sobre a teoria e práticas toyotistas de gestão, dizemos que esses modelos adotam mecanismos de controle, de obtenção da produtividade e de intensidade do trabalho que dialogam entre si. Além disto, ambos se beneficiam pela naturalização e pela aparência de condição técnica do trabalho contemporâneo (resiliência) atribuída à relação de servidão, facilitada pelo contexto de desemprego e aguda instabilidade em que vivem os trabalhadores na atualidade.

Por outro lado, a caracterização do trabalho escravo contemporâneo no presente ganhou traços mais bem definidos. Deve-se isto ao empenho de teóricos, cuja preocupação com o sofrimento no trabalho, vem destacando essa condição, às instituições que denunciam e combatem a situação em inúmeros países e finalmente acrescenta-se a contribuição jurídica oferecida pela lei e pelos operadores do direito.

A administração tanto ou mais que outros campos do conhecimento, como a economia, a psicologia organizacional e a sociologia industrial, tem historicamente relevante função no desenvolvimento do trabalho, seja como técnica, seja como dimensão das relações sociais. A obtenção da produtividade e da cooperação tem sido para a administração objetivos permanentes e suas formulações exercem maior influência na sociedade do que se presume à primeira vista. A importância do trabalho, como fonte de sobrevivência e de riqueza, o engrandecimento do mercado, enquanto referência para o estudo e a vida social, o significado das empresas nesse contexto fazem da administração e dos seus postulados objetos de interesse geral. Inúmeras obras teóricas e de popularização, revistas e jornais especializados, acompanhados por seções em jornais diários, além das universidades, tratam de modelos e ferramentas de gestão. A preocupação com as ideias e as práticas difundidas e adotadas nas empresas é, portanto, uma necessidade que extrapola a esfera da produção. Além disto, algumas vezes essas ideias e práticas são formuladas e exercidas sem que se suponha o deslizamento a que podem chegar. É nesse sentido que a crítica ao toyotismo, e particularmente a identificação de concepções nele presentes que concorrem para a exaustão e a degradação do trabalho escravo contemporâneo, se inscrevem como uma advertência para todos nós que convivemos com (e como) gestores ou futuros gestores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2017
  • Aceito
    05 Out 2017
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