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Dinâmicas da Vida Social Organizada de Homens Gays em Aplicativos de Relacionamento

Resumo

As formas que a tecnologia tem assumido na contemporaneidade são tão variadas quanto onipresentes, tendo alterado as formas de vida em sociedade – contexto de crescente mediação das relações sociais pela tecnologia, que parece complementar as interações face a face ao estabelecer novas modalidades de existência social. Neste artigo, o objetivo é problematizar as dinâmicas da vida social organizada em aplicativos de relacionamento em torno de quatro eixos básicos: virtualidade, sociabilidade, estereotipagem e violência. O estudo se baseia em uma pesquisa de inspiração indutiva com usuários do Grindr na cidade de Belo Horizonte, Brasil. Os dados sugerem que a virtualidade implica superficialidade e descartabilidade das relações, levando a uma sociabilidade efêmera na qual a estereotipagem é empregada ostensivamente para acelerar a dinâmica ao atribuir preconceitos aos demais usuários. Tais aspectos se concretizam em práticas variadas e sistemáticas de violência, algo comum no contexto do aplicativo estudado. As principais conclusões apontam que a vida social organizada humaniza a análise organizacional, avançando em relação ao conceito de organização ao humanizar o processo e incluir as formas de organizar praticadas pelos grupos sociais, o que inclui situar o pesquisador em um processo no qual ele próprio é implicado, politizando a produção do conhecimento.

vida social organizada; aplicativos de relacionamento; gays; Grindr

Abstract

The forms technology has assumed in contemporaneity are as varied as they are ubiquitous. They have transformed the ways of living in society in a context of increasing mediation of social relations by technology, which seems to complement face-to-face interactions by establishing new social existence modalities. This article aims to discuss the dynamics of social life organized on dating apps around four basic axes: virtuality, sociability, stereotyping, and violence. The study is based on an inductively inspired survey of users of the Grindr app in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. The data suggest that virtuality implies superficiality and a disposable attitude to relationships, which lead to a form of ephemeral sociability in which stereotyping is ostensibly employed to accelerate the dynamic by attributing preconceptions to other users. Indeed, these aspects are materialized as varied and systematic violence practices, which are frequent in the context of the investigated application. The main conclusions reveal that organized social life humanizes organizational analysis and advances the concept of organization by humanizing the process and including the ways of organizing practiced by social groups. This includes situating the researcher in a process that implicates them and politicizes knowledge production.

organized social life; dating apps; gay men; Grindr

Introdução

As formas que a tecnologia tem assumido na contemporaneidade são tão variadas quanto onipresentes, tendo alterado as formas de vida em sociedade – contexto de crescente virtualização que parece complementar as interações face a face, estabelecendo novas modalidades de existência social ( Ahlm, 2017Ahlm, J. (2017). Respectable Promiscuity: Digital Cruising in an Era of Queer Liberalism. Sexualities, 20 (3), 364–379. doi:10.1177/1363460716665783
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). O que se apresenta como potência, contudo, também precisa ser problematizado, em particular a respeito do distanciamento físico entre as pessoas e seu relacionamento virtual intermediado pela tecnologia. É o que se pretende discutir neste artigo, tomando como referência as dinâmicas da vida social organizada de homens gays por meio de aplicativos de relacionamento ( hook-up apps ).

A virtualização das interações sociais se insere no campo dos estudos organizacionais à medida que se adotam outras concepções do organizacional, para além da grande empresa capitalista industrial. Nesse sentido, emprega-se a perspectiva da vida social organizada, que “se refere a como os distintos grupos sociais põem em prática a organização de suas múltiplas formas de existência em sociedade” ( Saraiva, 2020Saraiva, L. A. S. (2020). Diferenças e territorialidades na cidade como ponto de partida. In L. A. S. Saraiva (Org.), Diferenças e territorialidades na cidade (pp. 11-29). Ituiutaba, MG: Barlavento. , p. 13). Em um quadro no qual o virtual posa como inevitável apêndice da contemporaneidade, os aplicativos de relacionamento, em tese, podem permitir novas relações, proporcionando o acesso simultâneo a possibilidades de interação com pessoas com as quais talvez não se teria contato social efetivo, de entretenimento, considerando que as interfaces de tais aplicativos são convidativas e intuitivas ( Padilha, 2015Padilha, F. (2015). Isto não é um manual de instruções: notas sobre a construção e consumo de perfis em três redes geossociais voltadas ao público gay. Norus – Novos Rumos Sociológicos, 3 (3), 72-104. doi:10.15210/norus.v3i3.6365
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), e de inclusão social, uma vez que pode haver contato entre pessoas que estariam eventualmente excluídas de determinados contextos sociais e, claro, de possibilidades de encontros sexuais – talvez seu grande propósito (Licoppe, Rivière, & Morel, 2015). Há um modo específico de tais aplicativos que se apresenta como uma forma de “convite” para a navegação, uma espécie de “prévia” do tipo de pessoas que eventualmente podem ser encontradas com o consumo do app . E ele termina por produzir entre muitos usuários o mesmo tipo de “afirmação identitária performativa que cola os sujeitos a uma identidade de gênero (homem) e sexual (gay/homossexual) que aciona um imaginário estético e ético sobre ‘como ser gay’” ( Padilha, 2015, pPadilha, F. (2015). Isto não é um manual de instruções: notas sobre a construção e consumo de perfis em três redes geossociais voltadas ao público gay. Norus – Novos Rumos Sociológicos, 3 (3), 72-104. doi:10.15210/norus.v3i3.6365
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, p. 98).

Todavia, os contatos por meio de aplicativos de relacionamento não têm alterado as formas hegemônicas de sociabilidade ( Miskolci, 2009Miskolci, R. (2009). O armário ampliado: notas sobre sociabilidade homoerótica na era da Internet. Gênero, 9 (2), 171-190. Retrieved from https://bit.ly/3Ukqvzg
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) – isto é, heterossexuais, regidas pela moral cristã e por uma lógica de casamento entre pessoas de sexo biológico diferente, entre outros aspectos –, já bastante “líquidas”, conforme Bauman (2008Bauman, Z. (2008). Vida para consumo . Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , 2021Bauman, Z. (2021). Amor líquido (2nd ed). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ). Diversos estudos têm confirmado a persistência e a migração das mesmas lógicas de heteronormatividade, de misoginia e de desapego emocional vigentes na sociedade para o ambiente virtual, como no estudo de Saraiva, Santos e Pereira (2020). Isso implica tais apps serem limitados para a construção de contextos sociais para os usuários distintos dos que eles experimentam em sociedade. Sua lógica se assenta em uma perspectiva de aproximação entre “diferentes” que buscam uma “normalidade” aplicável a poucos sujeitos, disputados de forma generalizada. Essa valorização de um perfil hegemônico – branco, jovem, magro, másculo, sem deficiências físicas, de classe média, só para ficar em alguns aspectos – estabelece uma espécie de hierarquia e cria competição entre os diversos sujeitos, que examinam seus interlocutores à luz dessa régua e, a partir dela, definem prioridades, os perfis mais ou menos desejáveis e os corpos abjetos ( Butler, 2011Butler, J. (2011). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex” . Londres: Routledge. ; Foucault, 1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber . Rio de Janeiro, RJ: Graal. ). Não surpreende que os perfis publicados sejam parecidos entre si, apresentando atributos hegemonicamente valorizados, como peitoral desenvolvido, barba, praticantes de atividades físicas etc1 1 . A busca generalizada por usuários de um perfil hegemônico não é um exagero deste texto. Pesquisas realizadas em todo o mundo, como as de Anderson et al. (2018) e Raj (2011) , na Austrália, Jaspal (2016) , na Inglaterra, e Medeiros (2017) , Grohmann (2016) , Miskolci (2015) e Padilha (2015) , em diferentes partes do Brasil, demonstram que embora os algoritmos em si não definam perfis preferíveis a outros, eles reagem às preferências dos usuários dos aplicativos de relacionamento estudados. Isso não significa que não haja corpos abjetos, no sentido de Butler (2011) , entre os usuários; mas que tais usuários ocupam “nichos” específicos dentro de um grande grupo de usuários que reitera a preferência por um “corpo padrão”, isto é: de homens brancos, jovens, viris, magros, saudáveis etc. Não se trata, assim, de homogeneizar o desejo de todos homens gays, e tampouco de aproximá-lo de uma perspectiva cisgênera, mas de registrar nesta investigação, como em outras já citadas, que no âmbito desses aplicativos esse desejo se dirige de forma predominante a um determinado perfil, em detrimento dos demais. Isso não significa que outros corpos não sejam tanto destinatários de desejo quanto consumidores deste aplicativo, mas que seu papel é secundário, e isso não passou desapercebido aos olhos do mercado, que já explora o segmento em aplicativos voltados para homens mais velhos com o perfil de “ursos”, como o bearwww, o growlr, o w | bear, o bigger city e o daddy hunt, por exemplo. . (Moura, Nascimento, & Barros, 2017).

Neste artigo, o objetivo é problematizar, de forma reflexiva, as dinâmicas da vida social organizada em aplicativos de relacionamento em torno de quatro eixos básicos: virtualidade, sociabilidade, estereotipagem e violência. Por violência se entende “o uso intencional da força física ou do poder, ameaçado ou real, contra si mesmo, outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que ou resulta em ou tem uma alta probabilidade de resultando em ferimentos, morte, danos psicológicos, maldesenvolvimento ou privação” (World Health Organization [WHO], 1996, s.p., tradução nossa).

Defendem-se quatro pontos: em primeiro lugar, que a virtualidade, pela não existência “concreta” de um outro, como nas interações presenciais, desresponsabiliza os interlocutores, tornando mais aguda a velocidade e a descartabilidade das relações sociais porque as relações virtuais são “inferiores”. Em segundo lugar, a partir da permanência de alguns aspectos, a sociabilidade se torna um feixe de experiências momentâneas e substituíveis por novas experiências, dificultando formas de inclusão social. Com isso, reforçam, em um contexto virtual, a marginalidade das existências gays em sociedade. Em terceiro lugar, a forma pela qual a vida social se organiza em tais aplicativos erige e reforça a estereotipagem, que em boa parte define as relações que ali se passam; por fim, sustenta-se que se trata de um ambiente de violência, sendo as diferenças ressaltadas e não absorvidas, o que resulta na eleição de determinados aspectos como superiores, com efeitos violentos diversos para todos os usuários que não se encaixarem no que é “adequado”.

Da ordem social à vida social organizada

Vem da sociologia, das ideias de Émile Durkheim, a noção de ordem como estruturadora da vida em coletividade ( Souza, 2008Souza, R. L. (2008). A ordem e a síntese: aspectos da sociologia de Auguste Comte. Cronos, 9 (1), 137-155. Retrieved from https://bit.ly/3OMOQwD
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). O raciocínio é simples: para a vida social, é necessária uma ordem que assegure limites para os impulsos naturais individuais, e a obediência a esse ordenamento é o que garante a coesão social. O caos, entendido como “estado da ordem perturbada” ( Brüseke, 1991Brüseke, J. F. (1991). Caos e ordem na teoria sociológica. Revista de Ciências Sociais , 22 (1-2), 39-67. Retrieved from https://bit.ly/3u3GE1l
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, p. 41), se instala à medida que se ignora a ordem e as funções sociais que ela atribui aos membros de uma sociedade. Para evitar a anomia, assim, uma sociedade precisa adotar padrões que cumpram a função de ordenar socialmente, dividindo o trabalho e atribuindo funções, de forma que a cooperação permita uma convivência harmônica ( Merton, 1999Merton, R. K. (1999). Social Structure and Anomie. In S. H. Traub, & C. B. Little (Eds.), Theories of Deviance (5th ed). (pp. 142–174). Itasca: Peacock. ).

Apesar dos contornos rígidos dessa perspectiva, ela tem sido basilar para qualquer discussão a respeito do funcionamento social. Ordenar uma sociedade significa dispor de elementos que tornem possível a criação de padrões aos quais todos individualmente devem se ajustar em maior ou menor grau para a vida em coletividade ( Thorlindsson & Bernburg, 2004Thorlindsson, T., Bernburg, G. (2004). Durkheim's Theory of Social Order and Deviance: A Multi-Level Test. European Sociological Review, 20 (4), 271-285. doi:10.1093/esr/jch025
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). Pires (2012)Pires, R. P. (2012). O problema da ordem. Sociologia, Problemas e Práticas, 69 , 31-45. Retrieved from https://bit.ly/3VfybnW
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ressalta, contudo, que mudança não é “a passagem da ordem ao caos, mas a substituição de um sistema de ordem por outro sistema de ordem. . . é possível identificar, nos próprios processos de mudança, padrões (isto é, processos ordenados) de transformação, os quais devem ser analisados e explicados” (p. 31). A ordem não é objetiva e desinteressada, portanto, e há ordenamento no que é aparente desordem, o que evidencia os limites da perspectiva ordenadora de Durkheim.

O principal problema dessa perspectiva positivista de ordenamento é a definição de normas a respeito de como devem ser os sujeitos para um perfeito ajuste às suas funções sociais. A ordem em si significa a valorização sistemática de algumas características em prol de uma finalidade qualquer – em detrimento explícito ou implícito de outras. No caso da sociedade, isso permite criar uma “normalidade”, perspectiva perigosa à medida que diferencia e hierarquiza pessoas de acordo com sua aproximação ou seu afastamento do que é esperado no ordenamento social. A homogeneidade e a uniformidade defendidas por Durkheim (2016), entretanto, não definem o que uma sociedade é; não há “normal”, “normalidade” ou nada do gênero senão enquanto elementos de controle e coerção dos sujeitos no âmbito da vida em sociedade. Os limites da noção de ordem, assim, já começam pela perspectiva de “normalizar” algo à medida que as diferenças são submetidas a uma forma de sistematização, o que pode originar esquemas de classificação, categorização e hierarquização de ideias, lugares e pessoas, como o racismo, o machismo, a xenofobia, a LGBTfobia2 2 . Em face da constante polêmica constante em torno das iniciais das letras que sintetizariam a “comunidade” LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros), que periodicamente vê a sigla aumentar de nome em função de demandas de segmentos não representados, optamos por manter não apenas o termo estabelecido desde o final dos anos 1980, mas amplamente negociado com o ativismo. Os demais termos, como LGBTQ (que procura incluir pessoas queer ), LGBTQI (pessoas intersexuais), LGBTQIA (pessoas assexuais, arromânticos ou simpatizantes – e aliados), LGBTQIAPN (pessoas pansexuais, polissexuais e não binárias) e LGBTQIAP+ (quaisquer outras pessoas que não se sintam incluídas em nenhuma das outras iniciais da sigla), ainda que sem dúvida legítimos, não foram desconsiderados em suas particularidades, mas considerados cobertos pelo termo já estabelecido e negociado. etc.

Entretanto, não se nega que a noção de ordem seja importante para pensar a organização e termos hegemônicos nos estudos organizacionais. Não se trata de sinônimos, mas de ideias associadas e que merecem um exame mais atento. Embora tenha pretensão universal, a ordem social em si não é suficiente para dar conta de toda a complexidade dos sujeitos nas suas microinterações, razão pela qual ela precisa do suporte de outro conceito: o de organização. É a organização que, no nível micro, vai configurar, de forma detalhada, o ordenamento social mais amplo. Ela se vale, para isso, de aparatos propriamente organizacionais, como o planejamento, a organização, a direção e o controle, familiares à administração. Esses aspectos não apenas revelam o caráter funcional da administração como a associam a uma inescapável finalidade de ordenar, o que quer que exista, de forma técnica e descontextualizada, no nível micro. E essa “função social” evoluiu para que a administração se tornasse, de forma simultânea, quatro formas de saber:

prática, ciência, produto e ideologia, que se alimentam mutuamente uma da outra. Foi a necessidade de ter práticas mais racionais que levou à sistematização de informações, que logo extrapolariam o status de conhecimento teórico e se tornariam produtos a serem comercializados na forma de soluções diversas para os problemas organizacionais. Além disso, a Administração constitui uma ideologia poderosa, que tem se apresentado como imprescindível e incontornável, como se o capitalismo a apontasse como único meio possível pelo qual as coisas podem ser levadas a cabo, silenciando sobre todas as possibilidades não administrativas de organizar ( Saraiva, 2021Saraiva, L. A. S. (2021). Da homogeneidade da técnica à pluralidade das diferenças na formação de administradores . Artigo apresentado no 12o Congresso de Administração e Contabilidade, Rio de Janeiro, RJ. , p. 2).

Para o que interessa a este texto, historicamente, terminou sendo estabelecida a hegemonia do que se toma por organização, como a articulação de recursos para o alcance de uma finalidade econômica. Com isso, os estudos organizacionais se candidatam quase que “naturalmente” a serem funcionais, porque esse é o ponto de partida da noção de organização. Todavia, há um crescente grupo de pesquisadores que questiona esse conceito e apresenta outras possibilidades de organizar, adotando perspectivas teóricas como as práticas organizativas e a vida social organizada, esta última sobre a qual este artigo se debruça. Sem abandonar a ideia de ordem, mas reposicionando-a no campo da microexistência social, Saraiva (2020Saraiva, L. A. S. (2020). Diferenças e territorialidades na cidade como ponto de partida. In L. A. S. Saraiva (Org.), Diferenças e territorialidades na cidade (pp. 11-29). Ituiutaba, MG: Barlavento. , p. 13) sustenta que vida social organizada se refere

a como os distintos grupos sociais põem em prática a organização de suas múltiplas formas de existência em sociedade. Isso implica considerarmos as diversas concepções e práticas pelas quais esses grupos planejam, organizam, controlam, representam, ressignificam, resistem, narram e preservam a suas histórias e memórias, só para ficar em algumas dimensões, levando a cabo dinâmicas plurais e construídas em diversos sentidos.

Não se trata, assim, de uma ideia dirigida por uma finalidade: as pessoas põem em prática diversas formas de organizar, e isso se refere a eventos variados com que têm de lidar em um fluxo dinâmico e plural. Distante do que se ensina nas universidades, os grupos sociais redefinem o que é planejar e organizar, por exemplo, à luz de referenciais definidos pelas suas vidas sociais concretas. São as existências, em todas as suas diferenças no infinito humano, que conferem sentido de ação a ideias muitas vezes tratadas como constructos estáveis e indiscutíveis ( Deleuze, 2018Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição . Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. ). As diferenças no existir implicam ajustes no que se toma como real, e em como esse real permite construir e desconstruir práticas – inclusive as de organizar – à luz da dinâmica de uma vida social. Trata-se, assim, de verbos, mais do que substantivos, porque os grupos, tendo em vista os elementos do mundo concreto que os cercam, praticam sua própria ordem, organizando-se, de forma dinâmica, em ação e reação ao ambiente. Saraiva prossegue dizendo que:

Adotar o ponto de vista da vida social para compreender o organizar em suas práticas amplia significativamente o que se toma como o campo dos Estudos Organizacionais, porque passa a considerar os diversos ordenamentos a que os grupos em sociedade adotam e com os quais têm de lidar. Inclui as relações – que podem ser de convergência e/ou de divergência, em diversos níveis – com práticas organizativas adotadas por outros grupos sociais e também com aspectos institucionalizados e válidos para todos os grupos sociais. ( Saraiva, 2020Saraiva, L. A. S. (2020). Diferenças e territorialidades na cidade como ponto de partida. In L. A. S. Saraiva (Org.), Diferenças e territorialidades na cidade (pp. 11-29). Ituiutaba, MG: Barlavento. , p. 13)

Como as referências aqui se distanciam das de ordem social de Durkheim, não se está diante de uma vida social organizada homogênea e harmoniosa, muito pelo contrário. Sob a perspectiva da administração, ela pode mesmo ser considerada caótica, tendo em vista que não há um ponto de partida comum, exceto a vida que se leva em coletividade. Esperar por objetivos definidos, uma disposição ordenada de recursos, divisão do trabalho e acompanhamento dos processos, como em uma organização disposta de modo funcional, não cabe no contexto da vida social organizada. Isso não significa que alguns grupos não possam organizar a dinâmica de suas práticas de forma funcional, ou que não haja a eventual incorporação de saberes oriundos da gestão ensinada na universidade; mas isso não tem caráter central, perene ou tampouco universal, sendo o processo sujeito a alterações contínuas, leves e profundas, lentas e rápidas, simples e complexas, que podem mudar radicalmente os propósitos originais – desafiando uma perspectiva clássica do que se toma por “organização”. Isso em parte explica a frustração de muitos acadêmicos, munidos de racionalidade econômica sub-reptícia e arrogância social e intelectual não assumida, quando falham ao procurar “organizar as coisas” em seus contatos com grupos sociais. Há nesses grupos uma vida social organizada na qual não são centrais as referências naturalizadas na universidade, o que propicia a observação intempestiva de conflitos dos pontos de vista social, prático, político e epistêmico.

Ao se falar sobre vida social organizada, portanto, se abre para o que é perpetrado, de fato, pelas pessoas no seu contexto cotidiano de existência ( Carrieri, 2014Carrieri, A. P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1 (1), 21-64. Retrieved from https://bit.ly/3F6VIS8
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). Trata-se de como se organiza a ação de forma coletiva no nível microssocial, mesmo que isso possa parecer não racional, incoerente, pouco produtivo etc. Não é a racionalidade econômica que predomina aqui, mas outras racionalidades, com feixes de práticas que adquirem sentidos coletivos mobilizados como forma de lidar com as configurações de um dado modo de vida social. Como se trata do que é praticado no âmbito da vida em sociedade, se o foco se refere à vida mediada pela tecnologia, como no caso de aplicativos de relacionamento, também é plausível esperar que haja formas de organização postas em prática, associadas a uma dada forma de existência naquele contexto de interação social, conforme será a seguir discutido.

Os aplicativos de relacionamento e as novas (?) relações sociais

Não são poucas as evidências de que os aplicativos de relacionamento trouxeram uma dinâmica de aceleração para as relações sociais à medida que as ressituaram no mundo tecnológico em termos de velocidade ( McQuire, 2011McQuire, S. (2011). A casa estranhada. Eco-Pós, 14 (1), 195-232. Retrieved from https://bit.ly/3u6rvMN
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) e de relações com a máquina ( Turkle, 2005Turkle, S. (2005). The Second Self: Computers and the Human Spirit . Nova Iorque: MIT Press. ), um processo complexo com desdobramentos múltiplos. Ao integrar recursos anteriores existentes, como as salas de bate-papo ( chats ), e os mecanismos de busca de parceiros, e acrescentando-lhes outras funcionalidades, como a geolocalização em tempo real, esses apps se inserem em um quadro de referência mais amplo de sociabilidade, marcada por aspectos identitários ( Jaspal, 2016Jaspal, R. (2016). Gay Men’s Construction and Management of Identity on Grindr. Sexuality & Culture, pp. 21 , 187–204. doi:10.1007/s12119-016-9389-3
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), estéticos (Anderson, Holland, Koc, & Haslam, 2018), sociológicos ( Padilha, 2015)Padilha, F. (2015). Isto não é um manual de instruções: notas sobre a construção e consumo de perfis em três redes geossociais voltadas ao público gay. Norus – Novos Rumos Sociológicos, 3 (3), 72-104. doi:10.15210/norus.v3i3.6365
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, econômicos ( Raj, 2011)Raj, S. (2011). Grinding Bodies: Racial and Affective Economies of Online Queer Desire. Critical Race and Whiteness Studies, 7 (2), 1–12. e enraizados na cultura urbana, promovendo alterações na paisagem da cidade, conforme discutem Renninger (2018)Renninger, B. J. (2018). Grindr Killed the Gay Bar, and Other Attempts to Blame Social Technologies for Urban Development: A Democratic Approach to Popular Technologies and Queer Sociality. Journal of Homosexuality, 66 (12), 1736-1755. doi:10.1080/00918369.2018.1514205
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e Jaque (2017)Jaque, A. (2017). Grindr Archiurbanism. Log, 41 , 75-84. Retrieved from https://bit.ly/3ikGJLo
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.

A partir de uma investigação sobre homens gays e bissexuais mexicanos usuários do Grindr recém-chegados dos Estados Unidos, Lennes (2021Lennes, K. (2021). Queer (Post-)Migration Experiences: Mexican Men’s Use of Gay Dating Apps in the USA. Sexualities, 24 (8), 1003-1018. doi:10.1177/1363460720944591
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, p. 1015) verifica que o contexto de inserção de um outro país, embora aparentemente amenizado pelas promessas de encontros com outros homens, revela-se como um elemento que, mesmo trabalhando em uma lacuna de sociabilidade, termina por influenciar o processo de integração do migrante, permitindo escapar do “ciclo restritivo da diáspora”, com o redimensionamento de aspectos como intimidade, sociabilidade e sexualidade. Em outro contexto, no de deslocamento associado ao turismo, Vorobjovas-Pinta e Dalla-Fontana (2019), a partir de uma etnografia em um resort australiano, identificaram que o uso de aplicativos de relacionamento se liga a uma lógica de aumento de opções de interação, inclusive sexual, reproduzindo formas de sociabilidade já empregadas pelos usuários em suas vidas regulares. Os autores destacam que não se pode perder de vista que as possibilidades de uso do aplicativo estão associadas a aspectos como renda, o que pede cautela quanto a pensar que qualquer homem gay pode viajar e fazer uso dos mesmos recursos.

No que se refere às pessoas LGBT, em um texto bastante conhecido, Miller (2015)Miller, B. (2015). “They’re the Modern-Day Gay Bar”: Exploring the Uses and Gratifications of Social Networks for Men Who Have Sex With Men. Computers in Human Behavior, 51 (A), pp. 476–482. doi:10.1016/j.chb.2015.05.023
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caracteriza aplicativos de relacionamento como o “bar gay moderno”, uma vez que permitem virtualmente fazer quase tudo que seria possível em um bar, o que tem levado a um esvaziamento desse tipo de estabelecimento. Saraiva et al. (2020)Saraiva, L. A. S., Santos, L. T., Pereira, J. R. (2020). Heteronormativity, Masculinity and Prejudice in Mobile Apps: The Case of Grindr in a Brazilian City. Brazilian Business Review, 17 (1), 114-131. doi:10.15728/bbr.2020.17.1.6
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, a partir do contexto brasileiro, concordam em parte com tal visão ao destacarem os elementos de comodidade para o usuário e de proteção, “pois como o Brasil é o país onde mais se mata a população LGBT, não sair de casa pode ser, acima de tudo, seguro – mesmo que isso implique invisibilização e sigilo – e, com isso, retrocesso” (p. 122). Renninger (2018)Renninger, B. J. (2018). Grindr Killed the Gay Bar, and Other Attempts to Blame Social Technologies for Urban Development: A Democratic Approach to Popular Technologies and Queer Sociality. Journal of Homosexuality, 66 (12), 1736-1755. doi:10.1080/00918369.2018.1514205
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, assume um tom crítico quanto ao argumento, problematizando a dinâmica espacial LGBT nas cidades. Se algumas décadas atrás saunas e bares gays eram lugares relativamente seguros porque permitiam a livre expressão de um grupo oprimido, o avanço dos movimentos sociais, associado a evidências do potencial do consumo desse segmento, criou outras dinâmicas nas cidades, nas quais a presença de gays está associada à valorização de propriedades e à gentrificação urbana ( Gorman-Murray, 2016Gorman-Murray, A. (2016). Gay gentrification. In A. E. Goldberg (Ed.), The Sage Encyclopaedia of LGBTQ Studies (pp. 434–435). Londres: Sage. ) – o que Christafore e Leguizamon (2018)Christafore, D., Leguizamon, S. (2018). Is “Gaytrification” a Real Phenomenon? Urbain Affairs Review, 54 (5), 463-491. doi:10.1177/1078087416682321
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chamam de gaytrification –, que podem ser observadas nos bairros de Castro, em São Francisco ( Boyd, 2011Boyd, N. A. (2011). San Francisco’s Castro District: From Gay Liberation to Tourist Destination. Journal of Tourism and Cultural Change, 9 (3), 237–248. doi:10.1080/14766825.2011.620122
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), no Brooklyn, em Nova Iorque ( Gieseking, 2013Gieseking, J. J. (2013). Queering the Meaning of ‘Neighbourhood’: Reinterpreting the Lesbian-Queer Experience of Park Slope, Brooklyn, 1983-2008. In M. Addison, & Y. Taylor (Eds.), Queer Presences and Absences (pp. 178-200). Nova Iorque: Palgrave Macmillan. ), e no Marais, em Paris ( Giraud, 2009Giraud, C. (2009). Les Commerces gays et le processus de gentrification: L’exemple du quartier du Marais à Paris depuis le début des années 1980. Métropoles, 5 , 79-115. doi:10.4000/metropoles.3858
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). Quando o assunto é consumo, o mercado LGBT é bastante atrativo, sendo pródigo em novidades, como é o caso dos aplicativos de relacionamento.

O Grindr foi o primeiro e permanece como o mais popular aplicativo voltado à promoção de encontros entre gays, bissexuais e transexuais, embora tenha vários concorrentes, como o Scruff, o Tinder e o Badoo. Ele se baseia na perspectiva de localização espacial em tempo real, permitindo gratuitamente, mesmo na sua versão mais simples, que usuários possam interagir uns com os outros em modalidades de uso e de interação variadas (Grindr, 2021; Gudelunas, 2012Gudelunas, D. (2012). There’s an App for That: The Uses and Gratifications of Online Social Networks for Gay Men. Sexuality & Culture, 16 (4), 347-365. doi:10.1007/s12119-012-9127-4
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; Miller, 2015Miller, B. (2015). “They’re the Modern-Day Gay Bar”: Exploring the Uses and Gratifications of Social Networks for Men Who Have Sex With Men. Computers in Human Behavior, 51 (A), pp. 476–482. doi:10.1016/j.chb.2015.05.023
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). Apesar de ser apresentado como um meio prático para proporcionar encontros, não se deve perder de vista que este aplicativo é um produto, tendo preenchido uma lacuna de mercado. Não obstante tratá-los como usuários, seu público é, a rigor, de consumidores que o utilizam, seja no formato, na linguagem, por meio de versões pagas mais completas do aplicativo, seja dos produtos e serviços de parceiros anunciados para aquele público. Esse caráter comercial não deve ser perdido de vista para evitar despolitização desse fenômeno, de que se trata de uma relação entre oferta e demanda na qual a tecnologia ocupa papel de mediadora de relações sociais que são, antes de qualquer coisa, econômicas.

Os usuários contribuem para alimentar a lógica do sistema ao se colocarem como produtores de um conteúdo que precisa ser consumido pelos demais usuários. E como isso ocorre? De muitas maneiras: em descrições picantes que despertem o interesse pela interação; em fotos de corpo e, principalmente, de partes do corpo que publicizem os “atrativos” do usuário; no uso de emojis que sintetizem preferências e predisposições, como abertura para o sexo sem preservativo, para o uso de drogas, para a possibilidade de receber visitas para encontros sexuais, por exemplo (Blackwell, Birnholtz, & Abbott, 2015). Em qualquer uma das possibilidades apresentadas, que não esgotam as dinâmicas dos aplicativos, o que se percebe é um processo de engajamento ativo dos usuários na produção de impressões que favoreçam sua apreciação e consumo pelos demais.

Esse olhar serve de guia para ajudar a perceber toda uma engrenagem capitalista associada à crescente importância dos hook-up apps entre boa parte dos homens gays. Autores como Illouz (2011)Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo . Rio de Janeiro, RJ: Zahar. chegam mesmo a dizer que as formas de amor, o que inclui heterossexuais, se veem mediadas por uma tecnologia que torna pragmáticas, apresentáveis e consumíveis as interações no contexto virtual. Não se trata de uma coincidência que o avanço da tecnologia tenha chegado à comunidade LGBT, mas de uma questão de mercado. Mercado este que, nesse momento do capitalismo de plataforma, se vale de algoritmos para definir a dinâmica dos ambientes virtuais, um processo complexo que precisa ser interrogado nos níveis da tecnologia, do uso contextual e da política quanto a quem são os envolvidos, por que as coisas são feitas como são, com quais implicações e para quem, conforme aponta Dutton (2013)Dutton, W. H. (2013). Internet Studies: The Foundations of a Transformative Field. In W. H. Dutton (Ed.), The Handbook of Internet Studies (pp. 1-27). Oxford: Oxford University Press. . Estabelecidos esses pontos de partida, há um fenômeno extraordinário, complexo e polifônico em curso, o qual, apesar de ter recebido bastante atenção, ainda tem muito mais a ser desvendado. Os aspectos mais evidentes do consumo e da interação social se complexificam à medida que se percebem diferenças nas formas de uso dos aplicativos de relacionamento, o que confere muitas nuances para a observação do que ali se passa.

Metodologia

A partir de um método de inspiração indutiva, esse estudo foi baseado em uma pesquisa de maior porte iniciada em 2019 e ainda em curso, levada a cabo com usuários do Grindr na cidade de Belo Horizonte (MG), Brasil. Em uma empreitada desse tipo, é fundamental fazer e assumir escolhas metodológicas, que por sua vez terminam por caracterizar um determinado percurso de pesquisa. A investigação, com coleta de dados junto a usuários, foi realizada até o momento em duas fases: a primeira, por meio de interações no chat do aplicativo, obedeceu a um roteiro semiestruturado de entrevistas, tendo sido realizadas 32 interações. A segunda, por meio de histórias de vida, cujos dados não serão tratados neste texto, se baseou em vários encontros individuais em profundidade abordando diversas fases e temas da vida dos entrevistados, sem um roteiro específico.

Na fase de entrevistas, que durou aproximadamente quatro meses, o perfil usado para as interações se identificava como pesquisador e apresentava uma breve descrição da investigação, de forma que não se chegava até o perfil por engano. Após um breve período em que tínhamos uma postura de busca ativa de participantes, o que se revelou infrutífero, alteramos a descrição do perfil, tornando-o mais convidativo para a participação na pesquisa e explicitando o convite aos usuários para participar. Os entrevistados, assim, se colocaram à disposição da pesquisa. Deixá-los cientes da natureza das interações seguiu os passos de Braz (2010)Braz, C. A. (2010). À meia-luz – uma etnografia imprópria em clubes de sexo masculinos (PhD Thesis). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. como um elemento essencial da pesquisa. Todos os entrevistados se autodeclararam homens gays cisgêneros, e com faixa etária predominante entre 18 e 37 anos. Não conseguimos informações sobre raça, renda e demais aspectos demográficos, o que acreditamos que se relaciona à forma de obtenção dos dados, por meio dos chats do aplicativo.

Nas entrevistas, todos os usuários foram avisados que se tratava de uma interação associada a uma pesquisa, e seus depoimentos foram coletados com sua autorização explicitada no próprio chat do app . Todavia, pelas características do meio em que os dados foram produzidos, não foi possível trabalhar com documentos como um termo de consentimento livre e esclarecido, usado em investigações com seres humanos. Contudo, o fato de não contarmos com suas assinaturas em um documento formal não invalida os dados3 3 . O processo de submissão de uma pesquisa ao conselho de ética possui inadequações que, na universidade que abrigou a pesquisa, impedem seu registro. Assume-se que as formas de interação entre pesquisadores e pesquisados serão presenciais, e que outras formas de interação precisam seguir os mesmos passos formais de uma pesquisa convencional. Tal procedimento é rigorosamente inadequado para incorporar novas possibilidades metodológicas porque ignora outros meios e dinâmicas de método. Entre não realizar a pesquisa para esperar que a processualidade burocrática se atualize e realizá-la, preferimos concretizá-la, principalmente por conta da experiência da equipe de pesquisa com populações marginalizadas e em situação de vulnerabilidade, o que inclui práticas éticas de investigação e análise, o que se procurou trazer para este texto. , não apenas porque contamos sua autorização nos chats , mas por termos sido cuidadosos quanto à forma de divulgação. Assim, se eventualmente os dados parecerem vagos pela opção de não apresentarmos os fragmentos das entrevistas, além de esta ser uma opção analítica, como será explicado mais adiante, é uma forma de preservação do anonimato, aspecto fundamental para as interações qualificadas que tivemos.

Duas escolhas foram importantes quanto à produção de dados. Uma vez que os apps se referem a uma interação baseada em localização em tempo real ( Blackwell et al., 2015Blackwell, C., Birnholtz, J., Abbott, C. (2015). Seeing and Being Seen: Co-Situation and Impression Formation Using Grindr, a Location-Aware Gay Dating App. New Media & Society, 17 (7), 1117–1136. doi:10.1177/1461444814521595
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), o local em que se está é um fator-chave para a interação entre os usuários. Isso significou para a pesquisa o motivo pelo qual, para evitar distorções, o aplicativo foi acionado em partes diferentes da cidade de Belo Horizonte em termos geográficos e demográficos, de maneira a permitir o acesso a perfis mais variados. A segunda escolha reconhece que, ao empregar um equipamento tecnológico ( smartphone ) e mais especificamente um app de relacionamento como meio de produção de dados, há limites concretos na investigação. O primeiro se refere ao perfil de quem se aborda – já que mesmo com o barateamento de aparelhos, o Brasil tem uma das mais desiguais distribuições de renda do mundo – o que faz dessa figura de “usuário de aplicativo” no mínimo, uma escolha limitada4 4 . Um dos pareceristas chamou a atenção – com razão – para as assimetrias regionais no Brasil. Sendo a pesquisa levada a cabo em Belo Horizonte, não se pode esquecer que há níveis médios de renda mais altos do que na maior parte do país, e que a escolha elitizada pode não refletir exatamente algo como a “elite” no contexto local. Contudo, como afirmado na continuação do parágrafo, dados como “renda média” podem distorcer a realidade ao equiparar contextos socioeconômicos muito distintos. Optamos, então, pelo termo “escolha limitada”, em vez de “escolha elitizada”, por parecer mais preciso. . O segundo limite se refere ao uso do aplicativo em si. Apesar de haver inúmeros recursos, os diálogos são curtos e objetivos, dirigidos na maioria para a troca de imagens e para a concretização de encontros sexuais.

É preciso ainda acrescentar, como fonte de dados, um terceiro momento: a observação sistemática do próprio Grindr. Visitando abas, explorando conteúdos, além do exame de mensagens e imagens, foi possível uma familiarização com o ambiente do aplicativo, compreendendo como ele foi concebido e como nele era possível observar lacunas em relação ao planejado, como será tratado em outro momento. Apesar de eventualmente empregar expressões amplas, os limites metodológicos da empreitada estão postos, e se apresentam aqui apenas os dados coletados com as pessoas com quem se conversou ou mediante as próprias notas oriundas da observação. Isso não impede, contudo, transposições analíticas mais amplas, em especial considerando suas configurações algorítmicas, baseadas em criar padrões previsíveis de interação com base em scripts predeterminados.

No final, o volume de dados foi significativo, tendo sido abordadas muitas temáticas complexas associadas ao uso de aplicativos. Na análise de dados qualitativos, o caminho predominante se refere a selecionar alguns fragmentos de um conjunto maior de dados, e a partir daí se construir um corpus propriamente analítico ( Padilha & Facioli, 2018Padilha, F., Facioli, L. (2018). Sociologia digital: apontamentos teórico-metodológicos para uma analítica das mídias digitais. Ciências Sociais Unisinos , 54 (3), 305-316. doi:10.4013/csu.2018.54.3.03
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). Todavia, “os produtos da incursão disruptiva de novas ideias [passaram a incluir] um espaço renovado para abordagens críticas de análise organizacional” ( Casey, 2002, pCasey, C. (2002). Counter-movements: criticism, crisis, dispersion. In C. Casey, Critical analysis of organizations: theory, practice, revitalization (pp. 88–114). Londres: Sage. , p. 111), no qual se defende que este estudo se encaixa. Assim, neste artigo, se escolheu examinar os dados obedecendo a uma perspectiva reflexiva ( Alvesson & Skölberg, 2017)Alvesson, M., Skölberg, K. (2017). Reflexive Methodology: New Vistas for Qualitative Research (3rd ed). Londres: Sage. , essencialmente lastreada no material empírico coletado – entrevistas e observação sistemática –, mas não por ele diretamente informada, com a supressão de fragmentos e imagens já explorados em outros textos. No final, isso permitiu a construção analítica de quatro categorias que pareceram mais evidentes para compreender algumas das dinâmicas da vida social organizada de homens gays em um aplicativo de relacionamento. As quatro categorias se referem à virtualidade, à sociabilidade, à estereotipagem e à violência, presentes em todas as interações, e serão apresentadas na próxima seção.

Desvelando dinâmicas da vida social organizada

A observação sistemática da disposição de elementos do Grindr já permitiu vislumbrar alguns dos seus limites, empregados como estratagemas sociais por parte dos usuários. Para além desses aspectos, este estudo se deparou com outros elementos intrigantes, que valem uma reflexão mais detida. Associadas, a virtualidade, a sociabilidade, a estereotipagem e a violência são elementos marcantes da vida social organizada dos usuários abordados, fornecendo um rico quadro para a compreensão de como colocar a organização em prática também se estende ao mundo virtual.

Virtualizar as relações

A primeira forma pela qual se põe em prática a organização é virtualizar as relações, o que implica três processos: velocidade, desresponsabilização e descartabilidade das relações sociais. O primeiro se refere à velocidade: tudo ocorre de maneira muito rápida em um hook-up app: perfis são criados, editados e apagados com rapidez. De acordo com McQuire (2011)McQuire, S. (2011). A casa estranhada. Eco-Pós, 14 (1), 195-232. Retrieved from https://bit.ly/3u6rvMN
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, “aprender a habitar diferentemente espaços mediados é tanto uma questão de velocidade como uma questão de propriedade ou conteúdo” (p. 229). Um usuário pode ter vários perfis, vinculados a e-mails e senhas distintas, cada um deles com um propósito específico, inclusive podendo acessá-los ao mesmo tempo de smartphones diferentes, como mencionado pelos entrevistados.

Essas possibilidades sugerem que parece ser necessário para muitos dos usuários entrevistados se manter em evidência, em interação, competir por atenção, enfim, ser consumido ( Gudelunas, 2012Gudelunas, D. (2012). There’s an App for That: The Uses and Gratifications of Online Social Networks for Gay Men. Sexuality & Culture, 16 (4), 347-365. doi:10.1007/s12119-012-9127-4
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). Isso explica porque manter um ritmo rápido de atualização, para que o perfil seja sempre interessante, seja algo central nas estratégias de interação no aplicativo. E só é possível porque é virtual o contexto de interação. Embora a ideia de virtual pressuponha o real em algum momento, isso não parece ser uma questão indispensável, a não ser quando encontros estão em vias de ser concretizados. Isso porque muitas pessoas parecem se excitar apenas pela observação das imagens ou pela troca de mensagens, não estando de fato dispostas a aproximações presenciais. Além disso, dada a preferência por um perfil hegemônico, é plausível supor que a maioria dos usuários não o atenda ( Raj, 2011Raj, S. (2011). Grinding Bodies: Racial and Affective Economies of Online Queer Desire. Critical Race and Whiteness Studies, 7 (2), 1–12. ), e que, por isso, relações virtuais sejam interessantes na medida em que experiências presenciais podem ser vexatórias5 5 . Como no contexto virtual é possível usar pseudônimos e anonimidade para brincar livremente com suas identidades ( Turkle, 1995 ), em aplicativos como o Grindr isso se estende à possibilidade de forjar perfis, com frases de efeito e atributos físicos eventualmente não compatíveis com os do usuário. Em alguns casos, isso é usado para conseguir a atenção e atrair pessoas para encontros presenciais. Uma vez que ocorre o encontro entre uma pessoa que produziu um perfil virtual destoante do real e outra que tinha expectativa de correspondência com o perfil com o qual interagiu, pode ocorrer diversas possibilidades de violência, como a rejeição, humilhação, e até mesmo agressão verbal e física ( Pooley & Boxall, 2020 ). ( Turkle, 1995Turkle, S. (1995). Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet . Nova Iorque: Touchstone. ).

O segundo processo é uma espécie de desresponsabilização. A virtualidade parece autorizar um tipo de interação de alguma forma dirigida para finalidades do aplicativo, e isso liberta os interlocutores de se responsabilizarem pelas relações que ali se estabelecem ( Miller, 2015Miller, B. (2015). “They’re the Modern-Day Gay Bar”: Exploring the Uses and Gratifications of Social Networks for Men Who Have Sex With Men. Computers in Human Behavior, 51 (A), pp. 476–482. doi:10.1016/j.chb.2015.05.023
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). Como a relação virtual implica não estar em uma interação concreta e síncrona com pessoas, para muitos usuários, as palavras e ações não precisam ser medidas tendo o outro como um destinatário que pode se ofender, por exemplo. A ausência dessa interlocução direta interfere na interação, com certo nível de embrutecimento. Se o interlocutor não despertar o interesse de imediato, pode ser ignorado ou descartado de forma brusca, com um deslizar de dedos no smartphone .

É preciso levar em conta, nesse aspecto, que isso também pode ocorrer em interações sociais presenciais, razão pela qual prudência é necessária para não adotar uma perspectiva eventualmente moralista quanto às possibilidades sociais trazidas pela tecnologia; todavia, pesquisadores como Licoppe et al. (2016) destacam que a forma pela qual as relações se dão no contexto do Grindr parte da ideia de que, nas interações, “os protagonistas não sejam supostamente afetados, emocional, relacional e socialmente” (p. 2555), um processo que termina por enfatizar mais relações virtualizadas em si do que possibilidades de envolvimento off-line .

Isso leva ao terceiro ponto, o da descartabilidade das relações sociais, também verificada em sociedade. Relações rápidas pelas quais ninguém se responsabiliza parecem ser descartáveis. Como se lida com avatares em vez de pessoas, não se trata de uma existência física concreta que rege as relações, mas de um simulacro dessa existência. Em que pese que nas interações presenciais se verificam relações sociais cada vez mais descartáveis, entre as quais pode ser destacadas as interações físicas – em especial entre jovens –, a ausência de interações face a face permite que se seja mais direto, o que permite aos interlocutores “saltar” etapas que seriam imprescindíveis à vida em sociedade, como cumprimentos, conversas preliminares para “quebrar o gelo”, e o uso de humor, por exemplo ( Jaspal, 2016Jaspal, R. (2016). Gay Men’s Construction and Management of Identity on Grindr. Sexuality & Culture, pp. 21 , 187–204. doi:10.1007/s12119-016-9389-3
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).

O resultado é que se pula de uma conversa a outra em segundos de acordo com o que se quer e o tipo de retorno, o que parece estabelecer uma espécie de competição por performance , aparentemente necessária para garantir mais visualizações de perfil, mensagens e, talvez, encontros ( Gudelunas, 2012Gudelunas, D. (2012). There’s an App for That: The Uses and Gratifications of Online Social Networks for Gay Men. Sexuality & Culture, 16 (4), 347-365. doi:10.1007/s12119-012-9127-4
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). Isso significa interagir simultaneamente com várias pessoas, em níveis distintos de intimidade, porém a partir de um script mais ou menos previsível, que permite otimizar as interações e manter todas as interações como potencialmente “efetivas”. Isso é reforçado pela observação de uma contínua atualização, e de como determinados perfis buscam se destacar valorizando atributos físicos dos usuários e frases de efeito, o que destaca uma espécie de tensionamento contínuo em torno do consumo de corpos de forma virtualizada. A virtualidade implica também uma sociabilidade, não ocorrendo esses processos em separado.

Sociabilizar como for possível

Dado que as relações virtualizadas são velozes, desresponsabilizadas e descartáveis, não surpreende que isso reconfigure as formas de sociabilidade. Como elas implicam convívio social, e ele é alterado por conta da virtualização das relações, o social que se verifica nesse contexto é regido por outra lógica, que premia o efêmero. A sociabilidade se torna um feixe de experiências momentâneas e substituíveis por novas e rápidas experiências, dificultando trocas sociais efetivas. Em que pese certa romantização nas entrevistas sobre o quanto o meio virtual impossibilita que as pessoas interajam “de verdade”, como em Miller (2015)Miller, B. (2015). “They’re the Modern-Day Gay Bar”: Exploring the Uses and Gratifications of Social Networks for Men Who Have Sex With Men. Computers in Human Behavior, 51 (A), pp. 476–482. doi:10.1016/j.chb.2015.05.023
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, as formas identificadas pelas quais a sociabilidade virtual se apresenta no Grindr parecem primar pela instantaneidade: corpos de que se expõem em ângulos provocativos, frases cunhadas para causar efeito, estímulos para fomentar convites, aspectos que, em conjunto, e combinados a outros, premiam o momento.

Produzidos para consumo quase que instantâneo ( Illouz, 2011Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo . Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), são repletos de efemeridade. Fotografias são tiradas, vídeos são gravados, textos são redigidos, tudo em prol de uma absorção que parece constituir a razão de ser desses contextos. A interação social em si é traduzida em acessos, em encontros agendados, em conversas levadas a cabo, em registro de favoritos, mas pouco em termos de relacionamento efetivo com o outro aos olhos dos entrevistados. Mais uma vez, é preciso que não se romantize “o que falta” aos aplicativos de relacionamento, desenhados em função de oportunidades de mercado antes de qualquer coisa. Mas os depoimentos sugerem uma lógica muito presente em Bauman (2008)Bauman, Z. (2008). Vida para consumo . Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , de que aquelas vidas ao alcance dos dedos se voltam para a economia – em uma ótica de oferta e demanda, de produção e consumo –, na qual vigora uma espécie de não assumido contrato psicológico de sociabilidade.

Sociabilizar passa a ser produzir a si para ser rapidamente consumido pelo outro, que consome e produz a si próprio na mesma instantaneidade, em um processo que parece não ter limites. Esse processo simultâneo e acelerado de produção e de consumo pode se referir a imagens, como discutido por Valenzuela (2016)Valenzuela, C. C. (2016). No hay cuerpo sin imagen: Visualidade gay y política virtual em tempos liberales. Universitas Humanistica, 81 (81), 59-87. doi:10.11144/Javeriana.uh81.ncsi
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, impressões, como defendido por Blackwell et al. (2015)Blackwell, C., Birnholtz, J., Abbott, C. (2015). Seeing and Being Seen: Co-Situation and Impression Formation Using Grindr, a Location-Aware Gay Dating App. New Media & Society, 17 (7), 1117–1136. doi:10.1177/1461444814521595
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, ou em uma forma de visibilidade sexual difusa que deve ser necessariamente atrativa, como sustentado por Miskolci (2015)Miskolci, R. (2015). “Discreto e fora do meio” – notas sobre a visibilidade sexual contemporânea. Cadernos Pagu , (44), 61-90. doi:10.1590/1809-4449201500440061
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, algo negociado de forma contínua, oscilando do desejo ao segredo ( Miskolci, 2014Miskolci, R. (2014). Negociando visibilidades: segredo e desejo em relações homoeróticas masculinas criadas por mídias digitais. Bagoas, 8 (11), 51-78. Retrieved from https://bit.ly/3GRr80g
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).

Como relatado pelos entrevistados, as interações ocorrem ao mesmo tempo e com várias pessoas, o que caracteriza não apenas uma espécie de “etiqueta do desejo” ( Crooks, 2013Crooks, R. N. (2013). The Rainbow Flag and the Green Carnation: Grindr in the Gay Village. First Monday, 18 (11), 1–26. Retrieved from https://bit.ly/3VuY6HY
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), em que a agilidade constitui um requisito para não perder “boas oportunidades” – o que quer isso signifique para os envolvidos. A rigor, como diz Woo (2014)Woo, T. (2014). Grindr: Part of a Complete Breakfast. QED: A Journal in GLBTQ Worldmaking, 2 (1), 61–72. doi:10.14321/qed.2.1.0061
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, referindo-se ao dualismo entre vida real e vida virtual, “a vida raramente é estritamente uma ou outra: é nossa negociação simultânea de ambas que importa” (p. 65). O fato de estar on-line conversando com várias pessoas ao mesmo tempo não significa que o mesmo não seja possível off-line , o que faz com que seja uma falácia a ideia de que aplicativos de relacionamento como o Grindr estejam destruindo as possibilidades de relacionamento gay.

A efemeridade dessa interação não altera muitos dos aspectos das experiências sociais dos usuários: pode-se arriscar que até mesmo as reforçam. E isso porque não foi observado em nenhum momento qualquer tipo de iniciativa de reflexão ou modificação de posicionamento quanto ao que se lhes apresentava como definido. Nesse sentido, é quase como se concordassem com todo o contexto que ali estava. Se ele valoriza jovens homens brancos, masculinos, atléticos e assim por diante, e se isso confere prerrogativas diversas aos detentores de tais características, os entrevistados em nenhum momento questionaram essa lógica ou procuraram se colocar em posições mais favoráveis, explorando o que o virtual pode lhes oferecer como recurso de barganha. Com isso, quando usuários de perfil não hegemônico se aventuram a interagir com os perfis hegemônicos, manifestações de rejeição, silêncio ou bloqueio são esperadas como parte do cálculo de interação. Em alguma medida, isso reforça, e forma estereotipada, a marginalidade da maioria das existências gays, mesmo em no contexto virtual.

Estereotipar para ganhar tempo

Uma característica pode se tornar um estereótipo? Quando e como isso acontece? Tratam-se de coisas diferentes. Características se referem a definições ou elementos que constituem algo ou alguém. Os estereótipos não se referem a atributos pessoais ou de algo, mas a eles atribuídos na forma de um preconceito6 6 . Bandeira e Batista (2002) definem “preconceito de qualquer coisa ou preconceito de alguma coisa significa ‘fazer um julgamento prematuro, inadequado sobre a coisa em questão’... supõe, portanto, que um sujeito/indivíduo portador de pre-conceito deve ‘inevitavelmente’ poder causar algum prejuízo ao sujeito vítima do dito preconceito” (p. 126). . Constituem uma espécie de “atalho” a respeito de algo, baseado em experiências e conhecimentos anteriores, não necessariamente constatados em cada caso específico. Por conta disso, já se pode notar como pode ser imprecisa e danosa a estereotipagem, em especial se associada a algoritmos. Algoritmo é uma forma de processar informações que transforma dados em um recorte específico. Para isso, associa o que um usuário já buscou ao procurado por outros usuários, “ajustando as informações de maneira sistêmica com o objetivo de antever, com um grau elevado de precisão, aquilo que se está buscando” ( Padilha & Facioli, 2018Padilha, F., Facioli, L. (2018). Sociologia digital: apontamentos teórico-metodológicos para uma analítica das mídias digitais. Ciências Sociais Unisinos , 54 (3), 305-316. doi:10.4013/csu.2018.54.3.03
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, p. 311).

Sob o argumento de preencher dados de um perfil, cada opção marcada no ordenamento do app permite a produção de dados específicos que podem reforçar a estereotipagem. Não surpreende que uma lógica de atalhos como essa se valha de estereótipos, que Bres (1991)Bres, J. (1991). Des Stéréotypes sociaux. Cahiers de Praxématique, 17 (5), 93-112. doi:10.4000/praxematique.3129
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define como “representações pré-fabricadas... forjadas em particular pela sua origem étnica, seu sexo, sua classe social” (p. 93, tradução nossa). Eles simplificam as interações na medida em que grosseiramente classificam os sujeitos e antecipam suas reações com base em padrões preconcebidos – tanto no sentido positivo, quanto no sentido negativo, é preciso pontuar. As diferenças marcadas e reiteradas entre o que é “oferecido” e “buscado” terminam por definir hierarquias, de perfis mais valorizados no topo até os perfis menos valorizados em posições inferiores, conforme discutido por Cascalheira e Smith (2020)Cascalheira, C. J., Smith, B. A. (2020). Hierarchy of Desire: Partner Preferences and Social Identities of Men who Have Sex with Men on Geosocial Networks. Sexuality & Culture, 24 (5), 630-648. doi:10.1007/s12119-019-09653-z
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.

As diferenças experimentadas em sociedade mais uma vez se verificaram nas entrevistas, sendo os usuários bastante conscientes dos estereótipos presentes no Grindr, muitos dos quais reforçam o lugar secundário do outro. O outro – o afeminado, o feio, o pobre, o gordo, o idoso, por exemplo – serve a um vago propósito de interlocução, mas não deve ocupar demais o tempo em uma conversa. A conversa, aliás, deve ser dirigida por um objetivo, e não pela interação social em si. A interação com o outro precisa ser pautada por uma finalidade, que aparentemente necessita estar explícita para os interlocutores: daí as conversas irem direto ao ponto, em uma convergência interacional dirigida ao objetivo da maior parte das interações: sexo ( Ahlm, 2017Ahlm, J. (2017). Respectable Promiscuity: Digital Cruising in an Era of Queer Liberalism. Sexualities, 20 (3), 364–379. doi:10.1177/1363460716665783
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).

Apesar de haver opções que podem ser assinaladas quanto a si e quanto ao que se busca no aplicativo, elas são muito menos acessadas do que as opções “encontros” e “agora” nas descrições dos perfis. E o que isso significa? Que não se está no aplicativo “a passeio”: todos sabem o que está em jogo, mesmo que não sejam explícitos quanto a isso. Mesmo que os interesses apontem em outro sentido, é a perspectiva sexual que dirige as interações. Tudo o que contribuir para que ela de alguma forma prevaleça e se concretize deve integrar o repertório acelerado das interações sociais, sendo secundário todo o resto. A etiqueta do desejo de Crooks (2013)Crooks, R. N. (2013). The Rainbow Flag and the Green Carnation: Grindr in the Gay Village. First Monday, 18 (11), 1–26. Retrieved from https://bit.ly/3VuY6HY
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, assim, tem um propósito definido e que justifica a estereotipagem como recurso de quem se volta a uma finalidade específica.

Se os estereótipos, assim, “resumem” o que os interlocutores são com base em padrões a eles atribuídos, possuem um papel relevante na aceleração das interações no app . Ao se encontrar diante de algo que não os agrada, por exemplo, como a idade, podem promover a estereotipagem dos mais velhos, atribuindo-lhes características indesejáveis que justificam a sua exclusão do horizonte de interação. Na forma de bloqueio, silêncio ou de agressão, as entrevistas sugerem que raramente o estereotipado consegue alguma forma de redenção por ser quem é. A estereotipagem o condena, para o bem ou para o mal, a ocupar um lugar previamente definido do qual só poderá ser retirado em situações excepcionais, a critério do interlocutor, que tem em suas mãos o poder de reproduzir os estereótipos de forma indiscriminada, oprimindo a partir de como se deveria ser e agir ( Campbell, 2004Campbell, J. E. (2004). Getting it on Online: Cyberspace, Gay Male Sexuality, and Embodied Identity . Nova Iorque: Routledge. ).

Violentar(se) sistematicamente

“Virtualizar as relações”, “sociabilizar como for possível” e “estereotipar para acelerar”, que parecem ser etapas de um inusitado manual de instruções, como aludido por Padilha (2015)Padilha, F. (2015). Isto não é um manual de instruções: notas sobre a construção e consumo de perfis em três redes geossociais voltadas ao público gay. Norus – Novos Rumos Sociológicos, 3 (3), 72-104. doi:10.15210/norus.v3i3.6365
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, se concretizam em práticas variadas e sistemáticas de violência (WHO, 1996), inclusive entre os usuários no contexto do aplicativo de relacionamento estudado. Autores como Dietzel (2021)Dietzel, C. (2021). “That’s Straight-up Rape Culture”: Manifestations of Rape Culture on Grindr. In J. Bailey, A. Flynn, & N. Henry (Eds.), The Emerald International Handbook of Technology – Facilitated Violence and Abuse (pp. 351–368). Nova Iorque: Emerald. mencionam que chega mesmo a existir uma cultura do estupro, quando “a violência é vista como sexy e a sexualidade como violenta” (Buchwald, Fletcher, & Roth, 1993, p. vii), o que ocorre tanto on-line quanto off-line. A partir de uma pesquisa realizada em Montreal, no Canadá, o autor identificou uma série de práticas violentas que incluem a presença do consentimento masculino em um contexto racista no qual os corpos são objetificados e fetichizados, algo tido como aceitável entre aqueles usuários do Grindr.

No caso deste estudo, foram mencionadas muitas práticas violentas, entre as quais destacamos: (a) a suposição de que as opções não ligadas à concretização do sexo são falaciosas, e que todos os que se dizem não interessados em sexo são mentirosos e não merecem atenção; (b) a possibilidade de descarte de quem não é “objetivo” por querer conversar mais tempo, por não mandar imagens ou informações precisas sobre medidas, e por isso deve ser descartado; (c) o desejo exclusivo de quem é “atraente” – o que subentende corpos idealizados, desejados e consumidos, em detrimento de todos os demais ( Padilha, 2015Padilha, F. (2015). Isto não é um manual de instruções: notas sobre a construção e consumo de perfis em três redes geossociais voltadas ao público gay. Norus – Novos Rumos Sociológicos, 3 (3), 72-104. doi:10.15210/norus.v3i3.6365
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) –, fator que atua como barreira de interação para que a “diversidade” ocorra, já que só se deseja, de forma narcisista, perfis parecidos com o seu próprio; (d) a agressividade dos diálogos, que devem ser curtos, rápidos e diretos, não cabendo hesitações, intervalos longos de tempo ou conversas mais profundas, que devem ser eliminadas; (e) a repulsa aos corpos classificados como abjetos ( Butler, 2011Butler, J. (2011). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex” . Londres: Routledge. ; Kristeva, 1982Kristeva, J. (1982). Powers of Horror. An Essay on Abjection . Nova Iorque: Columbia University Press. ; Le Breton, 2007Le Breton, D. (2007). A sociologia do corpo (2nd ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. ), que devem se resignar ao lugar mais invisível possível, e se contentar com o que quer que lhes seja oferecido, já que “nada têm a oferecer”; (f) a naturalização de padrões de heteronormatividade binários e misóginos quanto a práticas sexuais de “machos” e de “fêmeas”, portanto “dominadores” e “submissos”, “ativos” e “passivos” ( Grohmann, 2016Grohmann, R. (2016). Não sou/não curto: sentidos midiatizados de masculinidade, feminilidade e classe social nos discursos de apresentação do aplicativo Grindr. Sessões do Imaginário, 21 (35), 1-11. doi:10.15448/1980-3710.2016.1.20586
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, Knights, 2019Knights, D. (2019). Gender Still at Work: Interrogating Identity in Discourses and Practices of Masculinity. Gender, Work & Organization, 26 (1), 18–30. doi:10.1111/gwao.12338
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); (g) a conivência com aspectos como “sigilo” ( Miskolci, 2014Miskolci, R. (2014). Negociando visibilidades: segredo e desejo em relações homoeróticas masculinas criadas por mídias digitais. Bagoas, 8 (11), 51-78. Retrieved from https://bit.ly/3GRr80g
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), “discrição” ( Miskolci, 2015Miskolci, R. (2015). “Discreto e fora do meio” – notas sobre a visibilidade sexual contemporânea. Cadernos Pagu , (44), 61-90. doi:10.1590/1809-4449201500440061
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), “aparência masculina” ( Medeiros, 2017Medeiros, E. S. (2017). De “não curto afeminado nem pra amizade” a “por que tantos heteronormativos?”: masculinidades e discursos dominantes e táticos nas fachadas do Grindr. Revista Ártemis, 23 (1), 55-62. doi:10.22478/ufpb.1807-8214.2017v23n1.35785
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), o que retroalimenta nexos de rejeição, de marginalização e de exclusão social em diversos níveis.

Não obstante a menção à violência parecer forte para alguns, ela é precisa. Como o conceito da Organização Mundial de Saúde (WHO, 1996) trata de aspectos potencialmente virtuais – como intencionalidade, poder, ameaça e danos psicológicos, entre outros elementos –, ele é bastante aderente ao encontrado na investigação e em muitos estudos no campo de estudos organizacionais conforme Costas e Grey (2018)Costas, J., Grey, C. (2018). Violence and Organization Studies. Organization Studies, 40 (10), 1573-1586. doi:10.1177/0170840618782282
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. Em um contexto onde não há interação física, o virtual confere novas nuances ao que pode ser tomado como violento, algo que os usuários não apenas sabem como reproduzem e experimentam no cotidiano. Algumas dessas violências constituem crimes no mundo real, como o uso indevido de imagens, previsto no Código Penal Brasileiro.

As motivações para isso podem ser variadas de acordo com os entrevistados, desde brincadeiras sem maiores propósitos a não ser o prazer de enganar as pessoas com quem conversam, e depois sumirem; usar imagens melhoradas do corpo, mesmo que seja de outras pessoas, de maneira a ficarem mais interessantes aos olhos dos interlocutores; e, por fim, vingança contra pessoas que os esnobaram, o que leva a que usem fotografias de rosto simulando o perfil da pessoa com quem se desentenderam. Considerando os possíveis prejuízos pela exposição e falsa atribuição de comportamentos a uma pessoa, o Grindr possui um mecanismo que acolhe denúncia de perfis que empregam informações falsas. Ainda assim, é relativamente comum entre os usuários a menção a apropriações indevidas de imagem.

Outras formas de violência se referem a sutilezas na etiqueta do mundo virtual, e nem por isso são menos violentas, como quando não se reage a uma postagem não solicitada. Uma vez que o consumo encampa uma reação que registra o acesso, não registrar reações é uma mensagem direta. A expressão “silêncio não é resposta”, presente em muitos perfis de usuários, se refere a uma prática disseminada de ignorar pessoas com as quais não há interesse ou pelas quais se perdeu o interesse em interagir. Esse “vácuo” ( ghosting ) é uma forma de rejeição pelo silêncio, algo que faz sentido em um contexto de grande competição por espaço e atenção. Ele pode acontecer desde o primeiro momento, quando se recebe uma mensagem não solicitada, que pode variar de uma saudação a um convite, passando pelo envio de imagens, ou no meio de uma interação, quando simplesmente se deixa de falar com o interlocutor. O block (bloqueio) é outro mecanismo, o mais radical, que gera obstrução completa de qualquer forma de interação. Embora acreditem que se trata de um recurso extremo, vários dos entrevistados afirmaram que o usam com regularidade para evitar o assédio de “perfis indesejados”7 7 . Um dos pareceristas fez uma crítica bastante pertinente para ser tratada aqui, quanto a se a “preferência” pode ser tomada como uma forma de violência. Em tese, não. Todavia, se estamos falando de perfis sistematicamente “preferidos” e perfis “desprezados”, a questão muda de figura, pois a rejeição, neste caso, se deve por não preencher os requisitos do desejo hegemônico, e isso é altamente violento, não podendo ser tomado como mera escolha. Sobre isso, Saraiva et al. (2020) sustentam que “a hierarquização e a ideia do ‘não sou/ não curto’ se fazem presentes no aplicativo, [posições] explicitamente preconceituosas, hierarquizadoras, aviltantes. Esses discursos podem ser vistos como forma de legitimação entre corpos aceitos e corpos que são rejeitos/deslegitimados dentro de um padrão hegemônico de beleza” (p. 124). , como de gordos e idosos, por exemplo. Isso dá uma noção de como um recurso violento do aplicativo pode ser usado de forma naturalizada para evitar a interação.

Discussão e conclusão

Os dados produzidos pela investigação reiteram evidências produzidas em outros estudos sobre como os aplicativos de relacionamento têm se mostrado como um meio no qual as relações se verificam, e nem sempre de forma distinta do que é vivido off-line . Diversos elementos, como velocidade, desresponsabilização e descartabilidade nas relações sociais, operam como marcadores de uma forma de interação mediada pela tecnologia que sugere que a migração para o virtual não apenas não modificou o que já se vivenciava em sociedade como aguçou alguns problemas com o algoritmo ajustando conteúdos conforme as preferências dos usuários. Uma vida social organizada de forma veloz, não responsável e que descarta as relações sociais só é possível ao espelhar relações sociais construídas de forma semelhante e também pelas configurações tecnológicas que não tomam tais elementos como problemas, já que seu foco está na dimensão econômica proporcionada pelo app . Assim, disponibilizam recursos que podem ser empregados como práticas agressivas dos usuários e isso não chega a ser sequer uma questão em um aplicativo voltado ao lucro antes de qualquer coisa.

As dinâmicas da vida social organizada encontradas a partir das entrevistas revelam que virtualizar, socializar, estereotipar e violentar integram um quadro de referência mais amplo e já presente no mundo social no qual pessoas gays se encontram inseridas. Assim, não surpreende que tais aspectos estejam presentes no Grindr, que pode ter sido eventualmente concebido para outro tipo de relações, em tese mais livres já que sem amarras sociais convencionais, mas que não conseguem delas efetivamente se livrar. O resultado é que as formas pelas quais se pratica a organização em um meio como esse terminam por reproduzir condições de assimetria e de violência verificadas na sociedade. Dessa forma, homens gays, alvo histórico de preconceito e de discriminação variadas enquanto grupo, se veem reproduzindo práticas semelhantes frente a outros homens gays no app em uma hierarquia do desejo que tem no topo o perfil mais próximo do macho alfa e, na base, os menos próximos, como pessoas negras, pobres, afeminadas, gordas, idosas ou com alguma forma de deficiência física.

Do ponto de vista da vida social organizada, virtualizar as relações sociais faz sentido de maneira a propiciar um “café completo”, nos termos de Woo (2014)Woo, T. (2014). Grindr: Part of a Complete Breakfast. QED: A Journal in GLBTQ Worldmaking, 2 (1), 61–72. doi:10.14321/qed.2.1.0061
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. As possibilidades dos aplicativos de relacionamento se somam às interações sociais regulares, fazendo com que seja possível a ampliação de contatos e de relacionamentos, mesmo que casuais, entre homens gays. Considerando aspectos objetivos como os custos envolvidos para a preparação, deslocamento e entretenimento propriamente ditos, é sem dúvida muito econômico investir em interação virtual. Em que pese a perda de aspectos como a interação face a face, os entrevistados parecem enxergar vantagens na praticidade de interagir rápida e simultaneamente com diversos outros usuários, otimizando seu tempo e aumentando suas possibilidades.

Socializar como possível implica lidar com os limites de um aplicativo de relacionamento que é, antes de qualquer coisa, um produto que tem de ser economicamente viável ao ser destinado a um público-alvo já identificado como lucrativo. Para isso, as funcionalidades não estão prioritariamente voltadas a formas variadas de socialização, mas da forma que podem fazer os objetivos econômicos serem mais facilmente atingidos, entre os quais a assinatura, que permite acesso a mais perfis e mais recursos, e a ampliação da base fixa de consumidores. Apesar disso, os usuários entrevistados relataram que usam o que o sistema lhes permite – a maioria deles usa os recursos gratuitos do Grindr – da forma que lhes parece mais interessante. Privilegiam, assim, conversas rápidas, diretas, com pessoas a uma distância reduzida se onde se localizam, para poder concretizar encontros sexuais de forma mais objetiva.

Para poder viabilizar essa perspectiva de rapidez e objetividade, estereotipar os usuários é um recurso constante dos entrevistados, atribuindo-lhes aspectos de maneira antecipada e generalizada para se concentrarem em perfis em “que vale a pena investir”. Isso implica simultaneamente distância e ignorância a respeito das pessoas tomadas de forma individual ao associar a “tribos” já preexistentes no Grindr como “boy”, “cafuçu” ou “discreto”, atributos valorizados ou desvalorizados em razão das suas próprias preferências. Muitos usuários fazem da estereotipagem um meio de ganhar tempo ao aplicar filtros nos quais priorizam os perfis com que desejam ter contato, em alguns casos sequer visualizando os que não os interessam. E quanto mais recursos estiverem disponíveis, maiores as possibilidades de filtro e, presume-se, de “sucesso”.

Por fim, todo esse cenário é viabilizado por formas variadas de violentar no contexto dessa vida social organizada. Em um meio no qual a prioridade é rapidamente chegar às vias de fato, instala-se uma lógica de competição por tempo, atenção, prioridade, que só pode ser alimentada quando ostensivamente se passa por cima de quem não interessa, de quem não manda fotos, de quem demora a responder, de quem não define o local do encontro etc. Esse é um contexto de radical funcionalidade, no qual, para que tudo opere de forma adequada, é necessário que cada um assuma e se encaixe perfeitamente em seu papel, coproduzindo o conteúdo do aplicativo à medida que aderem a um projeto empresarial traduzido em um aplicativo de relacionamento.

Como visto, os principais achados sugerem que a tecnologia não constitui, por si só, uma forma de redenção para as complexas questões sociais de grupos minoritários, mesmo se tratando de um grupo empregando um aplicativo especificamente desenhado para eles. Eles reproduzem a lógica de diferenciação mesmo dentro do próprio grupo, o que sugere ser esse um fenômeno social disseminado também nas relações virtuais. Se isso é o que ocorre na vida social, seria esperada alguma forma melhor de lidar com isso em ambientes de sociabilidade virtualizada. Mas isso aparentemente não constitui pauta do Grindr ou dos seus usuários. As configurações do app , ao enfatizar o consumo mais do que a política, confirmam do que ele se trata: um negócio.

A efemeridade do que se vive no contexto do aplicativo de relacionamento observado constitui um feixe de experiências momentâneas e substituíveis por novas experiências cada vez mais voláteis. Virtualizar relações, sociabilizar como for possível, estereotipar para ganhar tempo e violentar(-se) sistematicamente – as dinâmicas da vida social organizada encontradas sugerem que, em torno de se relacionar (principalmente em termos sexuais), se estabelecem as bases de uma interação que, a rigor, dificulta que os aplicativos se tornem um lugar de efetivação de relações sociais – mas talvez eles não sirvam para isso. A partir de pesquisas sobre o tema, observa-se a permanência de padrões de isolamento social, porque mesmo quando há interação sexual, ela é instrumentalizada para um consumo imediato. Uma vez levado a cabo, quando é concretizado, o sexo passa a ser analisado, comparado, qualificado e, no fim, contabilizado como mais uma interação dentro de um quadro de “estatísticas de interação”, e tudo recomeça.

Três considerações que precisam ser feitas abrangendo aspectos subjetivos, metodológico-analíticos e ético-políticos do trabalho. Em primeiro lugar, o texto pode ter construído uma imagem negativa da dinâmica da vida social organizada de usuários de Grindr, mas isso não foi intencional. Em estudos sobre diferenças, é necessário tomar cuidado com a forma pela qual se expressa para não cair no que se critica: a adoção de certo moralismo para julgar o “diferente” pela régua do “normal”, um exercício difícil, mas necessário, e que desafia o próprio pesquisador a se colocar, assumindo suas próprias implicações. A modalidade de interação virtual dialoga com um tempo em que não interagir por meio da tecnologia significa estar “por fora” de boa parte do que acontece no mundo, limitando possibilidades de atualização e de conhecimento. Todavia, as condições de existência no terreno virtual não alteram a condição marginal já experimentada pelas pessoas LGBT. As críticas, nesse sentido, embora possam ser associadas a uma visão romântica sobre as formas que poderiam assumir as interações virtuais em um aplicativo de relacionamento gay, são bastante pragmáticas. A inclusão social poderia ser o grande trunfo desses aplicativos, uma forma de visibilizar aqueles que de alguma maneira são impedidos de pertencer plenamente à sociedade. Todavia, a ênfase em corpos, e em um jeito “certo” para esses corpos, termina por reforçar a marginalidade da maioria das existências gays também no contexto virtual, o que pode fazer da vida social organizada um interessante alvo de atenção acadêmica e social.

A segunda consideração se enquadra no nível metodológico-analítico. Este texto não corresponde à estruturação clássica de um trabalho em estudos organizacionais em vários aspectos, em particular o método e a análise podem gerar incômodos. Optou-se, de forma consciente, por um descolamento dos dados estritos, embora nem mesmo uma linha do aqui apresentado não seja rigorosamente aderente ao material da pesquisa. Todavia, pode haver demandas sobre detalhamentos de técnicas de análise, de explicitação dos dados, e coisas do gênero, que estão muitas vezes associados a um estranho fetiche por cientificidade positivista a que este texto não se interessou em corresponder. Esta investigação tem levado a reflexões sobre o lugar da análise nos estudos organizacionais, algo a ser problematizado e, segundo Casey (2002)Casey, C. (2002). Counter-movements: criticism, crisis, dispersion. In C. Casey, Critical analysis of organizations: theory, practice, revitalization (pp. 88–114). Londres: Sage. , revitalizado, nos níveis de teoria e de aplicação. Por conta disso, foi feito um investimento em adensamento da dimensão analítica, remetendo às ideias a que as categorias aludiram, mas em diálogo atento com a pesquisa enquanto processo social inacabado e com a teoria enquanto elemento de interrogação das ideias. Assim, acredita-se que o foco em análise e em uma forma de escrita mais fluida traz contribuições, apontando um caminho possível para a construção do conhecimento em estudos organizacionais.

Situa-se no nível ético-político a terceira e última consideração. Retomando a questão das diferenças, há aspectos incontornáveis que este trabalho aponta quanto ao que se convencionou denominar de “outro”, e como investigações e interações com esse outro podem tensionar nossos limites humanos. Até que ponto o experimentado na pesquisa não levou à predisposição quanto aos participantes? Esta questão pode parecer desnecessária, mas revela alguns dos dilemas éticos pelos quais essa investigação passou, como lidar situações que pareciam agudas, em que se observava entrevistados descreverem esquemas que visivelmente os diminuíam frente a outros usuários por conta de suas características físicas, ou que reforçavam estereótipos contra os quais a comunidade LGBT luta há anos, e que os desqualificam do ponto de vista social. Observar isso em uma interação social investigativa precisa de uma problematização sobre o que se assume como prática de pesquisa quando se lida com grupos sociais oprimidos. Deve-se se permanecer impassível diante de um evidente sofrimento? E se algo escapa do script dito “científico”, deve-se limitar a palavras trocadas no calor da interação, e não lidar com os efeitos do que se pode provocar nesse diálogo? Por que nosso campo de conhecimento é definido como ciência social aplicada, mas se contenta com a aplicação, mais do que com a sociedade?

Tais questões não são triviais e levantaram pontos sobre a produção de um conhecimento que precisa ser politizada, em resposta a toda uma configuração dentro de um sistema de produção capitalista que descontextualiza e desumaniza em função da acumulação. Não é simplesmente uma espécie de reconhecimento contar com aplicativos de relacionamento voltados à comunidade LGBT: o nome disso é segmentação de mercado e ela não respeita as diferenças se não na medida em que elas permitem aumentar a precisão dos algoritmos – e do volume do lucro. E tanto isso é verdade que se tratam de plataformas em que o consumo é estimulado, mas pouco se vê sobre espaços de uso político dos usuários, porque eles se tratam de consumidores, na verdade. Nesse sentido, é interessante entender como a vida social organizada avança em relação ao conceito de organização ao humanizar o processo e incluir as formas de organizar praticadas pelos grupos sociais em seus contextos específicos. Ao passo que descobrir e explorar a vida social organizada de usuários de um aplicativo de relacionamento é possível, também o é perceber outros usos para além do mero consumo do que lhes é apresentado. Isso sugere um potencial ainda pouco explorado de compreender, do ponto de vista organizacional, o que faz sentido em existências em contextos sociais específicos.

Agradecimentos

O autor agradece aos pareceristas anônimos, que contribuíram sobremaneira para o aperfeiçoamento dos argumentos do texto.

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Notas

  • 1
    . A busca generalizada por usuários de um perfil hegemônico não é um exagero deste texto. Pesquisas realizadas em todo o mundo, como as de Anderson et al. (2018)Anderson, J. R., Holland, E., Koc, Y., Haslam, N. (2018). iObjectify: Self – and other – Objectification on Grindr, a Geosocial Networking Application Designed for Men Who Have Sex with Men. European Journal of Social Psychology, 48 (5), 600-613. doi:10.1002/ejsp.2350
    https://doi.org/10.1002/ejsp.2350...
    e Raj (2011)Raj, S. (2011). Grinding Bodies: Racial and Affective Economies of Online Queer Desire. Critical Race and Whiteness Studies, 7 (2), 1–12. , na Austrália, Jaspal (2016)Jaspal, R. (2016). Gay Men’s Construction and Management of Identity on Grindr. Sexuality & Culture, pp. 21 , 187–204. doi:10.1007/s12119-016-9389-3
    https://doi.org/10.1007/s12119-016-9389-...
    , na Inglaterra, e Medeiros (2017)Medeiros, E. S. (2017). De “não curto afeminado nem pra amizade” a “por que tantos heteronormativos?”: masculinidades e discursos dominantes e táticos nas fachadas do Grindr. Revista Ártemis, 23 (1), 55-62. doi:10.22478/ufpb.1807-8214.2017v23n1.35785
    https://doi.org/10.22478/ufpb.1807-8214....
    , Grohmann (2016)Grohmann, R. (2016). Não sou/não curto: sentidos midiatizados de masculinidade, feminilidade e classe social nos discursos de apresentação do aplicativo Grindr. Sessões do Imaginário, 21 (35), 1-11. doi:10.15448/1980-3710.2016.1.20586
    https://doi.org/10.15448/1980-3710.2016....
    , Miskolci (2015)Miskolci, R. (2015). “Discreto e fora do meio” – notas sobre a visibilidade sexual contemporânea. Cadernos Pagu , (44), 61-90. doi:10.1590/1809-4449201500440061
    https://doi.org/10.1590/1809-44492015004...
    e Padilha (2015)Padilha, F. (2015). Isto não é um manual de instruções: notas sobre a construção e consumo de perfis em três redes geossociais voltadas ao público gay. Norus – Novos Rumos Sociológicos, 3 (3), 72-104. doi:10.15210/norus.v3i3.6365
    https://doi.org/10.15210/norus.v3i3.6365...
    , em diferentes partes do Brasil, demonstram que embora os algoritmos em si não definam perfis preferíveis a outros, eles reagem às preferências dos usuários dos aplicativos de relacionamento estudados. Isso não significa que não haja corpos abjetos, no sentido de Butler (2011)Butler, J. (2011). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex” . Londres: Routledge. , entre os usuários; mas que tais usuários ocupam “nichos” específicos dentro de um grande grupo de usuários que reitera a preferência por um “corpo padrão”, isto é: de homens brancos, jovens, viris, magros, saudáveis etc. Não se trata, assim, de homogeneizar o desejo de todos homens gays, e tampouco de aproximá-lo de uma perspectiva cisgênera, mas de registrar nesta investigação, como em outras já citadas, que no âmbito desses aplicativos esse desejo se dirige de forma predominante a um determinado perfil, em detrimento dos demais. Isso não significa que outros corpos não sejam tanto destinatários de desejo quanto consumidores deste aplicativo, mas que seu papel é secundário, e isso não passou desapercebido aos olhos do mercado, que já explora o segmento em aplicativos voltados para homens mais velhos com o perfil de “ursos”, como o bearwww, o growlr, o w | bear, o bigger city e o daddy hunt, por exemplo.
  • 2
    . Em face da constante polêmica constante em torno das iniciais das letras que sintetizariam a “comunidade” LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros), que periodicamente vê a sigla aumentar de nome em função de demandas de segmentos não representados, optamos por manter não apenas o termo estabelecido desde o final dos anos 1980, mas amplamente negociado com o ativismo. Os demais termos, como LGBTQ (que procura incluir pessoas queer ), LGBTQI (pessoas intersexuais), LGBTQIA (pessoas assexuais, arromânticos ou simpatizantes – e aliados), LGBTQIAPN (pessoas pansexuais, polissexuais e não binárias) e LGBTQIAP+ (quaisquer outras pessoas que não se sintam incluídas em nenhuma das outras iniciais da sigla), ainda que sem dúvida legítimos, não foram desconsiderados em suas particularidades, mas considerados cobertos pelo termo já estabelecido e negociado.
  • 3
    . O processo de submissão de uma pesquisa ao conselho de ética possui inadequações que, na universidade que abrigou a pesquisa, impedem seu registro. Assume-se que as formas de interação entre pesquisadores e pesquisados serão presenciais, e que outras formas de interação precisam seguir os mesmos passos formais de uma pesquisa convencional. Tal procedimento é rigorosamente inadequado para incorporar novas possibilidades metodológicas porque ignora outros meios e dinâmicas de método. Entre não realizar a pesquisa para esperar que a processualidade burocrática se atualize e realizá-la, preferimos concretizá-la, principalmente por conta da experiência da equipe de pesquisa com populações marginalizadas e em situação de vulnerabilidade, o que inclui práticas éticas de investigação e análise, o que se procurou trazer para este texto.
  • 4
    . Um dos pareceristas chamou a atenção – com razão – para as assimetrias regionais no Brasil. Sendo a pesquisa levada a cabo em Belo Horizonte, não se pode esquecer que há níveis médios de renda mais altos do que na maior parte do país, e que a escolha elitizada pode não refletir exatamente algo como a “elite” no contexto local. Contudo, como afirmado na continuação do parágrafo, dados como “renda média” podem distorcer a realidade ao equiparar contextos socioeconômicos muito distintos. Optamos, então, pelo termo “escolha limitada”, em vez de “escolha elitizada”, por parecer mais preciso.
  • 5
    . Como no contexto virtual é possível usar pseudônimos e anonimidade para brincar livremente com suas identidades ( Turkle, 1995Turkle, S. (1995). Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet . Nova Iorque: Touchstone. ), em aplicativos como o Grindr isso se estende à possibilidade de forjar perfis, com frases de efeito e atributos físicos eventualmente não compatíveis com os do usuário. Em alguns casos, isso é usado para conseguir a atenção e atrair pessoas para encontros presenciais. Uma vez que ocorre o encontro entre uma pessoa que produziu um perfil virtual destoante do real e outra que tinha expectativa de correspondência com o perfil com o qual interagiu, pode ocorrer diversas possibilidades de violência, como a rejeição, humilhação, e até mesmo agressão verbal e física ( Pooley & Boxall, 2020Pooley, K., Boxall, H. (2020). Mobile Dating Applications and Sexual and Violent Offending. Trends & Issues in Crime and Criminal Justice, (612), pp. 1–15. doi:10.52922/ti04862
    https://doi.org/10.52922/ti04862...
    ).
  • 6
    . Bandeira e Batista (2002)Bandeira, L., Batista, A. S. (2002). Preconceito e discriminação como expressões de violência. Estudos Feministas, 10 (1), 119-141. doi:10.1590/S0104-026X2002000100007
    https://doi.org/10.1590/S0104-026X200200...
    definem “preconceito de qualquer coisa ou preconceito de alguma coisa significa ‘fazer um julgamento prematuro, inadequado sobre a coisa em questão’... supõe, portanto, que um sujeito/indivíduo portador de pre-conceito deve ‘inevitavelmente’ poder causar algum prejuízo ao sujeito vítima do dito preconceito” (p. 126).
  • 7
    . Um dos pareceristas fez uma crítica bastante pertinente para ser tratada aqui, quanto a se a “preferência” pode ser tomada como uma forma de violência. Em tese, não. Todavia, se estamos falando de perfis sistematicamente “preferidos” e perfis “desprezados”, a questão muda de figura, pois a rejeição, neste caso, se deve por não preencher os requisitos do desejo hegemônico, e isso é altamente violento, não podendo ser tomado como mera escolha. Sobre isso, Saraiva et al. (2020)Saraiva, L. A. S., Santos, L. T., Pereira, J. R. (2020). Heteronormativity, Masculinity and Prejudice in Mobile Apps: The Case of Grindr in a Brazilian City. Brazilian Business Review, 17 (1), 114-131. doi:10.15728/bbr.2020.17.1.6
    https://doi.org/10.15728/bbr.2020.17.1.6...
    sustentam que “a hierarquização e a ideia do ‘não sou/ não curto’ se fazem presentes no aplicativo, [posições] explicitamente preconceituosas, hierarquizadoras, aviltantes. Esses discursos podem ser vistos como forma de legitimação entre corpos aceitos e corpos que são rejeitos/deslegitimados dentro de um padrão hegemônico de beleza” (p. 124).
  • Verificação de plágio
    A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Linguagem inclusiva
    Os autores usam linguagem inclusiva que reconhece a diversidade, demonstra respeito por todas as pessoas, é sensível a diferenças e promove oportunidades iguais.
  • Disponibilidade de dados
    A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento
    O autor agradece o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Editora Associada: Josiane Silva de Oliveira

Disponibilidade de dados

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A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
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