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Situação-Limite: Por Outro Olhar sobre a Violência em um Caps AD

Limit-Situation: For Another Look on the Violence in a CAPS AD

Situación Límite: Otra Mirada sobre la Violencia en un Caps AD

Resumo

Este relato de experiência, situado no campo do cuidado a pessoas usuárias de álcool e outras drogas em contextos marcados por violência, tem como objetivo explorar os limites, desafios e caminhos possíveis, em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD III), para a sustentação de um cuidado orientado pela compreensão das pessoas usuárias do Caps a partir da sua existência, sofrimento e relação com o corpo social, mesmo diante de comportamentos tidos como violentos. De caráter qualitativo, o percurso de pesquisa foi conduzido por meio de dois recursos metodológicos: o relato de experiência, referente à trajetória de uma das autoras no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), e a metodologia caso traçador ou usuário-guia. O trabalho de cuidar de pessoas expostas à necropolítica exige um posicionamento ético dos trabalhadores de saúde mental de engendrar processos de resistências e produção de vida. Pela radicalidade que é vivenciá-la, a violência comparece como um elemento dificultador desse trabalho para os profissionais, fazendo com que, diante do desamparo, por vezes utilizem lógicas disciplinares para conseguir lidar com esse fenômeno. Propõe-se abordar as cenas nomeadas como violentas nos Caps com base na noção de situação-limite, retirando a situação da malha de sentidos que acompanha a palavra e remete a práticas disciplinares e ao contexto da violência urbana. Essa mudança de paradigma abre a possibilidade de que os trabalhadores se incluam nas situações, as entendam como relacionadas à complexidade e à singularidade da existência das pessoas envolvidas e, assim, proponham soluções produtoras de vida.

Palavras-chave:
Saúde mental; Território; Violência; Atenção psicossocial

Abstract

This experience report, situated in the field of care for people who use alcohol and other drugs in contexts marked by violence, aims to explore the limits, challenges, and possible paths, at a Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs (CAPS AD III), to support care guided by the knowledge of CAPS users based on their existence, suffering, and relationship with the social body, even in the face of behaviors considered to be violent. The path of this qualitative research was conducted with two methodological resources: the experience report, referring to the trajectory of one of the authors at the Multiprofessional Residency Program in Mental Health at the Institute of Psychiatry at the Federal University of Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), and the methodology of case tracer or user-guide. The work of caring for people exposed to necropolitics requires an ethical positioning of mental health workers to build resistance processes and life production. Due to it is radical to experience, violence appears as a complicating element of this work for the professionals, forcing them to, due to the lack of support, occasionally use disciplinary reasoning to deal with this phenomenon. This study proposes to approach violent scenarios in the CAPS under the guise of limit-situation, withdrawing the situation from the web of meanings that accompany the word and refer to disciplinary actions and the context of urban violence. This paradigmatic change opens the path for workers to include themselves in these situations, to understand their relationship with the complexity and singularity of the existence of the implicated people, and thus offer solutions that produce life.

Keywords:
Mental health; Territory; Violence; Psychosocial care

Resumen

Este reporte de experiencia se sitúa en el área de la atención a las personas que consumen alcohol y otras drogas en contexto de violencia y tiene por objetivo explorar los límites, desafíos y caminos posibles en un Centro de Atención Psicosocial Alcohol y Drogas (Caps AD III), para ofrecer un cuidado a los usuarios basado en la comprensión de las personas usuarias del Caps considerando su existencia, sufrimiento y relación con el cuerpo social, incluso ante situaciones violentas. Esta es una investigación cualitativa que se basó en dos recursos metodológicos: el reporte de experiencia sobre la trayectoria de una de las autoras en el Programa de Residencia Multiprofesional en Salud Mental de la Universidad Federal de Río de Janeiro (IPUB/UFRJ) y de la metodología del caso trazador o usuario guía. La labor de asistir a las personas expuestas a la necropolítica requiere un posicionamiento ético de los profesionales de la salud mental de producir vida y procesos de resistencia. Por la radicalidad de la experiencia, la violencia es un obstáculo para el trabajo de los profesionales, lo que los llevan a actuar de forma disciplinaria para hacer frente a este fenómeno. Se propone aquí abordar las escenas violentas bajo la noción de situación límite en el Caps, sacando del contexto la red semántica que acompaña la palabra y alude a las prácticas disciplinarias y la violencia urbana. Este cambio de paradigma permite que los trabajadores se incluyan en las situaciones, las comprendan en relación con la complejidad y la singularidad de la existencia de las personas y propongan soluciones que produzcan vida.

Palabras clave:
Salud mental; Territorio; Violencia; Atención psicosocial

Introdução

Este artigo é produto de um trabalho de conclusão do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), cuja pesquisa foi desenvolvida a partir de uma inquietação sobre como lidamos com o fenômeno das situações ditas de violência no cotidiano dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

Entendemos a violência não como fenômeno isolado, localizado e individualizado, mas como experiência que permeia as trajetórias e territórios das pessoas usuárias da RAPS. Buscamos entender como os discursos e disposições afetivas da equipe de saúde de um Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPS AD) pode impedir que olhemos a violência como um recurso de linguagem, sobrevivência e resistência das pessoas usuárias do serviço (Gomes & Beiral, 2018Gomes, M. P. C. & Beiral, T. B. (2018). Violência como disparador do cuidado aos usuários graves de álcool e outras drogas: novos sentidos, significados e destinos. In B. K. Alexander, E. E. Merhy, & P. Silveira (Orgs.), Criminalização ou acolhimento? Políticas e práticas de cuidado a pessoas que também fazem o uso de drogas (pp. 513-542). Rede Unida. http://editora.redeunida.org.br/project/criminalizacao-ou-acolhimento/
http://editora.redeunida.org.br/project/...
).

Essa questão surgiu ao longo da vivência de uma das autoras durante a residência, principalmente em um dos seus cenários de atuação, um CAPS AD III localizado no Rio de Janeiro. Esse serviço é atravessado por uma série de questões geográficas e políticas, que serão brevemente mencionadas a seguir. Esses atravessamentos e uma posição determinada de acolhimento de pessoas segregadas da sociedade trazem grandes desafios e paradoxos para o cotidiano do trabalho. As situações ditas como violentas por vezes não são sequer tomadas como sinais e sintomas de uma doença, mas como violência. Ou seja, é aquele indivíduo, usuária(o) do serviço, o executor do ato violento.

O nosso incômodo e nossos questionamentos, no lugar de pesquisadores, surgem a partir de um diálogo com o intenso debate em andamento no Caps sobre a presença constante dessas cenas, como se deve cuidar delas e o motivo pelo qual, por vezes, são denominadas violência. Cabe destacar que a presença das cenas ditas violentas não é uma especificidade desse serviço, mas uma realidade de grande parte dos Caps da cidade do Rio de Janeiro que se disponibilizam para um trabalho territorial. Como aponta Bezerra Jr. (2004Bezerra Jr., B. C. (2004). O cuidado nos Caps: Os novos desafios. In P. Albuquerque & M. Libério (Orgs.), O cuidado em saúde mental: ética, clínica e política. (pp. 3-11). Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.), a nossa cultura produz violência, e esta “torna-se cada vez mais um elemento do cenário, não um episódio, mas uma constante, um estado” (p. 6).

O Caps AD, cenário desta pesquisa, está localizado na zona norte do Rio de Janeiro. O serviço é responsável pela demanda de cuidado em saúde mental relacionado ao uso abusivo de álcool e outras drogas por moradores de uma das Áreas Programáticas (AP) da cidade. Essa AP é constituída por territórios diversos em termos de distribuição de renda e qualidade de vida, dos quais uma parcela significativa é marcada por intensa precarização das instituições e recursos públicos que deveriam garantir direitos fundamentais, como moradia digna, saneamento básico e segurança.

Essas privações marcam os corpos e as vidas das pessoas usuárias do Caps, que, assim como os habitantes desses territórios, são majoritariamente negros. Nesse sentido, observamos aqui de forma bastante explícita o racismo estrutural, tese discutida por Almeida (2019Almeida, S. (2019) Racismo estrutural. Pólen.) e que aponta para a centralidade do racismo na organização econômica e política da sociedade. O racismo não é um fenômeno de natureza somente individual ou psicológica, mas político, criando condições sociais de produção sistemática de discriminação. Como aponta Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020) A questão negra no Brasil. In M. Rios & M. Lima (Orgs.), Por um feminismo afro latino americano: ensaios, intervenções e diálogos (pp. 183-190). Zahar), uma das faces do racismo foi destinar aos negros certos espaços geográficos da cidade.

Seguiremos aqui apostando que o Caps deve ser sempre territorial. Isto é, dentre outras coisas, colher os desafios oriundos das vivências e relações produzidas, tomando-as a partir das complexidades, produzindo intervenções com esses pontos. O objetivo deste trabalho é explorar os limites e desafios, mas também os caminhos possíveis, no Caps AD III em questão, para a sustentação de práticas de cuidado diante da violência orientadas pelo modelo da “existência-sofrimento do paciente e sua relação com o corpo social” (Rotelli, 2001Rotelli, F. (2001). A instituição inventada. In M. F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (2a ed., pp. 89-99). Hucitec., p. 90).

Metodologia

Este percurso de pesquisa, de caráter qualitativo, foi conduzido por meio de dois recursos: o relato de experiência da pesquisadora-residente ao longo dos dois anos da residência e o método caso traçador ou usuário-guia.

O relato de experiência foi produzido a partir de anotações realizadas pela pesquisadora-residente das suas vivências e trocas com usuárias(os) e trabalhadores no Caps AD III. Essas experiências também foram discutidas em espaços formativos de preceptoria e tutoria, junto aos outros dois autores deste artigo.

O método caso traçador ou usuário-guia consiste no acompanhamento dos lugares e percursos de um caso representativo do perfil do serviço, que provoque desconforto ou satisfação (Feuerwerker & Merhy, 2015Feuerwerker, L. C. M. & Merhy, E. E. (2015). Como temos armado e efetivado nossos estudos, que fundamentalmente investigam políticas e práticas sociais de gestão e de saúde? In R. A. Mattos & T. W. F. Baptista (Orgs.), Caminhos para análise das políticas de saúde (pp. 439-460). Rede Unida. http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/serie-interlocucoes-praticas-experiencias-e-pesquisas-em-saude/caminhos-para-analise-das-politicas-de-saude-pdf
http://historico.redeunida.org.br/editor...
). A reconstituição de um caso permite avaliar o processo de trabalho de uma equipe de saúde e os atos de cuidado prestados ao usuário (Gomes & Merhy, 2014). Os casos traçadores permitem examinar, na prática, como se dão os processos de trabalho em ato, junto com seus valores, conceitos e tecnologias. Esses são elementos que, via de regra, não aparecem em entrevistas; nelas, o que geralmente se vê é o “como deve ser”, e não o “como realmente é” (Feuerwerker & Merhy, 2015Feuerwerker, L. C. M. & Merhy, E. E. (2015). Como temos armado e efetivado nossos estudos, que fundamentalmente investigam políticas e práticas sociais de gestão e de saúde? In R. A. Mattos & T. W. F. Baptista (Orgs.), Caminhos para análise das políticas de saúde (pp. 439-460). Rede Unida. http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/serie-interlocucoes-praticas-experiencias-e-pesquisas-em-saude/caminhos-para-analise-das-politicas-de-saude-pdf
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).

Para condução da pesquisa, utilizando o método caso traçador, foi selecionado, junto à direção do serviço, um caso que provoca desconforto pela marca da violência. Como instrumento de produção de dados foi utilizado o recurso das entrevistas semiestruturadas, gravadas e posteriormente transcritas. Tendo em vista o objetivo da pesquisa, foram construídas categorias de análise a partir dos textos das entrevistas, que abarcavam questões relacionadas à produção de cuidado diante a violência. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do IPUB/UFRJ e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ).

Maria, nome fictício da pessoa escolhida como usuária-guia desta pesquisa, é mulher, negra, jovem, moradora de uma favela e usuária de crack. Ela foi a primeira e principal pessoa que tentamos entrevistar; entretanto, não conseguimos realizar a entrevista devido a questões como a irregularidade das suas idas ao Caps e o tempo de aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética e Pesquisa.

Tomamos essa impossibilidade não como paralisante, mas como mais um elemento para que Maria seja não um objeto de investigação, mas uma desveladora de sentidos, práticas e relações. Entender a sua história e o seu cuidado não será o propósito do texto; antes, o que se pretende a partir da relação com ela é explorar as tecnologias, ideias e afetos envolvidos nas práticas de cuidado perante situações de violência.

Durante a pesquisa, foram entrevistados Levi e Silvia, trabalhadores do Caps que se disponibilizaram para compartilhar, a partir da sua relação com Maria, como eles se afetam e pensam as situações de violência no serviço. Levi é homem, negro e compõe há cerca de cinco anos a equipe de apoio do Caps. Silvia é mulher, branca e compõe há quatro anos e meio, aproximadamente, a equipe técnica do serviço.

Nomeando a violência

O primeiro encontro da pesquisadora-residente com Maria foi no portão do Caps, numa manhã ainda cedo:

Maria estava dormindo no chão, e por um momento fiquei com medo de que ela não estivesse viva, de tão inanimado que o seu corpo estava no chão da rua. Maria, logo então, foi levada pela equipe para a sala de procedimentos e os cuidados necessários foram realizados, tendo a equipe concluído que ela só estava precisando descansar.

Na hora do almoço, uma profissional pediu para que eu acompanhasse Maria em sua refeição; ela ainda estava bastante inerte e eu precisava ajudá-la ativamente a comer. Cortei sua comida e levei algumas vezes a colher à boca, precisando falar alto: “Maria, acorda! Maria, mastiga!”. Fiquei com medo de que ela se engasgasse e morresse, pois mal conseguia mastigar. Em seguida, insisti para que ela mesma pegasse a colher e levasse a comida à boca, pensando que, se ela não conseguia fazer esse movimento de pegar a comida, também não teria condições de comer.

Nesse momento, uma outra mulher, também usuária do serviço, entrou na sala e falou que não era para eu ter nojo, era para eu pôr a comida em sua boca, já que ela não estava conseguindo pegar o talher. Fiquei dividida entre pôr a comida em sua boca e mostrar que não tinha nojo ou não a alimentar, pois achava que ela poderia se engasgar…. Às voltas com questões que eram minhas, mas que implicavam diretamente o cuidado com Maria. (Relato da pesquisadora-residente)

É estranha a escolha de começar a falar sobre uma pessoa por uma cena em que ela está quase somente como corpo. A opção deve-se ao fato de que esta mostra muito explicitamente como o encontro com Maria fala mais sobre quem o relata e suas próprias questões do que sobre Maria. É importante começar falando de Maria, mas na verdade sobre uma das autoras deste artigo, uma de nós, porque é sempre a partir dessa posição que cuidamos: não de um objeto, que se apresenta sempre da mesma forma, mas de pessoas, e é sempre e somente por meio da nossa relação com elas que podemos “acessá-las”.

Essa posição, é a que escolhemos sustentar ao longo deste trabalho e também diante das situações ditas de violência. Partindo desse lugar, propomos fazer um giro no nosso olhar sobre isso que até agora nomeamos violência, não para questionar de onde vem, qual sua natureza, se é violência ou agressividade - mas sim qual seu efeito em nós? Como a vivenciamos? Vieira (2008Vieira, M. A. (2008). O sintoma no coletivo. In A. L. L. Holck & M. A. Vieira (Eds.), Psicanálise na Favela. Projeto Digaí-Maré: A clínica dos grupos (pp. 25-35). Associação Digaí-Maré.) contribui para essa discussão ao articular violência urbana nas cidades brasileiras aos seus efeitos subjetivos:

Somos mergulhados em um ambiente de incerteza generalizada que perturba nossas balizas de realidade e apaga os limites do mal. O outro nome da angústia é, portanto, insegurança [ênfase adicionada]. Esse é o afeto da guerra sem fronteiras que vivemos. É preciso apenas não considerar o termo em seu sentido “psi” mais difundido, o de hesitação e dúvida; trata-se de insegurança no plano social, como a que vivemos hoje em nossas cidades. (p. 27)

O autor indica o quanto a insegurança, pela sua capacidade de apagar os limites, pode ser uma arma no sentido de que ela presentifica o perigo mesmo na ausência de um objeto de “perigo real”. O efeito da insegurança, segundo Vieira (2008Vieira, M. A. (2008). O sintoma no coletivo. In A. L. L. Holck & M. A. Vieira (Eds.), Psicanálise na Favela. Projeto Digaí-Maré: A clínica dos grupos (pp. 25-35). Associação Digaí-Maré.), é radical, visto que “a realidade se esfumaça porque descobrimos que nenhum lugar mais é seguro, . . . o universo sem limites, é perigoso” (p. 27).

Tomamos a liberdade de apontar que esse apagamento de limites mencionado por Vieira (2008Vieira, M. A. (2008). O sintoma no coletivo. In A. L. L. Holck & M. A. Vieira (Eds.), Psicanálise na Favela. Projeto Digaí-Maré: A clínica dos grupos (pp. 25-35). Associação Digaí-Maré.) é o sentimento vivenciado no Caps nas situações ditas de violência. Um esmaecimento dos limites, uma sensação de que o outro tudo pode e de que nós ficamos submetidos a ele, por vezes encarnado nos(as) nossos(as) usuários(as).

Com base nessa discussão e utilizando do conceito de situação-problema, desenvolvido pelo teórico abolicionista Louk Hulsman (1979, citado por Salles, 2011Salles, A. A. (2011). Louk Hulsman e o abolicionismo penal [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/3303/1/Anamaria%20Aguiar%20e%20Salles.pdf
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), propomos designar esses atos que até então denominamos de violência como situações-limite.

Hulsman (1982, citado por Salles, 2011Salles, A. A. (2011). Louk Hulsman e o abolicionismo penal [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/3303/1/Anamaria%20Aguiar%20e%20Salles.pdf
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) sugere, com a noção de situação-problema, desvincular situações conflituosas do sistema penal a partir de uma mudança de linguagem - como explica Salles (2011)Salles, A. A. (2011). Louk Hulsman e o abolicionismo penal [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/3303/1/Anamaria%20Aguiar%20e%20Salles.pdf
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: “o uso da palavra crime restringe o entendimento do acontecimento e limita as possibilidades de resposta com o uso da punição” (p. 122). Isso porque, quando uma situação é lida como um crime, o manejo de sua resolução torna-se limitado ao sistema de justiça criminal e a modelos punitivos.

A noção de situação-problema pode nos ajudar, nesses casos, a abrir mão da noção de crime e a compreender o evento - até então visto como criminoso - como parte da existência das pessoas envolvidas e que sua solução deve ser inventada por elas, e não expropriada pelo sistema penal. Com essa noção, propõe-se romper com a universalidade da lei para valorizar a singularidade dos eventos (Salles, 2011Salles, A. A. (2011). Louk Hulsman e o abolicionismo penal [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/3303/1/Anamaria%20Aguiar%20e%20Salles.pdf
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).

Quando propomos substituir o termo “violência” por “situação-limite”, pretendemos retirar a situação tida como de violência da malha de sentidos que acompanha a palavra. Violência, assim como a palavra crime, remete-nos ao sistema penal e à punição, mas também - pensando no contexto brasileiro - à violência urbana e à série de questões relacionadas a ela. Essa substituição abre espaço para analisarmos cada situação na sua singularidade e em seu contexto social.

Pretendemos, também, que o termo situação-limite permita um reposicionamento na cena tida como violenta, o qual inclua todas as pessoas envolvidas como sujeitos, não as separando entre objetos e sujeitos da ação, vítimas e violentadores.

Por fim, temos como objetivo que essa designação exponha os efeitos subjetivos produzidos nessas situações, tanto de apagamento dos limites, da fronteira entre as pessoas, como a não existência de um manual de como agir, uma vez que esses momentos mostram a nossa limitação em termos de ação. Trata-se de situações em que o outro aparece como sem barra alguma, ao mesmo tempo em que nós nos encontramos completamente limitados, o que evidencia nossa extrema vulnerabilidade.

Diante de uma situação-limite, convocamos uma regra, uma consequência, uma lei e, no extremo, a polícia, porque sentimos a necessidade de reorganizar os limites que caíram por chão. Essas soluções que comumente escolhemos para restituir esses limites se originam de práticas disciplinares, de controle e de correção dos anormais.

Caminhos antimanicomiais e abolicionistas

O século XIX marca o nascimento do poder disciplinar e de suas instituições e práticas. Nessa nova forma de controle da sociedade, o poder se deslocou da figura do soberano e passou a se exercer por meio da norma, espalhando-se pela sociedade na forma das instituições (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Vigiar e Punir: nascimento da prisão (20a ed.). Vozes.; Sousa & Menezes, 2010Sousa, N. C. & Meneses, A. B. N. T. (2010). O poder disciplinar: uma leitura em vigiar e punir. Saberes: Revista interdisciplinar de Filosofia e Educação, 1(4), 18-35. https://periodicos.ufrn.br/saberes/article/view/561/510
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).

O manicômio, a penitenciária, a casa de correção e os estabelecimentos de educação vigiada são algumas das instituições que nascem com o poder disciplinar e que, com seus conjuntos de técnicas, assumem a função de “medir, controlar e corrigir os anormais” (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Vigiar e Punir: nascimento da prisão (20a ed.). Vozes., p. 165); no caso do hospital psiquiátrico, o louco, no da prisão, o perigoso. O adestramento e docilização dos indivíduos por meio de relações de poder reguladas pelas normas serviam para impedir comportamentos perigosos e indesejáveis e produzir corpos úteis, produtivos e disciplinados para atenderem os interesses da burguesia (Sousa & Menezes, 2010Sousa, N. C. & Meneses, A. B. N. T. (2010). O poder disciplinar: uma leitura em vigiar e punir. Saberes: Revista interdisciplinar de Filosofia e Educação, 1(4), 18-35. https://periodicos.ufrn.br/saberes/article/view/561/510
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).

Foucault (2017Foucault, M. (2017). História da Loucura (11a ed.). Perspectiva.) mostra como o manicômio, por meio de um golpe de força, reduz os múltiplos rostos da loucura a uma unidade confusa que articula o remédio e o castigo, o gesto que pune e o que cura. Essa confusão torna difícil o nosso trabalho de construção de práticas antimanicomiais, pois o objeto doença mental, que a reforma psiquiátrica se propõe a desconstruir, detém um rosto múltiplo, é também o objeto louco, periculoso, ocioso, libertino, perigoso, violento.

Construir serviços e práticas antimanicomiais exige desconstruir não somente o discurso psiquiátrico, mas também práticas, discursos e ideias punitivistas, racistas, moralistas, machistas e segregadoras. Desconstruir o objeto violento - tema desta discussão - é um trabalho que exige que nos debrucemos sobre o discurso penal.

Davis (2019Davis, A. (2019). Estarão as prisões obsoletas? (3a ed.). Difel.) é uma autora que, assim como Foucault (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e Punir: nascimento da prisão (20a ed.). Vozes., 2017Foucault, M. (2017). História da Loucura (11a ed.). Perspectiva.), convoca-nos a discutir e repensar o discurso penal e seu caráter punitivista. Sua análise aponta para elementos que extrapolam o pensamento de Foucault (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e Punir: nascimento da prisão (20a ed.). Vozes., 2017Foucault, M. (2017). História da Loucura (11a ed.). Perspectiva.), relativos ao processo de racialização e sexualização dos corpos encarcerados. A autora pensa a prisão a partir do processo histórico estadunidense das plantations e do destino das pessoas que haviam sido escravizadas após a abolição (2003, citada por Carneiro, 2015Carneiro, S. R. G. (2015, Setembro 2-4). Angela Davis, o panóptico, as raças. In IV Colóquio Nacional Michel Foucault “O Ronco Surdo Da Batalha: 40 Anos de Vigiar e Punir”, Uberlândia, MG, Brasil. https://www.academia.edu/15457241/Angela_Davis_o_pan%C3%B3ptico_as_ra%C3%A7as
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).

A discussão sobre o abolicionismo penal toca de diversas maneiras o campo de cuidado às pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. É necessário salientarmos aqui que não são quaisquer pessoas usuárias de álcool e drogas que são capturadas pelo discurso penal. Como aponta Carneiro (2015Carneiro, S. R. G. (2015, Setembro 2-4). Angela Davis, o panóptico, as raças. In IV Colóquio Nacional Michel Foucault “O Ronco Surdo Da Batalha: 40 Anos de Vigiar e Punir”, Uberlândia, MG, Brasil. https://www.academia.edu/15457241/Angela_Davis_o_pan%C3%B3ptico_as_ra%C3%A7as
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), é o corpo negro que passa a estruturar o aparato prisional.

Davis (2019Davis, A. (2019). Estarão as prisões obsoletas? (3a ed.). Difel.) nos convoca a considerarmos os efeitos de um sistema de justiça racista, que criminaliza práticas específicas - como o uso de drogas - e comunidades e populações - como a negra. Nesse sentido, conforme Passos (2019Passos, R. G. (2019). Frantz Fanon, Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial no Brasil: o que escapou nesse processo? Sociedade em Debate, 25(3), 74-88. https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/2352/1607
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), a criminalização das pessoas negras produz a ideia de que elas são perigosas e, portanto, extermináveis, marcando seus corpos e subjetividades com a naturalização da violência nas relações sociais e instituições.

É importante notar que esse aparato não se restringe somente ao sistema prisional, mas abrange uma ideologia punitiva. Davis (2019Davis, A. (2019). Estarão as prisões obsoletas? (3a ed.). Difel.) aponta como a noção de crime está sempre associada às noções de punição ou castigo, e como a frequente repetição na cultura da expressão “crime e castigo” tornou muito difícil pensar a punição para além dessa associação, como se se tratasse de uma relação causal, na qual a prisão é um efeito natural do crime. Esse trabalho ideológico consiste em reconhecer que

a punição . . . está vinculada a projetos de políticos, ao desejo de lucro das corporações e às representações midiáticas do crime. O encarceramento está associado à racialização daqueles que têm mais probabilidade de ser punidos. Está associado a sua classe e, como vimos, a seu gênero, que também estrutura o sistema penal. Se insistimos que as alternativas abolicionistas perturbam essas relações, que se esforçam para desvincular crime e punição, raça e punição, classe e punição, gênero e punição, então nosso foco não pode se restringir apenas ao sistema prisional como uma instituição isolada, mas deve se voltar também para todas as relações sociais que sustentem a permanência da prisão (Davis, 2019Davis, A. (2019). Estarão as prisões obsoletas? (3a ed.). Difel., p. 121).

A autora denuncia como, nos Estados Unidos, escolas situadas em comunidades pobres e racializadas replicam as estruturas e os regimes das prisões ao valorizarem mais a disciplina e a segurança que o conhecimento e o desenvolvimento intelectual (Davis, 2019Davis, A. (2019). Estarão as prisões obsoletas? (3a ed.). Difel.).

Trazemos essa observação para perto de nós, trabalhadores da saúde mental, para afirmar que um Caps também pode reproduzir regimes disciplinares. O que escolhemos valorizar em um serviço é um posicionamento ético e político. Qual deve ser o nosso foco, o ato de transgressão e consequentemente a punição? Ou pensar em estratégias de que podemos lançar mão para tratar esses atos?

As situações-limite são acontecimentos que facilmente nos fazem ir atrás de soluções punitivistas: nós sentimos necessidade de convocar uma lei, universal e externa a nós, para conseguirmos lidar com a situação, para reestabelecermos os limites que foram apagados. A lei serve, nessas situações, não somente para limitar as(os) usuárias(os) do Caps, mas também organiza os profissionais, indica como eles devem agir.

Vieira (2008Vieira, M. A. (2008). O sintoma no coletivo. In A. L. L. Holck & M. A. Vieira (Eds.), Psicanálise na Favela. Projeto Digaí-Maré: A clínica dos grupos (pp. 25-35). Associação Digaí-Maré.) mostra como, diante do desamparo, sentimos a necessidade de trocar o objeto causa da angústia, que é indefinido, por um objeto preciso, de ódio ou temor. Esse deslocamento dá uma face universal para o que era insuportável. Não elimina o sofrimento, mas o localiza. Essa solução, porém, tem um preço alto para aqueles que encarnam o objeto de temor: serem encaixados na solução universal do outro. O autor aponta como direção singularizar os eventos angustiantes, encontrar outro modo de resposta que não a angústia, mas também não uma história pronta e universal.

É diante de situações incomuns ou adversas, em que certezas prévias se mostram sem valor resolutivo, que Tedesco e Rodrigues (2012Tedesco, S. & Rodrigues, C. (2012). A ética da metaestabilidade e a direção ética da clínica. Informática na Educação: Teoria & prática, 15(1), 159-170. https://doi.org/10.22456/1982-1654.29088
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) apontam a relevância da noção de ética como exercício, como invenção de novas modalidades de relações com os códigos e normas1 1 Sobre essa discussão, ver o trabalho de Rodrigo Nascimento (2017). . Os autores trazem a noção do sujeito jurídico, submisso às leis e normas instituídas, e do sujeito ético, que experimenta novas relações com as normas e códigos, reconduzindo-as para a produção de configurações inéditas para si mesmo e ao mundo.

Arriscamos-nos a olhar advertidamente uma frase que a pesquisadora-residente escutou algumas vezes no Caps: “os pacientes fazem coisas e essas coisas não têm consequências. O que se quer dizer com a palavra consequência? Que consequência é possível frente a uma “transgressão”? Podemos entrar nessa discussão de quais são as consequências, dentro de um Caps, de uma pessoa usuária do serviço transgredir uma regra, agredir alguém ou quebrar um objeto. Mas escolhemos mudar o foco do que seria nossa atuação numa situação como essa: ao invés de dar total atenção à consequência, podemos nos concentrar, por exemplo, em escutar dessa pessoa o que a levou a “fazer essa coisa”, em entender como evitar que isso se repita ou em ajudar essa pessoa a reparar o que ela afligiu. Não repetir a relação transgressão-punição exige que pensemos múltiplas alternativas e estratégias, exige complexidade.

Nem loucos, nem culpados

É preciso, ainda, demorar-nos em outra questão. O que nos faz, no cotidiano dos serviços, perceber alguém como menos louco e mais culpável, menos como objeto da psiquiatria e mais da polícia?

Perguntamos isso porque era uma cena comum - percebida pela pesquisadora-residente nos seus diversos cenários de atuação ao longo da residência -, quando se discutia uma situação-limite envolvendo algum(a) usuário(a), interrogar se a pessoa estava ou não em crise no momento do ocorrido. A ausência de compreensão de uma crise no momento do ato tornava a pessoa mais passível de ser tomada como culpada, e a atuação das equipes mais disciplinar.

Essa vivência expõe um modo dualista de lidar com as situações-limite, como se tivéssemos somente uma lente para compreender a situação: a da doença mental. Esta é vista, então, somente como dentro ou fora da doença. Quando se entende que se trata de um comportamento dentro da doença, nós tomamos essa situação-limite como algo de nossa atribuição e responsabilidade; nós a incluímos no processo de cuidado dessa pessoa, o qual pode se dar de forma humanizada ou não.

Quando compreendemos a situação-limite como fora da doença, nós apontamos que ela não é da nossa competência enquanto trabalhadores de saúde mental. Nós excluímos a possibilidade de que o comportamento aconteça no serviço; muitas vezes falamos para a pessoa: “isto não é possível aqui” e ponto. Sabemos que em alguns serviços esse ato fora da doença pode se tornar um motivo de expulsão da pessoa, alta administrativa. Mas nós não o fazemos apenas desse modo: também levamos indiretamente à expulsão quando apontamos que certo tipo de comportamento não é possível e a pessoa não consegue se adaptar a essa exigência.

Os modos como a equipe do Caps desta pesquisa lida com as situações-limite de Maria revelam essa dualidade. Silvia relata que, por muito tempo, entendia-se que Maria era uma histérica grave e que, somente após determinado tempo de acompanhamento, a equipe passou a entender que se tratava de um diagnóstico do campo da psicose:

Eu acho que, num grande momento da história dela, a gente topava isso, mas a equipe toda, não. Mas ela dá abertura pra que mais gente pudesse fazer intervenções, mas muitas das vezes, como tinha um diagnóstico de histeria grave, equivocadamente a equipe via muito uma coisa disciplinar, o que só propiciava a violência a crescer. Eu lembro que assim, eu e [a técnica do CAPS], eu acho que nunca rolou uma intervenção que fosse na disciplina . . . sempre foi numa ordem da construção da angústia vir a palavra (Entrevista com Silvia).

Rotelli (2001Rotelli, F. (2001). A instituição inventada. In M. F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (2a ed., pp. 89-99). Hucitec.) aponta que a instituição colocada em questão no processo da reforma psiquiátrica não é apenas o manicômio, mas sim todo “o conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência cultural e de relações de poder estruturados em torno de um objeto bem preciso: ‘a doença’, à qual se sobrepõe no manicômio o objeto ‘periculosidade’” (p. 90).

O autor aponta que nosso objeto deve ser a “existência sofrimento do paciente e sua relação com o corpo social” (Rotelli, 2001Rotelli, F. (2001). A instituição inventada. In M. F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (2a ed., pp. 89-99). Hucitec., p. 90), e que para isso é preciso reconstruir a complexidade desse objeto. Esse processo, porém, não diz respeito somente à desinstitucionalização de um objeto, mas também a uma reorientação das instituições de cuidado, que precisam estar à altura desse novo objeto. Essas “instituições inventadas” precisam ter como objetivo não a cura, mas a produção da vida e a reprodução social, por meio de processos de singularização.

As situações-limite precisam também ser lidas por essa lente proposta por Rotelli (2001Rotelli, F. (2001). A instituição inventada. In M. F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (2a ed., pp. 89-99). Hucitec.), isto é, como expressão da existência e do sofrimento das pessoas de quem cuidamos. Silvia e Levi mostram, em diversos momentos das suas falas, como a noção de sofrimento é um elemento importante para o entendimento da responsabilidade dos trabalhadores de suportar e cuidar das situações-limite dentro do Caps:

Algumas pessoas conseguem enxergar o sofrimento, em alguns momentos, a gente conseguiu transmitir o sofrimento, por exemplo, quando a gente abriu em reunião de equipe a história [fala sobre infância de Maria] . . . isso deu um lugar novo pra ela com uma parte da equipe, não foi pra todos, mas mais gente começou a topar de se aproximar (Entrevista com Silvia).

Identificamos a função de suportar como uma ação de cuidado do trabalhador de saúde mental. O insuportável comparece tanto pelo fato de que a instituição é muito difícil para a pessoa usuária do serviço como por ela desafiar as normas da instituição. É importante que o trabalhador ocupe uma função de mediação, de um contorno do excesso, viabilizando a permanência dessa pessoa no serviço por meio de um processo de imprimir palavras e sentidos ao excesso, criando estratégias para abordá-lo. Suportar o excesso não é simplesmente aguentar o insuportável, é exercer uma função de suporte: auxiliar a pessoa a “portar” seu excesso e, com esse trabalho, poder gerar outros contornos e formas de escoar o que até então “não cabia”, aquilo que extrapolava.

Essa função está ligada a dois trabalhos relacionados entre si: uma leitura da história e do modo de estar na vida da pessoa usuária, e a partir dessa leitura, a construção de um cuidado que visa à produção de vida. Esses processos estão relacionados às pessoas de que cuidamos e também às nossas trajetórias pessoais, nossas singularidades. Cada um possui recursos diferentes, relacionados à própria história, seu território e sua formação enquanto pessoa e trabalhador. Por exemplo:

Eu acho que a gente tem pouco conhecimento da psicose quando ela transborda em violência . . . muito rapidamente a gente caí na armadilha da disciplina, do pode ou não pode . . . para tá aqui ela tem que tá mostrando o que é essa psicose, porque quando passa ao ato mostra mais uma partezinha pra gente poder manejar mais coisa lá na frente, né (Entrevista com Silvia).

Eu particularmente nem gosto de ficar falando nisso, cara, o negão fica até emocionado, que é muito sofrido, cara, então, cadê as autoridades lá? Dentro da comunidade, pra ver essa galera? Ajudar esse povo. Porque eu moro dentro da favela, tu entrou na Teixeira, eu moro logo ali na frente, mas vê o negócio lá atrás, o negócio é lá atrás. Quando o pessoal faz aquelas operações, saí empurrando, batendo no barraco, que nem a gente ouve muito, ouve pelo rádio, televisão, eles dizerem que tem que ter um documento, tem nada, filha, o pessoal lá entra na nossa casa como um... entendeu? Já entra com chave, que eles falam “mista”, entendeu? É muita diferença, cara, mas muita, tu não vê isso na zona sul, cara... é filha, é um povo muito sofrido, cara, muito mesmo (Entrevista com Levi).

Silvia é psicóloga e tem muita experiência no campo da saúde mental. Em seu relato, ela mobiliza alguns conceitos da psicanálise, que funcionam para ela como uma lente para conseguir ler e se situar diante das situações que Maria traz. Do mesmo modo, Silvia também se utiliza da noção de crise para compreender as situações-limite de Maria. Aqui, não se trata da ideia de crise como fase de agudização de uma sintomatologia psiquiátrica, mas, conforme discute Moebus (2014Moebus, R. (2014). Crise - Um conceito constitutivo para a saúde mental. In M. P. C. Gomes & E. E. Merhy (Orgs.), Pesquisadores IN-MUNDO: Um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental (pp. 43-54). Rede Unida. https://editora.redeunida.org.br/project/pesquisadores-in-mundo-um-estudo-da-micropolitica-da-producao-do-acesso-e-barreira-em-saude-mental/
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), como crise subjetiva - noção que traz a dimensão da crise como um acontecimento, como algo produtivo, oriundo da impossibilidade de simbolização e discurso. Sendo a função do serviço acolher essa crise, promovendo um processo criativo e alternativo ao fracasso.

Em seu relato, Levi traz seu território geográfico e existencial ao ler a existência das pessoas usuárias do Caps. Ele mora em uma favela, assim como muitas das pessoas usuárias do serviço, e relaciona em diversos momentos o sofrimento mental dessas pessoas ao sofrimento daquelas que vivem nas favelas do Rio de Janeiro, à luz da “violência estrutural de uma sociedade que exclui material e simbolicamente uma parcela imensa de seus membros” (Bezerra Jr., 2004Bezerra Jr., B. C. (2004). O cuidado nos Caps: Os novos desafios. In P. Albuquerque & M. Libério (Orgs.), O cuidado em saúde mental: ética, clínica e política. (pp. 3-11). Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro., p. 6).

Levi não enxerga o sofrimento mental como uma questão individualizada; sua leitura vai na contramão do discurso hegemônico, que transforma o sofrimento mental oriundo das expressões do racismo em um problema psiquiátrico (Passos, 2019Passos, R. G. (2019). Frantz Fanon, Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial no Brasil: o que escapou nesse processo? Sociedade em Debate, 25(3), 74-88. https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/2352/1607
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). Assim, ele traz à cena questões estruturais que são comumente abordadas na ordem do subjetivo. Para Passos (2019)Passos, R. G. (2019). Frantz Fanon, Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial no Brasil: o que escapou nesse processo? Sociedade em Debate, 25(3), 74-88. https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/2352/1607
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, o racismo no Brasil, pelo fato de não vivermos a institucionalização do apartheid, faz com que vivamos sob uma silenciosa separação por meio das relações sociais - um racismo silencioso que produz intenso sofrimento à população negra e que se manifesta como problema individual.

Levi traz essa dimensão para o debate a partir de seu próprio corpo e história. Esse é um recurso seu para lidar com o sofrimento e o excesso que se presentificam no serviço. Esse recurso, porém, não pode ser somente partilhado por alguns. O racismo é estrutural, elemento integrante da organização política e econômica da sociedade, que se manifesta nos modos de sociabilidade, na naturalização das desigualdades e na violência. Isso torna necessário que, em um Caps, a questão racial seja aprimorada por todos os trabalhadores e em todas as esferas que compõem o campo: teórico-conceitual, técnico-assistencial, sociocultural e jurídico-política (Passos, 2019Passos, R. G. (2019). Frantz Fanon, Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial no Brasil: o que escapou nesse processo? Sociedade em Debate, 25(3), 74-88. https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/2352/1607
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).

O Caps precisa ser lugar de produção de recursos e de singularização também para o trabalhador. No trabalho em saúde mental, é preciso pensar a singularidade de dois modos: a da pessoa usuária do serviço e a do trabalhador. Deve-se também entender que é necessário buscar a relação entre essas duas singularidades, pois o profissional precisa descobrir o seu modo singular de se relacionar com a pessoa usuária. Que lugar eu ocupo para essa pessoa de que estou cuidando? Como me sinto ao ocupar esse lugar? Às vezes, o lugar em que a pessoa usuária nos coloca pode ser muito difícil de sustentar, como é o caso nas situações-limite.

Silvia relata que propõe pausas para Maria quando a relação entre as duas fica difícil. Esses momentos articulam tanto a singularidade de Silvia como a de Maria; são um espaço para que Sílvia se cuide e possa preservar seu vínculo com Maria, mas também uma intervenção, um apontamento que faz sentido dentro da leitura que ela faz do caso: a de que entender que é preciso cuidar de si para cuidar do outro é justamente uma das dificuldades de Maria na vida. Silvia se põe como elemento da cena:

porque, em alguns momentos, ela ia para cima de alguns técnicos, . . . e, quando ela entendeu que aquilo era sofrimento, ela falou que não podia produzir sofrimento pra outros. . . . Então tem alguma construção que ela entendeu que o sofrimento dela não pode virar um sofrimento físico para outras pessoas também (Entrevista com Silvia).

Entendemos que uma das principais dimensões dessa lente de compreensão é que, enquanto o discurso psiquiátrico e o penal nos fazem tomar a pessoa como objeto, ela permite trabalharmos as situações-limite de modo relacional. Nós trabalhadores nos incluímos na cena e em relação com uma pessoa, não com um objeto. Esse último relato mostra como Maria pôde construir outro modo, menos produtor de sofrimento, de pôr em ato sua angústia, a partir de um trabalho de incluir também o sofrimento dos trabalhadores em sua forma de lidar com suas situações-limite.

Como cuidar de uma vida matável?

Discutir os desafios entre cuidado e violência em um Caps AD localizado no município do Rio de Janeiro exige, também, pensarmos como a política da guerra às drogas nos afeta. Esta é um dos dispositivos de produção do inimigo ficcional do Estado brasileiro que autoriza a manutenção dos espaços de exceção dentro das favelas e territórios periféricos e a morte de pessoas pobres e negras: vidas matáveis (Barros, Nunes, Souza, & Cavalcante, 2019Barros, J. P. P., Nunes, L. F., Sousa, I. S., & Cavalcante, C. O. B. (2019). Criminalização, extermínio e encarceramento: Expressões necropolíticas no Ceará. Revista Psicologia Política, 19(46), 475-488. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v19n46/v19n46a08.pdf
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).

Lima (2018Lima, F. (2018). Bio-necropolítica: Diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe [Número especial]. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70, 20-33. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v70nspe/03.pdf
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) aponta que, nos contextos coloniais e neocoloniais, “a vida (a bios) não foi o lugar historicamente onde as redes de poder encontraram territórios privilegiados, mas a morte e a possibilidade do matável constituiu o organizador das relações sociais” (p. 22). As noções de necropolítica e necropoder são propostas por Mbembe (2018Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1 edições.) para explicar os modos como o poder se constitui para criar “mundos de morte”, territórios que produzem formas de existência as quais submetem populações inteiras a condições de vida com o status de “mortos-vivos”. Mbembe (2018)Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1 edições. destaca que a ocupação colonial marcou uma inscrição territorial de novas relações sociais e espaciais equivalente

à produção de fronteiras e hierarquias, zonas e enclaves; a subversão dos regimes de propriedade existentes; a classificação das pessoas de acordo com diferentes categorias; extração de recursos; e, finalmente, a produção de uma ampla reserva de imaginários culturais. . . . O espaço era, portanto, a matéria-prima da soberania e da violência que ela carregava consigo (p. 39).

Nesse espaço, o racismo ocupa a função “de regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado” (Mbembe, 2018Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1 edições., p. 18). Lima (2018Lima, F. (2018). Bio-necropolítica: Diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe [Número especial]. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70, 20-33. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v70nspe/03.pdf
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) nos convoca a pensar, a partir da discussão da necropolítica, as marcas da ocupação colonial na sociedade brasileira. A autora salienta que nos constituímos desde o princípio como uma zona de exceção - processo que configurou e configura territórios e práticas sociais, principalmente nos espaços onde estão as populações negras e pobres e que permanecem como cenários para as guerras nos seus formatos atuais.

Como, na posição de trabalhadores da saúde, agentes do estado em uma zona de exceção, trabalhar operando na lógica contrária à de deixar morrer? O fato de as relações de poder se darem também na micropolítica nos posiciona tanto como potenciais soberanos quanto como potenciais produtores de processos de resistências.

Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira. aponta que, com frequência, populações expostas à violência do Estado não têm outra opção senão recorrer ao próprio Estado em busca de proteção, embora seja justamente dele que elas precisam ser protegidas. A autora discorre sobre a precariedade da vida como condição generalizada de todos os seres vivos.

Segundo Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira., para que qualquer ser vivo sobreviva, ele precisa ser sustentado por várias condições sociais e econômicas, o que implica uma dependência do que está fora de si, isto é, de outros, de instituições e de ambientes. Porém, antes de a vida ter o estatuto de precariedade reconhecido, ela precisa ser reconhecida com uma vida passível de ser enlutada. A autora pergunta em que condições uma vida é apreendida como precária e em que condições isso se torna menos possível ou impossível.

A precariedade implica o reconhecimento de uma condição compartilhada entre todos os seres vivos, produzindo reciprocidade, mas também implica que cada corpo se encontre potencialmente ameaçado por outros corpos, o que conduz a uma potencialização da violência e produção de formas de dominação (Butler, 2016Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira.).

A autora reflete sobre como a guerra é um processo que divide populações entre passíveis e não passíveis de luto, com o propósito de defender a vida dos enlutáveis daquela dos não enlutáveis: maximiza-se a precariedade de uma população para minimizar a precariedade de outra (Butler, 2016Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira.).

Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira. traz uma questão que consideramos central: “o que seria necessário não somente para apreender o caráter precário das vidas perdidas na guerra, mas também para fazer com que essa apreensão coincida com uma oposição ética e política às perdas que a guerra acarreta?” [ênfase adicionada] (p. 29).

Ainda, como essa estrutura que enquadra vidas como não passíveis de luto produz comoção? Como esta se relaciona com o julgamento e a prática ética e política? Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira. indica que uma vida ser passível de luto ou não “tem implicações sobre por que e quando sentimos disposições afetivas politicamente significativas, tais como horror, culpa, sadismo justificado, perda e indiferença” (p. 45).

Tomamos como ponto para reflexão a fala de um profissional do Caps sobre a insegurança que ele sentia perante situações-limite no serviço. Ele apontava que, as vidas das pessoas usuárias do serviço importam assim como as dos trabalhadores.

Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira. fala de como a exposição do nosso corpo aos outros é, ao mesmo tempo, sua promessa e sua ameaça. Muitas vezes o Caps é, para seus(suas) usuários(as), a única instituição a garantir algumas condições mínimas de sobrevivência, como assistência à saúde, obtenção de documentos de identificação, acesso a refeições, banheiro, guardar em segurança objetos pessoais, medicação, acolhimento noturno etc.

Assim, para algumas pessoas usuárias, nós somos sua promessa; mas, quando não podemos atender algum de seus pedidos, somos sua ameaça. Quando nos tornamos ameaça, é bastante comum que algo se inverta nessa relação, e que, então, nós, trabalhadores do Caps, passemos a ser ameaçados. De repente, não é mais a pessoa usuária que está em nossas mãos, e sim nós que estamos nas suas.

Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira. nota que “o fato de a sobrevivência de uma pessoa estar tão estreitamente relacionada com o outro constitui o risco constante da sociabilidade: sua promessa e sua ameaça” (n. 96). A noção de situação-limite exprime justamente os efeitos subjetivos disso que Butler aponta, ou seja, da vulnerabilidade extrema que é sentida quando o outro se torna uma ameaça, por comparecer sem limite.

Trazemos à discussão novamente o fato do uso da noção de situação-limite incluir como sujeitos todas as pessoas envolvidas. Tanto nós, trabalhadores, como as pessoas usuárias do serviço nos confrontamos com o desamparo e a insegurança. Também nós, trabalhadores, podemos comparecer para uma pessoa usuária do serviço em uma posição que produz para ela a sensação de que tudo podemos e de que ela está submetida a nós, assim como produzimos desamparo. As pessoas usuárias respondem a isso, por vezes, com atos que são tomados como violentos.

A noção de precariedade implica uma dependência de redes e condições sociais. Vidas que não possuem o estatuto de passíveis de luto, e por isso não detêm essas condições sociais para sua sustentação, tornam-se vulneráveis e expostas. A violência é um modo de resistência para existir. Silvia aponta essa relação na vida de Maria:

foi o único recurso que ela aprendeu, né. Se você olhar a história dela, ela aprendeu só no vazio, né, no vazio o que sobra é a violência; se eu não tenho perspectiva, se eu não tenho rede, se eu não tenho família, se eu não tenho intervenção social, o que me resta é a violência, assim, é o que me faz existir (Entrevista com Silvia).

Ainda pensando na questão da comoção, questionamos se nos indignamos com o desamparo que as pessoas usuárias sentem no mesmo nível em que nos indignamos com o desamparo que nós, profissionais, sentimos diante de suas ameaças.

Nesse contexto, a indicação de Butler (2016)Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira. de compreender a precariedade como compartilhada faz muito sentido. Não teria a violência que nós sentimos a mesma origem que a violência sentida pelas pessoas usuárias? Não estamos todos nós sofrendo de uma violência do Estado, que não garante condições de vida para todos seus cidadãos? É possível nos comovermos de modo compartilhado com essa violência?

Trazemos esses questionamentos não no sentido de pensarmos que somos todos iguais, que essa violência nos atinge do mesmo modo. Ela não atinge. Uma pessoa usuária está muito mais vulnerabilizada diante dessa violência que os trabalhadores do Caps, assim como os trabalhadores, entre si, também não estão igualmente vulneráveis. Um profissional que trabalha prestando serviço de apoio tende a estar numa posição mais exposta à violência que um profissional de nível superior, por exemplo. E é preciso levar em conta essa diferença.

Quando apontamos a importância de nos localizarmos coletivamente como expostos à violência, trata-se de evitar a perspectiva que opõe os trabalhadores às pessoas usuárias do Caps, como se as formas de violência que atingem uns e outros fossem completamente distintas. Localizarmo-nos como expostos (mesmo que em menor medida e de modo diferente) à mesma violência que a pessoa usuária do serviço está exposta nos inclui e nos responsabiliza; faz com que, ao invés de nos sentirmos ameaçados pelo outro, nos sintamos solidários.

Esse deslocamento de perspectiva parece pouco, mas, ainda que não nos torne menos expostos à violência, faz com que não localizemos a fonte dessa violência nas pessoas usuárias do serviço - e faz toda a diferença não se sentir ameaçado por aqueles de quem cuidamos.

Levi revela como a questão da comoção tem impacto no processo de cuidado. Ele fala a partir de seu lugar: de um homem que mora numa favela e que também sofre diretamente a violência estatal, de modo semelhante a muitas das pessoas usuárias do serviço. Esse pertencimento faz com que Levi não se assuste com as situações-limite que vivencia no Caps e, como mencionado anteriormente, também com que consiga compreendê-las como relacionadas à violência do território.

Em sua fala, Levi traz a ideia de que o território geográfico e existencial das pessoas usuárias se faz presente dentro dos serviços. Para ele, é um dificultador o fato de muitos trabalhadores viverem em territórios distintos daquele dos(as) usuários(as):

Mas eu entendo os profissionais que trabalham aqui, muitos vêm da zona sul, não tá acostumada, dentro da comunidade. Que nem eu falo sempre pra vocês, o negão não estudou, não, entendeu? Mas eu moro dentro da comunidade, eu vejo muita coisa (Entrevista com Levi).

É que eu falo, gente, eu sei que vocês fizeram faculdade, seria legal, cara, um dia vocês falarem assim: “Não, Levi, um dia quero passar um dia contigo dentro da comunidade, a gente dá uma volta dentro da comunidade”, pra mostrar o dia a dia, cara. Que nem eu falo pra vocês, vocês se formaram na faculdade, mas aí, tem as pessoas que falam assim pra mim: “então, cara, você tem outra faculdade, tua faculdade é da favela” (Entrevista com Levi).

Nessa última fala, Levi mostra que, embora não tenha formação de nível superior, ele apresenta uma faculdade, a da favela, que é imprescindível para seu trabalho no Caps. A faculdade da favela constitui um saber sociológico do território de muitos(as) dos(as) usuários(as) do serviço, bem como uma disposição afetiva de valorização da vida das pessoas usuárias do Caps, levando em conta a violência e o racismo estrutural a que elas estão submetidas como lente para enxergar suas existências.

Como bem diz Lancetti (2016Lancetti, A. (2016). Clínica peripatética (10a ed.). São Paulo: Hucitec.), a ação dos profissionais de saúde, mesmo dos mais bem qualificados, será insignificante se eles “não se acharem imbuídos da atração pela loucura e pela impossibilidade e gosto de cuidar e produzir mudança. Da paixão pela diferença” (p. 103). A partir das suas experiências no Caps, Silvia e Levi apontam algumas posições e estratégias que agrupamos como ferramentas de vínculo, para conseguirem se localizar diante das situações-limite:

Então foi assim, foi muito intenso, um processo muito intenso. E eu acho que dessa intensidade da relação dela com a filha e da nossa proximidade, de eu e [técnica do Caps], que ela autoriza manejos importantes que a gente faz em momentos em que ela tá muito agressiva e muito angustiada (Entrevista com Silvia).

Certa vez, em supervisão clínico-institucional no Caps, uma profissional falou sobre como só é possível pôr limites quando se está dentro de uma relação com a pessoa; fora de uma relação, essa ação torna-se arbitrária, violenta. Silvia expõe claramente que é por causa do seu vínculo com Maria que ela consegue ser autorizada a intervir em momentos críticos.

É necessário que a pessoa usuária confie no trabalhador que põe limites. É preciso que ela saiba que esse outro que, por exemplo, está lhe negando algum pedido se preocupa com ela, leva suas questões em conta; que ele não faz isso por capricho ou autoritarismo e não é uma ameaça a sua sobrevivência. É preciso ser autorizado.

Levi traz uma outra face da ferramenta vínculo: o respeito, que se relaciona intimamente com a discussão sobre disposição afetiva. Levi se coloca na mesma posição que a dos(as) usuários(as) - a de seres humanos - e é desse lugar que se relaciona com eles, cumprimentando-os, abraçando-os, falando com eles na rua, não só no Caps.

Essa fala de Levi nos remete à discussão de Lancetti (2016Lancetti, A. (2016). Clínica peripatética (10a ed.). São Paulo: Hucitec.) acerca da noção de amigo terapêutico. O autor aponta que, no trabalho em saúde mental, muitas vezes só é possível estabelecer uma relação de tratamento quando se está na posição de amigo. Essa posição exige afeto, mas também colocar-se como igual, no mesmo plano - assim como nos mostra Levi. Para Lancetti (2016)Lancetti, A. (2016). Clínica peripatética (10a ed.). São Paulo: Hucitec., “o terapeuta amigo transita em situação paradoxal - é ao mesmo tempo amigo e estrategista, dada a permanente avaliação passo a passo do percurso” (p. 116).

No Caps AD em questão, a importância de assumir essa posição se radicaliza. Trabalhar com uma população tão segregada requer processos de apreensão do outro distintos das relações terapeuta e paciente que aprendemos nas graduações relacionadas à área da saúde. Requer, antes de tudo e qualquer coisa, enxergarmos as pessoas usuárias do serviço como seres humanos, porque é essa a condição que lhes é negada pela necropolítica. Como aponta Lancetti (2016Lancetti, A. (2016). Clínica peripatética (10a ed.). São Paulo: Hucitec.), a posição de amigo produz processos de resistência, pois “proporciona uma presença continuada que permite furar o cerco da separação fundamental de uma sociedade onde essas pessoas não têm lugar para existir” (p. 114).

Considerações finais

Este trabalho aponta para o processo de transformação de si que, enquanto trabalhadores da saúde mental, precisamos fazer para que possamos cuidar de uma população que sofre diretamente com a necropolítica. Produzir cuidado na lógica antimanicomial exige espaços de discussão coletiva dos trabalhadores sobre os afetos, a insuportabilidade, as dificuldades e inseguranças frente ao trabalho, especialmente diante das situações-limite. Além disso, é necessário incluirmos em nosso cotidiano a discussão sobre os atravessamentos do racismo. Somente ao dar espaço para essas questões é possível criar relações singulares e éticas com as pessoas usuárias do Caps.

É necessário reforçar que a valorização das vidas das pessoas em sofrimento mental que fazem uso de álcool e outras drogas não é um trabalho que um ou mesmo vários dispositivos de saúde consigam realizar. Como declarado no Manifesto de Bauru2 2 Originalmente publicado em 1987 por ocasião do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, o Manifesto de Bauru está disponível no site do Conselho Federal de Psicologia: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf , a reforma psiquiátrica é um processo de luta contra a exclusão e a violência institucionalizadas do aparato manicomial. O manicômio é uma das expressões de uma estrutura de opressão da sociedade, que se presentifica “nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres” (parágrafo 4). Portanto, a valorização da vida das pessoas é também um trabalho político - como se lê no Manifesto (parágrafo 4), “significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”.

Ambos esses modos de produção de resistência são necessários e não são processos dissociados. Como aponta Bezerra Jr. (2004Bezerra Jr., B. C. (2004). O cuidado nos Caps: Os novos desafios. In P. Albuquerque & M. Libério (Orgs.), O cuidado em saúde mental: ética, clínica e política. (pp. 3-11). Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.), a Reforma Psiquiátrica se constituiu apostando em um cuidado no limite entre o individual e o coletivo, termos que se distinguem, mas não se separam:

Quando se supera a oposição entre clínica e política, entre sujeito e mundo, estamos defendendo que sujeito e mundo se co-engendram participando de um mesmo processo de produção. Falamos, então, de processo de produção de realidade de si e de mundo (p. 7).

Neste trabalho, nos debruçamos sobre questões que podemos nomear da clínica ou do cuidado, buscando, porém, nos posicionar justamente no espaço dos limites entre o eu e o outro, entre o individual e o coletivo, entre a clínica e a política. Não esperamos dar conta de problemas extremamente complexos, mas sim percebermos que nós também estamos inseridos nesses problemas e temos responsabilidades diante deles.

Compreender nossa responsabilidade no cuidado a pessoas expostas à violência estrutural se relaciona intimamente à escolha de se posicionar na lógica contrária à de deixar morrer. Produzir resistências e possibilidades de cuidado implica, seguindo novamente Rotelli (2001Rotelli, F. (2001). A instituição inventada. In M. F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (2a ed., pp. 89-99). Hucitec.), pensar a relação dos atos e dos modos de expressão das pessoas usuárias em relação ao corpo social em que elas se localizam. É se responsabilizar por entender um ato tido como individual em suas dimensões sociais, políticas, históricas e singulares, mobilizando, assim, compreensões que se desvinculem da lógica crime e punição.

Nossa responsabilidade vai além da formação de compreensões e olhares produtores de vida: abrange nossos afetos e modos de relação com o outro. Trata-se de se dispor a pensar politicamente nossos afetos envolvidos no cuidar e de priorizar a construção de vínculos e acesso antes dos limites.

Nesta exploração de caminhos possíveis para sustentar práticas de cuidado diante da violência, nos dedicamos a pensar sobre “nós”, trabalhadores da saúde mental, e nossas visões, ferramentas, afetos e formas de se relacionar, de modo que apontamos muito especificamente somente algumas possibilidades de resistência a uma política de morte. Este escrito consiste em uma pequena contribuição a uma questão complexa, prioritária e ainda pouco refletida e pesquisada no campo da atenção psicossocial. Outros percursos ainda precisam ser construídos, trilhados e discutidos.

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  • 1
    Sobre essa discussão, ver o trabalho de Rodrigo Nascimento (2017)Nascimento, R. C. (2017). Marés de cuidados, violências, fluxos e desenrolos: Cenas de uma cartografia à deriva. [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Repositório institucional da UFRJ. http://objdig.ufrj.br/30/teses/792633.pdf
    http://objdig.ufrj.br/30/teses/792633.pd...
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  • 2
    Originalmente publicado em 1987 por ocasião do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, o Manifesto de Bauru está disponível no site do Conselho Federal de Psicologia: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2020
  • Revisado
    04 Jul 2021
  • Aceito
    11 Ago 2021
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