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PSICOPATOLOGIA E ABSOLUTISMOS: UNIVERSALISMO, OBJETIVISMO E FUNDACIONALISMO NA SAÚDE MENTAL1 1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

PSICOPATOLOGÍA Y ABSOLUTISMOS: UNIVERSALISMO, OBJETIVISMO Y FUNDACIONALISMO EN LA SALUD MENTAL

RESUMO.

A área da psicopatologia -, aquela que contém o conjunto de conhecimentos referentes ao adoecimento mental - é permeada por diversas controvérsias de âmbito teórico, prático, ético e metodológico. A grande diversidade de modelos explicativos é uma das características da psicopatologia que contribuem para a criação e manutenção dessas controvérsias existentes, ao mesmo tempo em que estabelece desafios para o profissional dedicado a essa área do saber. Nesse artigo aborda-se a concepção de a existência de absolutismos tais como universalismo, objetivismo e fundacionalismo contribuir para as dificuldades de diálogo entre profissionais adeptos dos diferentes modelos explicativos existentes na psicopatologia. Tais dificuldades prejudicam tanto a pesquisa científica como o próprio tratamento de pacientes e, portanto, faz-se urgente um melhor entendimento dessas formas de absolutismo para que seja possível superá-las, sendo esse o principal objetivo desse artigo. Como alternativa aos absolutismos defende-se tanto o pluralismo em todos os âmbitos referidos anteriormente como o diálogo no sentido proposto por Hans-Georg Gadamer. Isso favorece a existência democrática da diversidade de modelos explicativos sem incorrer em dogmatismos que dificultem ou mesmo impeçam o diálogo interprofissional.

Palavras-chave:
Psicopatologia; absolutismo; pluralismo

RESUMEN.

El área de la psicopatología -, aquella que contiene el conjunto de conocimientos referentes a la enfermedad mental - está impregnada por diversas controversias de ámbito teórico, práctico, ético y metodológico. La gran diversidad de modelos explicativos es una de las características de la psicopatología que contribuyen a la creación y mantenimiento de esas controversias existentes, al mismo tiempo que establece desafíos para el profesional que se dedica a esa área del saber. En este artículo abordamos la concepción de la existencia de absolutismos tales como universalismo, objetivismo y fundacionalismo contribuyeren a las dificultades de diálogo entre profesionales adeptos de los diferentes modelos explicativos existentes en la psicopatología. Tales dificultades dificultan tanto la investigación científica como el propio tratamiento de pacientes y, por lo tanto, se hace urgente un mejor entendimiento de los absolutismos para que sea posible superarlos, y es ese el principal objetivo de ese artículo. Como alternativa a los absolutismos defendemos tanto el pluralismo en todos los ámbitos mencionados anteriormente como el diálogo en el sentido propuesto por Hans-Georg Gadamer. Eso favorece la existencia democrática de la diversidad de modelos explicativos sin que se incurra en dogmatismos que dificultan o incluso impidan el diálogo interprofesional.

Palabras clave:
Psicopatología; absolutismo; pluralismo

ABSTRACT.

The area of psychopathology -, that which contains the set of knowledge related to mental illness - is permeated by several controversies of theoretical, practical, ethical and methodological scope. The great diversity of explanatory models is one of the characteristics of psychopathology that contributes to the creation and maintenance of these existent controversies, while at the same time establishing challenges for the professional that is dedicated to this área of knowledge. In this article we defend the conception of ​​the existence of absolutisms such as universalism, objectivism and foundationalism contribute to the difficulties of dialogue between professionals who are adept of the different explanatory models existing in psychopathology. Such difficulties undermine both scientific research and the treatment of patients themselves and, therefore, a better understanding of absolutisms is urgently needed in order to overcome them, which is the main objective of this article. As an alternative to absolutisms we defend both pluralism in all the areas referred above and dialogue in the sense proposed by Hans-Georg Gadamer. This favors the democratic existence of the diversity of explanatory models without incurring in dogmatisms that hinder or even impede interprofessional dialogue.

Keywords:
Psychopathology; absolutism; pluralism

Introdução

A ciência é racional não porque possui um ‘fundamento’, mas porque é uma empreitada autocorretiva que pode colocar ‘qualquer’ alegação em questão, apesar de que não ‘todas’ de uma só vez (Sellars, 1963Sellars, W. (1963). Science, perception and reality. London, UK: Routledge and Kegan Paul., p. 170, grifo nosso).

A psicopatologia, palavra derivada dos termos gregos ψυχή (psyque), πάθος (pathos) e λόγος (logos), pode ser definida “[...] como o conjunto de conhecimentos referentes ao adoecimento mental do ser humano” (Dalgalarrondo, 2008Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. São Paulo, SP: Artmed., p. 27). Por ser constituída por grande variedade de proposições, a psicopatologia possui a característica de ser amplamente permeada por controvérsias de âmbito teórico, prático, ético e metodológico. De acordo com Fulford (2015Fulford, K. W. W. (2015). The next hundred years: watching our Ps and Q. In K.W. M. Fulford, M. Davies, R. T. Gipps, G. Graham, J. Z. Sadler, G. Stanghellini& T. Thornton. The Oxford handbook of philosophy and psychiatry (p. 1-11). Oxford, UK: Oxford University Press., p. 9), a psicopatologia “[...] em qualquer novo paradigma, se verá trabalhando com modelos teóricos múltiplos e, em alguns pontos, mutuamente inconsistentes e, portanto, tendo que lidar com problemas de pesquisa que são tanto conceituais quanto empíricos em sua natureza”. A dificuldade de diálogo entre profissionais adeptos dos diferentes modelos se torna uma questão central para a psicopatologia, pois isso afeta tanto a pesquisa como o tratamento de pacientes, como afirma um editorial da revista The Lancet Psychiatry (Duel diagnosis, 2014Duel diagnosis. (2014). The Lancet Psychiatry, 1, 245.Recuperado de:https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lanpsy/PIIS2215-0366(14)70363-3.pdf
https://www.thelancet.com/pdfs/journals/...
), uma das publicações mais influentes na área.

Os psicopatologistas, ao contrário do que normalmente acontece nas especialidades médicas, por exemplo, normalmente não conseguem utilizar-se de exames clínicos objetivos, provenientes de tecnologias sofisticadas, para definirem diagnósticos e tratamentos. Na psicopatologia, de uma forma geral, as informações sobre o sofrimento do indivíduo são obtidas pelo próprio relato verbal, seja do próprio paciente ou de sua família, e por uma observação clínica tal como a do exame do estado mental, que carece de critérios rigorosamente estabelecidos para a definição prática e teórica sobre o sofrimento psíquico em questão.

Dentre tantos problemas existentes neste cenário tão plural como é a psicopatologia, existe uma questão especialmente problemática, referente a como os profissionais dos diferentes modelos explicativos da doença mental lidam com a questão da objetividade do conhecimento. Em outras palavras: considerando a existência de tantas concepções diferentes de mundo e de natureza humana nesta área do saber - de forma que muitas vezes essas concepções são incompatíveis e sem que normalmente uma consiga se sobrepor às outras - como se pode ter garantias sobre a veracidade e a credibilidade científicas dos modelos utilizados?

Mas o que de fato é objetividade? De acordo com Gaukroger (2012Gaukroger, S. (2012). Objectivity: a very short introduction. Oxford, UK: Oxford University Press.), seria naturalmente esperado que uma ideia tão básica como essa teria um sentido normalmente aceito e, assim, bastaria explicitá-lo para evitarem-se mal-entendidos. Mas, é claro, as coisas não são tão simples. O termo ‘objetividade’ é na verdade bastante complexo e Gaukroger (2012)Gaukroger, S. (2012). Objectivity: a very short introduction. Oxford, UK: Oxford University Press. define cinco sentidos diferentes para ele, os quais serão abordados brevemente a seguir.

O primeiro entendimento de objetividade, e talvez um dos mais frequentes, se refere a considerar um julgamento objetivo das coisas como um ato livre de preconceitos e vieses (prejudice and bias). Para a visão científica tradicional, própria do Iluminismo e que apregoa que o método científico (e apenas ele) nos conduziria às verdades definitivas, um conhecimento carregado de preconceitos e vieses não seria um conhecimento verdadeiramente objetivo e, portanto, não seria científico. Já o segundo entendimento de objetividade se refere a um julgamento livre de pressuposições e valores (assumptions and values). Segundo Gaukroger (2012Gaukroger, S. (2012). Objectivity: a very short introduction. Oxford, UK: Oxford University Press.), a ideia de preconceitos e vieses carrega uma conotação de distorção, o que não é necessariamente verdadeiro para a noção de pressuposições e valores. O pensamento científico tradicional poderia até reconhecer a validade de um conhecimento carregado desses últimos, contanto que fossem explicitados. Porém, o ideal mesmo seria superá-los para desse modo ter-se um conhecimento mais confiável (objetivo).

O terceiro entendimento de objetividade se refere à relação das pessoas com suas próprias concepções e teorias. Um procedimento objetivo, nesse sentido, se refere à capacidade de decisão entre duas concepções ou teorias conflitantes entre si. Assim, enquanto os dois primeiros entendimentos de objetividade se referem a um estado mental particular (livre de preconceitos e/ou de pressuposições, por exemplo) este terceiro entendimento se refere aos procedimentos de determinados tipos que deveriam ser seguidos para obter-se a objetividade do conhecimento. Trata-se, portanto, de uma questão, sobretudo, metodológica no que se refere à objetividade.

O quarto entendimento, referente à questão de haver uma representação precisa da realidade, é definido como uma visão positiva de objetividade, pois não diz aquilo que deveria ser deixado de lado para atingi-la, mas como direcionar os julgamentos. Aqui, portanto, se trata de uma característica normativa da concepção de objetividade. Por fim, o quinto e último entendimento de objetividade proposto por Gaukroger (2012Gaukroger, S. (2012). Objectivity: a very short introduction. Oxford, UK: Oxford University Press.) se refere à concepção de algo ser objetivo se for capaz de levar às conclusões aceitas universalmente. A motivação para isso se relaciona aos resultados obtidos pelas ciências naturais, nas quais costuma haver um nível elevado de concordância que parece superar as próprias diferenças culturais dos cientistas. Porém, segundo Gaukroger (2012)Gaukroger, S. (2012). Objectivity: a very short introduction. Oxford, UK: Oxford University Press., esse último entendimento de objetividade é, na melhor das hipóteses, um sinal de objetividade, mas não uma definição de objetividade propriamente dita. Além disso, o fato de algo ser compartilhado e útil - mesmo sendo proveniente das ciências naturais - não significa que seja um conhecimento verdadeiro e definitivo. A teoria geocêntrica, por exemplo, foi aceita, compartilhada e considerada útil durante muito tempo, mas acabou se mostrando uma teoria incorreta considerando os conhecimentos atuais.

De acordo com as definições acima é possível perceber a dificuldade em definir o termo objetividade. Nesse sentido, a ideia de produzir-se um conhecimento livre de preconceitos, vieses, pressuposições e valores continua hegemônico no campo científico de uma forma geral. Na psicopatologia isso não é diferente. As três formas de absolutismo que serão abordadas a seguir (universalismo, objetivismo e fundacionalismo4 4 Também traduzido como ‘fundacionismo’. Optou-se por ‘fundacionalismo’, pois todos os textos pesquisados de língua inglesa nomeiam foundationalism e não foundationism (termo esse que também existe na língua inglesa). ) partem dessa concepção de objetividade própria da visão científica tradicional (iluminista). Elas também supõem o conhecimento descoberto com base nisso como sendo a representação de uma suposta verdade absoluta.

Universalismo e objetivismo

Krausz (2010Krausz, M. (2010). Relativism: a contemporary antology. New York, NY: Columbia University Press.) afirma ser possível distinguir o fundacionalismo, o objetivismo e o universalismo de forma que aceitar um desses conceitos não necessariamente implica na aceitação dos demais. Porém, como será mostrado a seguir, na teoria e na prática psicopatológica, as três concepções costumam caminhar juntas. Desenvolveremos conjuntamente os conceitos de universalismo e de objetivismo nesta subseção do artigo, pois esses costumam ser mais bem conhecidos, de forma a não precisarmos elaborar uma reflexão mais exaustiva dos mesmos. Já o fundacionalismo exige um aprofundamento maior, pois não costuma aparecer tão frequentemente no vocabulário de discussões voltadas à psicopatologia e por essa razão será desenvolvido na próxima subseção do artigo. No que se refere ao universalismo, de acordo com Krausz (2010Krausz, M. (2010). Relativism: a contemporary antology. New York, NY: Columbia University Press., p. 25),

No nível ôntico, os universalistas sustentam que os objetos (cognitivos, morais ou estéticos) existem para todas as pessoas, em todas as épocas e em todas as culturas [...] Em seu nível epistêmico, o universalismo afirma que as pessoas em todas as épocas e em todas as culturas poderiam concordar sobre alegações cognitivas, morais ou estéticas.

Essa definição de universalismo é autoevidente e se refere à extrapolação de algo particular para um nível universal. O quinto sentido do termo ‘objetividade’ referido anteriormente possui relações diretas com o universalismo, principalmente em um nível epistêmico, pois, para o universalismo, o conhecimento verdadeiro seria universal e independente da cultura local. Um conhecimento objetivo seria, portanto, um conhecimento universal. Assim, o conceito de relativismo (cultural, ontológico, ético, estético, moral etc.) não possui lugar na reflexão dessa forma de absolutismo e é justamente essa a principal razão de o universalismo ser considerado como uma forma de absolutismo.

O pensamento científico frequentemente adota o universalismo e em psicopatologia isso não é diferente. Apesar de muitos autores considerarem que as diferenças culturais influenciam o tratamento e os sintomas mentais, ainda assim há um universalismo predominante, pois tais diferenças costumam ser pensadas em um nível superficial. Aquilo que realmente importaria para a reflexão psicopatológica (as conexões cerebrais, a dopamina, os arquétipos, o comportamento operante, a angústia existencial etc.) poderia ser extrapolado para a humanidade de forma geral. A variação cultural de cada um desses fenômenos não seria tão relevante para a compreensão. A ideia aqui é a de, por exemplo, a esquizofrenia existir fundamentalmente da mesma forma em todas as partes do mundo. As diferenças encontradas na manifestação da doença, ou seja, as questões particulares/subjetivas de cada contexto social (tais como o conteúdo dos delírios e das alucinações) seriam pouco relevantes para o entendimento do transtorno mental.

A maior parte tanto das teorias psicológicas quanto da ciência moderna busca a universalidade. A psicologia analítica de Carl Gustav Jung, por exemplo, defende a existência de um inconsciente coletivo, compartilhado por todos os seres humanos. Haveria, no interior desse inconsciente, símbolos e arquétipos igualmente compartilhados. A psicologia evolutiva, muitas vezes aplicada à psicopatologia, também parte de princípios universais (como a seleção natural e a adaptação ao meio) a todos os seres humanos. A própria psicanálise freudiana, que preza sobretudo pela singularidade e pela subjetividade de cada sujeito, entende muitos de seus conceitos (como o complexo de Édipo, por exemplo) de forma universal. Assim, tais teorias que buscam a universalidade costumam também ser objetivistas, outra forma de absolutismo. Isso fica mais evidente na seguinte citação de Chalmers (1993Chalmers, A. F. (1993). O que é ciência afinal? São Paulo, SP: Editora Brasiliense., p. 139):

O objetivista dá prioridade, em sua análise do conhecimento, às características dos itens ou corpos do conhecimento com que se confrontam os indivíduos, independentemente das atitudes, crenças ou outros estados subjetivos daqueles indivíduos. Falando de forma imprecisa, o conhecimento é tratado como algo exterior, antes que interior, às mentes ou cérebros dos indivíduos.

A definição acima de objetivismo faz referência direta aos dois primeiros entendimentos de objetividade vistos anteriormente, a saber: que o conhecimento deveria ser livre de preconceitos, vieses, pressuposições e valores. Segundo essa concepção, a subjetividade não poderia contaminar o conhecimento se a meta é que esse último seja verdadeiro e, portanto, absoluto. Como afirma o influente filósofo, matemático e lógico Bertrand Russel (1956Russel, B. (1956). Mysticism and logic and other essays. London, UK: George Allen & Unwin., p. 43) “[...] o cerne da perspectiva científica é a recusa em considerar nossos próprios desejos, gostos e interesses como capazes de fornecer a chave para a compreensão do mundo”.

É verdade que, por exemplo, as diferentes abordagens de psicoterapia costumam não apenas considerar como inclusive valorizar os estados subjetivos dos indivíduos (tais como os desejos, gostos e interesses) e construir um conhecimento a partir disso. No entanto, normalmente também existe uma teoria articulada que enquadra esses estados subjetivos em categorias construídas previamente. É curioso como, apesar disso, muitos psicoterapeutas negam a existência de teorias e concepções prévias, escolhendo acreditar que são neutros e objetivos ao fazerem as observações da realidade clínica. Desde a época de Freud muitos acreditam na observação da realidade como um fundamento que garantiria a objetividade das construções teóricas.

Uma maneira de interpretar essa crença objetivista de psicoterapeutas é que ao acreditar nisso eles simultaneamente sustentam a ilusão de possuírem uma autoidentidade científica nos moldes tradicionais. De acordo com Cushman (1995Cushman, P. (1995). Constructing the self, constructing America: a cultural history of psychotherapy. Cambridge, MA: Da Capo Press., p. 279), “[...] é difícil para psicoterapeutas examinarem suas próprias teorias com atenção para os aspectos morais e políticos, pois eles não gostam de pensar no seu trabalho dessa forma”. Além disso, segundo o mesmo autor, “[...] a maioria dos terapeutas gosta de pensar que quando fecham a porta [do consultório], o mundo externo é excluído” (Cushman, 1995Cushman, P. (1995). Constructing the self, constructing America: a cultural history of psychotherapy. Cambridge, MA: Da Capo Press., p. 280). Essas são, claramente, perspectivas objetivistas e universalistas.

A seguinte citação de Bernstein (1996Bernstein, R. J. (1996). Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and praxis. Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press., p. 8) define ainda melhor o conceito de objetivismo:

Por objetivismo entendo a convicção básica de que existe ou deve existir uma matriz ou estrutura permanente e a-histórica a qual podemos apelar em última instância para determinar a natureza da racionalidade, do conhecimento, da verdade, da realidade, da bondade ou daquilo que é correto [...] O objetivismo é intimamente relacionado ao fundacionalismo e à busca por um ponto de Arquimedes.

A suposição da existência de uma matriz ou estrutura permanente e a-histórica é justamente um forte indício de absolutismo. Busca-se com essa suposição estabelecer certo fundamento seguro para assim sustentar o conhecimento. Isso, no entanto, se refere mais especificamente ao fundacionalismo, que apresentaremos na próxima subseção, bem como a questão do ponto de Arquimedes.

Em psicopatologia é bastante utilizado o argumento de o conhecimento produzido ser exclusivamente produto de experimentos objetivos ou mesmo da própria realidade clínica. Essa última, portanto, funcionaria como o arcabouço ao qual se poderia apelar para determinar a validade de uma teoria ou método. Porém, a utilização desse argumento parece ignorar o fato de que isso nomeado como “realidade clínica” já ser uma interpretação do mundo e da natureza humana elaborada a partir de conceitos prévios. De acordo com Polkinghorne (2000Polkinghorne, D. E. (2000). Psychological inquiry and the pragmatic and hermeneutic traditions. Theory and Psychology, 10(4), 453-479., p. 472),

Para poder refletir sobre as próprias interpretações de fundo que estão em funcionamento [i.e., os próprios pré-julgamentos e preconceitos] e para se abrir para interpretações melhores, é necessário estar ciente de que o próprio entendimento pré-reflexivo do mundo não é simplesmente um reflexo espelhado do mundo, mas, antes, uma interpretação [...] Assim, a investigação ocorre dentro da textura do próprio background da pessoa, e não fora dele.

A citação acima expõe a perspectiva da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer no que se refere aos preconceitos: eles sempre estão presentes. Segundo Gadamer (1999Gadamer, H. G. (1999). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes.), os preconceitos (pré-conceitos) não apenas não são algo negativo, como são necessários para a busca e o desenvolvimento do conhecimento. Para o autor, se não houvesse preconceitos não haveria inteligibilidade possível e, como se percebe, essa visão destoa bastante da ciência moderna que busca a objetividade.

Existe sempre a possibilidade de revisão dos preconceitos - caso contrário não poderia haver conhecimento novo - mas haveria sempre um jogo dialógico entre aquilo que se foi ensinado a ver e o fenômeno que se apresenta. Assim, o novo conhecimento não se dá exclusivamente pela descoberta de novas evidências, como supõe a ciência moderna, mas também pela própria mudança na maneira de enxergar o mundo, ou seja, pela mudança dos preconceitos. Ao contrário do objetivismo, defende-se aqui a ideia de o conhecimento ser inseparável das mentes individuais, em acordo com o posicionamento de Kirschner e Martin (2010Kirschner, S. R., & Martin, J. (2010). The sociocultural turn in psychology: the contextual emergence of mind and self. New York, NY: Columbia University Press., p. 22, grifo nosso) quando formulam a seguinte questão: “[...] como podemos ter acesso indubitável às realidades ‘por meio’ de nossas representações mentais que são ao mesmo tempo ‘independentes’ destas realidades?”.

A filosofia ocidental, especialmente após as ideias de Nietzsche e Heidegger, é repleta de críticas ao objetivismo, mas nos desviaríamos muito do foco do artigo se nos detêssemos nisso. A ideia central é questionarmos a possibilidade de, enquanto psicopatologistas, conseguirmos ser observadores neutros e, portanto, de descrevermos uma suposta realidade objetiva ou mesmo a realidade tal como ela é. Ao se pensar de forma universalista e objetivista é natural excluir abordagens e/ou culturas que percebem e classificam o mundo e o ser humano de outras formas, ou seja, que possuem preconceitos diferentes. Normalmente, em psicopatologia, bem como na ciência em geral, as teorias são percebidas e utilizadas de forma reificada, ou, dizendo de outra forma, seus conceitos abstratos, criados sócio-historicamente, são confundidos com a realidade em si. É exatamente a partir desse ponto que se torna decisivo um aprofundamento na questão do fundacionalismo.

Fundacionalismo cartesiano

Dê-me apenas um ponto firme no qual me apoiar e moverei o mundo (Arquimedes apud Knowles, 2004Knowles, E. (2004). The Oxford dictionary of quotations. Oxford, UK: Oxford University Press., p. 123).

Juntamente com o universalismo e o objetivismo, o fundacionalismo é outra forma de absolutismo comumente adotada por cientistas e psicopatologistas. Há de se ter alguns cuidados com o uso desse termo, pois há diferentes classificações no que se refere ao fundacionalismo, seja em termos das concepções de cada autor (e.g., Descartes e Aristóteles), como em termos de grau de intensidade (leve, moderado e forte). Como afirma Hábl (2011Hábl, J. (2011). Problem of epistemological foundationalism. Paideia: Philosophical E-Journal of Charles University, 4(8)., p. 4) “[...] classificar diferentes tipos de fundacionalismo não é uma tarefa fácil, pois diferentes autores empregam não apenas critérios diferentes de classificação, mas também diferentes terminologias”. Há, portanto, diferentes tipos de fundacionalismo, mas deve ficar claro que é o fundacionalismo cartesiano o que será desenvolvido daqui em diante. O fato de optarmos por esta forma de fundacionalismo se refere a sua (ainda) forte influência na ciência contemporânea e, é curioso notar, o fundacionalismo cartesiano surge a partir de uma preocupação de ordem psicopatológica, a denominada ânsia cartesiana. De acordo com Bernstein (1996Bernstein, R. J. (1996). Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and praxis. Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press., p. 18, grifo nosso), tal ânsia consiste no seguinte:

Com uma estarrecedora clareza, Descartes nos conduz com uma aparente e inelutável necessidade a um grande e sedutor ou/ou (either/or). ‘Ou’ existe alguma sustentação para o nosso ser, uma fundação fixa para o nosso conhecimento, ‘ou’ não poderemos escapar às forças obscuras que nos envolvem na loucura, havendo um caos intelectual e moral.

A palavra ‘ânsia’ apresenta-se como uma tradução adequada neste contexto (considerando que o termo utilizado por Bernstein (1996Bernstein, R. J. (1996). Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and praxis. Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press.) é Cartesian anxiety), já que ela pode denominar uma “[...] ansiedade provocada especialmente pela dúvida” (Houaiss, Villar, & Franco, 2001Houaiss, A., Villar, M. S., & Franco, F. M. M. (2001). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva., p. 228). Descartes certamente foi um filósofo que duvidou de tudo,com exceção do fato de que pensava (e, portanto, existia) e da existência de Deus (Skirry, 2010Skirry, J. (2010). Compreender Descartes. Petrópolis, RJ: Vozes.). Para alguém tão atormentado com a possibilidade de, por exemplo, gênios malignos estarem constantemente tentando nos enganar ou de estarmos sempre alucinando, a necessidade de encontrar fundações seguras para o conhecimento era imperativa.

Segundo Bernstein (1996Bernstein, R. J. (1996). Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and praxis. Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press., p. 16), “[...] as Meditações de Descartes são o lócus classicus na filosofia moderna para a metáfora da fundação e para a convicção de que a busca do filósofo é procurar um ponto de Arquimedes no qual possamos firmar nosso conhecimento”. Afirma Descartes (1969, p. 144, grifo nosso) no texto citado:

Eu devo de uma vez por todas empenhar-me seriamente em me livrar de todas as opiniões que eu havia admitido anteriormente e começar a construir uma nova ‘fundação’, se eu quiser estabelecer alguma estrutura ‘firme e permanente’ para as ciências.

E, ainda segundo Descartes (1969Descartes, R. (1969). Meditations, of philosophical works of Descartes. Cambridge, MA: Cambridge University Press., p. 149, grifo nosso):

Para erguer o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo alhures, Arquimedes requisitava apenas que um ponto fosse ‘fixo e imóvel’; da mesma forma terei o direito de conceber grandes expectativas se eu for feliz o suficiente em descobrir apenas uma coisa que seja ‘certa e indubitável’.

A busca pelo punctum archimedis indica a tentativa de se estabelecer um ponto no qual o observador possa lidar com seu objeto de pesquisa de forma segura. As palavras ‘firme’, ‘permanente’, ‘fixo’, ‘imóvel’, ‘certo’ e ‘indubitável’, retiradas das citações anteriores de Descartes, indicam claramente o absolutismo inerente à busca de conhecimento almejada pelo filósofo. A procura por uma fundação, um alicerce ou um princípio último que sustente os demais é a própria definição da atitude fundacionalista. Segundo Audi (1999Audi, R. (1999). The Cambridge dictionary of philosophy. New York, NY: Cambridge University Press., p. 321), o fundacionalismo de uma forma geral pode ser definido como

A visão de que o conhecimento e a justificação epistêmica (relevante para o conhecimento) tem uma estrutura de dois níveis: algumas instâncias de conhecimento e justificativa são não-inferenciais, ou fundacionais; e todas as outras instâncias, consequentemente, são inferenciais, ou não-fundacionais, no sentido de que elas derivam em última instância do conhecimento fundacional ou da justificativa.

Bernecker (2006)Bernecker, S. (2006). Reading epistemology: selected texts with interactive commentary. Malden, MA: Blackwell Publishing. sugere a imagem de uma pirâmide com vários degraus para se pensar sobre o fundacionalismo. A parte inferior dessa pirâmide seria constituída pelas ‘crenças básicas’ isto é, crenças que não precisariam de sustentação de outras, pois seriam justificáveis por si mesmas. Já os demais degraus seriam as denominadas ‘crenças inferenciais’, ou seja, crenças que precisariam da justificação de outras e, em última instância, voltar-se-iam à base (ou fundações) da pirâmide para se obter a sustentação do conhecimento. Como afirma Bernecker (2006)Bernecker, S. (2006). Reading epistemology: selected texts with interactive commentary. Malden, MA: Blackwell Publishing., a imagem da pirâmide seria ainda mais precisa se estivesse invertida, pois as crenças básicas existiriam em um número bem menor do que as crenças inferenciais.

Apesar dessa estrutura comum descrita por Audi (1999Audi, R. (1999). The Cambridge dictionary of philosophy. New York, NY: Cambridge University Press.) e Bernecker (2006)Bernecker, S. (2006). Reading epistemology: selected texts with interactive commentary. Malden, MA: Blackwell Publishing. é possível atribuir graus diferentes de intensidade entre as formas de fundacionalismo, como referimos anteriormente. O fundacionalismo cartesiano é considerado de intensidade alta, sendo inclusive nomeado de fundacionalismo radical. Esse fundacionalismo aparece quando “Descartes identificou o self com a res cogitans (substância pensante) e acreditava ser ela a base para a crença no mundo externo” (Berrios & Marková, 2003Berrios, G. E.,&Marková, I. S.(2003). The self and psychiatry: a conceptual history. In T. Kircher & A. David. The self in neuroscience and psychiatry (p. 9-39). Cambridge, UK: Cambridge University Press., p. 11). Segundo Moser (1999Moser, P. K. (1999). Foundationalism. In R. Audi (Ed.),The Cambridge dictionary of philosophy (2nd ed.). New York, NY: Cambridge University Press .), a ideia de ‘penso, logo existo’ aponta para a res cogitans como uma crença básica (não inferencial) que permite estruturar os degraus seguintes do conhecimento.

De acordo com Audi (1999Audi, R. (1999). The Cambridge dictionary of philosophy. New York, NY: Cambridge University Press., p. 321-322), “[...] tal fundacionalismo, representado primariamente por Descartes, requer que as crenças fundacionais sejam certas e capazes de garantir a certeza das crenças não-fundacionais, para as quais fornecem sustentação”. Assim, a característica marcante do fundacionalismo cartesiano é que as crenças básicas (ou fundacionais) jamais devem ser questionadas. Isso é diferente de fundacionalismos considerados leves ou moderados, pois esses permitiriam o questionamento das crenças básicas, ao contrário do fundacionalismo radical de Descartes. De acordo com Berrios e Marková (2003Berrios, G. E.,&Marková, I. S.(2003). The self and psychiatry: a conceptual history. In T. Kircher & A. David. The self in neuroscience and psychiatry (p. 9-39). Cambridge, UK: Cambridge University Press., p. 11),

A legitimidade desta alegação fundacionalista [cartesiana], a natureza do seu dualismo e a força do penso, logo existo (cogito ergo sum) como um seguimento lógico têm desde então estado sujeitos a escrutínio. Seja por convicção ou por conveniência, os neurocientistas do século XVIII seguiram uma interpretação dualista ingênua do cartesianismo de forma que podiam alegar que o conhecimento obtido na res extensa (o cérebro) não tinha implicações teológicas (no que diz respeito à alma ou à res cogitans). A mesma interpretação do self cartesiano (como um conhecedor absoluto) foi incorporada pelos alienistas do século XIX nos seus próprios conceitos de sintoma mental e doença.

Mesmo contemporaneamente há um grande número de psicopatologistas adotando essa interpretação do pensamento cartesiano como forma de justificação do conhecimento. Nosso argumento é o seguinte: apesar de Descartes ter sido um filósofo do século XVII, suas ideias continuam fortemente presentes, seja no que se refere à relação mente e corpo quanto ao uso do fundacionalismo radical. As ideias filosóficas podem permanecer durante séculos, ou mesmo milênios (como no caso de algumas concepcões de Aristóteles), sem que caiam em desuso. A permanência dessas ideias costuma ser ainda maior se os envolvidos não se detiverem em questões filosóficas e metafísicas, e, portanto, se não questionarem seus pressupostos. Em acordo com Zachar (2014Zachar, P. (2014). A metaphysics of psychopathology. Cambridge, MA: MIT Press.), acreditamos não exagerar ao afirmar que poucos autores da psicopatologia se preocupam em explicitar suas perspectivas quanto à verdade, realidade e justificação do conhecimento.

O modelo de psicopatologia hegemônico atualmente, o modelo biológico ou neuropsiquiátrico, possui ao menos duas crenças fundacionais, como afirmam Berrios e Marková (2002Berrios, G. E., & Marková, I. S. (2002). Conceptual issues. In H. A. H. D´haenen, J A. Den Boer & P. Willner (Eds.), Biological psychiatry(p. 3-24).West Sussex, UK: John Wiley & Sons.). Para os defensores desse modelo, os transtornos mentais na verdade seriam transtornos cerebrais e, além disso, apenas esse modelo de psicopatologia possuiria o patrimônio da verdade científica. Segundo Berrios e Marková (2002)Berrios, G. E.,&Marková, I. S.(2003). The self and psychiatry: a conceptual history. In T. Kircher & A. David. The self in neuroscience and psychiatry (p. 9-39). Cambridge, UK: Cambridge University Press., as crenças fundacionais não podem ser provadas, mas ainda assim raramente são confrontadas por aqueles que adotam o modelo biológico.

A psicanálise freudiana pode ser compreendida como uma abordagem que também possui certas crenças fundacionais. Em determinado momento, Freud (1996Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XIV). Rio de Janeiro, RJ: Imago ., p. 26, grifo nosso) afirmou que a teoria da repressão “[...] é a ‘pedra angular’ sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise”. Mais adiante em sua obra, Freud (1996Freud, S. (1996). Dois verbetes de enciclopédia. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XVIII). Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 264, grifo nosso) afirmou que “[...] a pressuposição de existirem processos mentais inconscientes, o reconhecimento da teoria da resistência e repressão, a apreciação da importância da sexualidade e do complexo de Édipo constituem o principal tema da psicanálise e os ‘fundamentos’ de sua teoria”. Pode-se compreender essa pedra angular e esses fundamentos propostos por Freud como verdadeiras crenças fundacionais que, portanto, não podem ser provadas, e, além disso, raramente são objetos de escrutínio crítico por parte dos adeptos desse modelo explicativo de psicopatologia.

Não se trata de criticarmos apenas a psiquiatria biológica e a psicanálise freudiana, mas de apontarmos a existência de aspectos absolutistas em teorias altamente relevantes no interior da psicopatologia. Se a psiquiatria biológica é hoje dominante, a psicanálise o foi até a década de 1970 nos EUA e no mundo ocidental de forma geral. O fato de não citarmos outros modelos de psicopatologia se dá, sobretudo, em razão do grande número deles, como nos referimos no início desse artigo. Não temos condições de exemplificarmos a presença de absolutismos em todos os modelos explicativos de psicopatologia nesse artigo, mas sabemos que outros modelos adotam posicionamentos semelhantes. A crítica a esses entendimentos absolutistas se justifica pelo fato de eles dificultarem o diálogo entre diferentes modelos teóricos e isso, como apontamos anteriormente, prejudica tanto a pesquisa como o tratamento clínico no campo da psicopatologia.

Considerações finais

O universalismo, o objetivismo e o fundacionalismo podem ser nomeados de absolutismos, como o faz Krausz (2010Krausz, M. (2010). Relativism: a contemporary antology. New York, NY: Columbia University Press.), pois são propostas que buscam estabelecer verdades definitivas em termos de tempo e de espaço. Conforme acreditamos, a possibilidade de lidar com a alteridade se torna muito limitada com a adoção de absolutismos. Isso acontece uma vez que as especificidades, sejam as culturais, as teóricas ou mesmo as das subjetividades individuais são desprezadas em nome de uma suposta objetividade do conhecimento.

O uso de concepções absolutistas para a defesa de um modelo explicativo pode impedir a valorização de proposições alternativas a respeito do sofrimento psíquico. Isso dificulta ou até mesmo impossibilita o diálogo entre os modelos. Kecmanović (2011Kecmanović, D. (2011). Conceptual discord in psychiatry: origin, implications and failed attempts to resolve it. Psychiatria Danubina, 23(3), 210-222., p. 221) afirma que, na psicopatologia, “[...] a comunicação profissional é, em um número significativo de casos, restrita a praticantes de um mesmo modelo”. Além disso, ainda segundo o autor,

Ao não levar em consideração outras perspectivas possíveis sobre os mesmos fenômenos, os adeptos de cada modelo individual não percebem ou, mais precisamente, não podem perceber as deficiências de sua própria perspectiva. Com isso tornam o abismo conceitual entre os modelos individuais cada vez mais profundo (Kecmanović, 2011Kecmanović, D. (2011). Conceptual discord in psychiatry: origin, implications and failed attempts to resolve it. Psychiatria Danubina, 23(3), 210-222., p. 211).

A psicopatologia possui a característica de ser uma área da saúde e mesmo o conhecimento epistemológico dessa área está relacionado a consequências práticas. A diminuição do sofrimento é o que está em questão aqui. Como os diferentes modelos explicativos não necessariamente se excluem - na verdade podem até ser complementares - os pacientes/clientes são frequentemente tratados por mais de um profissional, normalmente adeptos de modelos explicativos diferentes. Em um cenário assim, caso tais profissionais não consigam dialogar, o tratamento pode ser prejudicado. Mas como é possível otimizar o diálogo na psicopatologia? A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer apresenta proposições interessantes a esse respeito. Segundo Bernstein (1996Bernstein, R. J. (1996). Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and praxis. Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press., p. 128-129, grifo nosso),

Em oposição à noção ‘monológica’ de Descartes da autorreflexão puramente racional por meio da qual podemos alcançar autoconhecimento transparente, Gadamer nos diz que é apenas por meio do encontro ‘dialógico’ com aquilo que é ao mesmo tempo estranho a nós, faz uma reivindicação sobre nós e tem afinidade com o que nós somos que podemos nos abrir ao risco e teste de nossos preconceitos.

Uma das armadilhas mais comuns da busca iluminista por objetividade se refere à falta de percepção, por parte de muitos pesquisadores, de as concepções defendidas serem sempre interpretações possíveis do mundo. Isso é muito diferente de elas serem explicações definitivas e acabadas, como tijolos de um edifício científico no qual cada pesquisa apenas somaria novos conhecimentos tornando o edifício maior e mais estruturado. Considerar termos alcançado um conhecimento absoluto sobre algo inibe a atitude crítica, sendo portanto, uma atitude anticientífica.

De acordo com Polkinghorne (2000Polkinghorne, D. E. (2000). Psychological inquiry and the pragmatic and hermeneutic traditions. Theory and Psychology, 10(4), 453-479., p. 472) “[…] para estar aberto a interpretações melhores é necessário estar consciente de que nossa compreensão pré-reflexiva do mundo não é apenas uma reflexão especular do mundo, mas sim uma interpretação”. Como vimos anteriormente, Gadamer considera haver sempre preconceitos nas apreensões de mundo e de ser humano, mas eles devem ser continuamente revistos se de fato há o desejo de desenvolver compreensões mais aprofundadas e significativas. Para o autor, a melhor forma de alterar preconceitos é pelo diálogo e certos requisitos são necessários para ele acontecer, como afirma Vessey (2016Vessey, D.(2016). Dialogue, goodwill and community. In N. Keane C. Lawn (Eds.), The Blackwell companion to hermeneutics (p. 415-423). Hoboken, NJ: Wiley Blackwell., p. 418):

O exigido no diálogo é a humildade de aceitar não sabermos no que acreditamos, pois talvez seja o caso de, ao falarmos sobre isto com alguém, encontrarmos uma expressão melhor a respeito do que tínhamos pensado antes do diálogo. Reconhecer a alteridade do outro, portanto, é reconhecer termos algo a aprender uns dos outros, não apenas no sentido de aprendermos novas informações ou de confirmarmos posições anteriores, mas no sentido de adquirirmos uma compreensão de nossas posições, até mesmo, ou especialmente, aquelas que pensamos que entendemos.

Não existe um método correto (objetivo, universal e com fundações inquestionáveis) nem mesmo um protocolo a ser seguido se quisermos dialogar. A humildade referida acima, a reflexão crítica e uma espécie de sensibilidade são necessárias para haver as condições para um diálogo autêntico. Isso é, evidentemente, muito diferente de ver o outro como um inimigo potencial só porque ele é adepto de um modelo psicopatológico alternativo, travando-se combates argumentativos no qual resultará vencedores e perdedores. Para Gadamer (1999Gadamer, H. G. (1999). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes.), a verdade emerge como o resultado de um diálogo que realmente considera a alteridade e não por meio de conhecimentos providos de atestados absolutistas.

Como afirma Kecmanović (2011Kecmanović, D. (2011). Conceptual discord in psychiatry: origin, implications and failed attempts to resolve it. Psychiatria Danubina, 23(3), 210-222.), existem provas suficientes que alertam para o fato de haver fatores biológicos, psicológicos e socioculturais codeterminando a origem e a apresentação dos transtornos mentais. Assim sendo, seria prudente a sustentação do pluralismo por parte dos psicopatologistas, ao invés de se fecharem em suas torres de marfim. Essas últimas podem até propiciar uma ilusória segurança intelectual e também costumam evitar o desgaste da crítica frequente dos próprios fundamentos, mas simultaneamente dificultam o avanço da disciplina e prejudicam o tratamento de pacientes.

De acordo com Rescher (2005Rescher, N. (2005). Pluralism: against the demand for consensus. New York, NY: Oxford University Press., p. 79), o pluralismo é “[...] a doutrina segundo a qual qualquer questão substancial admite uma variedade de respostas plausíveis, ainda que mutuamente conflitantes”. Tal é o caso do sofrimento psíquico. A defesa do pluralismo se justifica, sobretudo, por questões éticas, pois tanto ao pesquisador como ao clínico é demandada uma verdadeira disposição à alteridade e ao diálogo. Dito de outra maneira: o pluralismo aqui é a concepção na qual é estabelecido o pressuposto de sustentar e valorizar a diversidade existente na psicopatologia sem se deixar dominar por absolutismos e imperialismos de quaisquer tipos. É, assim, uma proposta tanto descritiva (no sentido de afirmar que a psicopatologia é plural) como também prescritiva (no sentido de propor aos psicopatologistas a sustentação dessa pluralidade).

Antecipando críticas prováveis, é importante diferenciarmos o pluralismo de outras duas concepções. Primeiramente, o pluralismo não supõe um ecletismo, pois esse último se define comoo “[...] uso de conceitos fora dos seus respectivos esquemas conceituais e sistemas teóricos, alterando os seus significados” (Oliveira Filho, 1995Oliveira Filho, J. J. (1995). Patologia e regras metodológicas. EstudosAvançados, 9(23), 262-268., p. 263). O pluralismo também não implica um caos ou um relativismo num sentido pejorativo do termo, como vimos ao discutir a ânsia cartesiana. A proposta pluralista não é a de fazer usos pouco rigorosos dos conceitos e teorias e o ‘vale tudo’ (anything goes) também não é uma opção. Ser pluralista implica valorizar uma existência dialógica e democrática dos diversos esquemas conceituais sem minimizar ou distorcer as suas especificidades.

Segundo Kecmanović (2011Kecmanović, D. (2011). Conceptual discord in psychiatry: origin, implications and failed attempts to resolve it. Psychiatria Danubina, 23(3), 210-222.), os psiquiatras e, poderíamos acrescentar, os psicopatologistas de uma forma geral, não deveriam estar completamente comprometidos com um modelo específico acreditando ser essa a forma mais válida e útil para o tratamento de pacientes. É justamente para evitar essa atitude que a visão crítica, o diálogo e o pluralismo se fazem tão necessários no campo da saúde mental.

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  • 1
    Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
  • 4
    Também traduzido como ‘fundacionismo’. Optou-se por ‘fundacionalismo’, pois todos os textos pesquisados de língua inglesa nomeiam foundationalism e não foundationism (termo esse que também existe na língua inglesa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    04 Jun 2020
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