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A janela da esquina de meu primo de E. T. A. Hoffmann: uma imagem fiel da vida eternamente mutável

RESENHA

A janela da esquina de meu primo de E. T. A. Hoffmann:uma imagem fiel da vida eternamente mutável

Daniela Mercedes Kahn

Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: danielak@ig.com.br

Hoffmann, E. T. A. A janela da esquina de meu primo. Tradução: Maria Aparecida Barbosa, Ilustrações: Daniela Bueno, Posfácio: Marcus Mazzari. São Paulo, Cosac Naify, 2010.

A janela da esquina de meu primo (1822), lançamento ilustrado da Cosac Naify com tradução de Maria Aparecida Barbosa, é um escrito ímpar dentro da variada obra de E. T. A. Hoffmann. Ele não se filia à vertente fantástica desse expoente do romantismo alemão. Tampouco representa o Hoffmann crítico e irônico, autor de deliciosas sátiras, como O pequeno Zacarias e Mestre Pulga, ou do romance de formação paródico, As opiniões do Gato Murr. De acordo com o abrangente posfácio de Marcus Mazzari, essa última narrativa, concebida durante a doença terminal que paralisou os membros do escritor, é já uma precursora da representação realista.

Para o leitor contemporâneo, cercado de imagens virtuais, esse texto evoca, antes de tudo, o prazer quase esquecido de observar a multidão através da janela. Porém esta não é a única característica capaz de despertar o interesse do leitor atual. Destaquem-se pela sua modernidade a ficção de fundo autobiográfico, a tematização do cotidiano burguês, o enredo aberto protagonizado por um homem anônimo, a contemplação substituindo a ação, a fragmentação do espaço e, finalmente, a mobilidade do olhar antecipando a câmara cinematográfica ou televisiva.

O protagonista da história é um escritor paralítico; o narrador, o primo visitante. Ambos compartilham o espetáculo de uma manhã de feira berlinense pela janela do quarto deste último. É o olhar do escritor que guia a sua visita através dos meandros da feira, arquitetando pequenos enredos para as personagens que perscrutam com as suas lunetas. Lembremos que, numa situação análoga, a observação atenta do que acontece diante da sua janela leva o protagonista igualmente imobilizado do filme de Alfred Hitchcock, A janela indiscreta (1954), à solução de um crime.

Em A janela da esquina de meu primo os dois primos que observam a feira encarnam aspectos distintos do incansável contador de histórias: o primeiro é um autorretrato fiel do Hoffmann doente, que não dispensa os toques humorísticos da touca vermelha e do camisolão de Varsóvia; o visitante, por sua vez, é o elo entre o escritor recluso e o mundo externo. Ele incorpora o desejo de cura do autor e sua esperança de poder se misturar à mesma multidão que observa da janela.

Do ponto de vista do horizonte de expectativa do texto, ele também prefigura o leitor ideal: um discípulo aberto e participativo das lições de um mestre que, embora inválido, muito tem a ensinar. Desta forma, o intuito pedagógico dos diálogos platônicos evocado pela conversa instrutiva dos dois primos à janela se estende também aos futuros leitores.

Graças ao profundo conhecimento de composição pictórica de Hoffmann, a feira surge perante seus dois observadores como um mosaico de pequenas cenas, cujos atores se destacam por alguns instantes para logo submergirem na vasta multidão colorida. No plano espacial maior, a própria janela do quarto de esquina separa a multidão agitada do escritor paralítico que definha no seu quarto.

Não se pode esquecer que as duplicações, divisões e fragmentações dos elementos textuais são recursos recorrentes na obra do autor para expressar uma realidade cindida, na qual se circunscreve um protagonista atormentado que busca a completude impossível na figura de seu duplo. Note-se, todavia, a diferente aplicação desse expediente nos textos românticos do escritor onde ele configura personagens loucas, criaturas híbridas, enredos estilhaçados. Em A janela da esquina de meu primo o escritor entrevado se destaca pela lucidez. Sendo assim, a fantasmagoria romântica cede lugar às limitações de espaço, de movimento e até mesmo do alcance do olhar impostas pela realidade concreta. Ao aplicar técnicas de edição moderna a imagens de época, Daniel Bueno criou as belas ilustrações que dialogam diretamente com esse modo de composição do texto, enfatizando perfis, recortes, justaposições e deslocamentos de plano.

A grande variedade de tipos populares dessa feira berlinense de 1822 é, outrossim, um exemplo vivo das conquistas de espaço social dos diversos segmentos da burguesia urbana alemã. São eles os maiores beneficiados pela transformação então em curso de uma sociedade agrária feudal num estado capitalista moderno. A nova condição de cidadania é a responsável pela melhoria dos costumes e pelo aumento da cortesia entre as classes populares destacadas pelo primo escritor. Eis porque, malgrado comportamentos antissociais individuais, a feira se apresenta aos olhos dos seus observadores como uma "imagem amena do bem-estar e da vida social pacífica" (Hoffmann 2010: 53).

Porém, o estado terminal do escritor ressalta um dos temas centrais da narrativa: a natureza passageira da vida. Pois, como ele, também a feira está com os momentos contados. E, como ele, as também anônimas personagens da feira que sua luneta destaca são os protagonistas efêmeros de uma cena fugaz. Até mesmo a dúbia mensagem de consolo fixada à cabeceira da cama do inválido reforça esta transitoriedade.

Apesar disso, e malgrado a exclamação de pena que encerra A janela da esquina de meu primo, o tom da narrativa não é de lamento. Muito pelo contrário! A mirada compassiva é sabiamente delegada ao narrador enquanto o olhar do escritor paralítico se volta incessantemente para o exterior. Graças a essa dupla perspectiva o texto veicula uma intensa vontade de viver que teima em se realizar dentro dos estreitos limites do possível.

Essa narrativa de 1822 impressiona pela sua vitalidade, principalmente se considerarmos as condições de sua produção e o seu teor autobiográfico. Nesse sentido ela contrasta positivamente com o cansaço existencial que emana de tantas manifestações literárias atuais (sobretudo da literatura alemã contemporânea), cujos tópicos incansáveis são o desgaste e o sucateamento dos valores, hábitos, condições e instituições da vida contemporânea.

Nesse intenso confronto que propõe entre destino individual e experiência coletiva, realidade e ficção, a existência que se esvai e a arte que perpetua, a grande vitoriosa é essa narrativa de quase dois séculos que nos lega uma imagem fiel da vida eternamente mutável.

Recebido em 01/10/2010

Aprovado em 12/10/2010

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    2010
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