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A torção mimética do real: sobre a concepção freudiana da literatura

The mimetic twist of the real: on Freud's concept of literature

Resumos

O objetivo do texto é fazer uma leitura de elementos conceituais presentes na concepção freudiana sobre a poesia e a literatura, apontando aspectos problemáticos, como também os que se mostram pertinentes para análise do fenômeno estético. Inicialmente, passamos brevemente em revista pontos significativos de comentários críticos às reflexões estéticas freudianas da tradição, passando então a comentar o texto "Der Dichter und das Phantasieren" (1908), em que nos serviremos da comparação com temas e conceitos presentes na Poética de Aristóteles e na Kritik der Urteilskraft de Kant. Na última parte, contrapomos alguns conceitos presentes neste primeiro texto ao artigo "Das Unheimliche" (1919), em que propomos uma leitura que faz contrastar o papel e importância conferidos à dimensão estética em ambos os textos. Toda a trajetória está orientada para demonstrar a necessidade de conceber o estético a partir do entrelaçamento, da identidade e da diferença, entre o âmbito psíquico inconsciente e suas formas de atualização refratadas pela dimensão imagético-imaginária.

Sigmund Freud; poesia; estética; ficção


The objective of this paper is to make a reading of conceptual elements present in the Freudian view on poetry and literature, pointing out its problematic aspects, but also the relevant ones to the analysis of the aesthetic phenomenon. Initially, we review briefly the significant points in the tradition of critical comments on Freudian aesthetic reflections, then comment on the text "Creative Writers and Day-Dreaming" (1908), in which we employ the comparison with themes and concepts in the Poetics of Aristotle and in the Critique of Judgment of Kant. In the last part we opposed some of the concepts presented in this first text to the article "The Uncanny" (1919), where we propose a reading that makes a contrast of the role and importance given to the aesthetic dimension in both texts. The entire trajectory is oriented to demonstrate the need to conceive of the aesthetic from the intertwining, from identity and difference, between the unconscious psychic field and its ways of actualization refracted by the imagistic-imaginary dimension.

Sigmund Freud; poetry; aesthetics; fiction


LITERATURA/CULTURA

A torção mimética do real: sobre a concepção freudiana da literatura

The mimetic twist of the real: on Freud's concept of literature

Verlaine Freitas

Doutor em Filsofia, professor na Universidade Federal de Minas Gerais. Email: verlainefreitas@gmail.com

RESUMO

O objetivo do texto é fazer uma leitura de elementos conceituais presentes na concepção freudiana sobre a poesia e a literatura, apontando aspectos problemáticos, como também os que se mostram pertinentes para análise do fenômeno estético. Inicialmente, passamos brevemente em revista pontos significativos de comentários críticos às reflexões estéticas freudianas da tradição, passando então a comentar o texto "Der Dichter und das Phantasieren" (1908), em que nos serviremos da comparação com temas e conceitos presentes na Poética de Aristóteles e na Kritik der Urteilskraft de Kant. Na última parte, contrapomos alguns conceitos presentes neste primeiro texto ao artigo "Das Unheimliche" (1919), em que propomos uma leitura que faz contrastar o papel e importância conferidos à dimensão estética em ambos os textos. Toda a trajetória está orientada para demonstrar a necessidade de conceber o estético a partir do entrelaçamento, da identidade e da diferença, entre o âmbito psíquico inconsciente e suas formas de atualização refratadas pela dimensão imagético-imaginária.

Palavras-chave: Sigmund Freud; poesia; estética; ficção.

ABSTRACT

The objective of this paper is to make a reading of conceptual elements present in the Freudian view on poetry and literature, pointing out its problematic aspects, but also the relevant ones to the analysis of the aesthetic phenomenon. Initially, we review briefly the significant points in the tradition of critical comments on Freudian aesthetic reflections, then comment on the text "Creative Writers and Day-Dreaming" (1908), in which we employ the comparison with themes and concepts in the Poetics of Aristotle and in the Critique of Judgment of Kant. In the last part we opposed some of the concepts presented in this first text to the article "The Uncanny" (1919), where we propose a reading that makes a contrast of the role and importance given to the aesthetic dimension in both texts. The entire trajectory is oriented to demonstrate the need to conceive of the aesthetic from the intertwining, from identity and difference, between the unconscious psychic field and its ways of actualization refracted by the imagistic-imaginary dimension.

Keywords: Sigmund Freud; poetry; aesthetics; fiction.

A perspectiva freudiana sobre as artes em geral, e sobre a literatura e a poesia em particular, foi duramente criticada, tanto no âmbito dos estudos psicanalíticos, quanto por parte de filósofos e teóricos da literatura. Já em 1924, Roger FRY aponta três aspectos principais de sua divergência em relação a Freud e a seus seguidores: a) a inadequação do conceito de realização de desejo na arte, considerando, entre outras coisas, que o objeto que demonstra tal conceito, como colocado em "Der Dichter und das Phantasieren", a saber, novelas e narrativas populares, não é arte; b) Freud teria, erroneamente, tomado o conteúdo como o mais importante na arte, enquanto, como ele mesmo reconhece, a dimensão formal é a mais significativa; c) FRY (2010) coloca-se contra a ideia de simbolismo na arte, considerando que, de sua perspectiva mais propriamente formal, o que conta é a necessária articulação entre os elementos da obra, e não quaisquer significados que se agregam à forma. Ao comentar o livro The Aesthetics of Freud: A Study in Psychoanalysis and Ari, de Jack J. Spector, Eliseo VIVAS diz que "por causa de seu foco contínuo, quase exclusivo e raso, no psiquismo, em detrimento do objeto construído da apresentação estética, Freud teve um entendimento radicalmente falho da arte" (VIVAS 1975: 79). Embora reconheça a importância de diversos conceitos freudianos para a compreensão de questões estéticas, o maior problema da concepção freudiana seria o de ignorar o processo formativo que constitui o objeto estético em sua forma final: a substância enformada, seu processo formativo, seu meio próprio e a técnica empregada. Desse modo, Freud teria ignorado a especificidade daquilo que constitui o objeto estético propriamente dito, tomando-o como documento da vida psíquica de seu criador. Tal como Roger Fry já havia apontado, Vivas afirma que Freud se manteve excessivamente ligado não apenas ao conteúdo exposto na obra, mas também a apenas um dos vários princípios da gênese da obra - a energia psíquica -, ao passo que seria necessário perceber as transmutações essenciais deste princípio genético em um produto acabado, totalmente construído (VIVAS 1975: 79).

No âmbito da filosofia, Theodor Adorno também fez duras críticas às reflexões estéticas freudianas, afirmando que a Psicanálise seria bem mais profícua no âmbito psíquico do que perante a obra de arte, seu processo produtivo e sua recepção. Além de criticar duramente essa dimensão de documento da constituição psíquica do artista na obra, argumenta que a psicanálise "decifra fenômenos, mas não alcança o fenômeno arte. Obras de arte são para ela nada mais do que fatos, mas com isso ela perde de vista sua objetividade, sua consonância, seu nível formal, seus impulsos críticos, sua relação com a realidade não-psíquica, finalmente sua ideia de verdade." (ADORNO 1997a: 21)1 1 Todas as traduções nesse artigo são de nossa autoria. .

Esses são alguns exemplos, concernentes a questões de fundamental importância, de uma longa trajetória de críticas à concepção freudiana do fenômeno estético. Em termos gerais, podemos dizer, tal como afirma Vladimir SAFATLE, que não apenas em textos do próprio Freud, mas também nos de seus seguidores, a arte "presta um serviço à psicanálise", ao fornecer exemplos e ilustrações de concepções teóricas específicas, como o complexo de Édipo, em Freud, ou a gramática do desejo inconsciente, em Lacan; trata-se de uma compreensão semântica da aparência estética, que remete cada um de seus conteúdos a um sentido subjacente, a ser revelado por uma estratégia de decifração de signos (SAFATLE 2006: 165). Algo semelhante já havia sido apontado por Ludwig MARCUSE, quando afirmou que Freud queria "prestar uma homenagem ao artista ao aprender com ele", ao passo que tal "homenagem ao artista consistiu principalmente em fazer uso dele a serviço da psicanálise" (MARCUSE 1958: 13). Em contraste com tal forma de abordagem, Safatle pretende conceber, a partir de certas formulações da perspectiva lacaniana, "o estatuto próprio ao objeto estético em sua irredutibilidade", buscando "coordenadas que permitam compreender a especificidade da formalização estética e de seus modos de subjetivação" (SAFATLE 2006: 171).

Tendo em vista este horizonte crítico, que de fato se volta a problemas cruciais no modo com que a psicanálise aborda o fenômeno estético, pretendemos fazer uma leitura dos textos Der Dichter und das Phantasieren e Das Unheimliche, de modo a não prioritariamente aduzir elementos a essa tradição crítica - já fartamente desenvolvida -, mas sim propor uma reflexão psicanaliticamente fundada do processo de constituição da obra literária/poética, tendo em vista as vicissitudes da constituição do âmbito estético na interdependência disjuntiva entre realidade e ficção. Através da apropriação e hermenêutica de diversos conceitos e temas freudianos, procuraremos mostrar como questões atinentes à constituição psíquica são válidas para delinear a especificidade do estético como um âmbito que se configura pela instauração formal de significações de direito próprio. Se a psicanálise pode, efetivamente, ser útil na elucidação do fenômeno estético, ela não apenas deve validar-se como crítica dos processos regressivos de consumo de mercadorias culturais - tal como foi realizado por Theodor Adorno em seu texto "O caráter fetichista na música e a regressão da audição" -, mas também permitir a elucidação do que ultrapassa as vicissitudes da gênese psíquica de toda obra cultural. Tal como diz Joel WHITEBOOK, é necessário conceber uma distinção suficiente entre os âmbitos da gênese e da validade, de modo a evitar tanto a separação ilusória, posto que absoluta, destes dois poios, quanto a redução da última à primeira, pois esta última estratégia - típica do procedimento ortodoxoclássico na psicanálise - retira de cena a possibilidade de conceber uma relativa autonomia dos processos culturais. Para Whitebook, o conceito que permite localizar esta transformação substantiva é propriamente o de sublimação (cf. WHITEBOOK 1996).

De nosso ponto de vista, é preciso dar suficiente ênfase para a transição propriamente dita entre a gênese psíquica do artefato estético e sua consolidação como um âmbito que segue princípios de constituição sui generis, que tendem a reforçar sua autonomia perante as conexões simbolicamente estruturadas na realidade empírica. Para isso, é necessário evitar o que Kenneth Burke denominou uma estratégia essencialista, que privilegia fundamentalmente um fator, dentre vários outros que contribuem para a instituição de uma dada realidade, em contraste com uma abordagem que enfatiza a proporção de todos eles (cf. BURKE 1939: 393-4). Nesse sentido, nossa perspectiva se qualifica por atentar às relações dinâmicas entre diversos aspectos da instauração do âmbito estético, desde os mais profundamente psicanalíticos até aqueles ligados à constituição formal das obras. O vigor de tal estratégia reflexiva deve ser mensurado pelo modo com que se insiste em tais vínculos de interdependência de fatores heteróclitos, não redutíveis a um denominador comum, que possuem suficiente força gravitacional para obliterar a importância de todos os outros para o quadro conceituai em sua totalidade.

A primeira frase do texto "Der Dichter und das Phantasieren" estabelece princípios significativos do quadro conceituai em que o texto se moverá para falar da conexão entre a obra poética e o substrato psíquico que lhe dá origem:

A nós, leigos, sempre foi bastante estimulante saber de onde esta notável personalidade, o poeta, retira seus materiais

[Stoffe]

[...], e como consegue nos impressionar com eles e provocar em nós emoções das quais talvez nem sequer nos considerássemos capazes.

2 2 Uns Laien hat es immer mächtig gereizt zu wissen, woher diese merkwürdige Persönlichkeit, der Dichter, seine Stoffe nimmt -; etwa im Sinne der Frage, die jener Kardinal an den Ariosto richtete -; und wie er es zustande bringt, uns mit ihnen so zu ergreifen, Erregungen in uns hervorzurufen, deren wir uns vielleicht nicht einmal für fähig gehalten hätten. (FREUD 1999: 213)

(FREUD 1999: 213)

Creio que se possam discernir três fatores fundamentais nessa passagem: a matéria, o material poético; o modo com que ele se estrutura para ser aprovado por seus observadores; e os efeitos subjetivos do contato com a obra.

O primeiro deles, ligado à noção de Stoff, é especialmente importante para nós, inicialmente, devido à ambiguidade de significação deste vocábulo no próprio idioma alemão e acentuada pela questão que Freud coloca sobre suas fontes, sua origem, indicada no texto pelo pronome interrogativo woher ("de onde"). Stoff'tem basicamente dois significados: matéria, seja a produzida, fabricada, ou natural, e tema, assunto, aquilo sobre que se fala. Ambas as significações são reunidas, em português, quando se pergunta: "qual a matéria da prova?". Considerando o desenvolvimento ulterior do texto de Freud, podemos dizer que haveria duas matérias: uma objetiva e outra subjetiva. A primeira diria respeito ao que normalmente chamamos de tema ou assunto de uma obra. A segunda se ligaria ao complexo fantasístico que nutre e impulsiona a criação literária, não apenas por seu ímpeto, por sua força que impele à realização do produto, mas fundamentalmente pelos conteúdos ao redor dos quais gravita este mesmo impulso. A partir da leitura de Jean Laplanche sobre Freud, dizemos que se trata propriamente das fantasias inconscientes que delineiam o substrato motivacional de toda a configuração de desejo na conexão com objetos empiricamente verificáveis. Nesse sentido, seria importante diferenciar a imaginação, ao se articularem os elementos literários, da fantasia, que confere um conteúdo subjetivo que subjaz ao emprego de nossa capacidade imagética e imaginária de plasmação das narrativas e do objeto poético (cf. LAPLANCHE 2000: 169). Entre os dois poios do Stoff, há que se qualificar uma torção mimética que medeia, pela dimensão formal, a construção de um espaço de ficção, marcado pela tensão entre a liberdade lúdica da correlação sintática dos elementos e a recaída em uma simbolização resultante de deslocamentos afetivos sob a égide dos mecanismos libidinais de constituição da identidade subjetiva. Entre a resolução interpretativa literal freudiana, que privilegia a positividade da matéria tanto subjetiva quanto objetiva - tal como apontado pelos críticos que citamos -, e a apologia da autonomia da instauração ficcional do estético, como na doutrina da l'art pour l'art, é preciso insistir na indeterminação produtiva entre o real-sexual e o métier auto instaurador de sentidos ressignificados no espaço pretensamente autônomo do estético. Muito de nossa argumentação consistirá em articular esses dois poios objetivo e subjetivo da matéria, em que esta é enformada sob a égide de princípios capazes de lhe oferecer uma passagem substantiva para a totalidade do artefato estético.

E instrutivo comparar este início do texto freudiano com as primeiras colocações de Aristóteles na Poética, em que se lê:

... a poesia épica e o fazer

[poiêsis]

tragédia e ainda comédia e a arte de fazer ditirambos, e a maior parte da arte da flauta e da cítara, todos são em geral

mímeseis

[imitações, representações]. Mas elas [as

mímeseis]

diferem uma da outra de três modos - tanto por mimetizarem

[mimeisthai]

em coisas diferentes, (mimetizar) coisas diferentes

[hetera],

ou (mimetizar) diferentemente e não da mesma maneira. (ARISTÓTELES 1894: 6;

Poética

1447a)

Cada uma das artes livres, não utilitárias, ou seja, que não se dedicam a produzir objetos com fins especificados, são ditas como formas de mímeseis, que se distinguem por seu meio (em que se realiza a mimesis), seu objeto (o que é mimetizado), seu modo de realização (como se mimetiza). Aqui nos interessa especialmente uma conexão subjacente à letra do texto entre o objeto e o modo da mimesis, inferida a partir de um detalhe significativo: o termo usado por Aristóteles para designar coisas diferentes (o objeto da mimesis) é hetera, um acusativo neutro plural, ou seja, "coisas diferentes" (hetera), corresponde ao objeto direto do verbo mimetizar (mimeisthai), é do gênero neutro e está no plural. Essa categoria gramatical é especialmente instigante, pois pode ter a função de um advérbio, ou seja, pode significar uma qualificação do verbo, que no caso seria propriamente a indicação de um modo de mimetizar. Tal como diz Michael Davis em seu comentário da Poética, o emprego dessa ambiguidade gramatical teria um sentido conceitualmente estruturante no texto aristotélico, de tal forma que mimetizar coisas diferentes já significaria mimetizar de forma diferente. O que e como se mimetiza se entrelaçariam de forma substantiva. Ora, isso somente pode fazer algum sentido se o objeto da mímesis for ela própria, pois aí o como e o que se unificam no próprio ato de mimetizar. De fato, Homero, ao descrever a ira de Aquiles, não mimetiza algo diferente do que um ato de mímesis. Todo o conjunto de elementos da ira de Aquiles somente perfaz isso que nós chamamos de sua ira pelo fato de que eles são já sempre colocados em um contexto que faz com que haja esse significado que percebemos nela. O que Homero mimetiza é, em última instância, o seu próprio ato de mímesis, ou seja, o modo de equacionar o que se pensa dos atos de Aquiles a partir de um paradeigma do que significa a ira de um herói. Em outras palavras, a rigor não se mimetizam objetos e coisas na realidade, mas sim o modo como constituímos tais objetos em sua significação própria, ao relacionarmos determinados recortes da realidade a princípios, parâmetros, modelos e ideais, fazendo emergir, neste vínculo mimético, o horizonte de significatividade possível para o objeto (cf. DAVIS 1992: 8-9).

A partir desta insolubilidade entre o objeto e o modo da mímesis dizemos que todo objeto estético tem, em uma de suas determinações essenciais, a implicação subjetiva em sua determinação por ter suficiente sentido e significado como elemento constituinte da obra. Todo objeto estético já é ficcional pelo modo com que se determina inapelavelmente ao se inserir nas conexões mimético-fantasísticas do desejo. Essa ficcionalidade se dá pelas vias de articulação sintática de todos os elementos, não somente entre si, mas fundamentalmente com a totalidade da obra, por cuja mediação todas as determinações psíquicas e empíricas dos particulares são refratadas, de modo a servirem de mola propulsora para o que nutre a totalidade com um sentido próprio. Nessa correlação de determinação recíproca entre todo e partes, o movimento de domínio estético dos materiais se dá sempre de forma retrospectiva, em que cada palavra, ideia, elemento narrativo, personagem etc, somente alcança uma inteligibilidade própria por, ao mesmo tempo, negar sua dimensão primeira e afirmá-la, em sua transubstanciação, pelo modo com que a totalidade lhes confere sentido.

Diante de tais leituras que propomos, tanto sobre a primeira passagem do texto de Freud citada, quanto sobre a Poética de Aristóteles, vemos que o fenômeno estético deve ser entendido através da relação recíproca entre a dimensão objetiva e subjetiva da obra literária, implicando não propriamente uma indiferenciação entre ambos, mas sim um movimento de identificação mediado pelo tensionamento relativo à diferença entre eles.

A segunda frase do primeiro parágrafo de "Der Dichter und das Phantasieren" também é significativa:

Nosso interesse se intensifica pelo fato de que o próprio poeta, quando questionado, não nos fornece nenhum esclarecimento, ou pelo menos nenhum satisfatório, e tal interesse não é prejudicado em nada ao sabermos que o melhor discernimento dos determinantes da escolha do material e da essência da arte da composição poética em nada contribuiria para nos tornar poetas. (FREUD 1999a: 213)

Essa colocação ressoa a ideia de Kant de que o gênio, como talento de criação artística, fornece a regra à arte como natureza, de tal forma que o artista não consegue traduzir em conceito uma lei que ele segue ao produzir seus exemplos, ou seja, as obras (KANT 2001: 193). Além disso, em função daquilo que Kant havia dito do juízo estético como sendo sem conceito, tampouco um discurso conceitualmente estruturado é capaz de nos fazer compreender o que faz algo ser belo. Assim, em ambos os autores a excelência estética é marcada por uma dupla opacidade: subjetiva, no momento em que o ímpeto de constituição da beleza não é assimilável pelo próprio indivíduo; e intersubjetiva, pelo fato de que não é possível uma comunicação dialogicamente instituída acerca do que impulsiona a concretização de um objeto estético. A ênfase nesse tema é significativa, em virtude da necessidade de ressituar o conceito de realização de desejo proposto por Freud como um definidor da obra de arte. Concordamos com Roger FRY quando ele diz que o simbolismo é fraco para apreender a especificidade do fenômeno estético, uma vez que toda obra de arte digna dessa qualificação estaria além de toda conexão simbólica positivamente verificada (cf. FRY 2010: 17). Mas, tal como o próprio autor reconhece e Hanna Segal aponta de forma clara, Fry concebe as conexões simbólicas no plano de desejos conscientes, enquanto se faz necessário perceber o modo com que a arte articula conexões simbólicas inconscientes. Em relação a esse ponto, Segal explicita sua posição:

Se existe realização de desejo na arte - e tem que haver, uma vez que há realização de desejo em toda atividade humana - não é uma realização de desejo onipotente simples de um desejo libidinal ou agressivo. E uma realização do desejo de perlaborar [work-through] um problema de uma forma particular, não o que é entendido por realização de desejo, a saber, onipotência.

A obra de arte é, creio eu, uma expressão desta perlaboração [working-through]. (SEGAL 1991:61)

O problema dessa perspectiva é que o conceito de perlaboração [Durcharbeit] não é especialmente útil para circunscrever a especificidade do estético perante as vicissitudes da vivência psíquica na realidade empírica. "Perlaborar" significa, a partir do famoso texto Erinnern, Wiederholen, Durcharbeiten, de Freud, o trabalho subjetivo do analisando em fazer com que os conteúdos inconscientes aflorados no processo analítico tenham suficiente significado subjetivo para serem vivenciados conscientemente, retirando gradativamente dos sintomas neuróticos sua força coercitiva e devolvendo a liberdade subjetiva perante o desejo inconsciente. Parece-nos insuficiente dizer que se trata na arte de um modo específico, peculiar de perlaboração, uma vez que tal conceito somente faz sentido dentro do horizonte estabelecido pelo conhecimento oriundo do trabalho analítico. Fora dessa perspectiva, e ainda considerando a arte como realização de desejo, o que se teria é apenas mais uma das infinitas formas de elaboração dos conteúdos psíquicos inconscientes. Em contraste com isso, parece-nos mais pertinente uma expressão que Adorno usa para diferenciar seu conceito de expressão estética daquele de sublimação em Freud, dizendo que "toda expressão bem-sucedida do sujeito é, por assim dizer, um pequeno triunfo sobre o jogo de forças de sua própria psicologia" (ADORNO 1997b: 244).

Fazendo uma analogia com a concepção kantiana do juízo de gosto como sendo sem conceito - ou seja, em que o sentimento de prazer com o belo não pode se fundar em nenhuma regra abstrata -, a impossibilidade de o artista comunicar discursivamente os princípios de seu fazer, em Freud, poderia ser estendida para a própria ideia de uma ancoragem do fazer artístico em um desejo. Isso significaria que a arte não apenas é inassimilável discursivamente como também não o é desiderativamente, ou seja, ela não seria passível de enquadramento fantasístico especificável positivamente. De forma análoga a como Freud diz que em toda interpretação de um sonho haveria um resto não traduzível, o umbigo do sonho, toda arte seria marcada não apenas por este ponto cego da interpretação, mas sim por uma clivagem essencial entre o plano da objetividade da matéria e sua contraparte subjetiva, a saber, a teia fantasística que se consubstancia como desejo. Necessário é perseguir os elementos que articulam a aproximação e o distanciamento desses dois poios.

Como é sabido, a categoria fundamental no texto "Der Dichter und das Phantasieren", que articula a brincadeira infantil, o devaneio e a poesia é o jogo. Essas três formas de conexão com os objetos da realidade teriam em comum o fato de instituírem um âmbito ficcional que se destaca dos compromissos éticos, cognitivos, racionais etc, originando leis de associação entre seus objetos que rompem com o modo como agimos na realidade e a percebemos. Tal como disse Johann HUIZINGA em seu famoso livro Homo ludens, o espaço lúdico é uma realidade dentro da realidade, em que a adesão voluntária a regras arbitrárias nos coloca compromissos muitas vezes irracionais perante aqueles vivenciados na realidade empírica (cf. HUIZINGA 2000). Ambos os autores enfatizam a adversativa de que essa transposição para um novo mundo não significa a destituição da seriedade, de uma forma de investimento afetivo compromissada, pois quem joga pode tomar tão ou mais a sério sua atividade do que quando não está jogando. Isto é significativo para Freud, em virtude do fato de que este segundo plano de realidade, mesmo que falso perante os critérios da racionalidade empírica, pode fazer emergir uma verdade mais substancial do plano desiderativo, que, para todo o edifício da psicanálise, constitui o sujeito aquém de sua capacidade de autorreflexão. O jogo da criança, por exemplo, demonstra uma capacidade de assimilação imagética da realidade em que o vínculo mimético, de semelhança e distinção entre si e o mundo, ganha uma autonomia tal que permite a elaboração de conflitos desiderativos, manifestações de angústia, processos de inibição etc. que somente são digeridos pelo modo com que a criança demonstra suficiente liberdade e desenvoltura com os processos de simbolização, tal como exposto claramente por Hanna SEGAL em seu livro Dream, Phantasy and Art (1991).

Nesse contexto, a brincadeira infantil situa-se em um panorama de progressividade da articulação dos fatores de subjetivação, concernentes à capacidade de distinção mediada entre si e a realidade, momento em que as diferenças são ao mesmo tempo afirmadas e vividas de forma fluida, devido ao modo com que o investimento afetivo nas imagens de duplicação do mundo é especialmente forte. O devaneio, por sua vez, indica certa regressividade na relação entre sujeito e objeto, uma vez que o cenário constituído imaginariamente se dá sob a égide de um desejo infantil, recalcado, que se atualiza pelo modo com que uma circunstância presente fornece suficiente material para a articulação de uma cena visando uma realização futura. Em ambos os casos, vemos claramente o quanto a ficção é impelida e configurada pela necessidade de equacionamento resolutivo das tensões apenas parcialmente metabolizadas no âmbito psíquico. Trata-se de uma identificação projetiva, tal como diz Hanna SEGAL, em que o sujeito se atualiza pelo modo com que as imagens, em sua relativa diferença perante a interioridade subjetiva, fazem fluir e, assim, satisfazem parcialmente as demandas de equilíbrio de todo o aparelho psíquico (cf. SEGAL 1991: 78) E preciso insistir, assim, no quanto tais espaços de subjetivação se mostram radicalmente devedores do influxo psíquico que constitui o sujeito. Tanto na brincadeira quanto no devaneio, a ideia de realização de desejo pode e deve ser tomada em toda sua extensão possível, como princípio hermenêutico capaz de devolver reflexivamente ao sujeito uma apreensão de si que somente transparece pelo modo com que ele diferencia de seu espaço interno um plano imagético-imaginário exterior.

A poesia é o terceiro termo da comparação fundada no conceito de jogo. Ela também institui um plano ficcional que se separa da realidade empírica para constituir um mundo a partir da força da representação imaginativa. De forma semelhante ao devaneio, a arte é falada como uma fuga perante as agruras da realidade da vida, mas, diferente dele, não se define por uma satisfação egocêntrica. Seu sentido não se esgota no modo como desejos individuais recalcados encontram uma forma de metabolização psíquica, uma vez que tais conteúdos podem ser um material para uma obra cujo significado é ampliado culturalmente. Tem-se uma transposição operada pela arte entre a dimensão egoísta, particular, e a universalidade do compartilhamento da significatividade estética, que deve ser mediada por uma ideia que configura mais um ponto de contato das formulações freudiana e aristotélica sobre a poesia.

No mesmo parágrafo em que introduz a noção de jogo como um elemento para definir arte, Freud diz:

Da irrealidade do mundo poético resultam importantes conseqüências para a técnica artística, pois muitas coisas que não poderiam produzir prazer como algo real, o fazem no jogo da fantasia; muitos estímulos

[Erregungen]

em si mesmos dolorosos podem se tornar fonte de prazer para o ouvinte e espectador do poeta. (FREUD 1999a: 214)

Na Poética, Aristóteles afirma que

[...] a mímesis é natural para os seres humanos desde a infância - e nisso eles diferem do resto dos animais por serem os mais miméticos e fazerem [poieitai] seu primeiro aprendizado através da mímesis - como é [natural] para todos ter prazer nas mímeseis.

E o que o ocorre em relação à experiência é um sinal disso; pois temos prazer em admirar especialmente imagens precisas de coisas que poderiam ser elas mesmas dolorosas, por exemplo, as formas visíveis tanto da mais humilhada fera e de cadáveres. (ARISTÓTELES 1894: 14)

A partir dessas duas colocações, podemos dizer que a duplicação imagética do real, nutrida pela força com que a fantasia articula seus elementos, é capaz de inserir um ponto de inflexão em nossos investimentos afetivos perante o real, fazendo com que o objeto de investimento afetivo penoso na realidade adquira uma nova coloração, mediada pelo significado estético instaurado pela obra. E significativo o fato de o feio e penoso ainda se mostrarem como tais, mas seu significado é alterado precisamente pelo modo com que a totalidade da obra lhe confere um sentido novo.

O restante do texto de Freud que comentamos caminhará no sentido de afirmar essa transfiguração positiva de elementos afetivos/pulsionais. Isso fica claro na medida em que a atitude solipsista no devaneio é comparada às peças de literatura popular em que vigora a exacerbação de um personagem central, que confere suficiente visualidade aos investimentos narcisistas do espectador, seja pelas peripécias das quais um herói se salva, seja pelo modo com que o leitor é colocado na perspectiva daquele que tudo sabe e tudo acompanha com sua visão onipresente. Diante disso, não é difícil concordar com Ludwig Marcuse quando diz que a concepção freudiana da arte é escapista (cf. MARCUSE 1958: 4), uma vez que circunscreve o âmbito estético como uma espécie de satisfação substitutiva para tudo o que é recusado na realidade, de forma análoga ao modo como o devaneio é descrito por Freud como sendo vivenciado apenas na medida em que existe insatisfação com a realidade empírica.

Nesse cenário, estamos nos movendo em meio ao terceiro elemento que apontamos no início de nosso texto, a saber, o dos efeitos subjetivos do contato com a obra (além da matéria e do modo de sua articulação). Uma de suas características, bastante comentada e também criticada, é a ideia de Freud de que, uma vez que os desejos inconscientes a serem realizados, tanto no devaneio quanto na arte, são recalcados, faz-se necessário entender por que apenas no primeiro existe vergonha em seu compartilhamento com outras pessoas. A primeira resposta é que a habilidade poética, cujo princípio fundamental Freud admite ser um mistério incognoscível, consegue fazer com que os elementos mais vergonhosos e individuais sejam suavizados, perdendo seu caráter repulsivo e mesmo ridículo. Em relação a isso, Ludwig Marcuse diz que se trata de uma concepção bastante particular de Freud, uma vez que a literatura está repleta de exemplos em que o autor não dissimula em nada, ou muito pouco, o caráter mais imediatamente forte, pessoal e impactante de conteúdos afetivos (cf. MARCUSE 1958: 5). (Em termos de literatura contemporânea, temos em mente, por exemplo, História do olho, de Georges Bataille.) A segunda resposta nos parece ainda mais inadequada, pois diz que o poeta

nos suborna com um ganho de prazer puramente formal, isto é, estético, que ele nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denomina-se

prêmio de estímulo

ou

prazer preliminar

um tal ganho de prazer, que nos é oferecido a fim de, com ele, possibilitar a liberação de um prazer maior a partir de fontes psíquicas mais profundas. Minha opinião é que todo o prazer estético que o poeta nos proporciona apresenta tal característica, e que o prazer propriamente dito da obra poética origina-se da liberação de tensões em nosso psiquismo. (FREUD 1999a: 223)

Nossa perspectiva é a de que tal colocação é duplamente equivocada. Inicialmente, por tomar o estético como sendo o puramente formal, desconectado do entrelaçamento das formas artísticas com a história e com o peso próprio dos materiais sobre os quais a atividade formadora é exercida. Em segundo lugar, é equivocada por reduzir este prazer com a articulação meramente formal ao plano da vivência empírica em situações desconectadas da experiência e especificidade estética. Trata-se de uma separação tão clara entre forma e conteúdo, que, paradoxalmente, temos uma concepção ao mesmo tempo formalista e conteudística da arte.

Esta, entretanto, é apenas uma das faces da questão do efeito estético em Freud. A outra, presente no texto Das Unheimliche, leva-nos para um caminho bastante distinto. Nesse artigo, Freud se dedica a investigar em que consistiria o sentimento de estranheza, tal como vivido na realidade concreta e também provocado pelas obras literárias. Em síntese, o estranho é pensado como contraparte daquilo que é familiar, tendo em vista a simetria das duas palavras em alemão usadas para ambos os conceitos: unheimlich e heimlich, respectivamente. O estranho seria, inicialmente, o que está fora do círculo da intimidade, do que já é conhecido e familiar. Entretanto, o vínculo das duas noções tenderá a se tornar agudo e complexo.

Dos antecedentes da literatura sobre essa temática, o que mais interessa a Freud é a colocação de Schelling de que "se chama unheimlich tudo o que deveria permanecer em segredo, escondido, mas se manifestou" (apud FREUD 1999b: 235). Todos os exemplos literários e de circunstâncias da vida real analisados por Freud têm como fio condutor a ideia de que o sentimento do estranho é originado da tensão aguda entre o âmbito imaginário, fantasístico, e a realidade concreta. O que faz este tensionamento adquirir sua intensidade peculiar é o sobre-investimento afetivo inconsciente em uma representação imagética a partir de conteúdos psíquicos recalcados, de tal forma que a imagem é tomada como sede de um poder fantasmagórico, capaz de influenciar imediatamente o curso da realidade. Este é o esquema da famosa concepção da onipotência dos pensamentos, expressão tomada por Freud de um de seus pacientes (cf. FREUD 1999b: 106ss). Ela está presente na técnica da magia, em que tudo o que acontece com a duplicação imagética de alguém, por exemplo, como no boneco de vodu, afetará de forma análoga a pessoa representada. Por mais que, na trajetória de racionalização tanto individual quanto coletiva, este mecanismo de superstição tenha sido superado, ele pode se fazer presente em momentos em que coincidências e repetições surpreendentes são interpretadas como manifestações de algum poder sobrenatural.

De nosso ponto de vista, é especialmente importante considerar o estranho como o resultado de uma espécie de curto-circuito entre o ficcional/imagético/imaginário e a vivência concreta da realidade empírica. Tal conexão é especialmente explosiva devido ao modo como conteúdos inconscientes recalcados são trazidos à tona de forma enigmaticamente viva, em que a irrealidade ficcional é preenchida por uma proporcional força do desejo inconsciente. Ora, a literatura extrai muito de sua força do espaço de identidade e diferença entre o real e a ficção. Citemos um parágrafo do texto de Freud especialmente relevante:

O estranho da ficção - da fantasia, da poesia - merece, de fato, uma consideração específica. Ele é, acima de tudo, muito mais rico que o estranho da vida real, abrangendo-o em toda sua extensão e ainda mais coisas, que não ocorrem nas circunstâncias da vida. A oposição entre o recalcado e o superado não pode ser transposta para o estranho da poesia sem uma profunda modificação, pois o reino da fantasia tem como pressuposto de sua validade que seu conteúdo seja subtraído à prova de realidade. O resultado que soa paradoxal é que

na poesia não é estranha muita coisa que o seria se ocorresse na vida real, e que na poesia vigoram muitas possibilidades de alcançar efeitos estranhos que não estão disponíveis para a vida.

(FREUD 1999c: 264; grifos no original)

Temos aqui, na verdade, o oposto exato da suavização de conteúdos inconscientes recalcados, uma vez que a excelência estética agora é expressa precisamente pelo modo com que o tensionamento entre ficção e realidade confere ao caráter explosivo dos conteúdos inconscientes recalcados uma energia produtiva esteticamente assimilada. Ao contrário da crassa divisão entre o formal e o conteudístico, temos não apenas sua imbricação, mas também uma definição do estético pelo modo com que ela é absorvida como sentido do posicionamento da obra perante a realidade e em resposta às tensões psíquicas inconscientes. Em vez de a dimensão formal ser um anteparo ao prazer mais substantivo, ancorado em um substrato mais real em termos da efetividade psíquica, ela se mostra proficiente na medida em que ganha vivacidade por seu deslocamento nãoresolvido entre a pureza da autonomia lúdica e formal, por um lado, e o rebatimento mimético da empiria, tal como vivida em sua dimensão primeira. Devido a isso é que falamos de uma torção mimética entre os poios subjetivo e objetivo da matéria estética, uma vez que o que circunscreve o estético, nesse registro, é sua recalcitrância diante de uma determinação unívoca em termos de fuga e/ou obediência aos compromissos da realidade vivida.

Naturalmente, não se trata de querer definir todo o fenômeno estético literário pela tematização do estranho causado pela indefinição entre o ficcional e a realidade, pois obviamente a maioria das obras literárias não o faz. Trata-se, na verdade, de perceber aí um componente inalienável de toda experiência com a arte, em que a obra ganha sua significatividade estética propriamente dita pelo modo com que exerce essa estranha atração, ao se furtar a um delineamento preciso entre estes dois poios. Nesse sentido, se a arte pode apropriadamente ser entendida a partir do conceito de jogo, não seria propriamente o da criação de um mundo ilusório mantido por vínculos arbitrários, mas sim o de um jogo com nossa própria concepção, nosso senso da diferença entre o ficcional e a realidade.

Encontramos ainda outra oposição entre essa perspectiva do estranho literário e a presente no texto Der Dichter und das Phantasieren. Neste, a universalidade do estético foi abordada como se originando pelo modo com que os conteúdos inconscientes eram por assim dizer abafados, dissimulados, polidos, cedendo lugar a uma bela aparência, desprovida dos choques e arestas e indelevelmente vivenciados em relação a esses estratos mais profundos do psiquismo. Nesse outro texto - escrito em 1919, portanto onze anos depois do primeiro e sob o impacto da tenebrosa experiência da Primeira Guerra Mundial -, embora a questão da universalidade não tenha sido explicitada, podemos dizer, a partir da ideia segura em psicanálise de que o recalque é um fenômeno universal (excluindo-se a difícil questão dos fenômenos-limite das psicoses), que esse movimento de transposição do singular para o universal se dá na medida em que os conflitos e contradições entre os diversos estratos psíquicos são assimilados esteticamente como força de constituição de uma imagem que atualiza, em sua pregnância formal peculiar, algo do movimento de constituição da subjetividade aquém e além do nivelamento culturalmente forçado, e portanto historicamente adstrito e falso, desse universalmente estranho modo de ser humano.

Recebido em 02/08/2012

Aprovado em 18/09/2012

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  • 1
    Todas as traduções nesse artigo são de nossa autoria.
  • 2
    Uns Laien hat es immer mächtig gereizt zu wissen, woher diese merkwürdige Persönlichkeit, der Dichter, seine Stoffe nimmt -; etwa im Sinne der Frage, die jener Kardinal an den Ariosto richtete -; und wie er es zustande bringt, uns mit ihnen so zu ergreifen, Erregungen in uns hervorzurufen, deren wir uns vielleicht nicht einmal für fähig gehalten hätten. (FREUD 1999: 213)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      02 Ago 2012
    • Aceito
      18 Set 2012
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