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Os sentidos da saúde

APRESENTAÇÃO

Os sentidos da saúde

Joel Birman

Relatividade e complexidade

O que está em questão neste novo número de Physis é o sentido da palavra e do conceito de saúde, em diferentes contextos e em diversas perspectivas de leitura. Apesar do fato de que isso não esteja sempre patente e evidente, num olhar superficial e rápido dos títulos dos artigos apresentados aqui, a problemática de fundo que os atravessa como uma totalidade é a tentativa sempre recomeçada de retomar a indagação crucial do campo da saúde coletiva, qual seja: qual é a concepção de saúde?

Como se sabe, o campo da saúde coletiva se constituiu historicamente e se estruturou enquanto tal para tentar responder a esta indagação fundamental: o que é a saúde? O que isto quer dizer, afinal de contas? É justamente este questionamento que ressoa em nossos ouvidos na leitura atenta e cuidadosa dos artigos que compõem esta revista.

Seria impossível enunciar um sentido unívoco para a palavra saúde?

Ou, pelo contrário, a concepção de saúde seria marcada pela pluralidade de sentidos, na medida em que são variados os contextos sociais, históricos e lingüísticos nos quais esta palavra é empregada? Nestes contextos, a palavra saúde se inscreve em diferentes registros da experiência, seja esta real ou imaginária, de forma tal que a sua gramática e a sua sintaxe se precipitam em campos semânticos perpassados pela multiplicidade. Portanto, a primeira assunção a ser feita aqui é o reconhecimento inequívoco de que a palavra saúde admite uma pluralidade de leituras possíveis, como decorrência necessária de que seria marcada por diferentes sentidos. Este é o grau zero de reconhecimento do que perpassa estes diversos artigos, não apenas porque seus autores realizaram escolhas regionais na assunção de determinados sentidos de acordo com os seus campos de pesquisa, mas também porque cada um deles está ciente da complexidade do campo como uma totalidade, e que admite, por isso mesmo, diferentes significantes para a palavra saúde.

Sabe-se já, com efeito, que a interpelação teórica do campo clássico da saúde pública realizada pela saúde coletiva se tece na direção precisa de colocar em questão a unicidade do significado do conceito de saúde, na medida em que este não poderia ser absolutamente circunscrito a um único padrão e a uma norma pretensamente universal, definida pelos discursos da biologia e das ciências da natureza. A introdução das ciências humanas e sociais no campo da saúde pública teve o efeito de implodi-lo e transformá-lo nas suas linhas de forças, reconfigurando-o enquanto campo da saúde coletiva. Aconteceu aqui uma revolução epistemológica de alto cotumo, que não apenas precisamos reconhecer, mas principalmente nos darmos conta de seus efeitos no que conceme à interpretação plurívoca da palavra saúde.

O que quer dizer isso? Qual é o sentido preciso da afirmação acima?

A inserção das ciências sociais e humanas no campo da saúde pública teve o mérito incalculável de criticar a hegemonia incontestável do paradigma biológico e naturalista daquele, propondo a existência de outros paradigmas na interpretação das experiências fundamentais da saúde coletiva. Seria assim a presença e até mesmo o confronto entre diferentes paradigmas o que passou a definir e a nortear o campo da saúde coletiva. Seria esta, enfim, a marca por excelência deste campo, isto é, aquilo que definiria a sua identidade.

O que implica dizer que a passagem do campo da saúde pública para o da saúde coletiva teve o impacto de relativizar a leitura biológica e naturalista da palavra saúde, pela valorização de outras dimensões e contextos do real advindos dos discursos da sociologia, da antropologia social, da psicanálise, da história e da filosofia. Além disso, o que essa passagem indica é que o campo da dita saúde coletiva e a palavra saúde são marcados pela complexidade, o que caracterizaria com eloqüência as linhas de força diversificadas e conflituais que delineiam a experiência da saúde. Seria por isso, enfim, que qualquer leitura do campo da saúde hoje passa necessariamente pelo reconhecimento de sua pluralidade de sentido.

Enunciação

Poder-se-ia indagar, evidentemente, o que nos levaria a relançar na atualidade este debate sobre os sentidos da saúde, além das razões de ordem puramente acadêmica. Não que estas últimas não sejam importantes por si . mesmas, dado o caráter de pesquisa que caracteriza esta publicação. É claro que são. Porém, acreditamos também que no universo da investigação existe uma certa ressonância do que se passa no espaço social mais vasto, que se encontra neste, no entanto, em estado latente e não propriamente reflexivo. O campo da pesquisa, portanto, funcionaria como uma espécie de enunciação e de desvelamento daquilo que se encontra em estado prático e latente no espaço social. A investigação seria então, nestes termos, uma interpretação dos sentidos latentes que se tecem no espaço social, procurando trazê-los para o campo da reflexão e da reflexividade.

Estamos supondo, assim, que ao nos voltarmos agora para uma reflexão renovada da palavra saúde, isso se deve ao fato de que novos sentidos lhe foram atribuídos no tecido social da atualidade. Existiriam, portanto, novas construções de sentido que se articulam de maneira efetiva no espaço social, que não podemos ignorar absolutamente. É esta postura ética, marcada pela humildade e não pela soberba, que deve nos nortear enquanto pesquisadores do campo da saúde coletiva, assumindo a posição de enunciadores daquilo que existe em estado de enunciação no espaço social.

Desta maneira, se nos voltamos agora para repensar os sentidos da palavra saúde, isso se deve a uma sensibilidade dos pesquisadores do que se passa no espaço social, onde não apenas se produzem sentidos novos para aquela palavra mas também se ordenam práticas outras para o engendramento e para a produção da saúde. Realizados em diferentes contextos sociais, estes sentidos e práticas colocam em questão alguns dos sentidos sedimentados e consagrados daquela palavra. Seria por isso mesmo que este debate se impõe na atualidade, queiramos ou não nos inserir nele de forma deliberada. Se o acompanhamos, podemos infletir alguns efeitos nas suas linhas de força. Caso contrário ficaremos numa posição passiva e contemplativa, na janela, vendo a banda passar, como nos disse poeticamente Chico Buarque, e corremos o sério risco de perder o bonde da história.

Percursos

Porém, para que não se perca o fio de prumo da história, é preciso retomar o leito desta, isto é, aquilo que lhe fornece alguns suportes e define as suas matrizes no campo da saúde. Assim, é necessário revisitar a filosofia da medicina na modernidade, naquilo que esta nos ensinou de fundamental. Por isso mesmo, este número de Physis inaugura-se com a problemática do normal e do patológico, canteiro de obra reflexivo da moderna filosofia da medicina. Circunscrever a abertura deste número nessa problemática não é apenas uma homenagem a Canguilhem, que conferiu uma imensa dignidade teórica ao debate da epistemologia da medicina, mas principalmente a de sublimar que é àquelas categorias do pensamento que se deve retomar, sempre que se queira discutir os sentidos da saúde nos novos contextos que se anunciam.

Assim, temos em Canguilhem o seu teórico maior - a partir da sua tese magistral em medicina desenvolvida nos anos 401 1 Canguilhem, E. Le Normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975. - revisitado na sua pertinência atual, para que nos indaguemos ainda hoje sobre o sentido das palavras saúde e doença que saturam o nosso vocabulário, além dos conceitos de normal e patológico. Contudo, é preciso evocar aqui ainda a crítica crucial de Foucault a Canguilhem, em o Nascimento da clínica2 2 Foucault, M. Naissance de la clinique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975. , à medida que ambos desenharam com traços indeléveis os caminhos a serem percorridos na atualidade por qualquer um que tenda a relançar na atualidade uma indagação fecunda sobre o sentido da saúde.

Seria, portanto, no esforço de se definir o ser da morte e o ser da vida na modernidade - naquilo que os diversos saberes da biologia e da medicina contribuíram decisivamente para retirar aquelas palavras dos discursos da metafísica e religião - que os conceitos de normal e patológico, assim como os de saúde e doença, podem ser reavaliados ainda hoje, aqui e agora, a partir do horizonte que nos foi entreaberto nas leituras de Canguilhem e de Foucault.

Porém, uma outra indagação foi ainda inserida neste contexto: seria possível transpor diretamente para o registro da subjetividade aquilo que foi estabelecido para o registro biológico da vida? Ou, então, essa transposição deve ser feita de maneira indireta, de forma aproximada, reconsiderando os valores de vida e de morte no novo contexto de referência? Dito de uma outra maneira, como seria possível retomar hoje o dualismo freudiano entre as pulsões de vida e de morte3 3 Freud, s. Au-delà du principe de plaisir (120). ln: Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1981. , num contexto em que as evidências bioló gicas sobre essas pulsões foram substituídas tanto pela reflexão lingüística4 4 Lacan. J. Fonction et champ de la parole et da langage en psychanalyse. ln: Lacan, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966. e pelo neopragmatismo5 5 Costa, J. F. Sem fraude. nem favor. Rio de Janeiro: Rocco, 1990. , quanto pelas novas leituras sobre o erotismo e a intensidade em psicanálise6 6 Birman, J. Cartografias do feminino. São Paulo: Editora 34, 1999. ?

Além disso, numa subjetividade centrada nas pulsões e no inconsciente, como foi concebida pela psicanálise, seria ainda possível aplicar o critério de normatividade de Canguilhem? Ou teríamos então que retomar criticamente a categoria de mortalismo de Foucault, para pensar na prematuridade biológica do ser humano concebido no discurso freudiano. Estes são os desafios maiores para todo aquele que pretenda pensar nas questões colocadas pela oposição entre normal e patológico, fundando-se para tal na concepção de subjetividade inventada pela psicanálise.

Porém, não se pode esquecer ainda que a concepção de saúde seja fundada em paradigmas teóricos. Sem que estes possam ser evidenciados de maneira pertinente, a utilização da palavra saúde fica obscura e inapreensível, inscrevendo então ruídos insuperáveis na interlocução dos sentidos da saúde na atualidade. Como já se disse acima, os paradigmas em pauta não são apenas de ordem biológica, mas se fundam também nos registros psíquico, antropológico, social e histórico, constituindo-se quanto a isso numa verdadeira sinfonia pluralista no campo da saúde. Portanto, relançar hoje a discus são sobre os paradigmas da saúde implica necessariamente destacar as relações complexas existentes entre esses diferentes registros e oposições.

Com isso, no entanto, um outro cenário se revela no horizonte. Com efeito, as normas sanitárias não são absolutamente imperativos da natureza e da transcendência, mas construções sociais e antropológicas complexas que se inscrevem de maneira indelével no psiquismo dos agentes sociais. Estas construções são concebidas pelas instituições e pelas práticas médicas, tendo no ensino universitário o seu lugar de produção e de reprodução fundamental. O ensino da biomedicina é fundador dessas normas, inscrevendo formas de sentir no corpo do jovem estudante que são os correlatos das modalidades de saber. Forja-se, assim, o olhar clínico, por cuja mediação as fronteiras fugidias entre o normal, o anormal e o patológico seriam traçadas. Constitui-se, então, uma concepção do corpo que se aprende forçosamente na formação médica, instituinte de uma nova sensibilidade normativa.

Porém é preciso evocar, ainda aqui, que tudo isso não se restringe apenas aos médicos e aos demais profissionais que trabalham no campo da saúde, agentes que são do campo da biomedicina, mas que se estende também aos pacientes, isto é, a todos nós enquanto consumidores de serviços médicos. Com efeito, os pacientes também constituem critérios de percepção do corpo e de seus murmúrios, inscritos em códigos sociais variados e que dependem também de um longo processo de aprendizagem, de maneira a formalizar interpretações e intuições sobre as suas manifestações corporais, para se acreditarem doentes ou saudáveis, regulados ou desregulados nas suas experiências corpóreas. Esses códigos, enfim, podem se harmonizar com aqueles instituídos no aprendizado da biomedicina, ou mesmo estabelecer relações de confronto com eles.

Seria pela consideração conjugada disso tudo que se poderia avaliar, numa perspectiva histórica, os efeitos produzidos pelas grandes instituições de pesquisa e administração de saúde nas diferentes formações sociais. Essas instituições condensam nas suas práticas - teórica, assistencial e adminis trativa - um conjunto de códigos complexos, pelos quais os sentidos das palavras saúde, doença, normal e patológico se declinaram segundo esses paradigmas de saúde e instituíram maneiras de sentir as experiências do bem-estar e do mal-estar corporais. Daí a importância de se retomar, de maneira crítica, as instituições que constituíram as matrizes de saúde na nossa tradição histórica.

Baseando-se em todas essas leituras anteriores, pode-se pensar de maneira efetiva nos efeitos das novas tecnologias de reprodução, nas concepções sobre o masculino e o feminino, nas novas percepções e códigos outros que se instituem sobre as dimensões visíveis e invisíveis das experiências corpóreas. Estamos aqui diante de uma revolução ética de grandes proporções, desconhecendo ainda os seus efeitos maiores sobre as ordens da vida, da morte e da reprodução. Porém, o que se pode já prever, pelas novas tecnologias reprodutivas, é a construção de um outro personagem da mulher, libertada agora do imperativo da reprodução e, em contrapartida, da figura do homem.

Além disso, impõem-se agora também novas reflexões teóricas e pesquisas sobre a comorbidade de distúrbios psiquiátricos e abusos de drogas. O paradigma da complexidade se impõe aqui de maneira imperativa, exigindo uma abordagem metodológica outra nos estudos epidemiológicos. Isso porque o abuso de drogas tomou-se uma banalidade nos dias de hoje, presentes em toda parte, aqui e ali, em diversos grupos sociais. As toxicomanias se transformaram em lugar-comum no cenário funesto da pós- modemidade. Enquanto sintoma de certos indivíduos e signo também de uma situação social complexa, a ingestão de drogas é uma porta aberta para que se repense hoje nos novos destinos do mal-estar na atualidade. Neste contexto, constituíram-se novos sentidos do que é o normal e o anormal, de forma bastante aguda, exigindo de nós todos uma reflexão metodológica renovada.

Enfim, em todas as colaborações que estão aqui presentes é possível depreender os novos sentidos da saúde, de maneira condensada, pelos quais estes se revelam na sua complexidade e pertinência na atualidade, através de diferentes perspectivas regionais de leitura.

Rio de Janeiro, 6 se setembro de 1999

  • 1 Canguilhem, E. Le Normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975.
  • 2 Foucault, M. Naissance de la clinique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975.
  • 3 Freud, s. Au-delà du principe de plaisir (120). ln: Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1981.
  • 4 Lacan. J. Fonction et champ de la parole et da langage en psychanalyse. ln: Lacan, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966.
  • 5 Costa, J. F. Sem fraude. nem favor. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.
  • 6 Birman, J. Cartografias do feminino. São Paulo: Editora 34, 1999.
  • 1
    Canguilhem, E.
    Le Normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975.
  • 2
    Foucault, M.
    Naissance de la clinique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975.
  • 3
    Freud, s. Au-delà du principe de plaisir (120). ln: Freud, S.
    Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1981.
  • 4
    Lacan. J. Fonction et champ de la parole et da langage en psychanalyse. ln: Lacan, J.
    Écrits. Paris: Seuil, 1966.
  • 5
    Costa, J. F.
    Sem fraude. nem favor. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.
  • 6
    Birman, J.
    Cartografias do feminino. São Paulo: Editora 34, 1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 1999
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