Open-access Drug Trajectories: Interviews with Researchers. Entrevista com Noémia Lopes

Esta entrevista é uma das primeiras a ser publicada no escopo do projeto Interviews with researchers from the Anthropology and Sociology of Pharmaceuticals: mapping out the area,1 realizado em parceria com a Universidade de Utrecht, Holanda, sob minha coordenação.

O campo amplo e diversificado do estudo dos medicamentos ganhou, sobretudo a partir da década de 1980, grande impulso e inspiração das ciências humanas e sociais, tais como a antropologia, a economia, a sociologia, a história social das ciências e da tecnologia, a psicologia, dentre outros. Independentemente da abordagem de seus pesquisadores e das contribuições que trouxeram e trazem, o florescimento de trabalhos qualitativos sobre o tema fez com que o estudo das substâncias (sejam as chamadas prescritas ou proscritas) incluísse não somente os mecanismos de ação farmacológica, per se, mas a teia de sentidos na qual seus usos particulares se inserem, as concepções de saúde e doença vigentes nos contextos sócio-histórico analisados, os valores de consumo, de uso e de troca que possuem, set e setting (ZINBERG, 1984; VAN DER GEEST; WHYTE, 1989; VAN DER GEEST; WHYTE; HARDON, 1996; VAN DER GEEST, 2008; COHEN et al., 2001). Desse modo, medicamentos tornaram-se objetos privilegiados para elucidar relações entre corpo, sociedade e cultura, porque permitem refletir tanto sobre questões macroscópicas, como políticas de saúde e sistemas de segurança social, quanto sobre visões de mundo e concepções de risco, bem-estar, mente/corpo, sofrimento (i)legítimo, vulnerabilidade, prevenção e terapêutica.

O projeto do qual esta entrevista faz parte é diretamente derivado das pesquisas anteriores que tenho realizado, centradas nos relatos de usuários crônicos de benzodiazepínicos (tranquilizantes), com métodos quanti-quali, e com estudos em torno do uso de opioides no Brasil.2 O objetivo tem sido realizar entrevistas em vídeo com pesquisadores do campo, que incluam desde alguns de seus nomes fundadores até autores de gerações mais recentes, no intuito de apresentar aos leitores as contribuições de cada um, seus pontos de afastamento e de similaridade, seus métodos, conceitos e os problemas de pesquisa que cada um privilegiou. Queremos traçar um panorama, ainda que parcial, do cenário de desenvolvimento do campo de estudos qualitativos sobre medicamentos e substâncias, envolvendo a maior diversidade possível de temáticas e abordagens metodológicas.

Criamos um banco de dados do registro audiovisual das entrevistas, que ficarão disponíveis para acesso em três formatos diferentes e em três diferentes plataformas: 1) on-line, no site www.drugtrajectories.org; 2) impresso em periódicos nacionais e internacionais; 3) a) em um livro de entrevistas, em suas versões completas. Todo nosso empenho será em criar um material bilíngue, acessível não somente em inglês, língua da maioria das entrevistas realizadas, mas em português, tentando realizar as traduções das entrevistas e as legendas dos vídeos.

O primeiro bloco de entrevistas do projeto Drug trajectories foi realizado em 2019. Esta entrevista com a socióloga Noémia Lopes, da Universidade de Lisboa/Portugal, foi realizada em 5 de abril de 2019 e é a primeira da série a ser publicada em português. A situação dramática em que nos encontramos, em plena pandemia do Covid-19, deixa ainda mais evidente o papel dos medicamentos como mediadores de crenças e de expectativas sobre o futuro, e a relevância de reexaminar papéis desempenhados pelas substâncias em nossa cultura. Esperamos que a leitura seja um convite ao acesso ao nosso site e aos materiais sobre o projeto que lá poderão ser encontrados.

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RZ: Muito obrigada por ter aceitado participar do projeto. Queria começar focando no fato de sua formação ser como socióloga. Como foi o processo de deslocamento de uma socióloga da saúde passar a olhar mais especificamente para esse objeto, dentro do campo da Sociologia da Saúde, que são os medicamentos e as substâncias.

NL: Também agradeço seu interesse por esta área e o trabalho que tem estado a desenvolver, portanto, participo nesta entrevista com muito gosto. Respondendo à questão que me colocou, vou fazer um brevíssimo enquadramento sobre minha área de formação. Sou socióloga, toda a minha formação, de licenciatura, de mestrado e doutoramento foi na área da Sociologia nesta instituição onde estamos a fazer a entrevista, no ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, sendo que licenciei-me no final da década de 80. Nessa altura não havia áreas de especialização, a Sociologia da Saúde ainda não era algo que fosse propriamente conhecido em Portugal e mesmo em termos europeus, começava a haver algum trabalho de Sociologia da Saúde mas era uma coisa muito pouco ainda conhecida. Sucede que quando eu acabo a licenciatura, sou convidada para ir dar aulas numa escola de Enfermagem, em Lisboa. Eu não tinha propriamente planos de seguir o ensino acadêmico mas tendo surgido essa oportunidade, eu iniciei, digamos, o que iria ser a carreira acadêmica que ainda hoje mantenho. E nessa altura, o fato de começar a lecionar Sociologia a estudantes de Enfermagem começou a despertar-me a atenção para procurar aquilo que em Sociologia poderia contribuir para o entendimento do campo da saúde, muito orientado para os comportamentos da população em geral, em relação à saúde e nas relações com os profissionais, etc. E aí começo a enveredar para o campo da Sociologia da Saúde e mais tarde acabei por me interessar especialmente pelo medicamento. Não foi muito depois dessa etapa de ensino na Enfermagem que eu fui convidada para integrar o Instituto Universitário de Ciências da Saúde, no Monte de Caparica, ao qual ainda hoje estou ligada enquanto docente. Aqui os cursos são todos na área da saúde e um dos cursos em que me envolvi particularmente foi o curso de Ciências Farmacêuticas, onde lecionava uma cadeira de Sociologia da Saúde. Comecei a lecionar em uma altura em que a Sociologia da Saúde se ocupava muito das representações sociais da saúde e doença. Eu tinha vontade de pensar em outras dimensões do campo da saúde em que a sociologia pudesse ter um contributo. E decidi fazer meu doutoramento na área da automedicação, e aí iniciei meu interesse pela área do medicamento, que me foi despertado pela conjugação desses dois aspectos, absolutamente fortuitos. Por um lado, porque eu estava muito ligada a pensar a Sociologia da Saúde orientada para o medicamento por causa das aulas que lecionava. E por outro lado, porque comecei a me dar conta de que nem na Sociologia nem em muitos outros campos havia propriamente uma investigação a esse nível, i.e., sobre o medicamento. Havia já na Antropologia Médica e os trabalhos clássicos da Antropologia Médica serviram-me de fato de inspiração. Então, esse trabalho sobre automedicação é aquele no qual começo a procurar produzir um olhar mais aprofundado e mais conceitualizado sobre o estudo do medicamento no campo da Sociologia. E entre outros aspectos, nesse estudo sobre automedicação, interessou-me particularmente perceber as formas de autonomia que os indivíduos desenvolviam para justamente dar lugar à automedicação. É a questão dos saberes leigos. Leigos, não sei se no português do Brasil leigo tem exatamente o mesmo sentido, mas é no sentido de não especializado, muitas vezes confundido com o sentido de “não religioso”, mas aqui é um saber não especializado. Interessou-me fazer uma discussão e uma reflexão profunda sobre a diferença entre as chamadas crenças populares e os saberes leigos. E o caráter já construído desses saberes e demonstrar, através da automedicação enquanto campo empírico de estudo, como é que os saberes usados na gestão da automedicação eram saberes que incorporavam já uma apropriação do saber pericial, do saber profissional, médico, farmacêutico etc. Trabalhei muito uma categoria que designei de “saberes leigos pericializados”, em que conjuntamente com a componente empírica espontânea, há nestes saberes um incorporar do conhecimento médico e farmacêutico. Este é apropriado através das consultas e do próprio processo de medicalização, que vai disseminando um conjunto de categorias, de interpretação dos sinais do corpo e, designadamente, dos conhecimentos sobre os medicamentos. Esse trabalho, que foi na altura orientado por Isabelle Basanger, uma sociológa que, também nos anos 80 e 70 começou a incursão pelo campo da Sociologia da Saúde. E em Portugal, a orientadora foi Graça Carapinheiro, que foi a primeira doutorada na área da Sociologia da Saúde no país, e eu fui a segunda doutorada nessa área. Depois, a partir daí, e estamos a falar do final dos anos 90, início já do século XXI, em 2000, toda a investigação que eu tenho dado continuidade tem estado muito centrada no medicamento. Uns anos mais tarde, já a coordenar projetos na temática do medicamento, coordenei uma investigação orientada para o conceito de pluralismo terapêutico. E que tratou de entender como é que, conjuntamente com o crescente recurso aos fármacos, estava a readquirir visibilidade o recurso aos produtos naturais, aos remédios naturais, aquilo que a indústria alimentar e farmacêutica foi introduzindo sob a designação de suplementos alimentares. E este ressurgir do natural, enfim, o natural sempre foi a base da procura da solução terapêutica para os males do corpo, e tinha quase desaparecido ao longo de boa parte do século XX, em consequência do desenvolvimento da própria indústria do medicamento, e pretendia-se perceber que condições deram lugar a esse ressurgir do recurso ao natural. Nos anos 80, 90 e ainda no início do século XXI, havia muito a ideia de que as pessoas estavam a preterir o químico, e a privilegiar o natural. Esse estudo, que foi realizado com uma amostra representativa, em nível nacional, em Portugal, utiliza métodos mistos, aliás, toda investigação que eu tenho desenvolvido é sempre com métodos mistos: questionários, entrevistas, e em outros projetos também, os focus groups. E verificou-se que, com efeito, o ressurgir do natural constituía um novo fenômeno. Não era que a população tendesse a abandonar os fármacos e optar por soluções terapêuticas naturais, mas sim, aquilo que se desenvolveu como pluralismo terapêutico, que era uma conjugação, uma alternância entre o uso ora do natural, ora do farmacológico, não raro até para as mesmas finalidades. As mesmas pessoas, para as mesmas finalidades, jogando em uma lógica de “se eu preciso ter aqui um efeito muito rápido, vou tomar um medicamento farmacológico, se eu quero manter um certo nível de bem-estar ou de saúde, opto por recorrer aos produtos naturais”. Depois percebe-se que esta alternância é também uma forma de gerir aquilo que é a ideia do risco em geral associada ao fármaco; então, é quase como uma gestão das temporalidades do risco. Acresce ainda outra variante deste novo fenômeno: a ideia de que tudo que é natural é absolutamente dotado de bondade, no limite, inócuo, mesmo que não seja bom, nunca produziria qualquer mal. E há todo esse trabalho sobre o conceito de pluralismo terapêutico, que deu lugar a algumas publicações, e que abriu uma outra percepção de como há, com efeito, um mercado vasto, de formas de lidar com o corpo, com a saúde, com a doença, com o bem-estar, que vem sendo cada vez mais terapeuticalizada. Neste sentido, de usar produtos que na sua origem, na sua concepção se destinavam a responder àquilo que era identificado num quadro estrito de problemas de saúde ou de doença e que hoje vem tendo um âmbito cada vez mais amplo - para a doença, prevenção ou melhoria - o contrário do que sucederia umas décadas atrás, em que as pessoas só excepcionalmente tomavam qualquer coisa com finalidade terapêutica. Tomar medicamentos estava associado à ideia de que se estava doente, o que começou a alterar com a expansão do mercado do medicamento, farmacológico e também do natural que veio criar uma espécie de lógica de terapeuticalização de tudo. Tudo passa por um investimento terapêutico. Não sei se quereria introduzir algumas outras questões, eu agora entrei aqui a fazer um relato das etapas da investigação.

RZ: A próxima questão seria mais, e falando desse lugar, o que você acha que a Sociologia teria a contribuir aos estudos do campo do medicamento em diferenciação a outras áreas?

NL: Por exemplo, no caso da automedicação, desse primeiro projeto que marca o início desta minha trajetória em torno do medicamento, os estudos disponíveis nessa altura eram muito orientados para a necessidade no campo da Farmácia e da Medicina de mostrar aos doentes que era necessário o uso racional do medicamento, que à época era a designado como a automedicação responsável. Meu olhar, de um ponto de vista mais sociológico sobre esta realidade, começou a despertar-me a necessidade de perceber que as pessoas quando tomam medicamentos de forma diversa daquela indicada nas orientações profissionais visam a um objetivo, têm uma racionalidade, com base na qual admitem que a opção que estão a fazer-lhes poderá ser igualmente benéfica ou mais benéfica. Então há que perceber que racionalidade é essa que leva as pessoas a aderirem à automedicação, sendo que quando o fazem, visam resolver um problema. Portanto é este estudo, é esta procura de perceber os saberes, de perceber as próprias concepções de risco e de uma certa percepção de imunidade subjetiva - este é um conceito de Giddens, que é um sociólogo de referência neste domínio. Este conceito expressa como os indivíduos podem reconhecer a existência de risco numa determinada prática e, simultaneamente, considerarem que se trata de um risco que eles próprios conseguem evitar ou controlar. E a automedicação revelava claramente isso, na medida em que, em geral, as pessoas automedicam-se com algo que, através dos processos de medicalização, começaram a reconhecer como medicamentos e com os quais estão familiarizados. Não são comuns casos de automedicação em que seja a primeira vez que o próprio está a usar aquele medicamento, ou que alguém de suas relações não o tenha usado. Portanto, nesta perspectiva, trata-se de estudar o medicamento a partir das racionalidades sociais que alimentam os usos leigos de que o medicamento é objeto. E este foi, com efeito, um olhar novo, distinto das abordagens então disponíveis e que eram muito confinadas a uma lógica da compliance - o lema instituído era: fazer campanhas de educação para promover essa compliance - e é preciso perceber por que essa compliance não existe, pronto. E esse estudo sobre os saberes leigos foi algo que, de alguma maneira, não diria seminal, mas marca aqui um novo contributo analítico que estava completamente ausente. Sendo que, já agora, a incursão da Sociologia da Saúde para o campo do medicamento, mesmo no plano internacional, é algo que se desenvolve mais a partir do século XXI, onde aparecem, então, trabalhos mais focados na temática da farmacologização. Quando procuro estudar a questão do pluralismo terapêutico, também aqui se trata de olhar mais uma vez o medicamento a partir dos desdobramentos múltiplos que ele assume nas suas finalidades mas, ao mesmo tempo, descortinar como o fármaco, na atual ampliação de seus usos, vai diluindo as fronteiras relativamente a suas finalidades primárias. Isto tem sido objeto de particular discussão e análise dentro do campo da Sociologia da Saúde, porventura também em outras áreas das ciências sociais, pondo em evidência o quanto a ampliação de usos do medicamento revelam o esbater das fronteiras entre saúde, doença, prevenção, melhoria. Portanto temos aqui, essencialmente, mais um continuum que desaloja as tradicionais fronteiras neste domínio. E o medicamento tão definido na sua gênese, tão sob um controle pericial, farmacêutico e médico, vai de diversas formas, saltando essas fronteiras por efeito de todo um conjunto de transformações sociais e da emergência de formas crescentes de individualização. A individualização, por sua vez, está mais ligada a desafios de competitividade que levam a um uso de recursos medicamentosos que antes estavam associados apenas a situações muito específicas de alterações de saúde. Esta abordagem sociológica não se circunscreve a constatar que se consome cada vez mais para finalidades além da saúde-doença; centra-se igualmente na identificação e análise, das mudanças sociais que desencadeiam esses processos. As coisas não acontecem só porque há uma expansão do mercado do medicamento, há uma conjugação de fatores que geram estas transformações. Designadamente, um conceito que não é particularmente originário da Sociologia, que é partilhado por outras áreas do conhecimento, mas que a Sociologia o tem trabalhado, até no campo da saúde, é o conceito de cultura do consumo. Este conceito é extremamente útil para percebermos o que hoje se vai discutindo sobre os investimentos de melhoria ou enhancement, e que nas pesquisas que temos desenvolvido temos designado de consumos de performance. De fato, uma componente dessas novas formas de consumo de medicamentos e dos produtos naturais é feito numa lógica da cultura do consumo, no sentido de suas noções básicas, a mercadorização, e portanto de se comprar, de se adquirir a solução de algo que seria de alguma maneira intrínseco ao empenho e esforço do próprio indivíduo. Contudo, cada vez mais cresce a disposição cultural de desvalorização desse investimento, desse esforço, já que se pode adquirir a solução e com menos esforço atingir algo mais rapidamente. O exemplo dos consumos de performance para o desempenho cognitivo e a expressão desses consumos, ao menos nos resultados dos estudos que fizemos em Portugal, mas também em comparação com estudos feitos noutros lugares e noutros países, mostram que muitas vezes esses consumos para o desempenho cognitivo passam por usar medicamentos para poupar tempo e esforço: em lugar de ter que ficar mais tempo a preparar-se para os exames, poder fazer, por exemplo, duas noites diretas ou duas noites e dois dias e conseguir a mesma finalidade com menos esforço. Portanto, há aqui uma lógica de cultura do consumo, no sentido desta aquisição, e depois no sentido de uma disposição cultural para tal. Outro contributo analítico que a Sociologia tem dado nesta matéria corresponde ao conceito de farmacologização. Todos os estudos que ultimamente, em equipe, tenho desenvolvido, partem desse conceito. Tal como o conceito de medicalização, no qual um processo ocorre não apenas do topo para a base, isto é, a medicina a entrar em cada vez mais domínios da condição humana que não estavam necessariamente associados à saúde ou à doença, mas cuja disseminação cultural é atingida quando as pessoas, a população em geral vai interiorizando as próprias concepções médicas de pensar a saúde, a doença e as formas de gestão dessas condições humanas. E, portanto, é a medicalização como vários autores têm chamado, de baixo para cima, é sua disseminação cultural. Já não pensamos a saúde de outra maneira ou dificilmente o fazemos, a não ser sob essa concepção. E a farmacologização é um conceito fundamental para perceber mesmo esses novos consumos de performance. Eles comportam algo da cultura do consumo, comportam algo de uma crescente individualização e, portanto, ter resultados mais rápidos e melhores para a necessidade de se ter um desempate, de se ter uma situação favorável para esse desempate, sobretudo, compreende novas necessidades. Se naturalmente se pode gerir uma série de requisitos e de desafios do dia a dia mais rapidamente, com menos esforço e com mais eficácia, nossa própria fasquia ao nível do trabalho a exigência do desempenho começa a ser acompanhado com o fato de hoje porventura se podem socorrer de meios que lhes permitem atingir esses desempenhos mais rapidamente. Vou dar um exemplo muito elementar que às vezes uso nas aulas para ilustrar aos estudantes, é assim. Há trinta anos, era aceitável, havia uma disposição cultural, mesmo nos meios do trabalho, nos locais de trabalho, que uma pessoa ficasse em casa dois dias para curar uma gripe. Eram aquelas recomendações, ficar na cama, tomar umas coisas quentes, etc., e pronto. Hoje é impensável a menos que a gripe tenha evoluído para uma coisa já muito patogênica, é impensável. É mal visto num contexto de trabalho que a pessoa fique dois dias em casa para curar uma gripe. Isto aumentou a fasquia e os padrões de avaliação da qualidade do trabalhador, da sua capacidade. E isso muda até no nível da nossa vida pessoal. Portanto, em suma, o que pretendo sublinhar é que há de fato um contributo que a Sociologia tem trazido, como outras ciências trazem, outros contributos para a compreensão deste fenômeno do aumento dos consumos, agora para outras finalidades, e que há menos de duas décadas não era algo assim tão disseminado. Deixe-me abrir aqui parênteses - claro que sempre houve consumos para ir para além daí, mas isso não era disseminado culturalmente. Eram grupos sociais até identificados como contraculturas, etc. Portanto, não era tão disseminado culturalmente e, por outro lado, inclusive, os consumos que eram feitos, eles mesmos não estavam institucionalizados; ou seja, eram consumos que socialmente eram considerados não normativos, hoje chamaríamos de não legais. Se formos aos primórdios do século XX, em que toda uma série de consumos (para o enhancement) eram feitos, e não havia propriamente uma interdição ou qualquer regulamentação do seu uso, mas eram consumos circunscritos a alguns círculos culturais, sobre os quais recaía certa censura social. E hoje esses consumos para a melhoria do desempenho fazem parte do mercado, que oferece consumos assépticos, legais, para cada vez mais finalidades. Então por que que há esses consumos? Não é porque apenas - claro que somam disposições individuais - mas como é que elas se geraram, porque hoje há essas disposições individuais generalizadas e há 30, 40 anos não havia. E eu penso que a Sociologia, sendo seu objeto de estudo a fenomenologia social e como ela é produzida pelo efeito das relações de interdependência, no caso do medicamento, ela permite elucidar quer as determinantes sociais, quer os efeitos sociais desse fenômeno mais amplo designado por farmacologização.

RZ: Tomando um ponto que a senhora falou agora, só para tentar esclarecer um pouco mais, as produções do seu grupo de pesquisa sempre enfatizam a ideia de consumos de performance, mais do que a ideia bastante trabalhada que é a ideia de enhancement. Parece que então, me corrija se eu estiver errada, essa é mais uma tentativa de mostrar que vocês estão falando de uma coisa a mais, que não é simplesmente a ideia de aprimorar ou não aprimorar, mas uma prática individual ou de grupos que está envolvida em uma circunstância de consumo, e por isso consumos de performance, e não a ideia de aprimoramento, solta.

NL: Obrigada por esta pergunta, porque de fato ela faz todo o sentido na medida em que de repente começou-se a usar esta designação da melhoria, do aprimoramento, etc. E também quando essa designação está muito ligada à ideia do ir para além dos limites humanos, é a tal ideia do trans-humanismo, não é? Portanto, as pessoas conseguirem ir para além daquilo que é humanamente possível, em termos cognitivos, em termos do próprio corpo, a ideia muito da própria robotização, da inteligência artificial, etc. Quando iniciamos os primeiros estudos aqui, a ideia era perceber se as pessoas tinham de fato incorporado esse desejo de ir para além. E sendo que uma revisão da literatura sobre o que está publicado neste domínio nos últimos anos acaba por constatar que há muito trabalho de reflexão, de ensaio sobre esses consumos e aspirações de melhoria, mas escasseia a evidência empírica que demonstre que tais consumos são impulsionados pela aspiração de ultrapassar os limites humanos/naturais. Na prática concreta e nos estudos que temos feito, bem como noutros estudos baseados na evidência, têm vindo reconfirmar que os consumos são orientados para outros níveis de pragmatismo. No quotidiano, mais do que transcender as capacidades humanas, a cultura de melhoria traduz-se em finalidades como procurar melhorar o desempenho, conseguir ficar concentrado mais tempo, conseguir até ter mais resultados, mas sempre dentro daquilo que é considerado o retrato humano, e não o pós-humano. Essa ideia de ir para além dos seus limites ela no concreto, não se encontra. Agora, não se encontra aqui, não se encontra na generalidade dos estudos que são feitos sobre a população, claro que mais uma vez, obviamente, podemos encontrar campos específicos onde isso está a ser procurado e onde isso é meta a alcançar. Mas, de fato, olhamos a nossa volta e as pessoas procuram sobretudo ser competitivas, ir mais além, mas também ser o mais igual possível. Portanto, na atual situação, aquilo que os estudos tem mostrado é que, de fato, há uma ampliação do consumo para atingir melhoria, mas é uma melhoria dentro daquilo que, todos iguais, mas uns melhores que outros e não para ser aquela pessoa que tem os chips todos na cabeça, e portanto faz aquilo que os humanos não conseguem fazer.

RZ: Tomando um ponto também que a senhora acabou de falar, parece que em diversos de seus trabalhos os limites entre normal/doença ou normal/patológico, tratamento/enhancement, natureza/artifício eles ficam borrados com essas práticas de consumo de performance. Será que a gente pode pensar que como a senhora acabou de falar, mais do que para além do humano, esse lugar que a gente é levado quando a gente é aditivado por certas substâncias, ele também está sendo incorporado a uma certa noção de normalidade.

NL: Exatamente, absolutamente, quando me situei aqui na noção de disseminação cultural é isso. Passa a ser o novo normal. E, portanto, passa a haver aqui um empurrar para determinado padrão centrado mais nas questões da cognição, mas também para o investimento corporal, tanto o novo normal passa a ser ter uma aparência de jovem, conservar ou produzir essa aparência, ter toda uma imagem corporal que passa a ser o novo normal. Um dos estudos que coordenei foi também sobre a população idosa acerca do consumo dos medicamentos para memória. Fiz os estudos sobre jovens, o estudo sobre idosos e agora está a decorrer o estudo sobre os contextos de trabalho. Mas sobre os idosos, aquilo que se vai percebendo é que o novo normal passa a ser que se invista nestas mesmas capacidades de memória e que no limite, mesmo que não se atinjam os resultados tão desejáveis quanto seria pretendido - não se volta a ter uma memória dos 20 anos - mas torna-se uma prioridade mostrar que se é preocupado em manter ou melhorar a sua memória. Esse estudo foi circunscrito a uma região do país, no caso, em Almada, uma amostra de 500 idosos, que viviam sós, mas eram autônomos. Claro que havia também resistência a estes consumos; para alguns participantes, envelhecer é um processo natural e não há nada a fazer, mas havia também um segmento significativo para os quais o novo normal, as novas culturas de envelhecimento implicam uma obrigação de investir no antienvelhecimento. Isto não é independente da medicina antiaging e de toda uma série de outros processos de intolerância cultural ao envelhecimento. Portanto, respondendo a sua questão muito oportuna, há aqui mudanças sociais que vão passar a criar um novo normal. O novo normal é que ninguém vai ficar em casa dois dias porque está com uma gripe. Faltar ao trabalho, no novo normal, é revertido numa quase desqualificação social de alguém que é desleixado, que não se preocupa etc. E estas é que são as transformações de fundo, independentemente de que as manifestações de um tal enhancement, para além do humano, elas estão presentes pelo menos nas imagens, as tais imagens que suscitam a ideia de poder ir muito mais além. Mas nos estudos concretos, na muita pesquisa bibliográfica que se faz para conhecer qual é o estado da arte, não se encontraram estudos populacionais que revelem que há uma forma expressiva de consumos para além. Claro, há os consumos lúdicos e as substâncias ilegais, em que o padrão de normalidade é outro. Mas aquilo que é o objeto desse estudo extenso que estava a ser feito é perceber os consumos institucionalizados, aquilo que está legalizado, e as transformações que estão a gerar nos padrões de desempenho e na produção de novas necessidades de performance. Claro que há essa outra dimensão dos consumos, que sempre houve, para efeitos recreativos ou outros. Esses, obviamente, devem também ser objetos de estudo, mas têm de ser analisados separadamente. Porque as formas de regulação social são diferentes e, portanto, os mecanismos que geram adesão aos primeiros não são necessariamente os mesmos que geram adesão aos consumos chamados ilegais, não institucionalizados, o que quiser. É uma questão apenas de método analítico, não que uns e outros não coexistam.

RZ: Para finalizar, eu queria saber um pouco sobre o fato de que a senhora tem pesquisado muito com essas duas categorias que são fármacos e produtos naturais, por assim dizer. Que pontos a senhora tem visto, tanto de similaridade no que motiva as pessoas a consumirem essas substâncias diferentes quanto de afastamento em relação às motivações?

NL: Acho que poderia dizer que há duas categorias que estão a produzir simultaneamente esse efeito de afastamento ou de procura. Uma das categorias é o tempo. A urgência de resolver um assunto. E a urgência de resolver um assunto, em geral, está associada ao fármaco, aquele que tem o efeito mais imediato. Estou a falar em geral no caso de doenças em concreto, específicas, e vale a pena também separar essas categorias, doenças em concreto, doenças muito graves as lógicas são um bocadinho diferentes. Em doenças muito graves, já há muito mais estudos, geralmente o natural é uma procura em segunda linha, mas nem é tanto o medicamento, é mesmo a resposta das medicinas alternativas, que são procuradas quando a medicina convencional, se quiser, institucional, deixa de dar resposta e as pessoas ficando sem qualquer saída procuram essas medicinas alternativas. Ou então, procuram em situações não associadas a risco de vida, situações de saúde ou de doença que requerem uma gestão continuada, que se prolongam no tempo, tendem muito mais a aderir ao natural, seja por via das medicinas alternativas ou dos medicamentos naturais. Em situações mais comuns, e designadamente no domínio dos consumos de performance, a variável tempo volta a intervir: se é preciso responder rápido, é o recurso ao fármaco que predomina, se é algo de maior durabilidade, para manutenção ou prevenção, aumenta o recurso ao natural. Uma outra variável interveniente nesta dualidade ente o farmacológico e o natural é a ideia do risco. Muitos dos fármacos consumidos em investimentos de performance, designadamente entre a população jovem, são encarados como podendo ter risco e que certos tipos de consumo podem mesmo criar alguma adição. Mas acima da consciência do risco, verifica-se que prevalece a ideia de que o próprio consegue controlar esse risco: é a lógica de que eu controlo o risco, porque consumo durante pouco tempo. Por exemplo, mesmo no consumo dos anabolizantes, para massa muscular, para desenhar o corpo, tivemos diversos jovens em entrevistas, a confirmar que, sim, por vezes faziam um uso intensivo desses produtos, mas como era por curtos períodos, os riscos desapareciam. Esta lógica de que, por um lado, tem um controle sobre a situação, corro o risco - mais uma vez entrando aqui em um conceito do Giddens do pacote de riscos. É assim, isso até pode fazer mal, mas o resultado que eu obtenho para mim é mais importante do que o mal que me possa fazer agora. A pessoa parte do princípio de que o risco é mínimo e além do mais, quando se é jovem, a expectativa é que o mal há de vir daí a muitos anos, depois logo se vê. Portanto, há a adesão para evitar o risco, a um lado ou o outro, ou em alguns casos, correr o risco porque o objetivo visado se impõe como uma coisa mais imediata, o que vai levando que haja este deslocar entre uma meia adesão ao fármaco, uma meia adesão ao natural. Nos estudos que temos feito, vemos que é comum a mesma pessoa, numas situações recorrer aos fármacos, noutras, ao natural. Contudo, no estudo sobre o pluralismo terapêutico, encontramos também um segmento da população cuja regra era nunca tomar qualquer tipo de fármaco, e apenas usar medicamentos naturais. Esta opção assentava numa concepção de que os medicamentos naturais eram mais consentâneos com a natureza do corpo e, portanto, isso tinha resultados mais duradouros, mais adequados e, por consequência, mais eficazes também. E que o fármaco tinha todo um conjunto de aspecto nocivos que as pessoas evitavam. Neste estudo, que teve por base uma amostra representativa em nível nacional - só de população adulta - dos 18 aos 64, a expressão da população que, no último ano, apenas tinha tomado produtos naturais, sem recurso a qualquer tipo de fármaco, não atingia 3%. Já ao nível do pluralismo terapêutico, ou seja, as pessoas que no último ano tinham usado ora fármacos ora produtos naturais representavam 16% da população. Contudo, continuavam a predominar aqueles que só tomavam fármacos (53%). A importância de se perceber a relação com o natural e com o farmacológico é porque, de fato, se trata de um novo fenômeno; há 40 anos essa questão não se punha pelo menos com essa disseminação. Quando foi feito o estudo do pluralismo terapêutico (2007-2010), ainda não havia nem um terço das lojas dietéticas que hoje existem. As farmácias tinham lá uns produtos naturais, umas coisas que sempre tinha havido, mas não tinham a panóplia de oferta que hoje têm e portanto, é de fato, um fenômeno que expandiu.

RZ: Acho que é isso. Há alguma coisa que a senhora gostaria de acrescentar?

NL: Não, penso que tivemos a oportunidade de fazer aqui uma retrospectiva com os vários patamares de olhar para o medicamento para as transformações sociais que o medicamento nos vai mostrando. Eu só queria concluir com isso, que no outro dia na abertura da conferência em que participou referi. Eu entendo o medicamento, do ponto de vista intelectual e científico, que este é como se fosse uma espécie de observatório a partir do qual as formas como ele é usado, as formas como ele vem surgindo em sua apresentação no mercado, a partir do qual se pode perceber muitas mudanças no campo da saúde e da sociedade em geral. Essas mudanças no modo de usar o medicamento mostram mudanças na sociedade. Portanto, continuo a pensar que o medicamento é um interessante objeto sociológico e continuará ainda durante muitas décadas a ser um objeto a partir do qual se pode ter uma visão muito mais macroscópica da sociedade, e das sociedades modernas em particular.

RZ: Muito obrigada.

NL: Muito obrigada também.

Referências

  • COHEN, D. et al G. Medications as social phenomena. Health, v. 5, n. 4, p. 441-469, 2001.
  • VAN DER GEEST, S. Pharmaceuticals. In: CALLAN, H. (Ed.). The International Encyclopedia of Anthropology, v. 9. Hoboken, NJ: Wiley Blackwell, 2018.
  • VAN DER GEEST, S.; WHYTE, S.R The charms of medicines: metaphors and metonyms. Medical Anthropology Quarterly, v. 3, n. 4, p. 345-367, 1989.
  • VAN DER GEEST, S.; WHYTE, S. R.; HARDON, A. The Anthropology of Pharmaceuticals: A Biographical Approach. Annual Review of Anthropology, v. 25, p. 153-178, 1996.
  • ZINBERG, N. Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use. New Haven: Yale University Press, 1984.

Notas

  • 1
    Entrevistas com pesquisadores da Antropologia, Sociologia e História dos Medicamentos: mapeamento da área.
  • 2
    É fruto também, e especialmente, da licença de pesquisa pelo Procad, que me permitiu estar entre setembro de 2018 e final de agosto de 2019, na Universidade de Utrecht como pesquisadora visitante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2020
  • Aceito
    04 Jun 2020
  • Revisado
    14 Jul 2020
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