Resumos
O artigo apresenta os resultados de um estudo cujo objetivo foi analisar o uso do tempo livre por adolescentes de classe popular. A análise da forma como os adolescentes gerenciam seu tempo livre poderá fornecer dados para intervenção psicoeducativa e promoção do desenvolvimento e da saúde desta população. Foram 159 adolescentes que responderam ao instrumento, sendo 85 do sexo feminino e 75 do masculino. Com os dados coletados foi possível caracterizar o uso do tempo livre e traçar comparativos entre as diferentes faixas etárias e gênero. Evidenciou-se, através da pesquisa, a predominância de atividades não estruturadas, como assistir à televisão e ir para a rua, bem como a dificuldade de acesso ao lazer e a atividades culturais e esportivas por parte desses adolescentes, o que pode se configurar, pela literatura pesquisada, como um indicativo de vulnerabilidade com relação a situações de risco.
Adolescência; lazer; tempo-livre; saúde
The article presents the results of a research that analyzes free time usage by lower class teenagers. The analysis on how teenagers manage their free time can supply data for the development of psychoeducative intervention and the promotion of this population's health. There were 159 teenagers who answered the instrument, in which 85 were females and 75 were males. The data collected made it possible to characterize free time usage and to trace comparisons between different age groups and genders. The results show that non-organized activities predominate, such as watching television and being on the streets, as well as the difficulty to access leisure and cultural and sport activities by these teenagers, what may become, according to the literature researched, an indicative of vulnerability with regard to risk situations.
Adolescence; free time; leisure; health
Uso do tempo livre por adolescentes de classe popular
The free time usage by teenagers of lower class populations
Jorge Castellá SarrieraI,*; Denise C. TatimII; Roberta P. Schell CoelhoIII; Joana BückerIII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
IIUniversidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Brasil
IIIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
RESUMO
O artigo apresenta os resultados de um estudo cujo objetivo foi analisar o uso do tempo livre por adolescentes de classe popular. A análise da forma como os adolescentes gerenciam seu tempo livre poderá fornecer dados para intervenção psicoeducativa e promoção do desenvolvimento e da saúde desta população. Foram 159 adolescentes que responderam ao instrumento, sendo 85 do sexo feminino e 75 do masculino. Com os dados coletados foi possível caracterizar o uso do tempo livre e traçar comparativos entre as diferentes faixas etárias e gênero. Evidenciou-se, através da pesquisa, a predominância de atividades não estruturadas, como assistir à televisão e ir para a rua, bem como a dificuldade de acesso ao lazer e a atividades culturais e esportivas por parte desses adolescentes, o que pode se configurar, pela literatura pesquisada, como um indicativo de vulnerabilidade com relação a situações de risco.
Palavras-chave: Adolescência; lazer; tempo-livre; saúde.
ABSTRACT
The article presents the results of a research that analyzes free time usage by lower class teenagers. The analysis on how teenagers manage their free time can supply data for the development of psychoeducative intervention and the promotion of this population's health. There were 159 teenagers who answered the instrument, in which 85 were females and 75 were males. The data collected made it possible to characterize free time usage and to trace comparisons between different age groups and genders. The results show that non-organized activities predominate, such as watching television and being on the streets, as well as the difficulty to access leisure and cultural and sport activities by these teenagers, what may become, according to the literature researched, an indicative of vulnerability with regard to risk situations.
Keywords: Adolescence; free time; leisure; health.
O Brasil é um país com um contingente extraordinário de crianças e jovens. Aproximadamente 47% da população brasileira tinha até 24 anos em 1999, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (Frigotto, 2004). É esse, justamente, um dos segmentos mais des-favorecidos da população, em que se encontram as maiores vítimas da violência urbana, do tráfico de drogas, da prostituição, do trabalho infantil e do trabalho quase forçado, configurando, assim, sua inserção profundamente precária em nossa sociedade (Pochmann, 2004).
Entre as diversas carências observadas em relação a essa população encontra-se a falta de acesso às atividades de lazer e cultura. Conforme o Fundo das Nações Unidas para a Infância ([Unicef], 2002), no Brasil somente 24% dos jovens têm possibilidade de participar de alguma atividade artístico-cultural fora da escola, indicando que os adolescentes brasileiros não têm acesso facilitado aos recursos que oferecem atividades recreativas e culturais, embora a criação desses espaços tenha forte impacto na redução da violência em comunidades urbanas localizadas nos cinturões de pobreza. A pesquisa "A voz do adolescente", do Unicef, revela que dos 5280 adolescentes entrevistados 83% não têm acesso a clubes de lazer, 74,5% não podem freqüentar um cinema, 60% não têm onde praticar esportes, e mais de 80% não dispõem de equipamentos públicos ou comunitários que assegurem o direito ao esporte, cultura e lazer gratuitamente.
Ayres e Junior (2000) pontuam que o perfil de mortalidade na adolescência é muito diferenciado daquele da população em geral, uma vez que é a fase em que há mais mortalidade por causas externas. Segundo o Ministério da Saúde (2001), no ano de 2001, 13,74% dos casos de morbidade e mortalidade por causas externas envolveram pessoas entre 10 e 19 anos. Os adolescentes, tanto da cidade quanto do campo, estão mais expostos à violência externa. Este perfil epidemiológico aponta a necessidade de se ampliar a compreensão a respeito do modo como os adolescentes vivenciam essa etapa da vida.
Os conceitos de lazer, ócio e tempo livre têm sido tratados indistintamente (Larson, Richards, Sims & Dworkin, 2001; Raymore, Barber & Eccles, 2001; Ruiz, Ruiz, Pueyo & Liarte, 1999). Para Zamora, Toledo, Santi e Martínez (1995), mais importante do que a denominação é o fato de o indivíduo poder gozar de um tempo para si, a partir do qual elege livremente, e segundo sua vontade, entre o descanso, o entretenimento, o desenvolvimento ou o serviço voluntário.
A relevância do ócio como elemento formador do ser humano foi definitivamente marcada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948 (2003), onde consta o direito a descanso, férias, educação física e desporte. Na atualidade, diversos autores afirmam que conhecer as atividades e os interesses de lazer dos adolescentes constitui um fator importante para a compreensão do seu mundo social, bem como das suas necessidades individuais.
O cultivo do tempo livre cumpre várias funções para os adolescentes, entre as quais Zamora et al. (1995) destacam: estabelecimento de relações, compreensão de seus processos psíquicos, construção da independência emocional, tomada de consciência da sua originalidade e criatividade, adoção de uma escala de valores que permite integrar-se à comunidade e preparar-se para o desempenho de funções sociais, aproveitamento da cultura, formação de ideais, etc. Todos esses aspectos contribuem para o desenvolvimento integral da personalidade.
Para Codina (2002), o ócio é determinado por um processo de compensação no qual o sujeito dispõe de maior liberdade de comportamento para satisfazer a desejos e necessidades pessoais que são frustrados no cotidiano. Dessa forma, o ócio incide no self através da auto-realização, assim como a necessidade de auto-realização incide no ócio. Segundo a autora, certos modos de ócio estimulam a manifestação ou protagonismo do aspecto da auto-realização do self, o qual influencia os outros auto-referenciais (auto-estima, autoconceito, auto-imagem).
Desde uma perspectiva psicossocial, o tempo se estrutura em quatro áreas: (a) tempo psicobiológico, destinado basicamente às necessidades fisiológicas e psíquicas; (b) tempo socioeconômico, que se relaciona ao trabalho; (c) tempo sociocultural, em que nos dedicamos à vida em sociedade; (d) tempo do ócio, voltado para as atividades que podem ser aproveitadas pessoal ou coletivamente (Munné & Codina, 2002).
Outra estrutura é a proposta por Zamora et al. (1995), os quais dividem o tempo segundo três categorias: (a) tempo obrigatório, envolvendo as necessidades fisiológicas, as profissionais, escolares e familiares; (b) tempo comprometido, constituído pelas atividades de ordem religiosa, política e social; (c) tempo livre, utilizado com atividades recreativas, intelectuais, físicas e sociais.
Assim, é possível observar que a estruturação do tempo, para esses autores, sofre uma divisão segundo as atividades realizadas pela pessoa e seu grau de comprometimento com elas. As atividades concernem, fundamentalmente, à ordem da sobrevivência, da escolarização e profissão e à ordem das relações sociais. As demais atividades abrangem o tempo livre, momento que o ser humano aproveita de forma recreativa sozinho ou em grupo. Ressalta-se que ao tempo livre são conferidas a sensação de liberdade e ganhos pessoais através de atividades prazerosas da escolha do indivíduo e flexíveis por natureza. De acordo com Chemin (2002), no Brasil o conceito de lazer tem como critério de referência e parâmetro principal os 3 "D's" propostos por Dumazedier (1973), segundo o qual esse tempo é vivido para o descanso, a diversão e para o desenvolvimento da personalidade, sublinhando, por conseguinte, a contraposição trabalho tempo livre.
O ócio compensador descrito por Munné e Codina (2002) revela a contradição latente de um ócio que advém de um comportamento necessário. Assim, os 3 "D's" concebidos por Dumazedier (1973) referem-se para os autores, a atividades compensatórias, razão porque não expressam liberdade, pois o tempo do ócio passa a ser livre quando expressa a liberdade. Em última análise, os 3 "D's" constituem a expressão da potencialidade criadora do ser humano, idéia também defendida por Zamora et al. (1995).
Cunha (1987) refere que o ócio e o tempo livre estão de acordo com as vivências culturais, os hábitos adquiridos, o processo de socialização e as predisposições psíquicas da pessoa em questão. Assim, a forma como é desfrutado o tempo livre segue a estrutura social à qual pertence a pessoa, ou seja, subordina-se à sua conjuntura social, cultural, econômica, ideológica e física.
Nesse sentido, o uso que o adolescente faz do tempo livre pode gerar conseqüências positivas ou negativas para seu desenvolvimento integral. Vários estudos têm demonstrado a importância da participação e do desenvolvimento dos adolescentes numa variedade de atividades de lazer, salientando-o como um contexto facilitador das tarefas desenvolvimentais que caracterizam a adolescência. Zamora et al. (1995) chamam a atenção para a conversão do tempo livre em tempo nocivo para o adolescente e a sociedade na medida em que não for bem aproveitado, levando o adolescente a possíveis comportamentos de risco.
.A investigação empírica possibilita a construção de parâmetros para a promoção de saúde do adolescente através do lazer (Argyle, 1993; Passmore & French, 2001), permitindo a concretização da intervenção psicossocial através de uma política social comprometida com o desenvolvimento do ócio e do tempo livre. Assim, a ação da psicologia social pode melhorar o bem-estar da comunidade e educar para o uso do tempo de ócio com o sentido de aprender através dele (Munné & Codina, 2002).
Dessa forma, os contextos político e econômico de cada país têm uma relação estreita com os estilos de vida e as oportunidades de saúde integral de adolescentes, que poderão ser mais ou menos favoráveis dependendo do modelo de desenvolvimento social e econômico de cada realidade. Na mesma medida, a comunidade, o grupo de convivência, a família, a escola, a rua e outros ambientes são lugares nos quais as definições são mais evidentes e imediatas em termos de mudanças e de exposição a comportamentos de risco e de proteção. Na atenção à saúde de adolescentes, em termos de prevenção, espera-se o controle dos comportamentos de risco, a promoção e a consolidação de fatores protetores e a obtenção de um nível crítico de responsabilidade no cuidado dessa população. Diante disso, considera-se que os grupos familiares, a escola, os locais de trabalho e de recreação devem ser focos de atenção para identificar os aspectos positivos de promoção de saúde ou os negativos, que requerem mudanças e a criação de estratégias necessárias para atender os adolescentes de maneira a promover sua saúde integral.
Os trabalhos apresentados indicam a necessidade de estudos que abordem o tempo livre como oportunidade de desenvolvimento humano saudável. Cabe destacar a importância no paradigma ecológico-contextual de considerarmos o ambiente no qual os adolescentes se encontram inseridos, assim como as interações que estabelecem, no que os diferentes contextos sociais, família e amigos têm um papel muito importante. Dessa forma, com o objetivo de investigar a utilização do tempo livre por adolescentes de classe popular foi realizada a primeira etapa, de cunho qualitativo exploratório e quantitativo descritivo, de um estudo mais amplo, que terá prosseguimento com a elaboração de um programa de intervenção sobre tempo livre.
Método
Participantes
Para fins deste estudo, considerou-se como adolescentes de classe popular as pessoas entre 12 anos completos e 18 anos incompletos que freqüentam escolas da rede pública de ensino em bairros de baixo nível socioeconômico. O universo pesquisado foi composto por 159 adolescentes, sendo 76 com idades entre os 12 aos 14 anos e 83 entre os 15 aos 18 anos incompletos, 75 do sexo masculino e 84 do sexo feminino. A identificação dos participantes do estudo ocorreu a partir das informações fornecidas pelas escolas com as características acima descritas que aceitaram participar da pesquisa. A seleção dos sujeitos se deu mediante a aceitação do convite pelos adolescentes, visitados em sala de aula, e a autorização formal dos pais ou responsável, através do termo de consentimento livre e esclarecido.
Os jovens pesquisados caracterizam-se por pertencer a famílias estruturadas e relativamente pouco numerosas, morando, na sua maioria (46,4%), com os pais e irmãos em casas de cinco a seis peças (42,85%), nas quais residem até cinco moradores (82,1%). Entre os itens que têm em casa, apenas 6,3% possuem todos os seguintes aparelhos: vídeo, DVD, computador, TV e rádio.
A maioria das mães trabalha fora em atividades pouco qualificadas, sendo 31% classificadas como trabalhadoras de fazenda e empregadas domésticas, seguindo-se as profissões de auxiliares de escritório, balconistas e pequenas empresárias (12,5%); 73,2% delas têm uma jornada de trabalho entre 8 a 12 horas.
Os pais apresentam um perfil profissional semelhante, sendo 21,4% classificados como operadores de máquinas e trabalhadores com poucas habilidades, seguidos por 17% de auxiliares de escritório, balconistas e proprietários de pequenas empresas, com uma jornada de trabalho entre 8 a 12 horas (80,7%).
Desses jovens, a maioria, 83,8%, não trabalha, e, entre os que trabalham, 31,3% utilizam o que ganham com gastos pessoais; 6,3% ajudam em casa; 6,3% gastam-no com lazer e 56,1%, em outras destinações; 45,3% recebem mesada. Observa-se nesses dados um aspecto positivo visto que os jovens que não necessitam ingressar precocemente no mercado de trabalho têm maior probabilidade de permanecer na escola, vivenciando as responsabilidades apropriadas a essa etapa da vida (Sanchíz, 1991; Sarriera, Pizzinato, Rispoli, Trindade & Lópes, 2000).
Local
A pesquisa foi desenvolvida junto a dez escolas da rede pública que se caracterizam pelo atendimento a jovens de classe popular e estão situadas em bairros onde predomina um baixo nível socioeconômico. As instituições foram selecionadas a partir de relação fornecida pela Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e Delegacia de Educação de Porto Alegre. Identificadas as escolas, foi efetuado o convite às respectivas direções para a participação na pesquisa e, após, contatados em sala de aula os jovens pertencentes às faixas etárias citadas, aos quais foram esclarecidos os objetivos do estudo e entregue o termo de consentimento livre e esclarecido para a obtenção da autorização formal junto aos pais ou responsável legal. Definidos os participantes, foram agendados os encontros para aplicação coletiva dos instrumentos de coleta de dados, que tiveram como local as salas de aula cedidas pelas respectivas escolas.
Instrumentos de Coleta de Dados
Após a realização desses procedimentos, a pesquisa foi desenvolvida com a utilização de diversos instrumentos, sendo os dados apresentados nesse artigo obtidos através das seguintes fontes: (a) questionário com informações socioeconômicas; (b) tabela sobre uso do tempo durante uma semana típica - tabela desenvolvida para este estudo e composta de um quadro com os sete dias da semana divididos em períodos de duas horas. Nesta tabela o sujeito é solicitado a transcrever as atividades que realizou durante a última semana e, posteriormente, assinalar aquelas consideradas de tempo livre.
Procedimentos de Análise dos Dados
Os dados coletados através dos instrumentos (a) e (b) foram analisados estatisticamente, efetuando-se as distribuições de freqüência e percentuais, objetivando traçar o perfil dos pesquisados, identificar as atividades predominantes e o tempo alocado a cada uma delas. A fim de estabelecer um comparativo e evidenciar a existência de diferenças significativas entre o uso do tempo considerado livre e não-livre pelos adolescentes pesquisados, como também entre as faixas etárias e gênero, realizou-se, além da distribuição de freqüências e percentuais, o teste de Qui-quadrado. A análise estatística foi realizada com o auxílio do software estatístico SPSS. Para uma melhor compreensão dos dados quantitativos, foram considerados os comentários emitidos pelos jovens acerca do uso do seu tempo.
Apresentação e Discussão dos Resultados
Conforme o relato dos jovens pesquisados, durante a semana, a maior parte do seu tempo, 42%, é ocupada em atividades de rotina, como descanso, higiene, alimentação, e, a seguir, em atividades escolares, 21%, incluído aí o tempo passado na escola e aquele destinado às atividades escolares extraclasse. Assistir a televisão constitui-se na principal atividade realizada, depois daquelas de rotina e das escolares, atingindo um percentual de 10%, como pode ser visualizado na Figura 1. Ainda aparece com menor percentual o tempo utilizado para os deslocamentos diários e para as atividades domésticas.
No fim de semana as atividades escolares diminuem para 2,43%, continuando a prevalecer atividades de descanso, higiene e alimentação e assistir a televisão, à qual é dedicado o percentual de 11% do tempo. Destacam-se a seguir as atividades de lazer fora de casa, conforme ilustrado na Figura 2.
Tanto durante a semana como no fim de semana, observa-se pouca freqüência de atividades culturais, artísticas, socio-recreativas e esportivas às quais é dedicado entre 3,42% a 4,0% do tempo. Chama a atenção a pouca freqüência de atividades relacionadas ao uso do computador, as quais ocupam entre 1,48% a 2,63% do tempo, o que pode ser associado ao baixo percentual dos jovens que possuem computador em casa.
No tempo livre, as atividades de descanso, higiene e alimentação ainda apresentam percentuais significativos, com 37,05% durante a semana e 29,65% no fim de semana. Esse dado pode ser mais bem compreendido pelo depoimento dos pesquisados, segundo os quais poder dormir até mais tarde constitui-se numa atividade própria do tempo livre para eles. As demais atividades predominantes são apresentadas na Tabela 1, na qual pode ser verificado que o tempo dedicado a assistir a televisão aumenta tanto na semana quanto no fim de semana. Entretanto, no fim de semana maior tempo é destinado a atividades de lazer fora de casa, sócio-recreativas e esportivas e passeios com amigos, as quais, geralmente, são realizadas na própria comunidade/bairro, ou em parques e praças públicas. Cabe salientar, novamente, a pouca freqüência de atividades formativas, artísticas e culturais, assim como o uso de computador e jogos eletrônicos.
Os dados apresentados sugerem pouca diversificação no uso do tempo livre por parte dos jovens pesquisados, os quais têm como atividade predominante assistir a televisão, especialmente durante a semana. Apesar de serem adolescentes de classe popular, não há indicativos de que estejam privados de atividades de lazer em razão de trabalho ou obrigações com tarefas domésticas, uma vez que foi observada uma baixa freqüência desses itens na pesquisa. Entretanto, o pouco envolvimento com atividades culturais, artísticas, socio-recreativas e até mesmo esportivas sugere uma limitação de recursos das famílias, e da própria comunidade e escola, no sentido de oferecerem e/ou estimularem o acesso a outras possibilidades de uso do tempo livre.
Quadro semelhante foi apresentado pela pesquisa Juventude Brasileira e Democracia (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas [Ibase] & Instituto Pollis, 2005), realizada com jovens de oito regiões do Brasil, segundo a qual a falta de acesso ao lazer constitui-se numa das problemáticas da maioria dos jovens brasileiros, uma vez que a fruição do lazer implica custos que não podem ser assumidos diretamente por eles, tendo sido consenso entre os participantes da pesquisa a necessidade de mais acesso ao lazer e à cultura. Ainda conforme o estudo, a televisão constitui-se no meio de informação utilizado por 84,5% desses jovens, sendo predominante entre eles, independentemente de classe, cor, sexo, escolaridade, ou qualquer outra clivagem.
A esse respeito, diversos autores (Passmore, 2003; Passmore & French, 2001; Shan, 2001) chamam a atenção para a existência de uma associação negativa entre o que se considera como lazer não estruturado, o qual tipicamente envolve atividades solitárias, como deitar em sua cama e refletir ou ver televisão, e os níveis de saúde.
Observa-se que um percentual expressivo do tempo livre no fim de semana é usufruído fora de casa, na companhia de amigos e em atividades recreativas e esportivas, com menor percentual os jogos eletrônicos e computador. Segundo o relato dos pesquisados, a maior parte dessas atividades se passa na rua, percebendo-se, portanto, um indicativo positivo de interação social desses jovens entre si e na sua própria comunidade. No entanto, o mesmo dado levanta a questão sobre a possível exposição e vulnerabilidade dos jovens a situações de risco, remetendo novamente à carência de alternativas de locais e atividades disponíveis para o uso do tempo livre.
Zamora et al. (1995) chamam a atenção para a conversão do tempo livre em tempo nocivo para o adolescente e a sociedade na medida em que não for bem aproveitado, levando o jovem ao envolvimento com condutas desadaptadas e de risco. Esse aspecto foi trazido pelos próprios pesquisados, os quais salientaram que a falta de alternativas de atividades no tempo livre pode levá-los a fazer coisas consideradas erradas, como refere um dos jovens do grupo de 12 a 14 anos: ". . . talvez por não ter que fazer nada, acaba fazendo o que não deve fazer." Embora não tenha sido relatado o consumo de drogas lícitas ou ilícitas no instrumento, nos grupos focais, os jovens abordaram explicitamente a possibilidade de envolvimento com drogas, o que é exemplificado na fala de dois adolescentes do grupo de 12 a 14 anos: "Às vezes o cara acaba fumando, né. Fuma maconha, que é uma droga muito pesada. Eu acho que a pessoa que está começando a usar, acho que não deve." "Porque o cara não tem nada para fazer, então os cara vão lá e tu não tem nada, então vamos fumar um."
A análise das atividades por faixas etárias permite identificar semelhanças e diferenças entre os grupos de 12 a 14 anos e 15 a 18 anos quanto ao uso do tempo livre. No tempo livre durante a semana, praticamente não há diferença entre as atividades realizadas pelos dois grupos, a não ser nas atividades de descanso, higiene e alimentação, em que se observa maior freqüência no grupo de 12 a 14 anos, possivelmente pela sua menor independência às rotinas estabelecidas pela família. Verifica-se, ainda, que o grupo de 12 a 14 anos dedica maior tempo a assistir a televisão e brincar, ao passo que o grupo de 15 a 18 anos prefere atividades de lazer fora de casa.
No tempo livre durante o fim de semana, conforme pode ser observado na Tabela 2, além das atividades de descanso, higiene e alimentação, já citadas, aparecem outras diferenças entre os dois grupos etários, destacando-se assistir a televisão, as atividades de lazer fora de casa e as atividades formativas artísticas e culturais, que ocorrem com maior freqüência no grupo de 15 a 18 anos. No grupo de 12 a 14 anos, aparecem sair com amigos, brincar e encontro familiar, atividades que apresentam pouca ou nenhuma freqüência no grupo de 15 a 18 anos.
Quanto às atividades de lazer fora de casa, há referência entre os adolescentes de 15 a 18 anos de que no seu tempo livre a prioridade é sair. A maioria refere ir para a rua, encontrar os amigos e ir a festas, casas noturnas e postos de conveniência. São citados o consumo de álcool e a preocupação com comportamentos violentos, como brigas e enfrentamentos, nessas ocasiões, dado esse preocupante no sentido do envolvimento em comportamento de risco. Segundo conclusões de um estudo desenvolvido por Van-den-Akker e Lees (2001), adolescentes que freqüentam locais em que é servida bebida alcoólica possuem maior probabilidade de envolvimento sexual, mesmo se for considerado que fatores como a idade e o próprio envolvimento em comportamentos de risco em geral já sejam indicativos predominantes de vida sexual.
Esse aspecto corrobora ainda os resultados da pesquisa já citada (Ibase & Instituto Pollis, 2005), segundo a qual questões relacionadas a violência, segurança e criminalidade são a tônica das apreensões dos jovens, sugerindo que eles(as) possuem consciência dos riscos a que se encontram expostos(as), o que se evidencia nas estatísticas, que atribuem às chamadas causas externas o principal agente da mortalidade entre os(as) jovens das regiões metropolitanas. Por um lado, a prevalência do tema da violência e da criminalidade nas preocupações espontaneamente reveladas denuncia a magnitude da abrangência e intensidade com que o fenômeno vem se manifestando na sociedade brasileira; por outro, demonstra que o tempo juvenil, antes de se constituir num período livre de preocupações de ordem prática, encontra-se profundamente comprometido com questões relativas à própria preservação da vida.
No comparativo quanto ao gênero, não são evidenciadas diferenças entre as atividades realizadas no tempo livre durante a semana, estando a maior parte do tempo dos dois grupos dedicada a atividades de descanso higiene e alimentação e assistir a televisão. No tempo restante, o grupo feminino dedica-se mais a atividades formativas artísticas e culturais, lazer fora de casa e atividades escolares, ao passo que o grupo masculino prefere brincar e atividades domésticas. No tempo livre nos finais de semana, existe semelhança quanto às atividades predominantes, que são as atividades de lazer fora de casa para ambos e assistir a televisão, embora esta tenha sido relatada com maior freqüência pelo grupo masculino.
As principais atividades em que são verificadas diferenças podem ser observadas na Tabela 3, na qual, se salientam, entre as meninas, sair com amigos e relacionamento amoroso, ao passo que, entre os meninos, destacam-se as atividades sociorrecreativas esportivas e o uso do computador e jogos eletrônicos. Verifica-se, assim, que, embora sejam evidenciadas algumas diferenças nas atividades de lazer conforme o gênero, essas não são as diferenças típicas comumente referidas em outros estudos, segundo os quais as meninas tendem a permanecer mais em casa, lendo livros e revistas e assistindo a televisão, e os meninos se dedicariam mais aos esportes, aos centros de diversão e às atividades na rua.
Considerações Finais
Os resultados da pesquisa permitiram mapear o uso do tempo livre por parte dos adolescentes pesquisados, corroborando, de um lado, achados de outros estudos nacionais e internacionais e, de outro, possibilitando aprofundar as informações existentes e elaborar novas indagações para as etapas seguintes do trabalho e, para outros estudos.
Alguns aspectos positivos podem ser citados, tais como a permanência dos adolescentes pesquisados na escola e o fato de a maioria, apesar de pertencer à classe popular, não apresentarem a necessidade de ingressar precocemente no mercado de trabalho a fim de auxiliar no sustento da família ou no seu próprio. Também podem ser salientadas como positivas as atividades de interação social dos jovens entre si e em suas comunidades.
Entretanto, fica evidenciada, através dos resultados obtidos, a existência de poucas alternativas de lazer e o acesso restrito a atividades artísticas, culturais e esportivas para os adolescentes pesquisados. Verifica-se a predominância do uso do tempo livre em atividades não estruturadas, com o que, conforme é salientado na literatura e pelos próprios jovens, há a sua vulnerabilidade com relação a comportamentos de risco, especialmente o envolvimento com drogas lícitas e ilícitas e a violência juvenil, na forma de brigas e enfrentamentos.
Observa-se, portanto, que, no caso desses adolescentes, o tempo livre, da forma como vem sendo experimentado, possivelmente não esteja contribuindo com todo o seu potencial positivo para essa etapa do desenvolvimento, na qual, se vivenciado apropriadamente, pode estimular a manifestação ou protagonismo do aspecto da auto-realização do self, influenciando outros auto-referenciais, como auto-estima, autoconceito e auto-imagem (Codina, 2002).
Dessa forma, reitera-se a necessidade da continuidade de pesquisas nessa linha, a fim de contribuir com a busca de alternativas em termos de políticas e investimentos que possam proporcionar aos jovens de classes populares o acesso ao lazer, à cultura e ao esporte, de forma que o tempo livre venha a ser usufruído como elemento de desenvolvimento e promoção de saúde e qualidade de vida e, também, como estratégia de proteção ao seu envolvimento em situações de risco.
Recebido: 17/04/2006
1ª revisão: 25/09/2006
Aceite final: 13/12/2006
A pesquisa que deu origem a esse artigo foi financiada pelo CNPq e desenvolvida pelos seguintes membros do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária, além dos autores: Tais Nicoletto Bonato, Zuleika Zandonai, Marli Appel da Silva, Ángela Paradiso, Kátia Biehl, Maria Piedad Rangel Meneses, Paula Mousquer, Gabriella Howes, e Júlia Hermel.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Jun 2009 -
Data do Fascículo
2007
Histórico
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Aceito
13 Dez 2006 -
Revisado
25 Set 2006 -
Recebido
17 Abr 2006