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A pólis arquipélago: notas do acompanhamento terapêutico

The archipelago polis: notes on therapeutic accompaniment

Resumos

Este artigo discute algumas consequências teóricas derivadas do fazer singular do acompanhamento terapêutico (AT). Como no AT não há nem lugar fixo, nem propriedade privada - características ordinárias das instituições de tratamento, sejam equipamentos públicos, sejam consultórios particulares -, então o espaço onde ele acontece é o chão comum e o céu aberto. Essa condição primeira implica uma espécie de "novidade absoluta do encontro", e a terapêutica se encaminha por uma "fala pedestre" enunciada pelas passagens e pelas movimentações na cidade. A experiência de transitar para além das quatro paredes das diversas instituições de tratamento dispõe, como plano transferencial, um cenário composto de indivíduos e universos que se interpenetram e se constituem, constituindo mundos. Por tudo isso, o AT é um campo propício para pensar a atualidade das redes individuais e das redes coletivas, por exemplo, novas famílias e familiaridades.

acompanhamento terapêutico; psicanálise; família


This article discusses some theoretical consequences that derive from the singular therapeutic accompaniment´s (TA) making. Since in TA there are no fixed places, neither private properties - caracteristics in ordinary treatment institutions, whether public equipments or particular offices -, the space where it happens is the common ground and the open sky. This primary condition implies a kind of "absolute novelty of encounter" and the therapeutic leads away by a kind of "pedestrian speech" enunciated through passages and movimentation across the city. The transit experience beyond the four walls of treatment institutions disposes, as a transferencial plan, a scenery that is composed by individuals and universes which interpenetrate and constitute themselves, constituting worlds. Considering all that, TA is a favorable field to think the present of individual nets and collective nets, for instance, new families and familiarities.

therapetic accompaniment; psychoanalysis; family


ARTIGOS

A pólis arquipélago - notas do acompanhamento terapêutico

The archipelago polis - notes on therapeutic accompaniment

Maurício Porto

Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brasil

RESUMO

Este artigo discute algumas consequências teóricas derivadas do fazer singular do acompanhamento terapêutico (AT). Como no AT não há nem lugar fixo, nem propriedade privada - características ordinárias das instituições de tratamento, sejam equipamentos públicos, sejam consultórios particulares -, então o espaço onde ele acontece é o chão comum e o céu aberto. Essa condição primeira implica uma espécie de "novidade absoluta do encontro", e a terapêutica se encaminha por uma "fala pedestre" enunciada pelas passagens e pelas movimentações na cidade. A experiência de transitar para além das quatro paredes das diversas instituições de tratamento dispõe, como plano transferencial, um cenário composto de indivíduos e universos que se interpenetram e se constituem, constituindo mundos. Por tudo isso, o AT é um campo propício para pensar a atualidade das redes individuais e das redes coletivas, por exemplo, novas famílias e familiaridades.

Palavras-chave: acompanhamento terapêutico; psicanálise; família.

ABSTRACT

This article discusses some theoretical consequences that derive from the singular therapeutic accompaniment´s (TA) making. Since in TA there are no fixed places, neither private properties - caracteristics in ordinary treatment institutions, whether public equipments or particular offices -, the space where it happens is the common ground and the open sky. This primary condition implies a kind of "absolute novelty of encounter" and the therapeutic leads away by a kind of "pedestrian speech" enunciated through passages and movimentation across the city. The transit experience beyond the four walls of treatment institutions disposes, as a transferencial plan, a scenery that is composed by individuals and universes which interpenetrate and constitute themselves, constituting worlds. Considering all that, TA is a favorable field to think the present of individual nets and collective nets, for instance, new families and familiarities.

Keywords: therapetic accompaniment; psychoanalysis; family.

O encontro entre AT (acompanhamento terapêutico) e acompanhado acontece sempre no chão comum da pólis, seja nos espaços abertos, públicos ou não - onde a presença da cidade é evidente -, seja também na privacidade secreta e silenciosa de um quarto fechado - onde a cidade se faz presente como entorno que envolve.

Aqueles que, como este autor, carregam consigo a tradição da psicanálise e também realizam o acompanhamento terapêutico, conservam a experiência, que se impõe em nós pela prática do acompanhamento terapêutico, de ela ocorrer sem respeitar a determinação circunscrita e fechada das quatro paredes, comuns à intimidade instituída pela maior parte das práticas psicoterápicas.

O modo em fechamento como cada um dos habitantes da cidade tende a constituir o próprio cotidiano talvez venha tornando imperceptível o nosso envolvimento com os diversos elementos que constituem a pólis. Porém, nos andamentos de um acompanhamento terapêutico, que frequentemente nos desloca das circulações mais ordinárias que fazemos pela cidade, percebemos nitidamente nosso contato com esses elementos da pólis, todos eles ativos, agindo em nós. E constatamos que a maior parte deles é estrangeira em relação ao que nos é mais pessoal. O envolvimento na atmosfera repleta desses elementos ativos e estrangeiros, comum quando estamos na pólis, permite reconhecer, por outro lado, quão "familiar" é o ambiente das instituições no campo da saúde mental, seja o consultório do psicanalista, do terapeuta, sejam as instituições de tratamento.

É por causa desta frequentação com os elementos estrangeiros da pólis que a atenção desenvolvida pelo AT no acompanhamento terapêutico não é prioritariamente mental, como acontece quando flutuamos a atenção pelo que se fala. Parafraseando Freud para pensar em algum tipo de atenção nesse caso, diríamos que é todo o corpo que flutua na afetação com o ambiente. Durante um encontro com o acompanhado, o AT percebe as coisas variadas que são da cidade, e tudo isso ele o percebe determinado pela presença do acompanhado que está ao seu lado. Os múltiplos contágios que ele experimenta e que pertencem a essa dimensão que chamamos de cidade são percebidas pelo AT, a princípio, como coisas em si, que começam a ser alteradas por um índice específico de interpenetrabilidade que provém do tipo de vizinhança que o acompanhado mantém com o AT e como ambos se contagiam e são contagiados pelas coisas da cidade. Nessa "atenção corpo-flutuante", a matéria da cidade prevalece e a fala constitui uma parcela parcial de tudo aquilo que toca o AT.

Devemos considerar, então, mais esta característica: no acompanhamento terapêutico, a narrativa não é apenas verbal, mas, principalmente, "pedestre", como diz De Certeau (1994, p. 177). A fala pedestre se presentifica e se tece na medida em que os pés se encaminham pela cidade. A fala pedestre é enunciação, é um fazer-dizer que se enuncia no instante mesmo em que um deslocamento transcorre. Nessa narrativa dos pés, é a dimensão acontecimental que ganha evidência.

Assim, e reafirmando a captação freudiana de que "desde o princípio a psicologia individual é simultaneamente psicologia social" (Freud, 1984, p. 67), a prática do acompanhamento terapêutico nos obriga a pensar que um encontro entre dois é encontro de dois que estão imersos na pólis e que não se separam do coletivo; e que, naquilo que é da ordem do psíquico, constituímo-nos ilhas abertas do mundo, no mundo que se desdobra em pontes e arquipélagos.

O lugar onde começa um acompanhamento terapêutico é o chão comum e o céu aberto. Mesmo que as saídas do acompanhamento comecem na casa do acompanhado, e permaneçam ali dentro durante meses, a perspectiva de movimento para outra posição ou outro cômodo da casa, para os espaços públicos, para as instituições, de tratamento ou não, coloca AT e acompanhado em pé de igualdade: no encontro, nenhum dos dois possui a propriedade de um lugar. Antes de qualquer coisa, um milésimo de segundo antes do encontro entre AT e acompanhado, ambos pertencem ao mundo, de alguma maneira, são habitantes da pólis, são cosmopolitas. Isso define o AT e o acompanhado como semelhantes e virgens para o encontro. De certo modo, a única coisa que os antecede é a história biográfica de cada um, a história de suas pertinências pessoais. Tanto uma quanto a outra não é mais do que a história de um cidadão, e isso os faz comuns um ao outro. É por isso que ambos, AT e acompanhado, chegam para o primeiro contato em uma espécie de novidade absoluta do encontro.

A ausência de um lugar próprio, já predeterminado, fortalece a novidade absoluta do encontro. Essa espécie de virgindade do encontro produz uma diferenciação do AT em relação ao médico, ao terapeuta, ao analista. Se tomarmos o caso do analista, quando ele combina o primeiro encontro com o cliente em seus próprios domínios, ele marca com isso uma anterioridade muito particular, que é já dada e logo imposta ao cliente: desde antes de se colocarem no face a face, o analista já introduz no encontro com o cliente suas próprias histórias, que estão impregnadas nas paredes e no ambiente do consultório em que ele receberá o cliente. Diferentemente do AT, o analista acolhe o cliente no endereço de sua propriedade privada; ele possui sua poltrona e empresta o seu divã para o cliente.

Porque, no acompanhamento terapêutico, é o AT quem se desloca ao encontro do acompanhado, essa anterioridade não existe como existe para o analista. Essa novidade absoluta do encontro, determinado pela ausência da propriedade privada, permite pensar que as coisas não começam exatamente a partir de um sujeito que já preexiste em sua tradicional poltrona, que se encontrará com um outro que também já está pré-destinado ao tradicional divã.

Há uma nuvem de indeterminação na novidade absoluta do encontro. Um instante antes de haver o sujeito e o outro há, primeiro, para aqueles dois seres sem posses, sobretudo, a possibilidade do encontro por vir. Diante da possibilidade do encontro por vir, AT e acompanhado são ninguém e possuem um mínimo traço que traz notícias do encontro dos dois. Para AT e acompanhado, é só a partir do acontecimento do encontro, é só depois de terem sido alterados reciprocamente, um pelo outro, que então eles se individuam e se constituem, como um e como outro. Esses dois seres só possuem alguma coisa depois que aconteceu o encontro.

A condição em que se dá o acompanhamento terapêutico só torna mais evidente que a constituição de si e do mundo não tem como ponto de partida nem o sujeito nem o objeto, e sim aquilo que acontece a partir da circunstância de um encontro. A novidade absoluta do encontro que o acompanhamento terapêutico impõe permite então reconhecer a primazia do Acontecimento, como nos indica, por exemplo, Lazzarato (2006).

Lazzarato evidencia que tanto o sujeito não é uma categoria universal e totalizante quanto o objeto, também, não é a exteriorização da ação de um sujeito anteriormente constituído. Ou, para dizer de outra maneira: os encontros e as relações não dependem do sujeito nem do objeto; são os encontros e as relações que constituem, geram e fazem emergir sujeitos e objetos. A situação de acompanhamento explicita que o AT não preexiste totalizado: o AT é só-depois, ele é aquilo que resultou nele depois de ter sido tocado pelo encontro com o acompanhado. E o acompanhado não é o resultado do reconhecimento que um AT (supostamente já existente) estabeleceu a partir de sua ação de ir encontrar o acompanhado.

Dois corpos que se encontram não são duas totalidades fechadas: dois corpos não sabem antes o que realizarão reciprocamente um sobre o outro, de modo a vir constituir, por interpenetração, o Si de cada um; nem sabem o que se realizará entre eles dois, de modo a vir constituir o mundo ao qual ambos pertencem. Portanto, o Si mesmo de cada corpo só existe na interpenetração com outros corpos que se constituem reciprocamente; ao mesmo tempo em que é constituído pelo mundo, constitui o mundo. O mundo e a pólis são constituídos, passo a passo, com o que se constitui a partir e depois de dois corpos se encontrarem.

Passemos a uma situação de acompanhamento terapêutico, emblemática no que diz respeito à interpenetração dos corpos constituindo mundos. Mariel Martins, uma AT a quem agradeço a oportunidade de compartilhar sua experiência, poucas semanas depois de conhecer sua acompanhada, uma moça de vinte anos, ficou sabendo que, desde os catorze anos, a acompanhada veio ampliando a paralisação da própria vida, dando a entender que foi construindo a ideia delirante, cada vez mais consistente, de que os outros percebem que ela tem mau hálito; a AT se deu conta de que a moça carrega na bolsa, todo o tempo, uma tesoura para se defender dessa ameaça que sempre a espreita em qualquer lugar. Justamente por causa dessa ameaça, depois da pequena aproximação das duas, a AT convidou sua acompanhada para passear: que andassem até a padaria a fim de se sentarem, tomarem um café e conversarem.

Aqui é oportuno revisitarmos a etimologia da palavra latina passus, que significa o espaço compreendido entre o afastamento das pernas (daí "passo"); passum, que significa abrir afastando, desdobrar; passivus, que se acha aqui e ali, espalhado, comum; e também passus sum que significa sofrer, ser paciente (Houaiss & Villar, 2001, p. 2142).

Então, diante da acompanhada agora enferma de paralisia, doente de nada passar, a AT apostou nas passagens. O que a AT põe em funcionamento com essa proposição?

AAT se apoia integralmente na parca intimidade de seu vínculo com a acompanhada, pois percebe alguma mínima confiança já estabelecida entre as duas: para a acompanhada há alguém com quem falar sobre seu mais terrível perseguidor, e isso é precioso; e, para a AT, esta preciosidade que ela encarnou para a acompanhada lhe permite se arriscar a abrir a caixa onde está guardado tudo o que agride a moça. Há, portanto, o esboço de um plano transferencial que pode sustentar o processamento de qualquer acontecimento que aconteça, inclusive o fracasso, e, eventualmente, até o esgarçamento do próprio plano da transferência.

É o plano transferencial que a AT dispõe e põe em andamento. Coloca-o a passeio. Confiando na intimidade do vínculo mínimo, a AT propõe, de certo modo, que ambas levem o mau hálito para transitar pelas ruas da cidade. Com isso, o que existe entre a AT e a acompanhada se distribuirá em várias outras proporções. Ao se sentarem à mesa da padaria em que ingressam, as outras mesas e as pessoas das mesas estabelecem proximidades e distâncias diversas em relação à mesa das duas. A AT experimenta a padaria toda como se fosse um cenário. Tanto as pessoas nas mesas quanto o garçom que vem perguntar o que elas querem, se aproximando e se distanciando, e até a televisão falando lá de cima, todos constituem espécies de círculos relacionais excêntricos que se distribuem imediatamente nesse cenário, como a poeira dos anéis de Saturno. Esses circuitos relacionais são múltiplas superfícies da realidade que entram em relação e atravessam o ponto para o qual voltamos nossa atenção, o ponto em que AT e acompanhada estão juntas, sentadas, experimentando conexões. Assim, a AT dispõe o plano transferencial que sustenta com a sua acompanhada e novas relações de produção com outras superfícies da realidade que as envolve vão se constituindo, algumas mais próximas, outras mais distantes.

Multiplicam-se as fronteiras. Ou melhor, a fronteira de dois, que vai se constituindo entre a AT e a acompanhada, ganha outras dimensões a mais quando a dupla experimenta fazê-la passear por outras superfícies que não apenas a superfície da relação a dois. É semelhante à queda de um Muro em Berlim, sem unificação! A fronteira entre as duas Alemanhas se torna porosa. O aumento das passagens entre cada uma das Alemanhas produz mais mistura e aumenta a multiplicidade de formas em que ambas vão se alterando. Entretanto, não são apenas as duas Alemanhas que se alteram, é o mundo todo que não é mais o mesmo. A França não é mais a mesma, nem a Rússia, nem continentes, e nem, quando o mundo retorna alterado em um segundo tempo, as próprias Alemanhas não são mais as mesmas. Pólis polimorfa, arquipélago.

Esse mapa do mundo é igualmente o mapa do corpo. A multiplicação polimorfa das fronteiras corresponde também às zonas erotizadas pela libido. Cada poro da pele é uma zona de fronteira, uma boca. Certamente, a acompanhada de Mariel tem motivos para ter levantado uma barreira, vedando seus poros por onde nada mais passará; e ter chamado esta pele-muro de "mau hálito". Então, como a AT começa o tratamento dos porquês dessa pele-muro? A AT mobiliza os processos de atualização de tal paralisação. Mobiliza processos já a partir do próprio encontro entre as duas. Mas a AT não se restringe aos processos disparados entre elas: também mobiliza os processos disparados pelas conexões que existem das duas com o resto do mundo (e no interior do qual se inclui a conexão particular das duas). Utiliza as muitas superfícies da realidade.

Por isso, a experiência constante de estar fora das quatro paredes das diversas instituições de saúde mental, e saber-se mergulhado na variedade de estímulos que envolvem aqueles que transitam pela cidade, põe em cheque o pensamento que pensa o encontro entre dois indivíduos como uma aproximação entre duas totalidades preestabelecidas e resguardadas nas identidades em-si-"mesmadas". Essa característica que se explicita com a clínica do acompanhamento terapêutico, de estar lançado no mundo, de habitar o mundo e, no mundo, fazer mundos possíveis, fortalece o pensamento que pensa a composição polimórfica, simultaneamente, de cada um e do mundo.

Embora tal pensamento fique mais evidente nos espaços públicos e abertos, como esse da padaria, ele é igualmente experimentado nos espaços mais fechados, privados, por exemplo, o espaço interior de uma família. Tomemos agora uma outra situação de acompanhamento terapêutico, com Adriana Ronchetti, outra AT a quem agradeço a oportunidade de compartilhar sua experiência.

Adriana foi chamada como AT para atender uma garota de doze anos que, tomada pelo pânico, já deixara de ir à escola há alguns poucos dias, refugiando-se em seu quarto, do qual já quase não saía mais. Na primeira ida à casa da garota, depois de breve contato com os pais, no corredor que dá acesso aos quartos, através da porta fechada, a AT tentava estabelecer algum contato, o menor que fosse. Tudo extremamente difícil. Sempre através da porta, as primeiras tentativas de diálogo foram frustradas; as perguntas da AT foram deixadas ao silêncio ou rebatidas com eventuais monossílabos. Quando finalmente a garota permitiu algum acesso, um esboço de conversa aconteceu. Cheia de hesitações, a garota balbuciou uma pergunta, e a claudicante conversa foi, resumidamente, a seguinte:

- Você é psicóloga?

- Sou... mas não sou... - Adriana respondeu ambivalente, pensando que ali ela era AT e querendo assinalar que ela não era uma psicóloga qualquer pois se propunha a conversar ali mesmo, inclusive com a porta entre elas.

- Que você quer aqui?

- Falar com você. - disso Adriana tinha certeza.

- Sobre o quê?

- ... Não sei bem... - vacilou Adriana, que sabia que a garota estava vivendo uma situação de sofrimento, mas não imaginava por qual porta elas poderiam entrar nessa questão.

- Não sei se vou gostar de falar com você.

- Eu também não sei. - novamente, uma pequena certeza.

Depois de algumas dessas perguntas e respostas, por onde escorria principalmente a indeterminação, tudo permeado por grande insegurança, uma frase mais definida da AT:

- Eu acho que você podia tentar falar comigo e, se não gostar, eu não volto mais aqui.

Sabe-se lá por quais relações de forças a favor e de forças contra o encontro, em certo momento a garota abriu a porta para a AT. Ambas conversaram mais um tanto já dentro do quarto e então a garota deu à AT, e a si mesma, uma segunda chance, combinando uma nova ida da AT à casa da garota. A partir daí iniciou-se o trabalho de acompanhamento terapêutico. Não falaremos deste trabalho, e sim da pergunta que a garota dirigiu à AT, um ano mais tarde, quando havia muita intimidade entre as duas:

- Adriana, você sabe por que resolvi deixar você vir de novo depois daquele primeiro dia que você veio em casa?

- Não.

- Porque eu pensei: "Ih! Essa daí está mais perdida do que eu..."

Também não nos deteremos nessa posição da AT que pode deixar-se ficar perdida como posição muito fértil para constituir o plano transferencial. Ressaltaremos a angústia da acompanhada - que na época tinha pavor inclusive de brincar - como vetor maior de fabricação desse plano transferencial para a intervenção da AT. Winnicott (1975), na trilha de Melanie Klein, já nos alertou para a gravidade dessa condição em que não há capacidade de brincar. Foi por isso que a AT, sustentando seu estado de ficar perdida, começou a investir o brincar, propondo brincadeiras com a garota, primeiro no quarto e, logo depois, na sala da casa da família.

A AT já sabia que a simples chegada na casa da acompanhada já mobilizava e convocava os familiares. A AT percebia a casa toda da acompanhada, com todos os parentes, como cenário de interpenetrações constituindo mundos possíveis. Porém, quando a AT e sua acompanhada foram jogar na sala, e os parentes da garota passaram a ser atravessados mais intensamente pela condição tanto da garota quanto do tratamento, essa composição polimorfa de cada um ganhou nitidez.

Na medida em que o vínculo entre a AT e a acompanhada se constituía, a AT se envolvia cada vez mais nas brincadeiras. Na sala, uma considerável parte da AT se sentia um tanto constrangida, pois ela se imaginava como alguém de treze anos, se tanto, sendo vista pelos "adultos" em plena diversão com a outra menina. Estava no cenário da família. Sentia como se houvesse vários círculos às suas costas, aqueles anéis da poeira saturnina a que me referi antes. Esses círculos relacionais, que se afastavam progressivamente excêntricos, correspondiam mais ou menos ao circuito dos pais, ao circuito dos irmãos, ao circuito da empregada, ao circuito do cachorro, ao circuito dos avós, até chegar ao circuito dos amigos e dos parentes mais distantes. Todos esses anéis de olhares a observavam.

Porém, essa espécie de vergonha que a AT sentia, aos poucos, deu lugar a outra sensação: quase que por uma inversão de direção, a AT passou a pensar que aquele contentamento experimentado entre elas duas funcionava para contagiar os pais e os irmãos da garota. Elas eram uma parte de um cenário que se estendia por toda a casa, e a família estava rompida com a dimensão criativa da garota, daquela que podia inventar e se divertir com as próprias brincadeiras.

Então, a AT imaginou que uma janela se abrira em suas costas, por onde as duas começaram a lançar as angústias e as descobertas experimentadas nas brincadeiras. A AT buscava que os outros da família se deixassem tocar por aquela vivência das duas, que não era exclusivamente delas. Assim, de algum modo, os familiares, também afetados, poderiam reconhecer, nessa garota, a angústia da menina, da filha, da irmã, da neta deles. Através do corpo da garota e do acompanhamento da AT, brincando na sala, as duas constituíam este cenário em que se colocava em andamento uma angústia que pertencia a toda família.

Como na situação de acompanhamento terapêutico citada primeiramente, a AT escuta com todas as partes de seu corpo, escuta com o ouvido e o pensamento, com o peito, a barriga, escuta andando, escuta fazendo. AAT se põe integralmente mergulhada no ambiente no qual a acompanhada está, dispondo dentro desse ambiente como uma das protagonistas de uma cena. Por isso, falo de cenário - ressaltando, entretanto, que nesse cenário não há nem representação (pois não existe uma peça prévia a ser encenada), nem teatro (pois estamos no espaço da acompanhada e na cidade). Se Freud descobriu, com as histéricas, a transferência através da escuta das associações livremente rememoradas e faladas, inaugurando assim a psicanálise, aqueles acompanhantes terapêuticos que são herdeiros dessa escuta - e, como afirmei no início, me incluo nisso - reconhecem o mesmo plano transferencial, porém em outra dimensão da fala e da escuta. A escuta é volumétrica, tridimensional. Na situação de acompanhamento terapêutico há, sobretudo, deslocamento do corpo que age - ao mesmo tempo em que descreve uma forma de si no espaço e um desenho do espaço de um cenário localizado na cidade. Na situação de acompanhamento terapêutico, as associações são construídas com a matéria da linguagem e com a materialidade das movimentações dos corpos que vão desenhando, na medida em que se movimentam, o espaço de um acontecimento.

Para concluir, escolhemos refletir a respeito de uma situação bastante particular, a dos moradores dos serviços residenciais terapêuticos, que começa a constituir nosso cotidiano na cidade e também nossa prática de acompanhamento terapêutico, em consequência da implementação crescente destes serviços substitutivos que respondem ao progressivo fechamento dos hospitais psiquiátricos. A inauguração dos serviços residenciais terapêuticos tem anunciado novas maneiras de habitar, formas inusitadas de conviver, outras concepções de família.

Gustavo Menezes, outro AT a quem agradeço a oportunidade de compartilhar sua experiência, é AT de um senhor, morador de um desses serviços residenciais terapêuticos. Em determinada saída de acompanhamento terapêutico, Gustavo voltava emocionado devido a um encontro que seu acompanhado tivera com uma irmã que ele não via há muitos anos. O AT e o acompanhado haviam se preparado por algumas semanas entre contatar a irmã -que vira o irmão muito eventualmente enquanto ele esteve internado no hospital psiquiátrico - até combinar uma visita à casa dela. No retorno emocionado daquela visita, caminhando ao lado do acompanhado, o AT pensava em toda a saída, na simbólica garrafa cheia de café, que aquele senhor embrulhou silenciosamente em jornal na hora de saírem de casa. Só quando haviam chegado à casa da velha irmã, o AT descobriu que aquele café era um presente do acompanhado para a irmã. O AT se surpreendeu ainda mais quando, no final da visita, a irmã renovou o café, colocou-o na mesma garrafa, também a embrulhou em outro jornal. Descobriu o que parecia ser um antiquíssimo ritual familiar que os irmãos mantinham entre si desde sabe-se lá quantos anos. O AT escutava, através da gestualidade desse ritual completamente silencioso, o acompanhado contando uma parte da história dele que não sucumbira.

Mas as surpresas ainda não tinham terminado para o AT.

Já próximos da residência terapêutica, ao passarem diante de uma oficina mecânica, um jovem sujo de graxa abriu os braços e veio ao encontro do senhor João, e gritou para ele:

- Vô!

O AT se espantou, mas o rapaz já havia convidado o "vô" para entrarem na oficina.

- Vem aqui tomar um copo de água, vô -disse o rapaz.

O AT seguiu os dois. O encontro foi breve. Os dois conversaram um pouco e logo o acompanhado fez menção de sair, a fim de seguir com o AT o caminho de volta à casa.

Já na calçada, o AT perguntou para o acompanhado:

- Quem é ele?

Ao que o acompanhado respondeu:

- Também não sei!

Então, nós, acompanhantes terapêuticos, vamos considerar essa família do acompanhado, que ele e seu suposto neto organizam juntos na calçada do bairro?

Nós estamos acostumados a pensar em uma família que já ficou predeterminada, conforme nossas famílias mais ordinárias. Porém, esquecemos que essa família -que hoje se tornou a coisa mais natural do mundo -, essa família foi inventada, e será desinventada no futuro. Nós costumamos tomar a família como um universal inquestionável, e nós nos acostumamos a pensar que nos constituímos psiquicamente como sujeitos referidos a uma família então eternizada, uma mãe, um pai, os irmãos... Como se nossa edipianização fosse, para sempre, decorrência desse universo único e desse modelo trans-histórico. Primeiro construímos a ideia de um "édipo" gestado no interior dessa família, eternizamos esse sujeito familiarizado e, em seguida, pensamos em um tratamento para tais sujeitos. Assim, ao tratarmos, tendemos a sujeitar nossos acompanhados a uma organização psíquica que combina com essa familiarização modelar, como se ela fosse invariante.

Quando o acompanhado de Gustavo revela para o AT a existência de uma família que se constitui ali na calçada, ele nos convida a pensar na existência de famílias sem descendência, de famílias sem filiação. O acompanhamento terapêutico se torna um campo fértil para pensar que há também famílias - um avô, um neto -que ganham esse nome porque articulam dois delírios individuais no espaço comum da cidade. O AT sabe que pode haver encontro verdadeiro em uma relação inventada por um neto, que inexistia, com um avô que sequer teve um filho antes.

Se o AT cingir-se à psicanálise ou às psicologias e acomodar-se em uma vontade de exercitar a psicanálise ou as psicologias transpondo-as automaticamente para além das tradicionais quatro paredes, então, provavelmente ele pensará com o acompanhado nos filhos que o acompanhado não teve, pensará as maternagens da mãe e as paternagens do pai, estará atento às repetições das marcas que constituem o antigo já vivido dele. Assim, o AT privilegiará o aprofundamento da individualização do acompanhado como sujeito individual. Aqui, o sentido dominante será aprofundar, interiorizar, por separação e encolhimento em relação ao exterior.

Porém, se o AT estiver conectado nos modos como os moradores da cidade se articulam com as coisas da cidade, se estiver sensível a essa dimensão "horizontal" das formas de habitar a cidade, esse AT intervirá para que esse senhor fortaleça a relação com seu neto recém-descoberto. Investindo essa familiaridade sem descendência nem filiação, que surge como acontecimento no espaço da cidade, o AT se torna parteiro da relação de um avô e um neto que acabam de nascer simultaneamente. Nesse instante, o AT é o porteiro que pode abrir a porta para a existência de uma relação jamais imaginada, até então impossível tanto para esse senhor sem filhos quanto pelo jovem mecânico que não sabe quem é aquele velho com seu embrulho de jornal. Ali, compõem e multiplicam as famílias.

Diante da crise da família nuclear tradicional que, hoje, parece progressivamente perder sua força de sozinha constituir valores, vendo diminuir sua potência de nuclear a construção das relações mais significativas, talvez esse senhor e seu neto anunciem outras novas maneiras, maiores, de constituição de nossas familiaridades. Por um lado, esse senhor e seu neto denunciam como vivemos na tendência de nos isolarmos em mundos fechados, talvez nos restringindo nos universos mínimos que podem nos fazer sentirmos mais iguais. É uma "forma-familinha" triste, que encontra sua força diminuindo-se no Mesmo e no Mínimo. Por outro lado, esse senhor e seu neto anunciam para nós que, se abrirmos a forma-família, amizades podem ser travadas entre desconhecidos no espaço comum da cidade.

Gostaria de pensar que o acompanhamento terapêutico não precisa limitar-se à aplicação de psicanálises e psicologias fora dos consultórios e dos equipamentos de saúde mental. Gostaria de pensar que precisamos abrir as portas de nossas famílias, inclusive nossas famílias teóricas, não apenas do quarto para a sala como fez a garota a que me referi, mas para fazermos entrar outras famílias de nossas famílias. O acompanhamento terapêutico pode abraçar a oportunidade de sintonizar esse anúncio feito por esse senhor e seu neto, e trabalhar por essa abertura para reinventar, permanentemente, e simultaneamente, redes individuais e redes coletivas.

Recebido em: 13/10/2009

Revisão em: 08/10/2011

Aceite em: 08/04/2012

Maurício Porto é Psicanalista, acompanhante terapêutico, professor do Curso de Introdução ao Acompanhamento Terapêutico e supervisor do Estágio Assistido em Acompanhamento Terapêutico, professor do Curso de Psicopatologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Endereço: Rua Duartina, 319. São Paulo/SP, Brasil. CEP 01256-030 E-mail: mauriciocporto@uol.com.br

  • De Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Freud, S. (1984). Psicología de las masas y análisis del yo. In S. Freud, Obras Completas, 18 (pp. 63-136). Buenos Aires, AR: Amorrortu. (Original publicado em 1921)
  • Houaiss, A. & Villar, M. S. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Objetiva.
  • Lazzarato, M. (2006). As revoluções do capitalismo Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Winnicott, D. W. (1975). O brincar: uma exposição teórica. In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (pp. 59-77). Rio de Janeiro: Imago.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2014
  • Data do Fascículo
    2013

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2009
  • Aceito
    08 Abr 2012
  • Revisado
    08 Out 2011
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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