Acessibilidade / Reportar erro

O USO DO DIÁRIO DE CAMPO NA INSERÇÃO ECOLÓGICA EM UMA FAMÍLIA DE UMA COMUNIDADE RIBEIRINHA AMAZÔNICA

USO DEL DIARIO DE CAMPO EN LA INTEGRACIÓN ECOLÓGICA EN UNA FAMILIA DE UNA COMUNIDAD RIBEREÑA DEL AMAZONAS

USING THE FIELD DIARY IN ECOLOGICAL INTEGRATION OF A FAMILY FROM THE AMAZON'S RIVERINE COMMUNITY

Resumos

O presente estudo visa demonstrar a utilização do diário de campo em pesquisas realizadas em contexto natural sob a perspectiva do modelo bioecológico de Bronfenbrenner. Para efeito de ilustração, são apresentados dados que fizeram parte da pesquisa de mestrado da primeira autora sobre as percepções de uma família com uma criança com deficiência intelectual no contexto ribeirinho amazônico. Após a coleta das informações, os dados foram organizados com base nos conceitos propostos por Bronfenbrenner. O diário de campo permitiu o aprofundamento das análises em que foram contemplados tanto os aspectos contextuais (cultura ribeirinha amazônica), como os pessoais (características biossociopsicológicas da criança/pais) e os processuais (relações, papéis familiares e atividades compartilhadas). Os dados são discutidos considerando a contribuição do diário de campo nas pesquisas que investigam famílias em seu contexto.

diário de campo; inserção ecológica; modelo bioecológico; comunidade ribeirinha amazônica


Este estudio tiene como objetivo demostrar el uso de un diario de campo en la investigación en el contexto natural desde la perspectiva del modelo bioecológico de Bronfenbrenner. Para ilustración, son presentados datos que fueron parte de la tesis de maestría del primer autor sobre las percepciones de una familia con un niño con discapacidad intelectual en el contexto ribereño. Después de recoger la información, se organizaron los datos en base a los conceptos propuestos por Bronfenbrenner. El diario de campo permitió a la profundización de las análisis que se incluyeron tanto factores contextuales (la cultura ribereña del Amazonas), como personales (de los niños/padres) y de procedimiento (las relaciones, funciones familiares y las actividades compartidas). Los datos se discuten considerando la contribución del diario de campo en la investigación de las familias en contexto.

diario de campo; integración ecológica; modelo bioecologico; comunidad ribereña del Amazonas


The present study aims to demonstrate the use of daily field research in the natural context from the perspective of Bronfenbrenner's bioecological model. For purposes of illustration are presented data that were part of the masters research of the first author that investigated the perceptions of a family with a child with intellectual disabilities in the Amazon's river context. After data collection, data were organized based on the concepts proposed by Bronfenbrenner. The field diary allowed the deepening of analyses that were included both contextual factors (Amazon's river culture) and personal (characteristics of the child and parents) and procedural (relationships, family roles and shared activities). The data are discussed considering the contribution of the field diary in research that investigating families in context.

field diary; ecological engagement; bioecological model; amazon riverine community


Introdução

O desenvolvimento de estratégias metodológicas que permitem captar o fenômeno do desenvolvimento humano no contexto em que ocorre de modo a descrever adequadamente suas relações de interdependência é ainda um desafio. Os esforços não se limitam ao registro e à análise dos conteúdos observados, mas envolvem necessariamente a busca pela validade dos achados.

Pesquisas desenvolvidas em contextos diferenciados se mostram como uma maneira de ampliar os conhecimentos desenvolvidos nas ciências psicológicas e sociais e evidenciam a relação entre pesquisa e políticas públicas a partir de projetos que envolvem a ação de pesquisadores em famílias que vivem em contextos ecológicos variados, marcados por situações de risco e vulnerabilidade psicossocial. Sobre esta perspectiva, Bronfenbrenner (1979/1996)Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979), em sua obra, destaca que os experimentos transformadores "representam tentativas de obter a sistemática alteração e reestruturação dos sistemas ecológicos existentes, de maneira que contestem as formas de organização social numa determinada cultura" (Bronfenbrenner, 1979/1996, p. 221Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979)). E apresenta um modelo teórico capaz de investigar as conexões existentes entre os ambientes dos quais uma pessoa faz parte e/ou afetam sua vida e seus recursos biopsicológicos, atividades e papéis desempenhados, ressaltando o modo como as práticas sociais e políticas são assimiladas e afetam os rumos do desenvolvimento dos envolvidos.

Apenas um método adequado, baseado em uma boa teoria, como mencionava o próprio Bronfenbrenner (2005/2011)Bronfenbrenner, U. (2011). A teoria bioecológica do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: ArtMed. (Original publicado em 2005), poderia se constituir em uma boa prática de pesquisa. Sua proposta de observação naturalística tinha esta perspectiva, ou seja, investigar os seres humanos em desenvolvimento em seu contexto real e natural, em seus processos de desenvolvimento e com a perspectiva histórica e cultural que impregnava sua condição de pessoa (Bronfenbrenner,1979/1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979)).

O conhecimento acerca do contexto no qual a pessoa se encontrava inserida implicaria o exame de fatores como atividades, papéis e relações interpessoais. Tal conjunto possibilitaria a compreensão do desenvolvimento humano de forma dinâmica. O ambiente deveria ser entendido como experenciado e percebido pela pessoa junto a suas ações e relações compartilhadas com outras pessoas, assim como pelos próprios símbolos de seu contexto (Bronfenbrenner, 1979/1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979); Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ).

A partir do modelo bioecológico (Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ), o desenvolvimento humano passou a ser compreendido a partir da integração de quatro núcleos: processo, pessoa, contexto e tempo (PPCT). Os processos psicológicos denominados processos proximais deveriam ser compreendidos como propriedades de sistemas integrados da pessoa (com suas características), com seu ambiente (contexto), sua história e rotinas (tempo) e suas relações (Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ). Estes foram então considerados como fundamentais e particulares na compreensão da interação das pessoas com seus contextos, ocorrendo de modo duradouro, com ganho de complexidade e utilizando os símbolos presentes no ambiente (Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ). Tal definição fortalece o que Bronfenbrenner e Ceci (1994)Bronfenbrenner, U. & CECI, S. J. (1994). Nature-nurture reconceptualized in developmental perspective: A bioecological model. Psychological Review, 101,568-586. já haviam apontado a respeito da interação dos processos e do que eles produzem para o desenvolvimento humano, variando de acordo com as características da pessoa e do ambiente, tanto imediato (proximal) como mais remoto (distal).

A pessoa em processo proximal ganha a perspectiva de construção e ação permanente. Suas características determinadas biopsicologicamente são modificadas e acrescidas àquelas construídas na interação com o ambiente. As características podem ser identificadas como competências ou disfunções psicológicas que influenciam cada uma de sua maneira a possibilidade de uma pessoa se engajar nos processos proximais (Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ).

As características pessoais atuantes no estabelecimento dos processos proximais configuram-se em três componentes. O primeiro, denominado de força, caracteriza-se pelas disposições comportamentais ativas, separadas em generativas, isto é, quando sustentam os processos proximais, ou inibidoras, quando impedem a sua ocorrência. O segundo componente são os recursos, compreendidos pelos aspectos de competências e disfunções presentes no estabelecimento dos processos proximais. E o terceiro, denominado como demanda, que se relaciona àquilo que a pessoa provoca no ambiente social, inibindo ou favorecendo o estabelecimento dos processos e das relações necessárias ao convívio social (Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ).

O ser humano em desenvolvimento convive com outras pessoas e interage com símbolos e objetos em seu contexto. Bronfenbrenner (1979/1996)Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979) nomeou quatro níveis ambientais: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. O microssistema apresenta padrões de atividades, papéis sociais e relações interpessoais experenciados face a face, com relações estáveis e recíprocas com equilíbrio de poder. O mesossistema abarca o conjunto de microssistemas que uma pessoa frequenta e as inter-relações estabelecidas por eles, sendo ampliado sempre que se acresce um novo ambiente. O exossistema envolve os ambientes que a pessoa não frequenta ativamente, mas também desempenha influência direta sobre o seu desenvolvimento. O macrossistema é compreendido pelo conjunto de ideologias, valores e crenças, culturas e subculturas presentes no cotidiano das pessoas e que influenciam seu desenvolvimento (Cecconello & Koller, 2003Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. ).

As diversas relações da pessoa em seu contexto assumem um caráter plenamente ecológico quando se associam à variável tempo. Tal associação reforça a ideia do envolvimento interconectado da pessoa em seu contexto, assim como a mudança constante a partir de transformações e continuidades características do ciclo vital (Eschiletti-Prati, Couto, Moura, Poletto, & Koller, 2008Eschiletti - Prati, L., Couto, M. C. P. P., Moura, A., Poletto, M., & Koller, S. H. (2008). Revisando a inserção ecológica: uma proposta de sistematização., Psicologia: Reflexão e Crítica 21(1), 160-169. ).

A posição central ocupada pelos processos proximais no desenvolvimento da pessoa torna necessário investigá-los nos ambientes em que eles ocorrem. Esta é a condição que destaca o papel da observação naturalística no estudo do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner & Morris, 1998Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons. ). No entanto, na tentativa de avaliá-lo, os pesquisadores se defrontam com questões práticas e éticas advindas de suas ações que de algum modo alteraram a rotina de vida dos participantes. Tais ações envolvem o compartilhamento de conversas e atividades, bem como entrevistas, aplicação de instrumentos, dentre outros. Fatos que acarretam responsabilidade e o comprometimento ético em não colocar o interesse de pesquisa acima do bem-estar e segurança daqueles que voluntariamente contribuem com seus relatos, ações e percepções (Eschiletti-Prati et al., 2008).

A inserção ecológica

Tendo em vista preocupações éticas e buscando uma forma possível de operacionalizar metodologicamente a abordagem dos quatro núcleos do modelo bioecológico, Cecconello e Koller (2003)Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. propuseram o método de Inserção Ecológica dos pesquisadores no contexto de investigação. Esta metodologia assegura tanto o rigor científico como a validade ecológica do fenômeno observado, uma vez que amplia e contextualiza conceitos fundamentais do modelo, como os processos proximais e sua relação com microssistemas. Os pesquisadores vão a campo com uma perspectiva bioecológica e aplicam suas técnicas de pesquisa tomando como base as lentes da teoria bioecológica do desenvolvimento humano. Uma das estratégias de ação dos pesquisadores que se utilizam desta metodologia deve ser estabelecer processos proximais junto aos participantes em tais microssistemas. E desse modo, a equipe de pesquisa coloca a si própria como instrumento de observação, seleção, análise e interpretação dos dados coletados (Cecconello & Koller, 2003Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. ).

Os pesquisadores buscam integrar-se ao ambiente estudado, tornando-se o mais próximo possível daqueles que o constituem, sendo considerados mais uma pessoa em desenvolvimento de modo participativo no processo de coleta de dados (Mendes et al., 2008). E para que isso se torne possível, pesquisadores e participantes devem compartilhar de diversos encontros ao longo de um período de tempo (Cecconello & Koller, 2003Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. ).

A base de toda a investigação que adota a inserção ecológica é possibilitada a partir de interação recíproca, complexa e com base regular entre pesquisadores, participantes, objetos e símbolos presentes no contexto imediato. Após sua participação no contexto observado e já tendo desenvolvido processos proximais junto aos participantes, o próximo passo é compreender as conversas e as atividades ora compartilhadas (Eschiletti-Prati et al., 2008).

As análises dos dados obtidos, porém, não devem ser apresentadas isoladamente. Sua estrutura deve se manter conectada aos demais sistemas da pesquisa, permitindo a ampliação continuada do campo de investigação (Cecconello & Koller, 2003Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. ). No entanto, o registro e a análise dos intercâmbios e interações, assim como a adequação do foco da pesquisa podem se tornar árduas tarefas, caso os pesquisadores não tenham selecionado instrumentos adequados, tanto para a coleta quanto para o registro dos dados almejados. O processo de inserção dos pesquisadores deve ser registrado permitindo a revelação dos sentidos atribuídos por todas as pessoas neste contexto, tal como nos diários de campo.

A inserção ecológica e o diário de campo

O surgimento do diário, como também sua utilização se confunde com o desenvolvimento das Ciências Sociais, em destaque a Antropologia. Especialmente na pesquisa de campo, via observação participante, o diário de campo é o procedimento básico há mais de um século (Peirano, 1992Peirano, M. G. S. (1992). A favor da etnografia. Série Antropologia, 130, 1-21. ). No Brasil, verifica-se um número expressivo de pesquisas que lançam mão da observação participante com decorrente utilização do diário de campo. Os interesses de pesquisa apresentados via esse método são variados e buscam compreender contextos diferenciados, quais sejam: comunidades indígenas (Bergamaschi, 2007Bergamaschi, M. A. (2007). Educação escolar indígena: um modo próprio de recriar a escola nas aldeias Guarani. Cadernos CEDES, 27(72), 197-213. ), famílias em vulnerabilidade social (Bustamante, 2005Bustamante, V. (2005). Participação paterna no cuidado de crianças pequenas: um estudo etnográfico com famílias de camadas populares. Cadernos de Saúde Pública, 21(6), 393-402. ), jovens em situação de rua (Nogueira & Bellini, 2006Nogueira, L. A. & Bellini, L. M. (2006). Sexualidade e violência, o que é isso para jovens que vivem na rua? Texto & Contexto - Enfermagem, 15(4), 610-616. ), pacientes crônicos acompanhados por equipes de enfermagem (Anjos & Zago, 2006Anjos, A. C. Y. ANJOS, A. C. Y. & Zago, M. M. F. (2006). A experiência da terapêutica quimioterápica oncológica na visão do paciente. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 14(1), 33-40. ; Buarque et al., 2006Buarque, V., Lima, M. C., Scott, R. P., & Vasconcelos, M. G. L. (2006). O significado do grupo de apoio para a família de recém-nascidos de risco e equipe de profissionais na unidade neonatal. Jornal de Pediatria, 82(4), 295-301. ; Cesarino & Casagrande, 1998Cesarino, C. B. & Casagrande, L. D. R. (1998). Paciente com insuficiência renal crônica em tratamento hemodialítico: atividade educativa do enfermeiro., Revista Latino-Americana de Enfermagem 6(4), 31-40. ; Collet & Rocha, 2006Collet, N. & Rocha, S. M. M. (2004). Criança hospitalizada: mãe e enfermagem compartilhando o cuidado., Revista Latino-Americana de Enfermagem 12(2), 191-197. ; Lamego, Deslandes, & Moreira, 2006Lamego, D. T. C., Deslandes, S. F., & Moreira, M. E. L. (2005). Desafios para a humanização do cuidado em uma unidade de terapia intensiva neonatal cirúrgica. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 669-675. ); creches (Maranhão, 2000Maranhão, D. G. (2000). O processo saúde-doença e os cuidados com a saúde na perspectiva dos educadores infantis. Caderno de Saúde Pública, 16(4), 1143-1148. ) e pesquisas em projetos sociais (Alves & Seminotti, 2006Alves, M. C. & Seminotti, N. A. (2006). O pequeno grupo "Oficina de Capoeira" no contexto da reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, 15(1), 58-72. ).

O diário de campo relativiza o universo da pesquisa a partir da problematização e da comparação das diferenças entre modos de vida, descobrindo e desnaturalizando os comportamentos observados. Sua escolha evidencia a preocupação dos pesquisadores pela relação estabelecida com os pesquisados, tornando-os interlocutores e caracterizando essa relação como uma via de mão dupla (Dalmolin, Lopes, & Vasconcellos, 2002Dalmolin, B. M., Lopes, S. M. B., & Vasconcellos, M. P. C. (2002). A construção metodológica do campo: etnografia, criatividade e sensibilidade na investigação. Saúde e Sociedade, 11(2), 19-34.; Silva, 2005Silva, F. T. (2005). History and Social Sciences: Frontier zones. História, São Paulo, 24(1), 127-166.; Vianna, 2003Vianna, H. M. (2003). Pesquisa em educação: a observação. Brasília, DF: Plano Editora.).

O diário de campo permite aos pesquisadores descreverem pessoas, objetos, lugares, acontecimentos, atividades e conversas; bem como suas ideias, estratégias, reflexões e palpites. O sucesso deste instrumento sustenta-se em notas detalhadas, precisas e extensivas. Bogdan e Biklen (1994)Bogdan, R. & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e os métodos. Porto: Porto Editora. consideram que tais notas sejam constituídas de dois tipos de material. O primeiro é descritivo e visa captar uma imagem por palavras, seja em relação a um local, ou pessoa, enfatizando as ações e conversas observadas. O segundo se apresenta como reflexivo e constituído de ideias e preocupações dos pesquisadores, com ênfase às especulações, sentimentos, problemas, ideias, palpites e impressões dos pesquisadores e seus planos para considerações futuras. Em sua parte reflexiva, são mostrados apontamentos sobre o que fora aprendido; os temas emergentes; padrões relacionais; reflexões sobre o método e demais problemas encontrados no estudo.

Inspirado nas possibilidades de uso do diário, tanto no registro do material descritivo como em sua capacidade de organizar as reflexões advindas da inserção do pesquisador, o presente trabalho destaca os seguintes aspectos considerados fundamentais a uma pesquisa ecológica: caracterização dos participantes; reconstrução dos diálogos estabelecidos; descrição do espaço físico; relatos de acontecimentos relevantes e rica descrição das atividades. E desse modo, no processo de inserção ecológica o diário pode ser utilizado tanto para fins de coleta, auxiliando no registro e na análise das experiências e observações naturalísticas, como também na sistematização da própria produção de conhecimento da pesquisa.

De fato, a delimitação do foco de análise, as situações de contatos compartilhadas entre pesquisador e pesquisados e a interpretação do conteúdo dos diários são aspectos relevantes tanto às pesquisas que utilizam a observação participante e a etnografia quanto para a inserção ecológica. Contudo, a inserção, ao pautar-se nos pressupostos da teoria bioecológica (Bronfenbrenner, 1979/1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979)), possibilita a utilização de conceitos e concepções que direcionam a produção e o entendimento do material registrado no diário a uma análise ecológica e sistêmica, particularmente aos quatro núcleos do modelo bioecológico (PPCT). Assim, diferente da observação participante, o uso do diário de campo, quando à luz do procedimento de inserção ecológica, estabelece de forma mais diretiva as categorias a serem utilizadas tanto no momento descritivo quanto reflexivo.

Além das descrições acerca de como ocorrem os processos proximais, os registros no diário, orientados pelo modelo bioecológico, retratam o olhar dos pesquisadores sobre os pontos essenciais do modelo, tais como as características e atributos dos participantes; os contextos dos quais participam; as atividades compartilhadas; os papéis desempenhados e o estabelecimento das relações, perpassando por esses elementos o tempo, pelo qual as relações e as atividades passam a ser compreendidos.

Procedimentos adotados durante a inserção ecológica na família participante

O presente estudo utiliza os dados coletados em pesquisa realizada durante o mestrado do primeiro autor sobre percepções de famílias de crianças com deficiência intelectual no contexto ribeirinho amazônico. Nele o diário de campo teve uma função central na geração dos dados; portanto, no presente artigo será demonstrada a utilização do referido diário . Seu uso auxiliou tanto na inserção do pesquisador e registro dos dados como na organização dos achados de acordo com os constructos do modelo bioecológico de Bronfenbrenner.

O início da inserção ecológica na rotina dos moradores da ilha se deu via escola, que, por meio de sua coordenação, disponibilizou as informações necessárias sobre as famílias com crianças com atraso de desenvolvimento. A fim de facilitar o acesso às casas das famílias, foi agendada uma reunião com a associação de moradores da comunidade do igarapé de Piriquitaquara. Após a apresentação do objetivo geral da pesquisa, foram agendadas as visitas domiciliares.

As visitas ocorreram semanalmente durante seis meses através dos quais foram compartilhados processos proximais junto à família. Participaram das visitas a pesquisadora responsável, o barqueiro contratado e um auxiliar de pesquisa. Para ter acesso à família, a equipe realizou percurso de barco pelo rio Guamá, furos e igarapés. A família aguardava a pesquisadora todas as quintas-feiras no período da manhã por volta das 9h.

A pesquisadora permanecia na casa da família durante o período máximo de duas horas. Nesse tempo eram realizadas conversas, brincadeiras, coleta de frutos, dentre outras atividades. Durante as conversas eram propostas perguntas a respeito do desenvolvimento da criança com deficiência e do modo de vida adotado pela família.

A pesquisadora não efetuava anotações durante as visitas, recorrendo posteriormente à memória para registrar nos diários de campo o que havia ocorrido. Inicialmente, os registros contemplavam frases ditas pelos participantes, assim como relatos expressivos e observações sobre o contexto, sempre em ordem dos acontecimentos, e depois eram tecidas considerações e reflexões.

Ao final do processo de inserção e coleta, teve-se a fase de organização dos dados. Utilizaram-se marcações coloridas diferenciadas para cada categoria (pessoa, processo, tempo e contexto) que foram reunidas em análises apresentadas a seguir nos resultados.

Ressalta-se a postura ética adotada, nesse sentido, a pesquisadora retornou periodicamente à casa da família, bem como à escola durante três meses após o encerramento da pesquisa. Nestes momentos, realizou encaminhamentos necessários aos atendimentos públicos disponíveis às crianças com atraso de desenvolvimento. Tal acompanhamento estava previsto no projeto de pesquisa submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos no Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Pará CEP - ICS/UFPA, onde obteve aprovação (Parecer n. 0016.0.073.000-09).

Todos os adultos das famílias participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com o devido esclarecimento acerca dos objetivos e dos riscos envolvidos, como também do sigilo de suas identidades.

A família participante, cujos nomes são fictícios, exibe a seguinte configuração: José, o pai (41 anos), Vilma, a mãe (32); os adolescentes: Martina (14 anos) e Alex (17 anos) e as crianças Lúcia (8 anos) e Ana (3 anos). Trata-se de uma família recasada e o casal mora junto há nove anos. São filhas biológicas do casal as meninas Lúcia e Ana, sendo esta última portadora da Síndrome de Down, os demais são filhos de Vilma.

As categorias propostas a priori, baseadas nos núcleos constituintes do modelo bioecológico de Bronfenbrenner (1979/1996)Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979), foram organizadas por meio de análise do conteúdo dos diários de campo e registros de observação (ver Tabela 1) e são mostradas a seguir.

Tabela 1:
Categorias Ecológicas Geradas a Partir do Modelo PPCT

Tempo: história de vida da criança portadora da Síndrome de Down

Os relatos informais da mãe colhidos a partir das visitas demonstraram que a gravidez de Ana seguiu tranquilamente. O parto foi normal, a termo e hospitalizado. Todavia, o bebê não chorou prontamente, somente após intervenção médica. O diagnóstico da Síndrome de Down foi dado à família ainda no hospital. A neonatologista, ao fornecer seu parecer, enfatizou aspectos positivos, fato evidenciado na fala de Vilma: "A doutora disse que eu tinha sido premiada, pois estava recebendo uma criança especial". Desse modo, "não houve tristeza ou qualquer sentimento de estranhamento", segundo os pais, "a alegria e a aceitação marcaram esse momento na família".

No entanto, ao completar um ano e dois meses de idade, Ana apresentou um quadro convulsivo grave que levou à paralisação do seu corpo. A criança passou onze dias internada em uma unidade de saúde pública em observação e recebeu medicação anticonvulsiva. Mesmo tendo sido atendida a tempo, a convulsão deixou sequelas motoras constituídas por um quadro de hemiparesia. Com isso, Ana teve que reaprender a se locomover, uma vez que os membros superiores direito e inferior esquerdo foram afetados. Em decorrência desse episódio, a criança passou a ser medicada com anticonvulsivante e os atendimentos terapêuticos foram intensificados.

Os relatos familiares indicam que Ana começou a andar com um ano de idade e que, apesar da hipotonia, sempre se mostrou ativa, estando próxima à mãe na coleta do açaí e, inclusive, participando dos poucos eventos sociais que a família costumava frequentar. Porém, após o acometimento, a genitora recebeu orientações médicas que atentavam para a necessidade de evitar ambientes agitados, já que poderiam favorecer um novo episódio convulsivo. Assim, ocorreu uma modificação nos hábitos e costumes familiares, passando a limitar o convívio da criança ao ambiente da casa.

No momento da coleta de dados, Ana estava com três anos de idade, apresentava considerável melhora nos membros superiores, porém, como houve deformidade na perna, mostrava-se incapaz de garantir o equilíbrio necessário para voltar a andar. Sua medicação fora diminuída e havia sido encaminhada a uma unidade de ensino e assistência de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, onde realizava exames e atendimentos.

A história de vida desta criança junto a sua família vem marcada pelas características identificadas em Ana que se manifestam ora através de suas competências, ora em suas limitações. E dessa maneira, observa-se que seus atributos influenciaram e ajustaram o modo como os membros da família construíram ações e percepções favoráveis a seu desenvolvimento.

Pessoa - Ana: filha portadora da Síndrome de Down

Os registros sobre a maneira como Ana expressava sua motivação, ao estabelecer os processos proximais junto a seus familiares, revelavam o que Bronfenbrenner (1979/1996)Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979) denominou como força. Os diários apontam para o fato de Ana demonstrar interesse nos relacionamentos com os que estavam a sua volta e curiosidade pelo que faziam. Os aspectos positivos para tal disposição constituíam-se em características organizadoras, tais como, motivação e nível de atividade considerado adequado. Contudo, apresentava características como agressividade contra outras crianças e incapacidade em permanecer em uma atividade o tempo necessário para sua execução, o que consistia em características desorganizadoras. Tais limitações dificultavam o controle sobre seus comportamentos e, consequentemente, a continuidade dos processos relacionais.

Os recursos biopsicológicos de Ana evidenciavam aspectos de competência como compreensão pelo que ocorria a sua volta e habilidade em desempenhar atividades presentes no meio. Entretanto, faziam-se presentes aspectos como dificuldade de fala, de compreensão e locomoção que abrangiam as deficiências física e intelectual. Numa primeira análise, as dificuldades de Ana poderiam ser descritas como limitadores dos processos desenvolvimentais, visto que sua fala não passava de alguns sons guturais e a dificuldade em locomover-se poderia dificultar a vivência de uma série de atividades esperadas socialmente. Contudo, ao se evidenciar a maneira como as características de Ana eram relatadas por sua família, foi possível identificar e destacar percepções e atitudes.

Os pais de Ana ressaltavam, em muitos momentos, o quanto consideravam sua filha inteligente, capaz de realizar muitas tarefas e uma companhia agradável. Pode-se supor que, ao perceberem seus atributos de um modo menos restritivo, apresentavam pouca ansiedade em relação ao seu desenvolvimento. Para eles, o atraso parecia pouco evidente. Quando o expunham, o faziam a partir de uma aceitação incondicional. A preocupação maior referia-se ao desejo e ao esforço em vê-la andar novamente. Não salientavam o atraso na fala ou a deficiência intelectual.

De modo similar, Ana era percebida positivamente pelos moradores da ilha. Nas visitas registradas, notava-se a motivação pelos que estavam ao seu redor em promover brincadeiras e disposição para contato. E assim, o modo como suas características e competências foram percebidas no contexto foi capaz de propiciar efeitos positivos em seu desenvolvimento. A disponibilidade para a interação mostrou-se como o estímulo necessário a novos aprendizados, mediante o compartilhamento de atividades e convívio social.

Processos e contextos

Os dados obtidos através do diário de campo se mostraram numerosos e ricos ao indicarem as características dos processos proximais estabelecidos entre os membros familiares e os contextos participantes, nesse sentido, foram eleitas categorias que abarcaram os dois núcleos do modelo conjuntamente. Tal disposição destaca os elementos que dão dinamicidade aos contextos, dentre os quais: as atividades observadas; os papéis representados nas díades e as percepções relatadas.

Atividades, papéis e relações no microssistema familiar

Dados registrados revelaram que Ana se encontrava na base de toda a organização doméstica. Suas necessidades adicionais mobilizavam a família, uma vez que necessitava de supervisão constante, tanto na administração de remédios quanto nas estimulações motoras e de linguagem.

Além das ações ligadas aos cuidados recebidos, Ana convivia ainda com atividades dispostas no ambiente familiar que influenciavam o seu desenvolvimento. Tais atividades compreendiam acompanhar os pais na coleta do açaí, na preparação das refeições, na arrumação da casa e na confecção de artesanato. Os processos assim caracterizados representavam uma dimensão mais geral da relação de Ana com sua família. Porém, o modo como eram compartilhados os papéis e as atividades traz características particulares a cada díade familiar.

A díade mãe-filha evidenciou o papel desempenhado por Vilma na organização da rotina da casa e dos cuidados direcionados aos filhos, sendo responsável pelas decisões do dia a dia. Além dos cuidados diários, Vilma acompanhava a filha nas sessões de terapia, sendo a detentora de todas as informações sobre sua saúde. A relação estabelecida com a filha revelava-se em expressões de carinho, tolerância, afetividade e orientação. Segundo seus relatos, as tarefas de cuidado à filha não eram difíceis, elas organizavam sua rotina e eram fontes de aprendizado. Ana era percebida de maneira positiva, como sendo a única filha a permanecer ao lado da mãe o tempo todo e apresentando-se como o pilar dos planos maternos futuros.

A díade pai-filha foi marcada pelo papel desempenhado por José de provedor da família. Dessa forma, o pai passava a maior parte do tempo no ambiente externo à casa, sendo encontrado frequentemente em seu barco. Apesar de não estar presente como Vilma, acompanhava ativamente a rotina de todos.

Mostrava uma postura permissiva, já que, para ele, Ana não precisava ser repreendida ou educada. A relação estabelecida com a filha era marcada pelos cuidados diários, diferenciados quando comparados àqueles direcionados aos demais, dadas as suas necessidades adicionais. E por se apresentar tranquilo e permissivo, estabelecia com a filha numerosos momentos de brincadeira e descontração.

Na díade Ana-irmãos, verificou-se o mesmo padrão encontrado nas famílias ribeirinhas amazônicas: os irmãos do mesmo gênero passavam grande parte do tempo juntos, sendo que os mais velhos, na maioria meninas, eram responsáveis pelos cuidados dos mais novos (Silva, 2006Silva, S. S. C. (2006). Estrutura e Dinâmica das relações familiares de uma comunidade ribeirinha da região amazônica. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduaçao em Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF. ). Assim, Martina e Lúcia passavam a maior parte do tempo em que estavam em casa cuidando ou brincando com a irmã. Os irmãos de Ana, quando não estavam na escola, auxiliavam os adultos em tarefas domésticas, de coleta do açaí e pesca. Também eram vistos em diferentes horários no rio brincando ou tomando banho.

A presente família, caso não convivesse com os aspectos ligados à deficiência, apresentaria padrões de relações e atividades comuns ao contexto da ilha do Combu. No entanto, frente às necessidades de Ana, passou a participar semanalmente dos atendimentos dispostos no hospital. Para a trajetória familiar, este ambiente diferenciado contribuiu para o surgimento de ações e percepções ligadas à reabilitação de Ana com repercussão em toda a família.

Atividades, papéis e relações no mesossistema família-hospital

O hospital mostrou-se como um contexto importante para Ana e sua família, pois se constitui como um local propiciador de interações diferenciadas das estabelecidas em sua casa e na ilha. Tratava-se, portanto, de uma instituição pública com características urbanas que contribuía com instruções de cuidado em relação à reabilitação da criança.

Para Vilma, os relacionamentos estabelecidos com os funcionários do hospital se mostraram "positivos", o que incentivava o compromisso de levar Ana semanalmente aos atendimentos. O compartilhamento dos papéis assumidos, assim com as relações, se traduziu em benefícios à criança. Nesse sentido, os pais recorriam aos profissionais quando tinham dúvidas e compartilhavam ações terapêuticas assimiladas durante os atendimentos que passavam a ser adaptadas ao ambiente em que viviam. Os registros dos diários apontavam episódios de dúvidas vencidas e conquistas adquiridas, relacionadas tanto ao entendimento das especificidades da síndrome como das dificuldades motoras apresentadas. As explicações médicas sobre as causas do comprometimento motor e a necessidade de intensificação das terapias já vinham sendo realizadas, e a partir dos registros, foi possível destacar as ações dos pais em construir bancos e brinquedos de madeira que resultaram na melhora dos membros inferiores de Ana e no bom desempenho de sua mão comprometida. Por meio desses exemplos, evidenciou-se a relação entre hospital e família como um contexto de desenvolvimento fundamental de suporte que auxiliou Ana a realizar uma série de atividades importantes ao seu convívio social.

As relações, os papéis e as atividades compartilhadas não apenas se mostraram relacionados à sua reabilitação, como passaram a transformar a rotina de vida de sua família. Tal fato pode ser percebido em ações diárias, dispostas no ambiente familiar, associadas à leitura de palavras em livros infantis, confecção de peças para que a criança trabalhasse o movimento de pinça, alongamentos e tantas outras ações terapêuticas que incorporavam os conhecimentos desta família ribeirinha acerca do desenvolvimento diferenciado de sua criança. Todavia, a cultura ribeirinha se fez presente e influenciou o modo como tais ações foram sendo incorporadas pela família.

Atividades, papéis e relações relacionados ao macrossistema ribeirinho amazônico

Este sistema compreendia a cultura amazônica e se revelava no modo de vida dos ribeirinhos amazônicos da ilha de Combu. Tal população sobrevive da agricultura e do extrativismo vegetal ou animal, vivendo em função da floresta e dos rios (Harris, 2000Harris, A. G. (2000). Life on the Amazon. The anthropology of a brazilian peasant village. Oxford, UK: University Press.). Os ciclos naturais marcam os períodos de cheia do rio e de coleta do açaí e, de modo peculiar, se fazem presentes na fala, percepção e construção do imaginário dos moradores.

Os registros nos diários retrataram a disposição das moradias onde o terreno alagado dificultava o acesso às casas vizinhas, fato que compunha um cenário em que as casas, apesar de serem próximas, apresentavam isolamento entre si produzido pela água. Silva (2006)Silva, S. S. C. (2006). Estrutura e Dinâmica das relações familiares de uma comunidade ribeirinha da região amazônica. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduaçao em Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF. e Mendes et al. (2008) indicaram que esta disposição de isolamento geográfico, marcada pela presença de rios, revela uma característica contextual importante para a compreensão da composição das relações estabelecidas nas comunidades ribeirinhas amazônicas. Para chegar aos vizinhos, era preciso passar por obstáculos naturais que, de certa maneira, restringiam as saídas do ambiente doméstico. Fato que se agravava frente à utilização do barco para deslocamentos maiores, já que implicava gasto de energia. Nesse sentido, a família de Ana, tal como os grupos familiares ribeirinhos, se voltava para si mesma, compartilhando intensamente de momentos interativos e desenvolvendo laços afetivos proeminentes.

Outro aspecto marcante referia-se ao fato de as famílias conviverem na mesma comunidade por gerações e, dessa forma, a vizinhança era composta, na sua maioria, por parentes. Esta disposição contextual propiciava aos moradores relacionamentos que retratavam sentimentos de pertencimento e convívio: "Aqui no Combu, quem não é parente é vizinho &91;risadas:93;" (Vilma).

Ana vivia num ambiente marcado por características intermediárias entre dois contextos bem definidos: urbano e ribeirinho amazônico tradicional. Assim, tanto sua família como os moradores da ilha do Combu incorporavam ao modo de vida tradicional herdado informações e serviços advindos da capital, podendo contar com uma rede de serviços disponibilizados pelo estado e município, tais como educação, saúde e trabalho, que favoreceu a saúde e o processo de reabilitação de Ana.

No entanto, mesmo se apresentando como uma região peculiar do ponto de vista cultural, a Ilha do Combu compõe um cenário periférico e de empobrecimento econômico local. A população da ilha, incluindo a família de Ana, sobrevive da coleta dos produtos da floresta e esses, em vários momentos do ano, se mostram insuficientes. Situação agravante para esta família, que apresentou maiores gastos, ligados, principalmente, ao transporte até os atendimentos. Outro ponto preocupante evidenciado pelos pais diz respeito ao futuro da filha, que, de acordo com eles, necessitará de apoio e cuidados constantes durante toda a vida.

Considerações finais

O objetivo do estudo exibido foi demonstrar a utilização do diário de campo em pesquisas realizadas em contexto natural sob a perspectiva do modelo bioecológico de Bronfenbrenner. O diário de campo, quando produzido e organizado à luz do procedimento de inserção ecológica, permite um direcionamento ecológico dos dados coletados. Sendo assim, os dois tipos de materiais salientados por Bogdan e Biklen (1994), o descritivo e o reflexivo, foram contemplados durante o procedimento de inserção ecológica, produzindo diários de campo de valor diferenciado, adequado às análises pertinentes ao modelo bioecológico de Bronfenbrenner (2005/2011)Bronfenbrenner, U. (2011). A teoria bioecológica do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: ArtMed. (Original publicado em 2005).

O direcionamento adotado pelo método de inserção ecológica possibilitou o acesso às percepções compartilhadas pela família sobre as necessidades apresentadas por uma criança vivendo em um contexto ecológico diferenciado. Dada sua capacidade de acesso e registro, permitiu identificar elementos positivos dentro dos recursos ecológicos apresentados pela família.

Nos diários confeccionados, a família pesquisada mostrava, em seus relatos, um mundo fenomenológico particular que destacava os atributos positivos representados pelas habilidades sociais e conquistas da filha. Tal atitude revelou a sensibilidade do contexto, que nem sempre é identificada em outros ambientes. As percepções apontaram em direção de um olhar construído pelos pais que identificava prioritariamente as competências da criança.

Este dado reafirma o pressuposto no qual o ambiente fundamental para o desenvolvimento é o experienciado pelas pessoas (Bronfenbrenner, 1979/1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979)), e não suas características objetivas analisadas de modo apartado da dinâmica apresentada. Nesse sentido, a inserção ecológica associada à observação naturalística revelaram aspectos positivos do contexto de investigação, que dificilmente seriam detectados sem a imersão da pesquisadora no mundo fenomenológico desta família.

Ressalta-se o fato de que se as observações naturalísticas via inserção poderiam ter se perdido caso não houvesse seu registro em diários de campo realizados logo após as visitas. Além dos procedimentos adotados na coleta das informações, a adequação das categorias propostas via o modelo auxiliou na organização de todo o material registrado. Tal modo de organização contribui com outros pesquisadores que realizam pesquisas em contexto com base no modelo bioecológico na medida em que poderá inspirá-los a sistematizar seus dados conforme os constructos de Bronfenbrenner (2005/2011)Bronfenbrenner, U. (2011). A teoria bioecológica do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: ArtMed. (Original publicado em 2005).

Na categoria tempo, evidenciaram-se os acontecimentos e as ações que se mostraram relevantes para a família durante o desenvolvimento da filha. Na categoria pessoa, as características e os recursos apresentados pela criança, via percepção dos pais, permitiram ampliar as análises sobre a dinâmica familiar. Dinâmica essa movida pelos contextos vivenciados a partir das atividades sociais e práticas compartilhadas no dia a dia e nas relações. Assim, as categorias de Bronfenbrenner (2005/2011)Bronfenbrenner, U. (2011). A teoria bioecológica do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: ArtMed. (Original publicado em 2005)Processos e Contextos geraram as categorias Atividades, papéis e relações nos micro, mesos e macrossistemas que representaram a interdependência das ações adotadas aos ambientes em que ocorreram em sua perspectiva cultural e simbólica.

A inserção ecológica e a observação naturalística com decorrente registro em diários de campo geraram dados ecologicamente válidos reveladores da natureza do contexto pesquisado, aspectos que contribuem com a constituição da base de uma Psicologia essencialmente positiva do desenvolvimento humano. A pesquisa apontou que, em meio ao empobrecimento e distanciamento das populações ribeirinhas amazônicas, as famílias têm apresentado modos de sobrevivência e recursos ecológicos para vencer as dificuldades impostas.

Sendo assim, a utilização de tal instrumento por pesquisadores que buscam se inserir em contextos ecológicos diferenciados se mostra como válida no registro das experiências e percepções compartilhadas e na orientação ecológica das análises. Apresenta-se, dessa forma, como um caminho metodológico possível aos que procuram compreender a interdependência dos grupos de pessoas e contextos sem abrir mão de sua inserção na vida dos participantes, tornando-se interlocutores de seus modos de vida, percepções e necessidades.

Agradecimento

Agência de fomento: CNPQ (bolsa de mestrado da primeira autora)

  • Alves, M. C. & Seminotti, N. A. (2006). O pequeno grupo "Oficina de Capoeira" no contexto da reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, 15(1), 58-72.
  • Anjos, A. C. Y. ANJOS, A. C. Y. & Zago, M. M. F. (2006). A experiência da terapêutica quimioterápica oncológica na visão do paciente. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 14(1), 33-40.
  • Bergamaschi, M. A. (2007). Educação escolar indígena: um modo próprio de recriar a escola nas aldeias Guarani. Cadernos CEDES, 27(72), 197-213.
  • Bogdan, R. & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e os métodos. Porto: Porto Editora.
  • Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejado (M. A. Veronese, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979)
  • Bronfenbrenner, U. (2011). A teoria bioecológica do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: ArtMed. (Original publicado em 2005)
  • Bronfenbrenner, U. & CECI, S. J. (1994). Nature-nurture reconceptualized in developmental perspective: A bioecological model. Psychological Review, 101,568-586.
  • Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. DAMON & R. M. LERNER (Eds.), Handbook of child psychology: theoretical models of human development (Vol. 1, pp. 993-1027). New York: John Wiley & Sons.
  • Buarque, V., Lima, M. C., Scott, R. P., & Vasconcelos, M. G. L. (2006). O significado do grupo de apoio para a família de recém-nascidos de risco e equipe de profissionais na unidade neonatal. Jornal de Pediatria, 82(4), 295-301.
  • Bustamante, V. (2005). Participação paterna no cuidado de crianças pequenas: um estudo etnográfico com famílias de camadas populares. Cadernos de Saúde Pública, 21(6), 393-402.
  • Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524.
  • Cesarino, C. B. & Casagrande, L. D. R. (1998). Paciente com insuficiência renal crônica em tratamento hemodialítico: atividade educativa do enfermeiro., Revista Latino-Americana de Enfermagem 6(4), 31-40.
  • Collet, N. & Rocha, S. M. M. (2004). Criança hospitalizada: mãe e enfermagem compartilhando o cuidado., Revista Latino-Americana de Enfermagem 12(2), 191-197.
  • Dalmolin, B. M., Lopes, S. M. B., & Vasconcellos, M. P. C. (2002). A construção metodológica do campo: etnografia, criatividade e sensibilidade na investigação. Saúde e Sociedade, 11(2), 19-34.
  • Eschiletti - Prati, L., Couto, M. C. P. P., Moura, A., Poletto, M., & Koller, S. H. (2008). Revisando a inserção ecológica: uma proposta de sistematização., Psicologia: Reflexão e Crítica 21(1), 160-169.
  • Harris, A. G. (2000). Life on the Amazon. The anthropology of a brazilian peasant village. Oxford, UK: University Press.
  • Lamego, D. T. C., Deslandes, S. F., & Moreira, M. E. L. (2005). Desafios para a humanização do cuidado em uma unidade de terapia intensiva neonatal cirúrgica. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 669-675.
  • Maranhão, D. G. (2000). O processo saúde-doença e os cuidados com a saúde na perspectiva dos educadores infantis. Caderno de Saúde Pública, 16(4), 1143-1148.
  • Mendes, L. S. A., Pontes, F. A. R., Silva, S. S. C., Maluschke, J. B., Reis, D. C., & Silva, S. D. B. (2008). Inserção ecológica no contexto de uma comunidade ribeirinha amazônica. Revista Interamericana de Psicologia, 42(1), 1-10.
  • Nogueira, L. A. & Bellini, L. M. (2006). Sexualidade e violência, o que é isso para jovens que vivem na rua? Texto & Contexto - Enfermagem, 15(4), 610-616.
  • Peirano, M. G. S. (1992). A favor da etnografia. Série Antropologia, 130, 1-21.
  • Silva, F. T. (2005). History and Social Sciences: Frontier zones. História, São Paulo, 24(1), 127-166.
  • Silva, S. S. C. (2006). Estrutura e Dinâmica das relações familiares de uma comunidade ribeirinha da região amazônica. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduaçao em Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF.
  • Vianna, H. M. (2003). Pesquisa em educação: a observação. Brasília, DF: Plano Editora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2011
  • Revisado
    10 Mar 2012
  • Aceito
    20 Abr 2012
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com