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O conceito de esclarecimento em Horkheimer, Adorno e Freud: apontamentos para um debate

The concept of enlightenment in Horkheimer, Adorno and Freud: notes for a debate

Resumos

O presente artigo analisa o conceito de esclarecimento em Horkheimer, Adorno e Freud. Para tanto, traça um paralelo entre duas das mais representativas obras destes autores no âmbito da crítica cultural. Trata-se, respectivamente, dos textos O Conceito de Esclarecimento e O Futuro de uma Ilusão. Embora uma primeira leitura dos trabalhos citados possa sugerir diferentes perspectivas teóricas, aposta-se aqui na sua complementaridade em defesa de uma utilização mais adequada do pensamento conceitual.

teoria crítica; psicanálise; esclarecimento


This article analyses the concept of enlightenment in Horkheimer, Adorno and Freud. Therefore, it traces a parallel between two of the most representative works of these authors in terms of cultural criticism: The Concept of Enlightenment and The Future of an Illusion, respectively. Although an initial approach might suggest different theoretical perspectives, we emphasize that they can be taken as complementary in defense of a more adequate using of conceptual thought.

critical theory; psychoanalysis; enlightenment


O conceito de esclarecimento em Horkheimer, Adorno e Freud: apontamentos para um debate

The concept of enlightenment in Horkheimer, Adorno and Freud: notes for a debate

Mauricio Rodrigues de Souza

Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil

RESUMO

O presente artigo analisa o conceito de esclarecimento em Horkheimer, Adorno e Freud. Para tanto, traça um paralelo entre duas das mais representativas obras destes autores no âmbito da crítica cultural. Trata-se, respectivamente, dos textos O Conceito de Esclarecimento e O Futuro de uma Ilusão. Embora uma primeira leitura dos trabalhos citados possa sugerir diferentes perspectivas teóricas, aposta-se aqui na sua complementaridade em defesa de uma utilização mais adequada do pensamento conceitual.

Palavras-chave: teoria crítica; psicanálise; esclarecimento.

ABSTRACT

This article analyses the concept of enlightenment in Horkheimer, Adorno and Freud. Therefore, it traces a parallel between two of the most representative works of these authors in terms of cultural criticism: The Concept of Enlightenment and The Future of an Illusion, respectively. Although an initial approach might suggest different theoretical perspectives, we emphasize that they can be taken as complementary in defense of a more adequate using of conceptual thought.

Keywords: critical theory; psychoanalysis; enlightenment.

Este trabalho representa a grata oportunidade de complementar um ciclo de leituras iniciado no ano de 2000, quando da publicação de um artigo que versava sobre a concepção freudiana da religião a partir de O Futuro de uma Ilusão (Souza, 2000). O rico conteúdo do livro estudado, porém, aliado à virulência crítica de Freud (1927/1997) contra o que, no texto em questão, denominou de infantilismo psicológico da humanidade, possibilitou a extensão desta discussão para o conceito de esclarecimento (Aufklärung) na obra do pai da psicanálise. Afinal, para um pensador que tomou para si a tarefa de analisar o Inconsciente, a enfática e otimista crença nos poderes da razão científica contra o ideal religioso, perspectiva que caracteriza O Futuro de uma Ilusão, soa, em princípio, bastante estranha.

Pois bem, o retorno a este tema acontece agora na forma de um debate entre os conceitos de esclarecimento presentes no pensamento de Freud, Horkheimer e Adorno. Para tanto, adota-se como principais referências aqui, além do já citado livro de Freud (1927/1997), o fragmento filosófico de Horkheimer e Adorno denominado O Conceito de Esclarecimento (Horkheimer & Adorno, 1947/1985). Tal escolha se justifica pelo entendimento de que ambos estes trabalhos representam bem o contraponto entre duas propostas de racionalidade que, embora aparentemente divergentes, podem mesmo guardar alguns pontos em comum.

Sobretudo, porém, o retorno a estes dois trabalhos se justifica pela sua persistente atualidade. Afinal, em tempos de guerra "cirúrgica" – onde, curiosamente, um considerável número de mortes é provocado pelo chamado "fogo amigo"1 1 Referência a uma terminologia bastante utilizada em 2003, na Guerra do Iraque, e que dizia respeito à artilharia disparada pelos ingleses e norte-americanos contra os próprios companheiros de front, causando muitas mortes acidentais, seja por erro mecânico ou humano. –, e também onde a rapina imperialista volta à tona com força redobrada, certamente vale sim muito a pena retornar a Freud e aos frankfurtianos.

O cativeiro da razão: apontamentos acerca de O conceito de esclarecimento

Por que o presente parece guardar um retorno à barbárie? Essa é a pergunta-chave que norteia o trabalho de Horkheimer e Adorno (1947/1985). Com efeito, ao apontar os perigosos reflexos dos avanços tecnológicos contemporâneos no campo da subjetividade, os autores configuram aqui uma problemática que não se refere somente à atividade científica, mas ao próprio sentido desta última em um padrão cultural que transforma o pensamento em mercadoria e a linguagem no seu mero encarecimento.

Nesse sentido, Horkheimer e Adorno (1947/1985) desconstroem a ilusão de uma modalidade de espírito conhecedor que, partindo da crença no poder dos dados e probabilidades, acreditava assim estar livre da superstição. Ledo engano, afirmam, já que precisamente tal esforço utilitário e pragmático estaria nos conduzindo de volta à condição que mais causaria horror à atual tecnocracia ocidental e burguesa: a indiferenciação ante a natureza. Eis, portanto, o fundamento último da dialética que se faz presente aqui: visando o que, em uma perspectiva positivista, poder-se-ia chamar de "progresso", mais e mais nos aproximaríamos de um estado natural onde a visão de mundo (Weltanschauung) predominante revelaria os seus traços míticos supostamente arcaicos e esquecidos. Ao mesmo tempo, tal pensamento mítico, desde os seus primórdios (na Odisséia de Homero, por exemplo) já guardaria em si um germe da racionalidade que caracterizaria o atual desencantamento do mundo.

É a partir desse pressuposto que o conceito de esclarecimento passa a ser pensado em todo o seu conteúdo autodestrutivo, caracterizado tanto pela ausência de uma reflexão crítica acerca de si mesmo quanto por esconder o fato de que, paradoxalmente, o progresso social viria significando uma crescente naturalização (reificação) dos homens. Em outros termos, o crescente domínio técnico e o proeminente controle humano sobre a natureza, ao invés de produzirem um mundo mais justo, acentuariam o nível de desigualdade social. Pior ainda – mas, segundo a lógica de mercado, de forma complementar -, o aumento da capacidade de consumo e a melhoria da qualidade de vida da população em termos de bens materiais equivaleria à venda da sua capacidade crítica. Assim, a fortuna material exigiria em contrapartida um preço bastante alto: a derrocada do espírito.

De que maneira, porém, Horkheimer e Adorno (1947/1985) desenvolvem e fundamentam a sua argumentação? Dada a sua indiscutível importância para pensarmos variados fenômenos da contemporaneidade – como, por exemplo, os resquícios de taylorismo agora travestidos sob a legenda de "flexibilidade" no trabalho (Sennett, 2006, 2007) - sem dúvida vale a pena acompanhá-la mais de perto. É o que faremos a partir de agora, iniciando (aliás, como faz o próprio fragmento filosófico produzido pelos autores) com uma afirmativa que, dado o seu tom grave, muito mais do que a mera análise conceitual, aproxima-se mesmo da qualidade profética:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 19).

Após sentirmos o efeito dessas palavras, cabe então perguntar: de que catástrofe se trata? É nas ideias de Francis Bacon que Horkheimer e Adorno (1947/1985) vão buscar traçar os fundamentos da atual razão instrumental, associada por eles à "calamidade triunfal" da sociedade burguesa contemporânea. Assim é que os frankfurtianos, ao analisarem certos aspectos da obra do empirista inglês, evidenciam o quanto já esta última captara bem o sentido da modalidade de ciência que a sucederia, uma vez que ambas (a filosofia de Bacon e a ciência atual) adotam o pressuposto de que o entendimento venceria a superstição, imperando também sobre uma natureza mais e mais desencantada. Dessa maneira, o saber, agora eminentemente técnico, não mais conheceria barreiras impostas nem por mitologias e nem tampouco por conceitos abstratos (leia-se: "ineficazes") de verdade.

Tal transição, porém, significaria uma lastimável perda: a progressiva eliminação, pelo esclarecimento, dos restos da sua própria qualidade autocrítica. Mais ainda, nessa veemente recusa em admitir a qualidade explicativa dos mitos, poder-se-ia ver aqui os elementos de um totalitarismo a toda prova, o qual, caracterizando o componente mítico como simples projeção antropomórfica sobre a natureza, evidenciaria o seu ideal de uma unidade explicativa bastante redutora. Nesse discurso arbitrário de uma sociedade burguesa dominada pelo equivalente, que tornaria a subjetividade algo irrelevante frente à adesão cega e totalitária, o múltiplo se reduziria ao ordenado, a história ao fato e as coisas aos números, agora canonizados.

Entretanto - e aqui Horkheimer e Adorno (1947/1985) expõem uma das ideias principais do seu trabalho -, estes mesmos mitos, que ora seriam vítimas das acusações do esclarecimento, já se constituiriam em produtos deste último. Afinal, para além do simples relato, as proposições míticas também deteriam em si mesmas um amplo caráter explicativo e, importante, normativo, o qual, com o tempo, ter-se-ia reforçado e alcançado a forma de doutrina (esta, por sua vez, celebrada na forma mediada do ritual). É a este último que, dado o seu caráter mediado pelas figuras do feiticeiro e/ou curandeiro, caberia um importante papel: mostrar aos homens que a afirmação perante os deuses significaria total submissão, remetendo-os a um reconhecimento do poder como princípio básico de todas as relações. Nesse sentido, progressivamente unificados por tal razão imperativa: "o deus criador e o espírito ordenador se igualam. A imagem e semelhança divinas do homem consistem na soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando. O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade" (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 24).

Contudo, é importante destacar que, atrelado à progressiva aproximação entre homens e deuses pela via da unificação do seu poder e autoridade, o outro elemento principal que perpassa esta discussão é o do afastamento do homem em relação à natureza. Nesse ponto, as figuras do feiticeiro e do cientista se tornariam bastante emblemáticas, uma vez que, ao se mover no terreno da magia, que opera pela mimese (imitação da realidade), aquele primeiro ainda não teria alcançado uma tal distância ante a natureza somente alcançada pela ciência especulativa aos moldes como é hoje constituída.

E aqui o texto retoma o seu princípio fundamental, pois novamente enfatiza a sonora aproximação entre mito e esclarecimento. Desta feita, pela pretensão totalitária de verdade que a ambos caracterizaria e que unificaria a sua semelhante trajetória de sucessivas empreitadas contra visões de mundo precedentes até que, sob os escombros destas últimas, nada mais restasse a não ser uma única e mera qualidade de crenças. Em última análise, o pretenso esclarecimento perpetuaria um aspecto já há muito presente na mitologia (e efetivado nos rituais): o seu caráter expiatório, uma vez que um novo acontecimento jamais ficaria impune aos olhos dos deuses. Da mesma forma, na ciência contemporânea a rapidez da sucessão dos fatos tornaria obsoletos (e, assim, mortos ou indignos de validade) axiomas há pouco tomados como verdades universais. Portanto:

O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. A insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol, porque todos grandes pensamentos já teriam sido pensados, porque as descobertas possíveis poderiam ser projetadas de antemão, e os homens estariam forçados a assegurar a autoconservação pela adaptação – essa insossa sabedoria reproduz tão-somente a sabedoria fantástica que ela rejeita: a ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz sem cessar o que já era. O que seria diferente é igualado (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 26).

Eis o preço da identidade do espírito: o nivelamento e a perda de si. Porém, como um total nivelamento nunca teria ocorrido de verdade, o esclarecimento (e aqui vale lembrar o seu caráter autoritário mencionado há pouco), teria sempre simpatizado com a coerção social. Neste sentido, para Horkheimer e Adorno (1947/1985) a horda da juventude hitlerista presente à época da Segunda Grande Guerra não seria nenhuma espécie de retorno à barbárie, mas sim o triunfo da igualdade repressiva, aquela presente em um sistema político e econômico que não daria margens à alteridade. Pergunta-se: não seria este um retorno ao natural? E a resposta vem de pronto, mais uma vez reafirmando o princípio dialético que norteia todo o trabalho: "Toda tentativa de romper as imposições da natureza rompendo a natureza, resulta em uma submissão ainda mais profunda às imposições da natureza" (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 27).

Mais adiante, dando prosseguimento a esta lógica - a qual associa ao mesmo tempo a dominação na esfera do conceito à dominação na esfera do real e o esclarecimento ao pensamento mítico -, o texto enfatiza o quanto a dominação da natureza teria tido como repercussão imediata a identificação do sujeito com o pensamento ordenador. Em última instância, tal movimento viria a significar a sujeição do homem a si próprio. Daí, com a crescente divisão e especialização do trabalho, o poder coletivo acabaria coagido e, visando uma dominação efetivamente realizada por poucos, ter-se-ia criado a máscara de uma suposta dominação do indivíduo por muitos. Para Horkheimer e Adorno (1947/1985), porém, o grande paradoxo residiria em uma outra constatação:

Do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fonte da angústia... (pp. 29-30).

Ou seja, Horkheimer e Adorno (1947/1985) sugerem que, exatamente como o pensamento mítico, o esclarecimento agiria como uma espécie de mecanismo de defesa narcísico ante a angústia do homem frente ao desconhecido. Portanto, seria em si mesmo uma ilusão. Neste contexto, a busca de regularidade apareceria como a função normativa do mito, a qual, mais tarde, seria complementada pela ciência em um processo de dominação já iniciado nas categorias propostas pelas próprias tribos ditas primitivas.

Assim, diferentemente da imparcialidade técnica que atribui a si mesmo – rechaçando um conteúdo valorativo que seria característico do idealismo – o esclarecimento permaneceria totalitário como qualquer outro sistema fechado. Não exatamente pelo seu método indutivo, mas pela qualidade previamente definida dos seus resultados. Acrescente-se a isso a máxima redução do conceito, característica desta visão de mundo, e facilmente se pode imaginar os prejuízos ao pensamento daí resultantes, com o sujeito mais e mais se assemelhando ao fantoche, ao autômato e, mais importante, ao temido homem "natural".

Então, em uma impressionante demonstração de fidelidade argumentativa, Horkheimer e Adorno (1947/1985) mais uma vez retomam o princípio de O Conceito de Esclarecimento, apontando como tal domínio científico da natureza voltar-se-ia contra o pretenso sujeito dominador, anulando precisamente a sua qualidade pensante e o transformando em escravo dos fatos. Nessa perspectiva, toda busca do conhecimento em seu sentido social, histórico e humano seria abandonada, pois negaria o valor do dado imediato. O número e o fato passariam a ter a última palavra e, finalmente, a redução axiológica da ciência ao terreno do fato a conduziria ao passado, à predeterminação e a privação do novo, da esperança. Assim, renovar-se-ia a tão temida proximidade para com o mito. Sim, aquele mesmo, tantas vezes classificado pela argumentação matemática como antigo e inadequado.

Com isso, no mundo agora "esclarecido", a mitologia teria invadido a esfera profana e a existência seria agora preenchida com a numinosidade de novos demônios: os números. Neste contexto ideológico, onde a injustiça social apareceria tomada como algo intangível, onde, além da alienação do produto do trabalho realizado pelo corpo, o próprio espírito ver-se-ia coisificado por um padrão de autoconservação e assimilação de modelos de conduta previamente definidos (e o que é pior: pelos outros), a ideia surgiria como que associada ao crime e, por isso mesmo, seria severamente vigiada por uma ilusória superfície de coletividade. Configurar-se-ia aqui o eterno retorno a uma fatalidade conformista, pois o horror do esclarecimento aos atributos míticos teria visado sempre a autoconservação2 2 Aliás, ao analisarem historicamente o contexto da Odisséia de Ulisses , Horkheimer e Adorno (1947/1985) destacam como já em Homero far-se-ia presente a perene exigência da autoconservação, fundamentada no sentido de um "mal-menor". Ou seja, o destino, antes inexorável e predeterminado pelos fantasmas dos demônios e deuses mitológicos, agora o faria sob a sombra do número, restando à razão o papel de mero adereço da aparelhagem econômica. .

A questão é que este eu, agora tão capturado pela civilização, ver-se-ia subitamente tão ou mais perdido e inumano do que antes. Com o pretexto de se atingir um apogeu tecnológico e civilizatório, o prazer teria sido aprisionado pelo trabalho, trabalho este para a dominação da natureza. Paradoxalmente, tal dominação da realidade, que visava o afastamento do terror de um estado mítico primitivo e puramente natural, acabaria por conduzir a humanidade de volta a uma condição semelhante:

Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominação (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p.43).

Daí o grande paradoxo: o progresso da técnica, pela via da divisão do trabalho, forçaria os homens a uma regressão, já que a persistência da dominação em relação à natureza se converteria na repressão do que ainda havia de natural (instintivo) no próprio homem, que teria a sua capacidade de simbolizar cada vez mais diminuída. É o empobrecimento tanto do pensamento quanto da experiência, uma vez que a separação dos dois domínios acabaria por prejudicar a ambos. Finalmente, com a conversão das qualidades em funções, operar-se-ia a regressão do antes humano ao mundo dos anfíbios.

Retomando a frase inicial do texto com a qual abrimos estas considerações, eis aí descrita a "calamidade triunfal" sob o signo da qual resplandeceria a terra agora esclarecida. "Quanto pessimismo, não?", poder-se-ia pensar à primeira vista. Afinal, apesar de tudo, pelo menos o ideal iluminista nos garantia uma ilusão de progresso. Mas agora não nos resta mais nada. Será mesmo? Este é um enigma que tentaremos decifrar ao longo das próximas páginas. Para tanto, um bom auxílio pode ser buscado no diálogo com algumas das ideias de um pensador cuja influência sobre a chamada Escola de Frankfurt não deve ser desprezada. Trata-se de Sigmund Freud.

Religião e racionalidade em Freud: (re)visitando O futuro de uma ilusão

Os dez capítulos que compõem o livro O Futuro de Uma Ilusão foram concebidos no ano de 1927 e apresentam pelo menos dois elementos fundamentais da análise freudiana da cultura: o Complexo de Édipo e o Narcisismo, bons pontos de partida para uma leitura do livro. Assim, debatamos primeiro o narcisismo.

Narciso nas águas do ideal religioso

Freud (1927/1997) inicia o livro expondo a sua preocupação acerca do destino da civilização, preocupação essa associada aos problemas da coerção e da renúncia pulsional. Neste sentido, todos os indivíduos seriam inimigos em potencial da cultura civilizada na medida em que esta lhes imporia sacrifícios individuais para a garantia da manutenção da vida coletiva. Ao mesmo tempo, Freud (1927/1997) considera a necessidade de conceder à humanidade recompensas por este ônus, conferindo à religião - ao lado da arte e da ética -, o caráter de "item mais importante do inventário psíquico de uma civilização" (1927/1997, p. 24).

Um pouco mais adiante, já no início do terceiro capítulo, Freud (1927/1997) coloca uma importante questão que vale a pena acompanhar de perto: em que reside o valor peculiar das ideias religiosas? Para esclarecê-la, dá continuidade à argumentação iniciada anteriormente sobre a constituição da sociedade pela via da renúncia pulsional:

Mas quão ingrato, quão insensato, no fim das contas, é esforçar-se pela abolição da civilização! O que então restaria seria um estado de natureza, muito mais difícil de suportar. É verdade que a natureza não exigiria de nós quaisquer restrições dos instintos, deixar-nos-ia proceder como bem quiséssemos; contudo, ela possui seu próprio método, particularmente eficiente, de nos coibir. Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente, segundo nos parece, e, possivelmente, através das próprias coisas que ocasionaram nossa satisfação. Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização ... pois a principal missão da civilização, sua raison d'être real, é nos defender contra a natureza (Freud, 1927/1997, pp. 25-26).

Freud (1927/1997) sabia que, devido aos avanços científicos e tecnológicos, a sociedade parecia cumprir razoavelmente bem esta tarefa de proteção ante uma natureza ameaçadora. Haveria, porém, causalidades naturais contra as quais pouco ou nada poderíamos fazer. Dentre elas, aquelas representadas por terremotos, maremotos, doenças, decrepitude e morte. Também para o indivíduo em sociedade a vida seria tarefa árdua, dadas as privações e sofrimentos aos quais esse é cotidianamente submetido, quer seja pelos rigores da lei ou pelas imperfeições desta mesma sociedade. Como, então, poderia a humanidade se defender contra tais frustrações? Ao que parece, essas somente comprovam a ideia de que a felicidade não estaria incluída no plano da criação.

Eis-nos de volta, portanto, à religião, configurando-se aqui um dos seus grandes papéis: aquele de consolo. A função do ideal religioso seria, portanto, a criação de um sistema de representações através do qual fosse diminuído todo esse perigo diante da natureza e da própria vida social, justificando o seu resíduo indelével. Além disso, serviria também para garantir a sobrevivência de uma sociedade caracterizada pela renúncia pulsional, aspecto este que, com o decorrer do progresso tecnológico, viria mesmo a tomar grandes proporções.

De volta ao texto de Freud (1927/1997), é mais adiante que se insere a tese de que tal situação de desamparo, bem como a necessidade de aplacar os castigos impostos por forças maiores (pela via da sua transformação em deuses) não seriam novas, mas sim reatualizações dos sentimentos de amor e ódio característicos da infância edipiana:

Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos. Assim, foi natural assemelhar as duas situações ... um homem transforma as forças da natureza não simplesmente em pessoas com que pode associar-se como seus iguais ... mas lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo nisso, como já tentei demonstrar, não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético (Freud, 1927/1997, pp. 28-29).

Se retomarmos a nossa análise, podemos, então, notar claramente a ênfase freudiana no forte componente narcísico do ideal religioso. Parece, portanto, que caminhamos rumo a uma resposta à pergunta inicialmente formulada por Freud (1927/1997) acerca do valor peculiar das ideias religiosas: estas se vinculariam à satisfação narcísica de uma humanidade incapaz de conviver com o desamparo que remonta à sua infância - seja ela filo ou ontogenética - e que, devido a isso, construiu um cabedal de ideias consoladoras tanto no que concerne ao seu relacionamento social quanto às implacáveis forças da natureza e do destino.

Passemos agora à segunda pergunta de Freud (1927/1997) que, embora relativa à primeira, acrescenta a esta o valor ilusório já mencionado anteriormente e conferido ao ideal religioso por este pensador: "Devemos perguntar onde reside a força interior dessas doutrinas e a que devem sua eficácia, independente, como é, do reconhecimento pela razão" (1927/1997, p. 47). Como resposta a esse questionamento, Freud (1927/1997) propõe que voltemos nossa atenção à origem psíquica das ideias religiosas, a qual não remontaria nem à experiência e nem tampouco ao pensamento, mas à realização dos mais antigos e prementes desejos da humanidade.

É neste ponto que, antecipando um pouco nossa próxima categoria de análise, Freud (1927/1997) relaciona Édipo e Narcisismo na sua leitura do ideal religioso. Isso porque o reconhecimento de que o desamparo do homem, advindo da sua infância, perduraria ao longo de sua vida adulta - dado o forte poder da natureza e do destino (Ananké), bem como das mazelas da própria sociedade - feriria o ego da humanidade e faria com que ela tivesse grande necessidade de proteção. Esta já havia sido outrora obtida na figura de um pai terreno. Daí não teria sido difícil assemelhar as duas situações e criar "no céu" a ilusão de que haveria um pai benevolente que mitigaria os perigos da vida, reduzindo ainda a injustiça e a mortalidade.

Para Freud (1927/1997) - e eis aqui uma das mais contundentes argumentações que utiliza na batalha contra o que denomina "O Inimigo" -, a religião não teria conseguido seu intento de harmonizar os homens com o universo e a civilização, muito menos tornado as pessoas mais felizes. Eis porque era chegada a hora da sua derrocada. Mesmo levando em consideração o caráter desejante do ideal religioso, é precisamente o reconhecimento da sua falta de veracidade que leva Freud (1927/1997) a demonstrar o seu descontentamento. Afinal, como poderia a humanidade conceder tanto crédito a afirmações impassíveis de comprovação? Mais ainda, por que sermos crentes neste ponto quando não o somos nas demais situações do cotidiano? São as ressalvas do psicanalista destruidor de ilusões.

A leitura da exposição feita até o momento parece não deixar dúvidas quanto ao fato de que para Freud (1927/1997) as ideias religiosas nada mais seriam que ilusões narcísicas e advindas do desamparo do homem na terra. É, portanto, com este "espírito" que se encerra o capítulo VI de O Futuro de uma Ilusão, conduzindo-nos a uma segunda categoria de análise do livro. Vamos a ela.

Religião e complexo de Édipo

Ao abordar as relações entre o ideal religioso e o Complexo de Édipo, Freud (1927/1997) se remete a Totem e Tabu (Freud, 1912-13/1981) e, para reforçar as suas ideias, retoma resumidamente alguns dos pontos abordados anteriormente, como, por exemplo, a noção de que a religião funcionaria enquanto defesa contra o desamparo. Passa, então, a demonstrar os pontos de aproximação entre o que postulara antes e agora. Ou seja, as relações entre complexo paterno, desamparo e a necessidade que o homem teria de proteção, conferindo maior ênfase a uma compreensão edipiana do fenômeno religioso:

O próprio pai constitui um perigo para a criança. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o admira. As indicações dessa ambivalência na atitude para com o pai estão profundamente impressas em toda religião, tal como foi demonstrado em Totem e Tabu. Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai ... Assim, seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as conseqüências de sua debilidade humana ... É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer - reação que é, exatamente, a formação da religião" (Freud, 1927/1997, p. 39).

Nesse sentido, utilizando como modelo a neurose obsessiva e a relevância da renúncia pulsional, Freud (1927/1997) passa a uma analogia entre o universal e o particular. Ou seja, entre a eventual história pela qual haveria passado a humanidade e a sua reatualização cotidiana na ambiguidade característica da relação da criança com sua família, particularmente com a lei superegoica instituída pela função paterna. Vemos que o autor explicita assim o segundo ponto-chave para a compreensão da sua concepção do fenômeno religioso, que é a relação proposta entre Édipo e religião: "Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai" (Freud, 1927/1997, p. 69). Atentemos, portanto, ao fato de que neste capítulo Freud (1927/1997) dá mais corpo teórico à sua conceituação edipiana da religião, ao mesmo tempo em que a associa ao conceito de narcisismo. Daí o valor de seu poder.

Em última análise, devemos ter claros dois aspectos básicos: a religião constituir-se-ia, segundo o referencial freudiano, em uma das maiores bases morais da civilização. No entanto, este suporte teria como preceitos os mecanismos "patológicos" da ilusão narcísica e do recalque relacionado à culpa primordial defendida em Totem e Tabu (Freud, 1912-13/1981). Freud (1927/1997) demonstra acreditar que, da mesma forma que se impunha na clínica a tarefa de "substituir os efeitos da repressão pelos resultados da operação do intelecto" (Freud, 1927/1997, p. 70), dever-se-ia fazer o mesmo no que se refere à sociedade. Conclui-se daí ser esta a medida terapêutica freudiana para a "neurose obsessiva da humanidade" e, portanto, o fundamento último de O Futuro de uma Ilusão.

O que causa estranheza, no entanto, é presenciar exatamente o grande defensor do Inconsciente confiando no poderio da razão neste processo de mudança. É bem verdade que a formação intelectual do jovem Freud se deu em um contexto cultural bastante marcado pelo neo-positivismo do chamado Círculo de Viena (Gay, 1992; Mezan, 1996; Rocha, 1995; Rouanet, 1993). No entanto, teria esta visão iluminista marcado tão profundamente o seu pensamento de forma a torná-lo um legítimo Aufklärer? Se não, como interpretar a famosa e derradeira frase de O Futuro de uma Ilusão: "Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, poderíamos conseguir em outro lugar"? (Freud, 1927/1997, p. 87).

Sem dúvida é bastante amplo o debate acerca da inserção do pensamento de Freud no quadro do pensamento ocidental. No entanto, tal discussão ultrapassa as pretensões deste estudo, podendo ser levada a cabo em uma outra oportunidade. De qualquer forma, guardemos conosco esta noção de esclarecimento presente em O Futuro de uma Ilusão e com ela passemos à terceira parte deste artigo, dedicada a uma tentativa de diálogo entre as ideias apresentadas até aqui.

Considerações finais

O pensamento de Freud (1927/1997), em uma espécie de otimismo raro em seu autor, mas que caracteriza O Futuro de uma Ilusão, aposta as suas fichas nos poderes da deusa razão, perspectiva esta aparentemente bastante contrária àquela presente em O Conceito de Esclarecimento. Isso porque aquele texto representa uma verdadeira peleja em defesa da transição do mito religioso à razão científica, enfatizando o conteúdo de verdade desta última. Já em O Conceito temos a perspectiva bem menos otimista de que o mito em si já era esclarecido e que, além disso, a razão hodierna, atrelada à lógica cientificista e aos interesses do capital, a cada passo que dá ficaria mais e mais enredada na mitologia. Então, a despeito da reconhecida influência intelectual exercida por Freud sobre os frankfurtianos, a análise dos textos em questão paradoxalmente aponta certo caráter ilusório nas ideias do próprio Freud (1927/1997), que flerta com a certeza nos poderes de uma racionalidade do tipo progressivo.

É claro que, em termos históricos, muito aconteceu nos vinte anos que separaram a publicação dos dois trabalhos debatidos aqui (1927 e 1947 respectivamente) e, nesse sentido, a Segunda Guerra Mundial e a ascensão do nazismo são marcos fundamentais. Se acaso tivesse vivido mais alguns anos e presenciado as atrocidades perpetradas pelo nazismo da era Auschwitz, teria Freud mantido o mesmo espírito alfklärer que se faz presente em O Futuro de uma Ilusão? Afinal, se seguirmos Löwy (1996), em um ensaio que decreta, ao mesmo tempo, a "influência subterrânea" de Walter Benjamin nas reflexões desenvolvidas em O Conceito de Esclarecimento e o pioneirismo deste pensador alemão no estabelecimento das relações entre esclarecimento e totalitarismo, veremos que:

uma certa racionalidade moderna – materializada nas ciências e técnicas, na administração burocrático-racional, na grande indústria capitalista e na tecnologia militar -, que atingiu um altíssimo nível no século XX, não só era perfeitamente compatível com o advento do fascismo, mas podia até mesmo se transformar em formidável instrumento de dominação, e colaborar na realização de seus objetivos. O fascismo leva às suas últimas conseqüências a combinação tipicamente moderna entre progresso técnico e regressão social, racionalidade instrumental e irracionalidade substancial (Löwy, 1996, p. 400).

Ou seria possível pensar de forma conciliatória? Vamos a esta segunda opção. Horkheimer e Adorno (1947/1985) criticam o pensamento conceitual, o qual teria se reificado enquanto ferramenta útil à manutenção do status quo ao propagar a distinção entre homem e natureza e entre sujeito e objeto. Porém, ao apontarem o paradoxo do esclarecimento que, pelo abandono do pensamento (agora coisificado e impotente ante a rex machina), teria abdicado da sua própria realização, os frankfurtianos não propõem um retorno à barbárie ou a um período "primitivo" e pré-simbólico (que, aliás, na sua perspectiva, já estaria ocorrendo precisamente agora). Ou melhor, até que propõem. Porém, como tentativa de resgatar uma abertura simbólico-imaginativa que ora jazeria presa e inerte nas teias de uma visão de mundo que, ela mesma já apropriada, parece atualmente vir sendo chamada por Hollywood por nomes como Matrix3 3 Neste sentido de uma crítica já domesticada e que fornece a ilusão de verdadeira possibilidade de emancipação - vinculada com maestria pelos meios de comunicação -, vale a pena citar as seguintes passagens do trabalho de Duarte: "contrariamente ao que ocorre na era liberal, e de modo semelhante ao que se sucede nos regimes totalitários, a cultura industrializada admite até – naturalmente apenas para fins externos – a indignação com o capitalismo, não se permitindo, no entanto, abdicar da ameaça de castração ... Essa capacidade da indústria cultural de suportar – e até veicular – críticas nominais ao status quo liga-se não apenas a traços psíquicos estimulados nos seus consumidores, mas também às próprias características tecnológicas dos seus meios mais típicos: o cinema, o rádio, as revistas ilustradas" (2002, p. 44). . Eis, portanto, uma espécie de retorno ao mito (também ele fundamentado na sua própria racionalidade) visando salvaguardar a pedra preciosa da razão.

Nesses termos, se o pensamento conceitual conduz à dominação, não é por isso que deve ser destruído. Precisa sim ser revisto, pois a ideia aqui não é aniquilar o sujeito do conhecimento, mas levá-lo a uma autorreflexão acerca dos pré-conceitos nele embutidos, visando aí uma reconciliação com a natureza e com os demais homens. Em outras palavras, localizar em nós mesmos aquilo que projetamos e condenamos nos outros, permanecendo a proposta dialética da utilização da razão como meio e não como um fim em si mesma.

Temos aqui uma clara relação entre crítica do conhecimento e crítica da sociedade onde não se trata de descartar o conceito, mas de criticá-lo, salvando o que pode ser esquecido por si e pela história. Alguns anos mais tarde, tal perspectiva viria a ser retomada e aprimorada por Adorno (1966/2009) na sua Dialética Negativa, um verdadeiro apelo em prol da singularidade, do "não-idêntico", da primazia do objeto frente à objetivação científica, associada ao pensamento totalizante, ao pensar "por ticket"4 4 De maneira correlata, Adorno (1966/2009) ressalta a importância da linguagem para a filosofia. Trata-se de mantê-la enquanto questão ou problema, enfatizando a sua relação com o conceito e eliminando assim a tentação da neutralidade descritiva e, com ela, do pensamento totalizante e alheio à diferença (inclusive aquela expressa pelo próprio ser). Enfim, temos aqui uma dialética que aproxima ao máximo coisa e expressão. Consequentemente, conteúdo e abertura de sentido (Seligmann-Silva, 2003). .

Trata-se de uma realização da filosofia na promessa contida na razão, promessa essa que inclui um para além da filosofia enquanto processo lógico ou cerebral. Mais do que o pensamento em si, importam condutas, estruturas e a implicação desta mesma razão na história e na totalidade das relações sociais. Daí a insistência de Adorno (1966/2009) por uma filosofia auto-reflexiva que seja pautada pela vergonha enquanto coincidência entre autoconhecimento e autocrítica e, ao mesmo tempo, elemento da não identidade, de uma não coincidência com o si mesmo. Com efeito:

Não se trata de explicar alguma coisa, colocando-a numa gaveta conceitual, e sim de fazer com que alguma coisa se explique a sim mesma. Explicação assume, destarte, as conotações de abertura, até de revelação da coisa em questão. Só que tal revelação não acontece imediatamente, mas somente mediante conceitos, em que cada um se apóia no outro e todos apontam para a coisa cercada. Assim, em vez de encaixá-la, o objetivo é fazê-la sair da caixa de identidade, retirá-la do processo usual de identificação (Türcke, 2004, p. 52).

Em última análise, se para Adorno (1966/2009) um grave problema da filosofia reside na sua busca por um encaixe perfeito entre gavetas conceituais e realidade, segundo este mesmo autor um possível antídoto para tal tendência está contido na própria razão – mais particularmente na sua força autorreflexiva e autocrítica. Eis aí um ponto importante: que a razão pense contra a sua própria lei de movimento sem abdicar de si mesma.

Assim, para além daquela calamitosa sentença proferida na abertura do trabalho aqui analisado, podemos perceber o traço otimista dos frankfurtianos, os quais, inclusive, não deixam de prestigiar o pensamento crítico em prol de algum apelo romântico por uma completa eliminação da técnica e da ciência. Com isso, a despeito de todas as mazelas ideológicas, sociais e ecológicas que O Conceito de Esclarecimento conscientemente aponta, ainda permanece viável vislumbrar nele a possibilidade de um homem melhor, desde que aprenda a utilizar sabiamente (isto é, de maneira menos predatória) um dos seus bens mais preciosos: aquele que curiosamente atende pelo nome de razão.

Notas

Recebido em: 27/10/2009

Aceite em: 16/02/2010

Mauricio Rodrigues de Souza é Psicólogo, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Adjunto III na Faculdade de Psicologia e nas Pós-Graduações em Psicologia e Filosofia da Universidade Federal do Pará. Endereço: Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas). Endereço: Rua Augusto Côrrea Nº 01. Bairro do Guamá. Belém/PA, Brasil. CEP 66075-110. Email: mrsouza@ufpa.br

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  • Freud, S. (1981). Totem y tabu. In L. L. Ballesteros y De Torres & J. N. Tognola (Orgs.), Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 2, 4ª ed., pp. 1745-1850). Madrid: Biblioteca Nueva. (Original publicado em 1912-13)
  • Freud, S. (1997). O futuro de uma ilusão (J. O. Abreu, Trad.), Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1927)
  • Gay, P. (1992). Um judeu sem deus (D. Bogomoletz, Trad.), Rio de Janeiro: Imago.
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  • Löwy, M. (1996). Messianismo e revolução. In A. Novaes (Org.), A crise da razão (pp. 305-407). São Paulo: Companhia das Letras.
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  • Rocha, Z. (1995). O deus de Freud: subsídios para a leitura de 'O Futuro de uma Ilusão'. In Z. Rocha, Freud: aproximações (2ª ed., pp. 329-364). Recife: Editora da UFPE.
  • Rouanet, S. P. (1993). Mal-estar na modernidade. In S. P. Rouanet, Mal-estar na modernidade (pp. 96-119). São Paulo: Companhia das Letras.
  • Seligmann-Silva, M. (2003). Adorno São Paulo: Publifolha.
  • Sennet, R. (2006). A cultura do novo capitalismo (C. Marques, Trad.), Rio de Janeiro: Record.
  • Sennet, R. (2007). A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo (M. Santarrita, Trad.). Rio de Janeiro: Record.
  • Souza, M. R. (2000). Freud e a religião: revisitando 'O Futuro de uma Ilusão'. Humanitas, 16(1-2), 37-50.
  • Türcke, C. (2004). Pronto-socorro para Adorno: fragmentos introdutórios à dialética negativa. In A. Zuin, B. Pucci, & N. Ramos-de-Oliveira (Orgs.), Ensaios frankfurtianos (pp. 41-59). São Paulo: Cortez.
  • 1
    Referência a uma terminologia bastante utilizada em 2003, na Guerra do Iraque, e que dizia respeito à artilharia disparada pelos ingleses e norte-americanos contra os próprios companheiros de
    front, causando muitas mortes acidentais, seja por erro mecânico ou humano.
  • 2
    Aliás, ao analisarem historicamente o contexto da
    Odisséia de Ulisses
    , Horkheimer e Adorno (1947/1985) destacam como já em Homero far-se-ia presente a perene exigência da autoconservação, fundamentada no sentido de um "mal-menor". Ou seja, o destino, antes inexorável e predeterminado pelos fantasmas dos demônios e deuses mitológicos, agora o faria sob a sombra do número, restando à razão o papel de mero adereço da aparelhagem econômica.
  • 3
    Neste sentido de uma crítica já domesticada e que fornece a ilusão de verdadeira possibilidade de emancipação - vinculada com maestria pelos meios de comunicação -, vale a pena citar as seguintes passagens do trabalho de Duarte: "contrariamente ao que ocorre na era liberal, e de modo semelhante ao que se sucede nos regimes totalitários, a cultura industrializada admite até – naturalmente apenas para fins externos – a indignação com o capitalismo, não se permitindo, no entanto, abdicar da ameaça de castração ... Essa capacidade da indústria cultural de suportar – e até veicular – críticas nominais ao
    status quo liga-se não apenas a traços psíquicos estimulados nos seus consumidores, mas também às próprias características tecnológicas dos seus meios mais típicos: o cinema, o rádio, as revistas ilustradas" (2002, p. 44).
  • 4
    De maneira correlata, Adorno (1966/2009) ressalta a importância da linguagem para a filosofia. Trata-se de mantê-la enquanto questão ou problema, enfatizando a sua relação com o conceito e eliminando assim a tentação da neutralidade descritiva e, com ela, do pensamento totalizante e alheio à diferença (inclusive aquela expressa pelo próprio ser). Enfim, temos aqui uma dialética que aproxima ao máximo coisa e expressão. Consequentemente, conteúdo e abertura de sentido (Seligmann-Silva, 2003).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      27 Out 2009
    • Aceito
      16 Fev 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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