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Territórios em comum nas políticas públicas: psicologia e assistência social

Terrirories in common in public policy: psychology and social assistance

Territórios em comum nas políticas públicas: psicologia e assistência social

Terrirories in common in public policy: psychology and social assistance

Christina Pinto da Silva Bastos; Marisa Lopes da Rocha

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Quando entram em foco as Políticas Públicas que dão suporte às práticas de assistência, nos deparamos com uma pluralidade de antigas questões e de novos fatores conjunturais, legais e circunstanciais que evidenciam a complexidade e a urgência de análises de um percurso que, certamente, faz em sua história libertações e aprisionamentos.

Políticas Públicas e Assistência Social. Diálogos com as práticas psicológicas (Cruz & Guareschi, 2009), reflete a complexidade e a diversidade de olhares, saberes e práticas nas aproximações que a psicologia faz com o campo da assistência social. Assim encontramos, nos diversos capítulos, a colaboração e as reflexões de diversas disciplinas que contribuem para se pensar criticamente a temática das políticas públicas no país: psicólogos, antropólogos, assistentes sociais e psicanalistas discutem e refletem sobre seus saberes e práticas no cotidiano. Nesse sentido, o livro se constitui em um dispositivo que, além de evidenciar as tensões e polêmicas dos arranjos entre assistência e justiça em nossa realidade, coloca em discussão as implicações das práticas psicológicas no que tange à assistência social à infância e à juventude.

Apesar de os relatos se restringirem à experiência dos profissionais no Rio Grande do Sul, acreditamos que as questões abordadas no livro digam respeito à realidade de todos os profissionais que trabalham no campo da assistência social no Brasil.

O livro mostra as transformações nas práticas da assistência social – que vão desde a caridade religiosa, passando pela filantropia e se constituindo como política pública – através da história brasileira. Temos, então, um panorama que nos permite entender como os diversos tempos históricos convivem na atualidade, tornando o campo de atuação da assistência social tão diverso e polimorfo, comportando práticas assistencialistas e paternalistas e, ao mesmo tempo, práticas críticas e pensadas como enfrentamento político às desigualdades sociais brasileiras. Nos diferentes tempos do Brasil Colônia à República, as ações assistenciais atravessam a caridade e catequese dos primeiros tempos, passando pela racionalidade médica iniciada no Império, até a prevenção em defesa da sociedade advinda dos ventos republicanos. Tempos que se articulam à complexidade do contemporâneo, singularizando conquistas de ordem jurídica e prática, porém que demandam análises frente às ilusões propulsoras de uma legislação que, mesmo advindo das etapas mais democratizantes da sociedade brasileira, características das últimas décadas do século XX, se constituiu entre forças tanto de direitos e afirmações de vida, como de clientelismos e de violência.

Na atualidade, as questões vinculadas às Políticas de Assistência e de inclusão social, passam por dar visibilidade às tecnologias de poder implicadas com o governo da vulnerabilidade, dos perigos e danos que, dedicadas mais do que ao disciplinamento dos corpos, estão implicadas com o controle da transformação da vida pelas políticas de gerenciamento dos riscos.

Os textos levantam como questão fundamental a lógica que estabeleceu uma relação implícita entre as razões econômicas do Estado e as políticas de assistência social. Resulta daí a ambivalência e a fragilidade das práticas que oscilam entre o favor e o direito e afetam tanto os profissionais quanto os usuários dos serviços públicos da área da assistência social. O trato no campo das políticas sociais é atravessado por contradições que se apresentam de forma clara nos textos: garantia constitucional da seguridade/preconceitos que dificultam o acesso a esses direitos e garantias; avanço jurídico/atraso nas práticas; direitos sociais atrelados à regulação trabalhista (entendidos como direitos individuais) / direitos sociais que devem ser garantidos e reivindicados na coletividade; entre outros.

Assim como houve uma transformação das práticas assistenciais, também houve uma transformação dos conceitos que habitam esse campo. Filósofos como Foucault e Deleuze, sociólogos como Bourdieu, Bauman e Castel são apresentados pelos autores no livro para refletir sobre tais transformações e os efeitos que elas produzem nas práticas cotidianas. Os textos compilados apontam para a transformação que o conceito de carência (diretamente relacionado à falta e tão caro aos tempos da caridade) sofreu, dando lugar ao conceito de vulnerabilidade, conceito complexo que envolve aspectos econômico, demográficos e processos sociais. Vulnerabilidade, risco (como perigo ou como probabilidade) e perigo (em perigo ou perigoso), são hoje os conceitos que embasam as práticas da assistência social e que devem ser debatidos criticamente. Conceitos fluidos, múltiplos e complexos possibilitam práticas diversas e contraditórias, como nos advertem os textos do livro.

E como fica o aparato de assistência à infância e à juventude nas novas tendências constituídas na era da desinstitucionalização? Eis uma questão a aprofundar, pois, se os corpos disciplinados da abordagem foucaultiana tinham seu mais importante reduto nas operações de confinamento e hierarquização, congelando o tempo no espaço ritualizado, na medida em que a velocidade e a mobilidade se tornam as principais ferramentas de dominação. Como as práticas de assistência e os profissionais, entre eles o psicólogo, vêm lidando com a contingência e a permanente organização de novos lugares? Como convivem corpos nem tão dóceis e antigas hierarquias religiosas, médicas, jurídicas, novas e velhas instituições em choque no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em que infância, juventude, famílias e profissionais se tensionam e, muitas vezes, se confrontam com o Estado?

Do século XVIII ao XIX ganhava consistência as bases da ordem burguesa entre as atenções aos direitos civis e as tecnologias de disciplinamento com a perspectiva de gerir a vida de forma capilar, canalizando forças para a produção industrial que demandava regulação precisa e adestrada para o trabalho. Na perspectiva de Foucault (1977), o biopoder foi indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, assegurado pelo controle dos corpos em instituições como a escola, a família, o exército, a justiça que conjugavam ampliação das forças e assujeitamento. O adensamento das organizações sociais, entre elas as de assistência à infância e à juventude, trará como questão o controle das atividades ligadas ao modo/tempo de um funcionamento eficiente do que escapa à homogeneização.

Ainda em Foucault (2008), vemos que a resistência é intrínseca ao poder, não havendo um lugar específico de onde surja ou se concentre; pelo contrário, sua emergência é múltipla. Da mesma forma que as relações de poder se organizam e se deslocam por todo o tecido socioinstitucional, as relações de resistência são moleculares, espalhadas e móveis por todos os fios de composição da vida. No contemporâneo, as instituições de confinamento e de adequação dos corpos ao sistema produtivo sofrem mudanças e entram em crise, apontando para um mundo de fluidez e desterritorializações. Trata-se, portanto, de pensar que o poder se efetua na vida e que o foco está em uma luta-política.

Os novos dispositivos de inclusão social montados em todo o país em nível da assistência municipal, estadual e federal, considerados como ágeis e flexíveis pelo poder público, visam à montagem de um sistema de controle eficaz, utilizando instrumentos que propõem a formação de redes sociais de atenção.

Relacionados pelas autoridades com a assistência prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tais mecanismos, uma vez acessados pretendem desencadear ações rápidas para a criança, para o jovem e família em conflito ou em possível conflito com a lei. Consideradas medidas de proteção, palavras como participação, sensibilização, parceria, coletivização e rede aparecem em todos os documentos para tentar dar conta da expressão da complexidade do trabalho de Assistência. Que efeitos têm sido gerados? Quais os paradoxos das práticas e inclusão em um país tão desigual? Que possibilidades e limites abrigam nossas práticas?

Este é o desafio de Políticas Públicas e Assistência Social. Diálogos com as práticas psicológicas que, sem dúvida, de forma corajosa aborda a questão por múltiplas entradas entre elas a sócio-histórica, a ético-política, a psicanalítica, a antropológica, nos abrindo espaços para a construção de arranjos na composição de uma clínica ampliada transdisciplinar.

Resistir, na atualidade, não se restringe ao enfrentamento do poder territorializado por uma dialética de oposição; resistir é interferir na criação de territórios de experiências que possam gerar outros modos de subjetivação.

A necessidade de pensar a prática clínica da psicologia no campo da assistência social é apresentada no livro a partir da colaboração que o pensamento psicanalítico trás. A escuta atenta e diferenciada do psicólogo pode auxiliar os usuários dos serviços de assistência a resgatar a sua história como sujeito e ao mesmo tempo compreender-se em sua coletividade.

Tal é a complexidade do campo que, as práticas psicológicas, necessariamente, precisam ser pensadas e efetuadas a partir da perspectiva de uma clínica ampliada que coloque em ação os dispositivos das redes sociais – conceito também muito complexo -, como nos advertem os autores dos dois últimos capítulos. Sob pena de psicologizar as questões sociais, a prática do psicólogo precisa ser pensada como uma das ações de uma rede assistencial. A grande dificuldade, como observam os autores, é fazer os atores dessa rede se pensarem e agirem como rede.

O que está em jogo, então, é a maneira como são acolhidas e enfrentadas as perturbações criadas nos encontros entre a história, que traz os hábitos naturalizados e saberes instituídos nas leis, os corpos que se afetam no exercício da ação e a capacidade de criar territórios comuns que ativem o pensar, abrindo um tempo para novas decisões. Se toda gestão implica escolhas que vão concretizar ações e percursos, trabalhar é necessariamente repetição do mesmo e do que faz diferença, um dobrar e desdobrar que inventa o trabalho e os sujeitos. Eis o convite de nossos interlocutores.

Recebido em: 29/01/2009

Revisão em: 17/03/2010

Aceite final em: 29/04/2010

Christina Pinto da Silva Bastos é Psicóloga. Doutora em Psicologia Social pela UERJ e professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional do IP/UERJ. Endereço: Rua Dr. Cícero Barreto, 143. Itaipu. Niterói/RJ, Brasil. CEP: 24.342-170. Email: christina_bastos@uol.com.br

Marisa Lopes da Rocha é Psicóloga. Doutora em Psicologia pela PUC/SP e professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. Email: marisalrocha@uol.com.br

  • Cruz, L. R. & Guareschi, N. (Orgs.). (2009). Políticas Públicas e Assistência Social. Diálogos com as práticas psicológicas Petrópolis, RJ: Vozes
  • Deleuze, G. (1992). Conversações Rio de Janeiro: Ed. 34.
  • Foucault, M. (1977). História da Sexualidade I Rio de Janeiro: Graal.
  • Foucault , M. (2008). Segurança, território, população São Paulo: Martins Fontes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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