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SOBRE O MATAR E O MORRER: REFLEXÃO SOBRE A LEI A PARTIR DE CLARICE LISPECTOR E PAUL BEAUCHAMP * * Texto originado da tese de doutorado da autora: ALMEIDA, Marília Murta de. Da ira à esperança: um traçado ético-poético-teológico na obra de Clarice Lispector. Orientador: Nilo Ribeiro Júnior. Data da defesa: 9 dez. 21. Disponível em: https://www.faculdadejesuita.edu.br/teses-teologia-227/da-ira-a-esperanca-um-tracado-etico-poetico-teologico-na-obra-de-clarice-lispector-24032022-161938.

About Killing and Dying: Refl ection on the Law from Clarice Lispector and Paul Beauchamp

RESUMO

Este artigo, inserido no panorama da pesquisa brasileira em teopoética, tem como objetivo uma reflexão sobre o modo como o ser humano se relaciona com a lei como dom de Deus e sobre o amor como o elemento antropológico que favorece o respeito à lei e a realização da justiça. Tal reflexão se fará a partir da obra literária de Clarice Lispector e da reflexão bíblico-teológica de Paul Beauchamp. O objeto primeiro da lei, segundo a escritora, é o impulso destrutivo humano que nos leva à possibilidade de matar. A interdição ao assassinato, portanto, será o fio condutor da reflexão em que as ideias da escritora serão colocadas em diálogo com as análises do teólogo exegeta, de modo a explicitar a relevância teológica da obra clariciana, assim como a pertinência do tema da violência na atualidade.

PALAVRAS-CHAVE
Lei; Amor; Matar; Morrer; Justiça

ABSTRACT

This article, inserted into the context of Brazilian research in theopoetics, aims to reflect about how human beings relate to the law as a gift from God and about love as an anthropological element that furthers the respect for law and the realization of justice. Such reflection will be founded on the literary work of Clarice Lispector and the biblical-theological reflection of Paul Beauchamp. The primary object of the law, according to Lispector, is the destructive, human impulse that leads us to the possibility of killing. The interdiction against murder, therefore, will be the guiding thread of the reflection in which the writer’s ideas will be placed in dialogue with the analysis of the theologian exegete, in order to clarify the theological relevance of Lispector’s work, as well as the relevance of the topic of violence in the present.

KEY-WORDS
Law; Love; Killing; Dying; Justice

Introdução

Onde está o teu irmão Abel?

Não sei, respondeu ele. Sou eu o guarda de meu irmão?

Gn 4,9

Este artigo desenvolve uma reflexão sobre a relação entre o ser humano e a lei como dom de Deus, a partir da leitura da crônica “Mineirinho” e de trechos do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, ambos de Clarice Lispector, assim como de análises bíblico-teológicas de Paul Beauchamp.

Em um primeiro movimento, será explicitado o modo como a problemática se desenvolve nos textos claricianos, tratando de mostrar a sofisticada relação que a autora desenvolve entre a justiça, a lei e o amor. O tema da justiça se desdobra em denúncia e anúncio, na medida que a autora faz uma crítica à justiça tal como tem sido realizada em nossa sociedade e propõe o que seria uma outra justiça, mais capaz de favorecer a construção de um mundo humano baseado no amor e no respeito à lei.

Essas ideias, do modo como Clarice Lispector as desenvolve, evocam uma estrutura teológica de compreensão da Lei como dom de Deus, o que será demonstrado com o apoio da reflexão do exegeta Paul Beauchamp. Assim, será realizado um diálogo entre as ideias da escritora com aquelas do exegeta, de modo a que se perceba o alcance teológico da obra clariciana.

Para além das relações intrínsecas percebidas entre a estrutura compreensiva dos dois autores, cabe aqui ressaltar a pertinência da temática da violência no momento político-social vivido no Brasil atual. A violência banalizada e muitas vezes desejada como forma de justiça faz com que o criminoso seja muitas vezes visto como alguém que deve morrer, para o bem da sociedade. É exatamente contra esse argumento, já presente no Brasil dos anos 1960, que se insurge a reflexão da crônica “Mineirinho”, assim como este artigo.

1 O contexto

Este trabalho situa-se na perspectiva da teopoética, campo da pesquisa teológica que visa a abordagem de obras literárias em busca de novos elementos que venham a incrementar e fazer avançar a própria teologia, como sugere Kuschel (1999, p. 209-210)KUSCHEL, K. Os escritores e as escrituras. São Paulo: Loyola, 1999.. Deste modo, faz-se necessário, antes do início da reflexão propriamente dita, esboçar uma breve notícia do estado da questão aqui desenvolvida, em seu campo próprio.

O campo da teopoética encontra-se em pleno desenvolvimento no meio teológico brasileiro, como se pode ver no artigo de Cantarela (2014)CANTARELA, A. G. “A pesquisa em teopoética no Brasil: pesquisadores e produção bibliográfica”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 36, p. 1228-1251, out./dez. 2014. em que o autor faz um levantamento das pesquisas realizadas até aquele momento. Trata-se, entretanto, de campo instável, pois o alcance da ideia de colocar em diálogo a teologia com o universo da literatura é, além de imenso, multifacetado. Assim, não é possível no âmbito deste artigo aprofundar as questões de fundo, que dizem da especificidade do campo e que implicam também em considerações de ordem metodológica.

No caso específico da fortuna crítica à obra de Clarice Lispector, a despeito da grande quantidade de trabalhos realizados, seja no campo próprio da literatura, seja em perspectiva filosófica, os trabalhos de cunho teológico – ou mesmo de cunho filosófico em torno da questão de Deus – ainda estão em seus inícios, como percebe Defilippo (2015)DEFILIPPO, J. Literatura, religião e Clarice Lispector. Verbo de Minas, Juiz de Fora, v. 16, n. 27, p. 72-92, jan./jul. 2015. Disponível em: https://seer.cesjf.br/index.php/verboDeMinas/issue/view/37/showToc. Acesso em: 9 fev. 2021.
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em levantamento sobre o tema.

Não se pode deixar de citar, entretanto, os trabalhos clássicos de Benedito Nunes (1969NUNES, B. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969.; 1973)NUNES, B. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Quíron, 1973. (Escritores Hoje). e Olga de Sá (1979SÁ, O. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.; 1999)SÁ, O. Clarice Lispector: a travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1999. e, dentre as várias questões tratadas por eles, a reflexão sobre o que chamaram de epifania na obra de Clarice Lispector. A epifania seria um momento culminante na trajetória de um personagem que o leva a uma mudança de percepção devido a uma espécie de abertura da consciência que, muitas vezes, revela-se como a abertura à presença de Deus (NUNES, 1973NUNES, B. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Quíron, 1973. (Escritores Hoje)., p. 123; SÁ, 1979SÁ, O. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979., p. 106). Deste modo, o conceito de epifania serviu por muito tempo como recurso para estudos que visavam perceber a relação de personagens de Clarice Lispector com Deus.

Têm grande relevância também os trabalhos que buscam explicitar a influência judaica no pensamento clariciano, como os de Waldman (1983WALDMAN, B. Clarice Lispector. São Paulo: Brasiliense, 1983.; 2011)WALDMAN, B. Por linhas tortas: o judaísmo em Clarice Lispector. Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, Belo Horizonte, v. 5, n. 8, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/1780. Acesso em: 9 fev. 2021.
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e Moser (2009)MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.. Na atualidade, vê-se o surgimento de trabalhos em meio propriamente teológico, como os de Jordão (2007JORDÃO, T. D. A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector: transtextualidade bíblica. Dissertação de mestrado. UFMG, Belo Horizonte, 2007. 122p. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-6Z5E8N/1/pdf_tania_dias.pdf. Acesso em 22 fev. 2021.
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; 2013)JORDÃO, T. Matriz poética bíblica: um percurso de leitura de A paixão segundo G.H. Arquivo Maaravi: Revista digital de estudos judaicos da UFMG, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p, 154-169, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/14169. Acesso em: 22 fev. 2021.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/maa...
, Mendonça (2014)MENDONÇA, F. O desamparo do verbo: Clarice Lispector e Hilda Hilst – Salmódicas. Tese de doutorado. UFPE, Recife, 2014. 150p. Disponível em https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/13371/1/TESE%20Fernando%20%20de%20Mendon%C3%A7a.pdf. Acesso em: 22 fev. 2021.
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e Bingemer (2012)BINGEMER, M. C. L. Iniciação e paixão: a tensão dialética entre Eros e Agape em dois romances de Clarice Lispector. Teoliterária, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 144-178, 2012. Disponível em: https://ken.pucsp.br/teoliteraria/article/view/22907. Acesso em: 19 fev. 2021.
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. Tais trabalhos, em que pese sua importância no desenvolvimento de uma teopoética dedicada à obra clariciana, não tocam no tema em questão neste artigo, qual seja, a relação entre a Lei como dom de Deus, o amor e o agir ético humano.

No tocante a esta questão específica, encontramos o artigo de Augusto (2011)AUGUSTO, A. M. A. Até que treze tiros nos acordam: uma leitura teopoética de Mineirinho, de Clarice Lispector. Mafuá, Florianópolis, n. 16, 2011. Disponível em: https://mafua.ufsc.br/2011/ate-que-treze-tiros-nos-acordam-uma-leitura-teopoetica-de-mineirinho-de-clarice-lispector/. Acesso em : 22 fev. 2021.
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, em que o autor propõe uma leitura teopoética da crônica “Mineirinho”. Augusto afirma que a referência que Clarice Lispector faz ao que chama de “primeira lei” e que diz “não matarás”, já permite a aproximação ao campo teológico, pela evidente alusão bíblica, como também será feito neste artigo. Segue então problematizando a questão da justiça e a distinção, presente na crônica, entre uma justiça prévia, que seria divina, e a justiça humana. A justiça prévia implicaria em um desdobramento do eu no outro, de modo a permitir a cada um ver-se no outro talvez atingido pela justiça humana e falha. O eu que quer ser o outro é o que se permite ser guiado por uma justiça que não protege apenas a alguns. A análise de Augusto, apesar de muito curta, aponta a riqueza teológica desse também curto texto de Clarice Lispector. E é nesta trilha que este artigo seguirá.

2 Não matarás

Matar e morrer – e, correlativamente, não matar e agir pela vida – são faces radicais da vida do ser humano e de seu encontro/desencontro com Deus. A interdição de matar como lei fundamental da vida humana será aqui analisada a partir da crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector.

A escritora, no único registro em vídeo que nos deixou, a entrevista concedida ao programa “Panorama”, da TV Cultura, em 1º de fevereiro de 1977 (LISPECTOR, 1977LISPECTOR, C. Entrevista para o programa “Panorama”, TV Cultura, 1977. Transcrição com comentário do entrevistador disponível em: https://www.revistabula.com/503-a-ultima-entrevista-de-clarice-lispector/. Acesso em: 10 jun. 2019. Vídeo completo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 10 jun. 2019.
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), escolhe dois escritos como seus preferidos, “O ovo e a galinha” (LISPECTOR, 1998bLISPECTOR, C. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., p. 49-59) e “Mineirinho” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 184-188). A escolha de “Mineirinho” explicita a importância da problemática social em suas preocupações. A crônica “Mineirinho” aborda diretamente um problema concreto de justiça e tece relações dessa realidade concreta com uma reflexão de caráter antropológico-teológico.

A crônica se refere a um episódio real acontecido em 30 de abril de 1962: a morte, pela polícia, do marginal conhecido como Mineirinho1 1 No site da Uol “Rio nos Jornais” encontra-se um apanhado de várias notícias sobre o assassinato de Mineirinho (UOL, 1962). No site do Instituto Moreira Salles, instituição que guarda o acervo de Clarice Lispector, há um texto sobre o contexto da escrita da crônica “Mineirinho” (INSTITUTO, 2013). Em 1979 foi realizado um filme sobre o episódio, chamado “Mineirinho vivo ou morto” (TEIXEIRA, 1967). . A narradora da crônica inicia com a dor vivida diante do acontecido: “É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes.” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 184). A dor a ser procurada em si já se insinua, pois, como dor de todos nós, na medida em que o eu em que se procura essa dor é “um dos representantes de nós”. Nós, que podemos sentir a dor pela morte de um outro, mesmo que bandido, facínora. Nós, que podemos matar. E penso que é em torno da tensão entre nossa possibilidade de matar e a lei que nos obriga a não matar que a crônica se desenvolve. Vejamos um trecho:

No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro

(LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 184-185).

A fórmula utilizada pela narradora, “não matarás”, remete ao texto bíblico, o que indica que a crônica dialoga com tal contexto, o que se repete em muitos outros momentos da obra clariciana. O mandamento “não matarás” é tomado pela narradora como a “primeira lei”, a “maior garantia”, a que nos protege de morrer e de matar. Se a proteção da vida parece ser algo óbvio, o segundo ponto, não tanto. Minha vida é frágil e posso perdê-la, e o mandamento a protege; a lei que proíbe de matar me salva de ser morta pelo outro. Mas o perigo não está só no outro, está em mim também. Posso matar, e a lei, portanto, me protege de matar, não apenas de ser morta. Há, pois, no ser humano, a possibilidade de matar e matar se afigura como tão terrível quanto morrer. Ao dizer “ter matado será a escuridão para mim”, a narração da crônica nos lança no abismo da possibilidade de matar e no horror que poderia se afigurar depois de realizada essa possibilidade. Matar não é um gesto que traz consequências só para seu objeto, para o que foi morto, mas também para seu sujeito. O que mata tem a sua realidade também desfigurada, lançada na escuridão. A escuridão prevista pela narradora como consequência do ato de matar para ela se insinua também para nós.

No segundo parágrafo citado acima percebe-se a ácida crítica social contida na crônica. O texto segue fazendo eco à sequência de tiros disparados em Mineirinho. Na citada entrevista, Clarice Lispector diz expressamente: “Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência.” (LISPECTOR, 1977LISPECTOR, C. Entrevista para o programa “Panorama”, TV Cultura, 1977. Transcrição com comentário do entrevistador disponível em: https://www.revistabula.com/503-a-ultima-entrevista-de-clarice-lispector/. Acesso em: 10 jun. 2019. Vídeo completo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 10 jun. 2019.
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). O fato de que Mineirinho tenha morrido com treze tiros, e não apenas com o único necessário, faz com que sua morte tome outra dimensão para a autora2 2 E quem sabe para nós hoje, em 2021, com o assassinato de Lázaro Barbosa com pelo menos 38 tiros, pela polícia que o perseguia. .

Os dois primeiros tiros são a segurança, o alívio. São ainda confiança na justiça que vela nosso sono, mas a narradora segue: “Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185). A justiça que vela nosso sono segue trabalhando para que tudo em torno de meu sono se mantenha estável. Se for preciso matar, mata. Para que ela siga assim, é preciso que sejamos sonsos, ou seja, que distraidamente não vejamos o que acontece em torno de nós. Na sonsidão do sono que nada percebe além da necessidade de segurança, seguimos contando com essa justiça.

Mas o terceiro tiro a deixa alerta, o quarto desassossega. O sono foi desperto. A justiça para os sonsos, repudiada. O quinto e o sexto tiro a enchem de vergonha, a necessidade de tal justiça a humilha. A percepção desperta não aceita mais a justiça feita à custa da cegueira sonsa. “Nós, os sonsos essenciais” temos a chance de despertar e ver. O sono não é tranquilo, é falso. A salvação é falsa também. Humilhada, desperta, a narradora nos desperta. E é só pelo despertar que se pode perceber o que fica oculto aos sonsos enquanto trabalha a justiça que vela seu sono e que se revelará também falsa.

A narradora passa do alerta ao desassossego e à humilhação. Da humilhação ao horror e ao tremor. O oitavo tiro inicia o horror, o nono e o décimo, o tremor. A revolta pode ter agora algum lugar. “Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece.” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185). O medo de ter a casa estremecida e o desejo de que a casa continue em funcionamento escondem a revolta e o amor e preservam a sonsidão. Mas agora, desperta e horrorizada, a narradora treme, e a casa treme com ela. O amor se anuncia.

No décimo primeiro tiro ela diz o nome de Deus. Deus é invocado, chamado, em espanto. Deus já tinha sido chamado ao texto na referência ao mandamento. É Deus quem instaura a lei que diz “não matarás”. E agora o nome de Deus é explicitamente dito no crescente da experiência relatada no ecoar dos tiros. No décimo segundo tiro ela chama pelo irmão. O Deus que proíbe matar é também o Deus que manda amar, que nos pergunta pelo nosso irmão. O irmão é evocado logo depois do nome de Deus. E assim entendemos melhor o texto quando diz que a revolta e o amor estavam guardados. O amor é o movimento que pode completar a reviravolta. O sonso pode se tornar o amante, e o facínora, o irmão.

Lembremos: “O décimo terceiro tiro me assassina ‒ porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185). Deus e o irmão lançam a narradora na percepção de si como o outro. A distância entre eu e outro se desfaz na experiência do amor. A casa antes guardada em segurança pela justiça que vela o sono dos sonsos essenciais agora pode cair. O texto nos diz: “Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185). Assim, é possível inferir que a casa pode cair porque há debaixo dela o terreno, e no terreno nova casa pode ser construída sobre um novo alicerce. A nova casa não seria mais um local onde me separo do outro e me protejo dele. Seria antes um lugar para o encontro, para a experiência da troca em que me vejo no outro e deixo que ele se veja em mim. Em que vejo o outro em mim e deixo que ele me veja em si. Em que o assassinato de qualquer outro seja sentido como o meu próprio, de modo a ser o único lugar em que o mandamento poderia ser radicalmente seguido. Nessa nova casa não mataríamos porque cada morte seria a nossa própria, e nós nos descobriríamos como o ser capaz de abrir-se ao outro e assim senti-lo como irmão. E mais: desejaríamos essa abertura. A narradora não apenas constata que é o outro, mas também que quer ser o outro. Ao querer ser o outro, aceita e acolhe a abertura, não a vê como risco a si própria. Porque é também o medo de morrer que nos leva à busca de proteção. Deixar ruir a casa construída na certeza da segurança não é um movimento simples. É preciso se lembrar de que embaixo há um terreno. A reviravolta ou transfiguração se faz como um movimento que vai do fechamento do medo e da necessidade de segurança para a abertura em confiança.

Mas a crônica não se contenta em mostrar essa possibilidade transformadora e aponta também para o que não tem mais conserto. O despertar veio tarde demais, Mineirinho já está morto. E como ele, muitos outros. Em nome da segurança, do sono dos sonsos, a justiça mata e viola. E aí erramos. Vejamos mais um trecho:

Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem

(LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185).

De acordo com o trecho acima, erramos, mas temos a chance de no erro nos encontrarmos. A percepção do erro fortifica no agente o movimento já iniciado de transfiguração. Há, deste modo, neste movimento a consequência da autoimplicação. O erro, tornado precioso, pode ser o caminho para a salvação. Vendo o que fiz de um homem, o que tenho feito do outro, vejo a mim mesma e posso aí me transformar. O erro é o assassinato que permiti, o do homem acuado. Vejo agora, com atraso, e peço agora, também com atraso: que não o matem. Mas ele já está morto e essa responsabilidade é da narradora, é minha, é nossa. E não é só a ele que aí mataram, é a nós também, pois o texto diz “que ao homem acuado, que a esse não nos matem” (grifo meu). É a humanidade toda que morre a cada vez que se mata um ser humano. O cumprimento do mandamento é o que pode nos salvar como humanidade.

Mineirinho, o homem acuado, por nós viveu, por nós carregou nossa violência nos permitindo a sonsidão.

Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu

(LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185).

Enquanto eu dormia, ele viveu até o último tiro. A narradora, agora desperta, ama-o, reconhecendo nele esse amor. Ele carregou em si explícita a violência que em nós é furtiva, como o bode expiatório. Ele viveu o mal que nós fingimos não portar, viveu por nós a raiva, enquanto tínhamos calma (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186). Somos sonsos e assim não vemos em nós mesmos a violência que vemos clara e abjeta em Mineirinho. E a sua violência é em sua origem inocente como a de um filho de quem não se tomou conta. E quem não tomou conta de Mineirinho? Todos nós, cada um de nós, cada mão humana que não esteve do seu lado, que não pousou sobre sua cabeça. Cada um de nós que não lhe disse: “também eu”. Cada um de nós que não acolheu e não rechaçou em si a possibilidade de matar. Não basta julgar-se livre da possibilidade de matar, como se ela não nos pertencesse. É preciso ver em nós essa possibilidade e rechaçá-la obedecendo ao mandamento. E quando um não obedece e mata, é preciso saber e dizer: poderia ser eu. Eu sou como você, você é como eu. Não completar esse movimento, julgando-nos essencialmente separados do facínora, é o nosso erro.

A narradora então, na consciência do erro, rejeita mais uma vez essa justiça dos sonsos e deseja “uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185-186). O texto neste ponto sofrerá uma inflexão, abrindo espaço a uma abordagem mais direta do amor, ao dizer que coisa seria essa.

(...) essa coisa que move montanhas e é a mesma que o faz gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição

(LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186).

O amor, portanto, é descrito a partir da imagem do radium. O rádio é um elemento químico altamente radioativo, ou seja, capaz de irradiar-se intensamente. O amor, seguindo essa metáfora, é o que de nós se irradia, inevitavelmente se irradia com força capaz de mover montanhas, gerar paixão por outra pessoa, gerar apoio a quem precisa ou atravessar uma porta estreita de modo a se transformar em algo ameaçador. É o “grão de vida”, núcleo potente gerador de vida que, se maltratado, fere. O “amor pisado” pode se tornar perigoso como um punhal, como aconteceu com Mineirinho, e atingir a letalidade do rádio, elemento cuja radiação pode causar danos graves à vida. E o amor é constitutivo de todos nós, como ter sede ou fome. No homem Mineirinho, capaz de ferir e matar, o amor não está ausente, foi pisado e se transformou em punhal; é, de todo modo, a força que o move.

A justiça ora desejada seria, portanto, o que a narradora chama de “justiça prévia”, a justiça capaz de “ver o homem antes de ele ser um doente do crime” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186). Mas, para isso, tal justiça deveria ser “um pouco mais doida”:

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente

(LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 187).

A justiça prévia seria doida por reconhecer que todos nós – cada um de nós – porta em si a possibilidade da violência e que, portanto, inversamente, em cada criminoso mora também um inocente. Culpa e inocência constituem o ser que somos, de modo que ser culpado ou ser inocente não pode ser um marcador de diferença essencial entre nós. Com isso, não se quer dizer que se deva aceitar o convívio com os criminosos – mais acima mostramos que o texto aponta que a inocência não está nas consequências da violência de Mineirinho – mas que estes continuassem a ser protegidos pela lei que diz não matarás. A inocência nele descoberta acentua a necessidade de que Mineirinho tivesse sido protegido de ser morto, e de que os policiais que o fuzilaram tivessem sido protegidos de matar, de cometer seu crime particular. Porque em todos nós mora o crime guardado, e a lei me protege de realizá-lo. Tal justiça prévia seria aquela que de fato levasse com radicalidade o mandamento até suas últimas consequências. Que, assim fazendo, nos protegesse de morrer e de matar.

O final da crônica adverte: não se trata de romantismo, mas sim de intenso realismo. A narradora não está em busca do “sublime” ou de qualquer refúgio no abstrato. O que ela quer é o “muito mais áspero e mais difícil”, o “terreno” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 187-188). Quer o terreno em cima do qual se possa construir a nova casa, mas quer também uma justiça que perceba e lide com as coisas como elas são, com o horror destrutivo que todos nós carregamos, e não, com a insistente separação entre os bons e os maus, as pessoas de bem e os bandidos, como tanto ouvimos em nossos dias. Separação que permite aos considerados bons agir como os considerados maus, aprovadamente.

A lógica da crônica foi aqui concluída, mas é preciso voltar a um ponto que interessa diretamente à temática deste artigo. Ao se referir à casa segura, ao sono do sonsos ou à justiça que os protege, a narradora fala também da religião e do Deus aí implicado. Enquanto Mineirinho vive por nós a raiva e a violência, enquanto seguimos dormindo em nossa casa segura que ainda está de pé, fabricamos um Deus à medida de nossas necessidades:

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila, e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender

(LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186).

A casa segura e o sono dos sonsos conta com o Deus conveniente, o Deus que abona e aprova a ocultação da maldade. Neste ponto percebe-se a insinuação da crítica mordaz à hipocrisia religiosa. Uma ideia de Deus pode ser usada para trabalhar pela manutenção de um estado de coisas que protege uns em detrimento de outros. Aos que protege, oferece consolo e a tranquilidade do sono tranquilo – os justifica. Aos que abandona, que fiquem entregues à própria sorte. Os “sonsos essenciais” seguem dormindo e também não entendendo3 3 “Não entender” é um tema caro à obra clariciana, mas que aqui aparece em uma nuance diferente. Aqui, o “não entender” é algo a ser ultrapassado e que diz respeito ao cinismo que quer manter as coisas como são, se protegendo no não entendimento; em muitos outros pontos dos escritos claricianos, “não entender” se referirá à impossibilidade humana de penetrar com o entendimento naquilo que é mistério. , como aponta o final do trecho citado.

No seguimento do texto, a narradora adverte que para entender é preciso desorganizar (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186-187). A casa precisará tremer para que algum entendimento se realize. Entendimento que se interpenetrará com a experiência única de quem se deparou com o homem fuzilado por treze tiros. Há em nós alguma coisa que entende e desorganiza e que emudece diante do fuzilado: “o desespero em nós” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186-187). Desespero que enlouquece e nos coloca “feito doidos” diante do homem que, “feito doido”, tinha gostado de uma mulher (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186). É assim, tornada doida, e não mais sonsa (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 187), que a narradora entende e nos convida a entender. É diante do grama de radium – do grão de amor – que podemos entender, sob a iluminação do amor que possibilita uma compreensão outra. Entendimento doido que poderá dar lugar à justiça prévia, que, como vimos, era também um “pouco doida”.

E é também nesse estado, entendido pela narradora como doido, que poderá ter lugar uma nova religiosidade, em que seríamos mais divinos: “Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186). Mais divinos, reconhecendo em nós a bondade, poderíamos nos ver como o pai do irmão, aquele que pode tomar conta do irmão, e não mais apenas crer em um Deus Pai distante de nós: “Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186). Nos implicando em Mineirinho, nos implicando na responsabilidade por sua morte e por seu amor pisado transmutado em punhal, podemos imaginar um Deus aqui também implicado em nós. Um Deus que acolheria Mineirinho, conhecendo nele a força do radium que está em cada um de nós. E assim podemos compreender melhor o início da crônica quando a narradora, após relatar uma conversa com sua cozinheira sobre o caso de Mineirinho, conclui com ela que “ele se salvou e já entrou no céu”, “mais do que muita gente que não matou” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 184). Porque, ao ser morto aprovadamente por uma sociedade sonsa que finge não saber que está ali toda implicada em seus crimes, Mineirinho se tornou um inocente.

Vejamos agora como essas ideias aparecem também em um ponto do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

3 Lóri e o amor

O romance trata da jornada pessoal de aprendizagem vivida pela personagem central Lóri, que culmina na realização do desejado encontro amoroso com Ulisses e que deixa clara a participação do erótico na relação do ser humano com Deus. Tal jornada se revela um grande e lento processo de abertura ao amor que tem seu ponto de virada na abertura de amor àquele que ela chama de o Deus, como está desenvolvido em nossa pesquisa de mestrado (ALMEIDA, 2011ALMEIDA, M. M. Um deus no tempo ou um tempo cheio de deus. O temporal e o eterno em Clarice Lispector, em diálogo com Kierkegaard. São Paulo: Loyola, 2011.). Plenificada pela presença da graça, dom do Deus, Lóri alcança a possibilidade de viver o amor humano.

Pois bem, a certa altura das experiências de Lóri, vemos como a possibilidade de destruição a invade. O romance se desenvolve no acompanhamento da aprendizagem de Lóri que se dá através de encontros esparsos com Ulisses e dos movimentos que ela faz entre um encontro e outro. Em dado momento já avançado da jornada, quando já se sente capaz de abrir-se à beleza do mundo e o amor já se movimenta nela, mas se sente também cansada da espera pelo telefonema de Ulisses, Lóri se vê tomada pela paixão. Vejamos:

Mas o que acontecera é que ela ainda estava tão frágil no mundo que quase desmoronou e quase voltou à estaca zero. E ver que podia perder tudo o que já ganhara, encheu-a de uma ira de possesso contra o Deus. Não tinha coragem de encolerizar-se com Ulisses porque na sua cólera ela o destruiria dentro dela. Mas voltava-se contra o Deus que era indestrutível. Esta é a minha prece de possesso, pensou ela. E estava conhecendo o inferno da paixão pelo mundo, por Ulisses. Não sabia que nome dar ao que a tomara ou ao que, com voracidade, estava tomando senão o de paixão.

O que era aquilo tão violento que a fazia pedir clemência a si mesma? Era a vontade de destruir, como se para destruir tivesse nascido. E o momento de destruição viria ou não, a escolha dependia dela poder ou não se ouvir a si própria. O Deus ouvia, mas ela se ouviria?

A força de destruição ainda se continha e ela não entendia por que vibrava de alegria de ser capaz de tal ira. É que estava vivendo. E não havia perigo de realmente destruir ninguém ou nada porque a piedade era nela tão forte quanto a ira: então ela queria destruir a si mesma que era a fonte daquela paixão.

Não queria pedir ao Deus que a aplacasse, amava tanto o Deus que tinha medo de tocar Nele com o seu pedido, pedido que queimava, sua própria prece era perigosa de tão ardente, e poderia destruir nela a última imagem de Deus, que ainda queria salvar em si.

No entanto, só a Ele poderia pedir que pusesse a mão sobre ela e arriscar-se a queimar a Dele

(LISPECTOR, 1998aLISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a., p. 112).

Com esta passagem, podemos seguir com a reflexão sobre as relações entre o amor e a violência iniciadas em “Mineirinho”. Lá, como vimos, o amor, figurado no grama de radium, é a força propulsora que, se pisado, pode se transformar em arma letal. Aqui, vemos um desenrolar dessa ideia. Com raiva de Deus pela percepção de que sua própria fragilidade poderia fazê-la perder o que já tinha conquistado em termos de abertura e possibilidade de viver com menos dor e mais prazer, sente essa raiva se potencializar a ponto de desejar destruir. O medo – não nomeado, mas implícito na antevisão da perda do já conquistado ‒ aparece, portanto, como gerador da raiva e do consequente desejo de destruição. Mas antes do medo, o amor. O medo é o medo de perder a capacidade de deixar fluir o amor – como em outros momentos é também o medo de exatamente deixar fluir o amor e alcançar a vida mais larga4 4 O que vemos, por exemplo, nesta fala de Ulisses para Lóri: “Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.” (LISPECTOR, 1998a, p. 48). . O amor desejado é também assustador, porque a toma. E a isso que a toma ela chama de paixão, “o inferno da paixão pelo mundo, por Ulisses”. É desejo tão potente que se torna quase insuportável para o ser frágil que ela é ‒ fragilidade que é a de todos nós. Na tensão entre a visão da própria fragilidade e a experiência interna da paixão, tensão vivida como perspectiva de perda do já conquistado, esse fogo de paixão/amor/desejo – o grama de radium – se transforma em potência destrutiva, e Lóri deseja destruir e teme destruir. Recorre então a Deus, tido por ela como indestrutível. A Ele poderia direcionar sua cólera sem risco de destruí-Lo, ainda que perceba o risco de destruir a imagem de Deus em si.

O impulso destrutivo a toma, e ela chega a pensar que para isso vivia e que poderia ou não, a depender de sua própria escolha, chegar ao momento de destruir, de tornar ação no mundo o que o impulso pedia. Até aqui se reconhecer o movimento descrito pela narradora de “Mineirinho”. Entretanto, a narração de Uma aprendizagem alcançará agora um ponto de inflexão. Algo segura em Lóri a possibilidade da destruição. A escolha por agir destrutivamente ou não seria guiada por sua capacidade de se ouvir a si própria ou não; e aqui o texto faz um adendo: “O Deus ouvia, mas ela se ouviria?”. No parágrafo seguinte, o texto esclarece o que deveria ser ouvido e mostra que Lóri foi capaz de se ouvir reconhecendo o que Deus já conhecia: ela se vê tomada de alegria por ser capaz daquela ira. Percebe em si a vida, a cólera é sinal de vida. Pode-se pensar que percebe em si o radium, percebe que a ira tem sua fonte no amor que se irradia impulsionando a vida. E então a alegria se desdobra em piedade: “e não havia perigo de realmente destruir ninguém ou nada porque a piedade era nela tão forte quanto a ira”. Em alegria por ser capaz da ira, Lóri vê a sua outra face: a piedade ou o amor. O amor surge, então, como a força capaz de conter o impulso destrutivo. Podemos ver, agora, o movimento que se completa: o amor, o grama de radium que é o germe mesmo do impulso destrutivo, se reconhecido e acolhido, pode conter e aplacar esse impulso. E Lóri, mesmo entendendo que não seria realmente capaz do ato destrutivo, ainda recorre ao Deus para ajudá-la a aplacar o próprio impulso em si mesma. O Deus, que a ouve, que sabe da presença nela do amor, poderia retirar dela o desejo de destruição, tocar nela o fogo que queima, se arriscando a queimar a própria mão.

O amor, deste modo, aparece como a outra face do desejo destrutivo. A abertura à presença viva do amor é o que pode garantir o cumprimento da lei que diz: não matarás. Vimos também a presença da relação com Deus nessa dinâmica intensa do encontro interior com a possibilidade de destruição, o que coloca tal possibilidade em âmbito teológico. Matar, morrer e amar são atos que chamam pela presença de Deus na obra clariciana.

4 O dom da Lei

Introduzo então o diálogo com a teologia bíblica de Paul Beauchamp. Para a melhor compreensão da reflexão que se segue, vale notar, de início, a lógica seguida por Beauchamp em toda a sua obra no sentido de enfatizar a não ruptura entre os dois testamentos bíblicos. A imagem explorada em seu D’une montagne à l’autre: la loi de Dieu por si só já diz a que vem a obra: do Sinai ao monte do sermão de Jesus no Evangelho de Mateus – de uma montanha à outra – é a mesma lei que se instaura, a lei de Deus.

Importa também salientar que esta reflexão parte da indicação de Clarice Lispector do mandamento não matarás como a “primeira lei” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 184) para um diálogo com as ideias de Beauchamp sobre a Lei de Deus considerada de modo não específico, ou seja, que não se refere apenas à interdição de matar. É, deste modo, a partir da chave oferecida pela crônica “Mineirinho”, que aponta uma ligação entre a primeira lei, o amor e a necessidade de construirmos uma nova justiça, que se estabelece esse diálogo, ainda que nele venhamos a falar da lei em sentido mais amplo.

4.1 Podemos matar

Quando o texto da crônica “Mineirinho” apresenta a ideia de que a lei que diz não matarás nos protege de matar, o leitor se vê lançado a uma ideia incômoda: somos capazes de matar. Nós, seres humanos, precisamos de uma lei que nos impeça de exercer o impulso à destruição.

Tal impulso aparece já no primeiro livro bíblico, no assassinato de Abel por Caim, “o primeiro de todos os violentos” (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 137, tradução nossa). O primeiro sangue derramado sobre a terra nos textos bíblicos faz ver a possibilidade humana de praticar o mal contra o irmão. O impulso de matar seria a face radical da tendência ao mal que se instaura no coração humano como a Lei na pedra, tal como diz Paul Beauchamp, em seu L’un et l’autre testament: essai de lecture, com referência a textos dos profetas, e em especial de Jeremias:

Por um lado, seus [de Jeremias] predecessores viram por trás das faltas a unidade de uma tendência ao mal, e ele [Jeremias] desce mais profundamente ainda ao ver nessa tendência um estado, uma segunda natureza. O pecado grava no coração humano com um estilete o inverso do que a lei grava sobre a pedra ([Jr]17,1). Sua marca é pregada tal como as manchas negras da pantera ([Jr] 13,23). Jeremias não é mais severo que os outros, mas o pecado tal como ele o encontra tem uma história mais longa

(BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 100, tradução nossa).

Sem entrarmos aqui nas considerações históricas sobre o tempo de Jeremias, importa perceber o caráter de permanência que o pecado adquire à medida que a história humana avança. Hoje, tantos séculos à frente do tempo dos profetas, a escrita de Clarice Lispector mais uma vez se vê frente à realidade do mal que nos habita e contra o qual continuamos contando com a mesma lei. Na medida em que aponta o mal que vê, a escrita clariciana é também profética.

Nesse sentido, Beauchamp, no trecho acima, coloca em paralelo – antes em antítese – a gravação da lei na pedra e a do pecado no coração humano. A palavra de Deus permanece entre nós, como que a nos seduzir (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 101), e faz frente à tendência ao pecado, aqui entendido como a prática do mal. Essa realidade se apresenta como um fato constatado pelo texto bíblico, assim como pelo texto de Clarice Lispector. Diante disso, mais do que interpretar, cabe aqui o deparar-se com a possibilidade sempre aberta ao ser humano de, ao ser levado por um impulso que reside em si mesmo, praticar o mal contra o seu irmão. O que a crônica “Mineirinho” acrescenta é a noção de que essa possibilidade, se realizada, significaria a “escuridão” para quem a realizou (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 184). Palavra que soa intensa, quem sabe mais intensa do que o fato mesmo da morte de Mineirinho, palavra profética que, como aquela de Jeremias, alça o mal cometido a uma altura que parece querer dizer mais, como a seduzir para a possibilidade de não realização do impulso que habita o coração humano. Vejamos nas palavras de Beauchamp:

Através do paroxismo da crise, se percebe uma tênue tendência a uma nova promessa: a verdade que revela o mal é mais forte do que o mal, poderá ela não vencê-lo? Vencer será destruí-lo? O conhecimento de uma insuspeitada profundidade do mal leva à compaixão. O povo de Jeremias dói nele, mas este mesmo povo o quer extirpar. Qual é o sentido de uma existência seduzida pela palavra de Deus em meio a um povo mentiroso?

(BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 101, tradução nossa).

A Lei, deste modo, se anuncia como o caminho capaz de afastar desse risco tornado mais forte pelas palavras do profeta ou da escritora. Ou como palavra sedutora a chamar para outra possibilidade, a de não realizar a violência que reside em nós. Essa parece ser a luta humana por excelência: por obediência à palavra que diz não, instaurar uma realidade não violenta. Todavia, o que tanto o texto de “Mineirinho” quanto a reflexão de Beauchamp põem em relevo é que esse caminho não é fácil, pois aqueles que escutam a palavra profética parecem não desejá-la. Os “sonsos essenciais” da crônica clariciana se assemelham ao povo mentiroso que deseja que o profeta desapareça.

Sigamos com Beauchamp para mais um possível desdobramento da ideia de que o assassino seria tomado pela “escuridão”. Em seu D’une montagne à l’autre: la loi de Dieu, no contexto do comentário sobre a atitude de Jesus frente à lei do sábado e sobre sua palavra que questiona o “que é permitido, no dia de sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou matá-la?” (Mc 3,4), Beauchamp afirma que “o dom da vida ou sua salvaguarda carrega consigo ou restaura todos os bens, enquanto o homicida os retira todos, nos dois casos, de uma só vez!” (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 178, tradução nossa). A ideia de escuridão encontra aqui mais um aporte para o diálogo. A escuridão pressentida pela narradora de “Mineirinho” pode ser entendida como a “retirada dos bens”. A ação que não se direciona à prática do bem retira sua possibilidade, de modo que podemos compreender que o atingimento do bem absoluto, alvo da promessa, desaparece do campo de possibilidades se a ação humana não o imita. A alternativa proposta por Jesus visa perceber a escolha feita pelo coração humano e que expressa o desejo que o habita, a qual, em seu termo, deve escolher “a vida ou – desejo que nos é incompreensível e que nos habita – a morte” (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 179, tradução nossa).

É esse ponto de bifurcação que Beauchamp verá explicitado na Lei, como explicitaremos a seguir.

4.2 A lei que nos protege

Vejamos então como a Lei pode ser compreendida como um dom, algo que nos é dado. Uma palavra que, se escutada e seguida, protege o ser humano de seu próprio mal. Sigamos aqui a reflexão de Paul Beauchamp sobre a Lei, para que possamos alargar a ideia clariciana de que a “primeira lei” é para nós uma garantia, ou seja, que parece ser algo de que necessitamos ou até que desejamos. O que aqui é enfatizado é o lugar ocupado por uma lei que vem de fora e diante da qual tem lugar a ação. A especificidade do interdito ao assassinato se coloca em um lugar central dentro de um corpo de leis que pode então ser considerado em seu conjunto. A qualificação de “primeira lei” indica já que não é a única, é antes o centro de um conjunto que a abarca.

Pois bem, a Lei de Deus, segundo Beauchamp, se afigura a quem a recebe em matizes diversos que levam à autoconsideração, como a um espelho em que se vê a si mesmo, de modo que a compreensão da Lei leva permanentemente à compreensão antropológica. À ideia de que a Lei nos é dada, Beauchamp agrega a noção de que a Lei é, para nós, a graça recebida, o bem, de modo que Lei e promessa se juntam numa mesma realidade (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 60). A lei é, assim, ao mesmo tempo o cumprimento da promessa e a promessa de um mundo a se fazer. É promessa já realizada na medida em que nos é oferecida como dom, mas é também promessa a se realizar porque só se torna a lei perfeita quando cumprida (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 166), e seu cumprimento depende de nós, de nossa ação em função dela.

A argumentação de Beauchamp, sempre ancorada no texto bíblico, parte da noção da graça e da promessa para depois introduzir aí a ação humana. A doação da lei a Moisés nos põe diante do decálogo. No livro do Êxodo e no do Deuteronômio vê-se a relação das leis que nos teriam sido doadas, numa repetição que, a Beauchamp, parece revelar que a lei nos quer, na medida em que aparece duas vezes como que nos oferecendo uma segunda chance (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 58) e também indicando sua não explicitude. Se fosse clara ao entendimento, a palavra do profeta não seria depois necessária (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 98-99), assim como não teria relevância a palavra poético-profética da obra clariciana.

A montanha em que a lei é proferida parece ser, pois, inacessível, na medida em que a lei é dada, mas não é necessariamente seguida por aqueles que a recebem. A possibilidade da não obediência está sempre presente para o humano (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 72), e por isso a lei será repetidamente dita, depois de ter sido dada. A repetição chama pela ação, e nesse ponto Beauchamp recorre à Carta de Tiago (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 166) que faz lembrar que a perfeição da lei só se atinge com a ação humana, ou seja, com o seu cumprimento: “Aquele, porém, que se debruçou sobre uma lei perfeita, a lei da liberdade, e a ela se aplicou, não como ouvinte distraído, mas como realizador ativo, este encontrará a felicidade naquilo que realizar” (Tg 1,25). A lei, para ser perfeita, exige, portanto, a ação no seio da liberdade. E esse parece ser também o chamado que o texto de “Mineirinho” nos faz ao apontar a necessidade de que construamos uma justiça que seja mais capaz de cumprir o mandamento, protegendo inclusive o policial de cometer o seu crime “longamente guardado” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 187).

Mas voltemos à noção da lei recebida como dom. Beauchamp retoma essa ideia, ao tratar dos escritos sapienciais, mais uma vez apontando a necessidade de que a palavra da lei seja repetidamente proferida, num excesso que chega à redundância. A palavra da lei não é fixa e por isso se abre à repetição que é também criativa (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 151-152). O texto bíblico se desdobra na repetição da palavra da lei para que ela seja escutada, mas também porque se quer ouvi-la. Beauchamp chega assim à ideia de que a lei é desejada (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 152):

O Deuteronômio não diz que é necessário amar a Lei, mas suscita em relação à Lei uma procura e um desejo, dá à Lei como conteúdo unificado o amor de Deus, e funda seu mandamento sobre o fato de que Deus amou quando elegeu. Essa circularidade se imprime no próprio estilo

(BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 153, tradução nossa).

A circularidade entre o amor e a palavra, o amor e a escuta, o amor e o cumprimento da Lei, reverberará na circularidade da própria palavra dita pelo profeta e pelo sábio, na repetição que visa provocar a nossa escuta. A Lei é, assim, a Palavra, e a Palavra é a Presença, a presença de Deus no mundo (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 152-153). Deus por amor nos dá a lei, e a lei nos pede que por amor a sigamos (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 153). Por amor e na liberdade, o ser humano tem a chance de escutar a palavra divina e segui-la e, assim, dar cumprimento à lei proferida.

Há, deste modo, também uma circularidade percebida nos textos da sabedoria (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 155). A palavra divina, depois de doada, passa a ser proferida pela boca humana. A referida repetição se faz por homens e mulheres que colocam em movimento a palavra recebida (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 153). A Lei passa da pedra às mãos do escriba e depois ao papel, até que possa alcançar o coração do ser humano (BEAUCHAMP, 1976BEAUCHAMP, P. L’un et l’autre testament. Essai de lecture. Paris: Seuil, 1976., p. 154). E é só então que a Lei teria lugar permanente no mundo, na medida em que, inscrita no coração da humanidade, encontraria seu pleno cumprimento. Tal cumprimento poderia ser o pretendido pela justiça “doida” de que a escritora de “Mineirinho” fala, como a dar continuidade à circularidade dos escritos sapienciais (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 187).

4.3 A justiça a ser realizada

Entretanto, seguindo com Clarice Lispector no texto da crônica, vê-se que essa justiça mais doida dependeria, para se realizar, do reconhecimento da existência, no ser humano, inclusive em Mineirinho, de algo que é anterior à possibilidade do assassinato ou, nas palavras de Beauchamp, anterior à “tendência ao mal”. Seria essa a justiça que teria “dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185) em Mineirinho. Essa coisa, como vimos, é potência de amor. É grão de radium que, se maltratado, explode e fere; se bem cuidado, se desdobra em amor (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 186).

Vejamos como seguimos até aqui a teologia bíblica de Paul Beauchamp: parece haver no ser humano uma potência destruidora; em face a isso, recebemos de Deus a Lei como dom, como meio pelo qual nos protegermos da prática do mal, por nós mesmos e pelos outros; essa Lei, porém, necessita de nossa ação no mundo para se realizar; para tanto, fundamos no mundo uma justiça. O que o texto clariciano agora leva a questionar é como fazer a justiça humana, construída no mundo, realmente capaz de dar cumprimento à lei recebida?

Como o texto da crônica mostra, corre-se o risco de fundar uma justiça não justa, aquela que protegeria uns, os “sonsos essenciais”, em detrimento dos outros, os relegados à própria sorte. Seria uma perversão da Lei que, segundo Beauchamp, revela o uso da Lei a serviço do desejo de morte (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 182) que habita o coração humano, como vimos acima. A percepção de tal desejo em si mesmo leva à atitude acusatória em direção ao irmão: apela-se à Lei para acusar o outro e esconder o próprio desejo, evitando, assim, a autocondenação (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 182-183). Os sonsos assim se protegem de ver o mal em si e saem, acusando, à procura do mal fora de si.

Cabe ressaltar que não se trata de um simples movimento de fuga covarde. O desejo de matar é, para o ser humano, insuportável de ser percebido, como diz Beauchamp (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 188) a respeito do desejo de matar Jesus e que se revela na mentira que o acoberta, como nesta passagem: “por que procurais matar-me? A multidão lhe respondeu: ‘Tu estás possuído de um demônio! Quem procura matar-te?’” (Jo 7,19c-20). O recurso ao demônio desvia a multidão do reconhecimento em si do desejo/propósito de matar Jesus. Alegam que Jesus está possuído por um demônio por supor a existência de um desejo que eles se negam a ver. Essa negativa mentirosa diz da dificuldade humana de reconhecer em si o mal. E é exatamente este o convite que o texto de Clarice Lispector faz ao leitor: que possa ver em si a potência destrutiva que Mineirinho realiza na prática, tal como o fez a narradora.

De qualquer modo, esse arremedo de justiça estaria ainda a serviço da tendência ao mal no ser humano. A justiça verdadeira, para cumprir a lei dada, a lei primeira que diz não matarás, teria que se alinhar com essa coisa que reside no humano antes mesmo da lei. E aqui podemos continuar o diálogo com Beauchamp.

O que todos temos em comum e que deve então ser o ponto de partida para a realização do humano em nós é o amor recebido como dom. Beauchamp fala, nesse sentido, do poder de matar que possuímos como um poder desfigurado que provém da corrupção do amor, que é o que originalmente nos habita (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 65). Tal percepção vem inserida na reflexão sobre o que significa, para o ser humano, ser imagem de Deus. Aquilo que nos habita essencialmente é o que em nós é imagem de Deus. Não pode ser essa imagem a potência de matar, mas sim a brandura. O decálogo nos apontaria os possíveis desvios dessa imagem, a cada falta prevista (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 65).

O poder do homem está em sua brandura. O homem desfigurado verte o sangue; ele mata.

O homem recebe de Deus o Amor. Ele o corrompe, se não age mais como agem os filhos para com seu pai e sua mãe, se comete adultério, se usurpa os bens terrestres que simbolizam a singularidade de seu irmão (sua “propriedade” específica)

(BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 65-66, tradução nossa).

É, pois, a desfiguração da imagem divina no ser humano que o lança na potência para o mal que leva à ação destruidora, até o limite do assassinato do irmão. Se a possibilidade da violência e também da vingança (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 141) está presente no ser humano desde o início, o amor, nas formas da brandura e da doçura, está presente desde antes do início, na medida em que reflete a imagem do Deus que cria com brandura (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 141). O ser humano, assim lançado no desequilíbrio que provém dessa dupla vertente, se vê diante da lei, tida aqui por Beauchamp como uma espécie de encruzilhada: “A lei é o lugar onde o homem bifurca. Se permanecemos na imagem, a escolha oferecida é entre observá-la ou transgredi-la” (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 141, tradução nossa).

Diante da lei, resta o ser humano em sua liberdade. Na complexidade da realidade vivida, essa escolha se desdobra na construção de todo um sistema de justiça que pode ainda se alinhar em um ou outro dos polos da escolha. Se a lei, como o amor, é para nós dom, a lei cumprida é a que se revela recepção e aceitação do que foi recebido. É ação feita no mundo que vem a revelar a lei e o amor recebidos. A justiça que, portanto, não se alinhar com o amor que está em nós antes mesmo de nossa existência, porque está no Criador, não cumpre a Lei.

Esse lugar da bifurcação é também para o ser humano o lugar em que é testado, o lugar em que, livre, deve agir. E sua ação será a concretização de sua posição diante do que recebeu como dom, ou seja, o amor e a Lei. Sua ação será boa ou má na medida em que cumprir ou não a Lei doada (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 142). Mas a lei, assim entendida, é um “dique provisório” em face do mal; o dique definitivo é o amor (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 143). Beauchamp introduz nesse ponto o Sermão da Montanha, trazendo à luz a ideia sempre recolocada em sua obra: da Lei antiga à Lei segundo Jesus Cristo, vê-se a passagem de uma montanha à outra que mostra a radicalização da lei antiga com base em seu enraizamento na realidade do amor como nossa característica essencial. Tal ideia pode ser lida como a passagem do não matarás ao simples comando ama. Comentando o trecho de Mt 5,38-42, em que vemos Jesus, em referência à lei que dizia olho por olho e dente por dente, exortar à não resistência diante do homem mau, ao ponto de a ele oferecer a outra face quando tiver batido na primeira, Beauchamp diz:

A lei é, como dissemos, um dique provisório face do mal e Jesus convida em primeiro lugar a não usá-la como barreira contra o homem mau. Ele convida então o discípulo a não colocar em vigor a lei. Passe no teste da lei, diria ele, ultrapassando-a. Mas isso só pode se dar indo ao encontro do sentido do amor do próximo. Oferecer a outra face em qualquer perspectiva que não aquela de tocar o coração do ofensor a partir do coração do ofendido seria uma provocação, um gesto pior do que a vingança. É portanto do amor que se trata

(BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 143, tradução nossa).

É a ação ancorada no amor que pode ultrapassar a lei, de modo a prescindir dela e ainda assim agir de acordo com o que ela previa. No caso, o fim da violência; se a vingança em dado momento foi vista como a opção para pôr fim à ofensa recebida, a não reação com base no amor visa o mesmo fim.

Aqui podemos nos referir também ao trecho do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres citado acima, logo após a reflexão com base na crônica “Mineirinho”. Lóri, diante da vontade de matar que descobriu em si, vê também essa vontade ser contida pelo amor que a habita (LISPECTOR, 1998aLISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a., p. 112). Amor aí também entendido como dique definitivo à violência. Definitivo porque originário em nós e, portanto, anterior ao impulso violento.

Retomando a reflexão de Beauchamp, o vemos ressaltar que a lei vem a nós para que olhemos para o irmão. Para isso, enfatiza a presença do irmão, de modo a que cada um se esquive do risco de, diante da lei, ver apenas a si mesmo e, assim, acusar o irmão (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 166), num movimento em que a culpa é vista sempre fora de si mesmo, no outro, e a própria imagem no espelho reflete antes o juiz do que o que deve ser visto, um ser humano que vive junto com o outro. É vendo meu irmão que posso me ver como um igual a ele, todos filhos, e é como filhos que podemos perceber em nós a presença divina ou, antes, atingir a perfeição, que, para nós, só pode ser a perfeição de ser filho (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 166). A lei, portanto, que chega para todos, tem o poder de nos descentrar de nós mesmos e de lançar nosso olhar para o outro, que, como nós, é também filho.

E aqui vê-se o desdobrar do comentário do autor sobre a Carta de Tiago. Se a lei encontra seu pleno cumprimento na ação livre, isso não se dá em qualquer que seja a ação realizada. A ação que dará cumprimento à lei é aquela que, livre, olha para o irmão e age em função dele. Maldizer do irmão é maldizer da lei, tal como se lê em Tg 4,11: “Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Quem fala mal de um irmão ou julga seu irmão fala mal de uma Lei e julga uma Lei”, e tal julgamento se faz sob o disfarce de exercer a defesa da lei (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 166)5 5 O texto de Beauchamp dá equivocadamente a referência como Tg 3,11, mas a referência correta para o texto bíblico citado é Tg 4,11. . Tal uso da lei explicita a falsidade de uma ação humana que se traveste do bem para exercer o mal, o que se pode chamar de hipocrisia ou, com Clarice Lispector, sonsidão (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 185). Tal ação não estaria de acordo com o que pede Jesus (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 167), porque não estaria ancorada no amor.

Retomando o diálogo com o Sermão da Montanha, Beauchamp propõe que Jesus fala mais uma vez a Lei do Pai, para que se possa enfim – talvez – escutá-la (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 168). A Lei vem de fora, não é algo que surja na interioridade humana, é dom que se recebe e que se deve realizar no mundo, com a concretude dos corpos (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 168). A justiça, deste modo, não pode “repousar no coração”:

A originalidade das palavras de Jesus permanece insubstituível. Suas palavras revestem de imagens ações inimagináveis, como a de usar uma mão para cortar a outra e, em seguida, lançá-la longe. Ele assim torna perceptível que a justiça não é feita para repousar no coração, que ela se difunde incansavelmente para fora. O vigor dos imperativos torna impossível que sejam confundidos com sugestões facultativas; o surrealismo das situações impulsiona em nós o desejo de inventar sem limites. Ao mesmo tempo obrigação e liberdade, “lei de liberdade”, diz Tiago. Não, Jesus não nos diz quem devemos cumprimentar ou não na rua nem o que fazer se nos baterem. Suas hipérboles são, muito mais do que se poderia crer, próximas da linguagem daqueles rabinos de espírito livre, e não percebê-lo denotaria um certo embotamento

(BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 168-169, tradução nossa).

A ação que deverá ser realizada, se realmente livre, não pode estar já prevista nas palavras de Jesus. O que é pedido é, antes, que se retenha a atenção ao que precede qualquer das ações que ele usa como imagem: o amor de onde elas brotam. É assim que aquilo que pode parecer loucura a nossos olhos, como se Jesus pedisse a loucura, se desdobra em uma compreensão que vem dizer que talvez, sim, seja loucura, mas uma loucura outra que leva a um contato direto com aquilo que habita o ser humano desde antes de sua existência: o fogo de Deus, que, como o grão de radium no texto da crônica “Mineirinho”, pode ser por cada um pervertido em ação destruidora ou convertido em amor: “o fogo é amor, o fogo é espírito. O fogo é um, só nós mudamos. Só há uma violência no homem, pervertida ou convertida” (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 170, tradução nossa).

O impulso amoroso tem em nós, portanto, a mesma fonte do ato destrutivo: uma violência primária que nos habita e exige de nós uma escolha. É nossa ação que fará dessa força amor ou perversão. E é essa força que, movida em amor, terá a chance de fundar a justiça mais doida que pede Clarice Lispector (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, C. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992., p. 187), a loucura que pode nos salvar de nossa outra loucura (BEAUCHAMP, 1999BEAUCHAMP, P. D’une montagne à l’autre. La loi de Dieu. Paris: Seuil, 1999., p. 169-170).

Conclusão

Os textos considerados de Clarice Lispector e de Paul Beauchamp apresentam notável semelhança no modo como articulam as ideias a respeito do ser humano e de sua relação com a lei e com Deus. O ser humano aparece como aquele capaz de matar, ou seja, como portador de um impulso destruidor que precisa ser contido. A lei, então, surge como contenção a esse impulso e nos protege de matar e de morrer. Além disso, a lei é compreendida como dom de Deus, como algo que vem de fora, que não é criada pelo ser humano. Contudo, a lei não se mostra suficiente para a contenção definitiva do impulso destruidor; ou antes, não se mostra sempre necessária, na medida que o amor aparece como presença primeira no ser humano que, assim, é compreendido como habitado pelo amor, que também é dom de Deus, desde sua origem. O movimento do amor, então, quando não maltratado na experiência concreta, é a fonte primeira da ação alinhada com a lei. É também o meio pelo qual temos a chance de construir, no mundo, uma justiça que faça valer com radicalidade a lei que nos impede de matar e de morrer. Tal justiça, colocada no futuro ainda não alcançado, nos garantiria o cumprimento da lei que nos foi dada, a partir da plena realização do amor de que somos feitos.

Essa articulação de ideias, naturalmente teológica no caso de Beauchamp, revela uma dinâmica que se pode também reconhecer como teológica em Clarice Lispector. Trata-se, portanto, de uma confluência que mostra, mais do que uma simples coincidência, uma dinâmica de fundo que parece emergir do universo bíblico, o que sugere o enraizamento da poética clariciana neste universo.

Em relação à atualidade da problemática da violência na realidade brasileira, apontada na introdução deste artigo, a articulação aqui desenvolvida pode ser compreendida como o apontar da esperança de que no futuro sejamos capazes de forjar um novo tecido social ancorado na Lei de Deus que nos foi dada e no Amor que nos constitui. Esta parece ser a esperança cristã.

  • 1
    No site da Uol “Rio nos Jornais” encontra-se um apanhado de várias notícias sobre o assassinato de Mineirinho (UOL, 1962UOL. Rio nos Jornais. Notícias sobre a morte de Mineirinho, 1962. Disponível em: https://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj45.htm. Acesso em: 10 jun. 2019.
    https://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj...
    ). No site do Instituto Moreira Salles, instituição que guarda o acervo de Clarice Lispector, há um texto sobre o contexto da escrita da crônica “Mineirinho” (INSTITUTO, 2013INSTITUTO MOREIRA SALLES. Quem foi Mineirinho: bastidores de uma crônica, 2013. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2013/05/31/quem-foi-mineirinho-bastidores-de-uma-cronica/#:~:text=Mineirinho%20tornou%2Dse%20figura%20famosa,de%20um%20s%C3%A9culo%20de%20pris%C3%A3o. Acesso em: 12 abr. 2022.
    https://site.claricelispector.ims.com.br...
    ). Em 1979 foi realizado um filme sobre o episódio, chamado “Mineirinho vivo ou morto” (TEIXEIRA, 1967TEIXEIRA, A. Mineirinho vivo ou morto. Criciúma: Canal Dj Beto Mix Criciúma, sem data. Youtube (1h30min45seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V0qA9OQXcNc. Acesso em: 12 abr. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=V0qA9OQX...
    ).
  • 2
    E quem sabe para nós hoje, em 2021, com o assassinato de Lázaro Barbosa com pelo menos 38 tiros, pela polícia que o perseguia.
  • 3
    “Não entender” é um tema caro à obra clariciana, mas que aqui aparece em uma nuance diferente. Aqui, o “não entender” é algo a ser ultrapassado e que diz respeito ao cinismo que quer manter as coisas como são, se protegendo no não entendimento; em muitos outros pontos dos escritos claricianos, “não entender” se referirá à impossibilidade humana de penetrar com o entendimento naquilo que é mistério.
  • 4
    O que vemos, por exemplo, nesta fala de Ulisses para Lóri: “Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.” (LISPECTOR, 1998aLISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a., p. 48).
  • 5
    O texto de Beauchamp dá equivocadamente a referência como Tg 3,11, mas a referência correta para o texto bíblico citado é Tg 4,11.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2021
  • Aceito
    13 Abr 2022
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