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Onde falta melhorar a pesquisa em psicologia no Brasil sob a ótica de Carolina Martuscelli Bori

Where psychology research in Brazil needs to be improved under Carolina Martuscelli Bori point of view

Onde falta melhorar a pesquisa em psicologia no Brasil sob a ótica de Carolina Martuscelli Bori

Where psychology research in Brazil needs to be improved under Carolina Martuscelli Bori point of view

Sílvio Paulo Botomé1 1 Endereço: Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Psicologia, Campus Universitário Trindade, Florianopolis, SC, Brasil 88040-900. Caixa-Postal: 476. E-mail: botome@ufsc.br

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

É preciso considerar que a pesquisa neste país se faz em um contexto típico de Terceiro Mundo. As reivindicações da comunidade científica nacional têm enfatizado a necessidade de participar nas decisões que definem e orientam a atividade de pesquisa. Escolher a atividade de pesquisa e seu objeto alvo é responsabilidade coletiva dos cientistas do País. O cientista precisa aprender a falar para as pessoas dos mais diferentes segmentos da população. A Universidade é a agência onde essas condições podem ocorrer e é uma instituição que necessita ser defendida, retomada e reorientada para seu papel maior: produzir o conhecimento que o Brasil necessita e torná-lo acessível – pela divulgação e pelo seu uso no ensino – à população do País. Política científica em Psicologia não se fará sem a participação dos cientistas e das universidades. Instrumentos, atividades e instituições necessitam ser apropriados à proposta de participação coletiva dos cientistas de forma que a pesquisa em Psicologia seja um empreendimento real, significativo, coletivo e emancipador.

Palavras-chave: política científica em psicologia; organização política em ciência; política científica; função social da psicologia como ciência.

SUMMARY

It is necessary to consider that research in this country is made under a typical context of the Third World. The claims of the national scientific community have emphasized the need to participate in the decisions that define and guide the research activity. To choose the research activity and its main object is a collective responsibility of the scientists of this Country. The scientist needs to learn how to speak with people from the most different segments of the population. The University is the agency where these conditions may occur and it is an institution that needs to be defended, resumed and reoriented to its major role: to produce the knowledge that Brazil needs and turn it accessible – by disclosure and by its use in education – to the population of the Country. Scientific policy in Psychology will not be made without the participation of the scientists and the universities. Instruments, activities and institutions need to be fitted to the proposal of collective participation of the scientists so that the research in Psychology be a real, significant, collective and emancipating enterprise.

Key words: scientific policy in psychology; political organization in science; scientific policy; social function of psychology as a science.

Quinze anos antes de terminar o século XX, a professora Carolina Martuscelli Bori participou de um debate com outros dois cientistas da Psicologia na Universidade de Brasília (UnB) como parte da mesa redonda sobre "A pesquisa no Brasil; problemas e soluções", em um seminário acadêmico ocorrido em outubro de 1984. O debate iniciado pelos demais expositores enfatizou dimensões técnicas, destacando os tipos de pesquisa, os problemas metodológicos, as dificuldades para aumentar o volume de pesquisa ou para sua inserção no ensino regular como uma parcela importante e constante na formação de novos psicólogos. Pela formação dos participantes, o debate esteve focalizado no que acontecia mais centradamente na formação em Análise Experimental do Comportamento. À medida que as exposições e o debate prosseguiam, ainda relativamente às exposições dos dois participantes que o iniciaram, professora Carolina ficava nitidamente inquieta e fazia anotações em uma folha de papel. O que acontecia no debate parecia provocá-la. Quando falou, suas palavras constituíram uma torrencial explanação sobre a falta de um tipo de dimensão nas discussões sobre "fazer Ciência em Psicologia, especificamente em Análise do Comportamento". O que professora Carolina falou foi surpreendente e emocionou a platéia pelo tom, pela fundamentação, pela precisão de raciocínio, pela natureza das idéias e pelo envolvimento apaixonado com que apresentou as idéias sobre "o que falta fazer em Ciência na área da Psicologia no Brasil".

Por acaso, eu estava a menos de dois metros de professora Carolina Bori e acompanhei não só sua exposição, anotando tudo o que podia, como observei que uma estudante de Psicologia da UnB estava, com anuência de professora Carolina, gravando o que era dito. Alguns meses depois recebi uma cópia da fita. Fiquei emocionado com o que tinha nas mãos e ouvi aquela fita muitas vezes. Um aluno de mestrado transcreveu a gravação em um texto inicial e me possibilitou conferir a audição da fita com a leitura do texto também muitas vezes.

Pedi a autorização de professora Carolina para editar o texto e, com sua anuência, trabalhei nisso algum tempo. Apresentei-o à professora Carolina que, depois de examiná-lo, disse ter gostado da edição. Professora Carolina ficou de pensar em qual periódico seria melhor publicá-lo, uma vez que o considerava de uma amplitude que não era apropriada para alguns tipos de periódicos e com aspectos que, por vários motivos, seriam considerados controvertidos em relação ao título que o trabalho recebera.

O tempo passou. Houve muitas tarefas e desencontros para resolver o acabamento da edição e o encaminhamento para publicação. O texto terminou sendo conhecido apenas por mim e por professora Carolina, com a sempre discreta participação de Deisy das Graças de Souza que acompanhou esse processo como amiga sempre próxima à professora Carolina e como uma colega de trabalho com quem repartimos muito as experiências de trabalho durante vários anos na Universidade Federal de São Carlos nos quais convivemos com professora Carolina.

Professora Carolina faleceu sem termos encaminhado a publicação desse texto, como estávamos planejando e combinando e, duas décadas depois, fico constrangido em tê-lo comigo, sem partilhar a riqueza que considero nele existente. Por outro lado, não me sinto à vontade em torná-lo público sem contextualizá-lo e esclarecer alguns aspectos da situação e da época em que ele foi apresentado pela primeira vez a uma audiência de estudantes, pesquisadores e professores na Universidade de Brasília, durante um seminário. A decisão sobre o que fazer foi auxiliada pela sugestão de uma colega: "escreva um texto apresentando a exposição de professora Carolina, tornando acessível as idéias que ela apresentou e examinou".

Este texto é uma tentativa de fazer isso, com todos os riscos e defeitos que possam acarretar, diante do fato de ser um ouvinte, um intérprete, um "arrumador" de expressões orais para um texto escrito e um organizador de um texto para ser publicado, com o agravante de não ser o autor das idéias expressas no texto. O único atenuante que posso utilizar é ter examinado tudo isso ao longo de vários anos com professora Carolina e ter discutido e examinado as idéias do texto em um total que passou de duas centenas de horas. Mesmo assim, assumo que os defeitos do texto tenham mais a ver com minhas limitações como escritor do que com as idéias sempre fortes e orientadoras de professora Carolina Martuscelli Bori. É essa convicção que me faz apresentar-lhes esse texto, como uma tentativa, talvez pobre demais para as expectativas de vocês, leitores, em relação ao que está escrito por um intermediário, apresentador e comentador de um texto dessa magnífica pessoa que foi e será sempre a nossa eterna professora Carolina.

O mesmo assunto permanece em debate: o que professora Carolina provocava na época ressurge, mais de 20 anos depois, com, por exemplo, as discussões promovidas na Reunião Anual da ABPMC de 2006, também em Brasília, sobre a representação, participação e organização dos analistas de comportamento na Psicologia e no Brasil. Duas décadas depois, as idéias e o exame de professora Carolina Martuscelli Bori parecem muito atuais. É o que faz valer a pena ler este texto e me faz apresentá-lo dessa forma à revista Psicologia: Teoria e Pesquisa para trazer a contribuição de professora Carolina para o que permanece ou prossegue. Tenho a expectativa, talvez ingênua, de que o exame de 2007 possa ser enriquecido com o exame que tento lhes apresentar nessas próximas páginas. Este texto é, antes de tudo, uma homenagem e um reconhecimento em prolongar nossa conversa com ela, mesmo depois que ela já não nos pode responder como o fazia, com vigor, com rapidez, sem meias palavras com uma torrente que nos inundava de questões, perspectivas, possibilidades, desafios...

O texto a seguir apresenta o que professora Carolina expôs, com as arrumações textuais que me atrevi a fazer: arrumar pontuação, tirar repetições de termos, tirar referências específicas a pessoas e instituições, mudar expressões próprias de uma exposição oral pouco úteis para um texto e decisões sobre estrutura, início e fim de cada parágrafo. Sempre, obviamente, com o cuidado de não alterar o que eram as palavras de professora Carolina. Para auxiliar e destacar aspectos importantes, foi colocada, à esquerda de cada parágrafo da exposição de professora Carolina, uma frase que constitui, ao nosso ver, o núcleo do parágrafo à direita dessas frases.

Esperamos estar partilhando mais um pouco da riqueza que nossa sempre querida professora Carolina Martuscelli Bori sabia nos presentear com a força e a coragem de uma guerreira e a simplicidade e delicadeza de um anjo. Provavelmente, foi assim que muitos de nós a conhecemos e é como ela permanecerá em nossas lembranças.

Um desafio perene: integrar pesquisa científica, Psicologia e o que caracteriza o Brasil.

Pesquisa, Psicologia e Brasil. Por qual aspecto ou critério relacionar a multiplicidade de variáveis que cada uma dessas expressões abrange? As infinitas possibilidades de fazê-lo não autorizam adiar as exigências de responsabilidade e o enfrentamento do desafio do momento: é necessário aumentar a percepção sobre os problemas que existem nas relações entre o que cada uma dessas três palavras abrange e significa.

É urgente avaliar no que, em que grau de abrangência ou de que forma pode ser útil examinar a pesquisa em Psicologia no Brasil.

Discutir sobre a pesquisa no Brasil é um empreendimento louvável. Isso já vem ocorrendo há algum tempo e em várias reuniões, encontros e congressos científicos. A manutenção do debate sobre esse tema é muito importante: é necessário haver uma grande familiaridade dos pesquisadores em relação ao que está acontecendo com o "pesquisador" no País. Essa discussão, porém, não pode ser feita de qualquer maneira, ou corre o risco de tornar-se "esquizofrênica" e irreal. Discutir em termos gerais não resolve nada ou é muito pouco. Conversar sobre aspectos específicos pode dar a impressão de que tudo está bem, de que é suficiente resolver uns poucos problemas e a pesquisa no País irá de "vento em popa". Afinal, existem muitos pesquisadores, há várias agências de fomento, existem recursos (embora possam aumentar) e as regras para participar de tudo isso já estão disponíveis, mesmo que ainda possam ser mais acessíveis e melhores. A necessidade do debate e as duas possibilidades de exame trazem a urgência de considerar uma questão: no que, em que grau de abrangência ou de que forma pode ser útil examinar a "pesquisa em Psicologia no Brasil"?

Os pesquisadores da Psicologia estão perdendo a possibilidade de acompanhar os debates e decisões pela ausência no que define os destinos e características da Ciência no País.

Talvez, mais do que discutir a pesquisa em Psicologia nas suas especificidades, seja importante examinar os problemas da pesquisa no Brasil. Discutir o "pesquisar em Psicologia" necessita ser precedido pelo exame das condições do "pesquisar" e para o trabalho de fazê-lo no País. Os aspectos envolvidos são numerosos em um e outro caso. Mesmo assim, parece valer a pena examinar algumas considerações sobre a participação da Psicologia nas discussões sobre a Ciência no Brasil. Talvez nessas discussões não esteja existindo a contribuição da Psicologia, perdendo, os pesquisadores dessa área, a possibilidade de acompanhar os debates e decisões, deixando de participar, com sua presença e sua voz, no que define os destinos e características da Ciência no País.

Só é possível equacionar "soluções" que sejam apropriadas ao contexto de desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia desta sociedade e apropriadas ao desenvolvimento do País.

Quando o problema da pesquisa no Brasil é objeto de exame, o primeiro aspecto a considerar é que não é apropriado fazer esse exame sem localizá-lo no contexto de ser o Brasil um país do Terceiro Mundo. Esse exame, até 1970, vinha sendo feito por grupos pequenos e rarefeitos. Desde aquele ano, porém, isso foi se tornando cada vez mais voz corrente entre os pesquisadores brasileiros. Nesse sentido, a perspectiva de exame do problema precisa ser uma perspectiva brasileira. Só é possível equacionar "soluções" que sejam apropriadas ao contexto do desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia deste meio. Da Ciência e Tecnologia apropriadas ao desenvolvimento deste País.

Antes de haver uma separação para discutir as condições da pesquisa em Psicologia, devemos dizer o que precisa ser feito de pesquisa em Psicologia no Brasil

É preciso descobrir ou aprender, desde logo, que este País tem uma condição diferente dos países já consagrados como produtores de Ciência e Tecnologia. E isso exige que, antes de haver uma separação para discutir as condições da pesquisa em Psicologia, devemos dizer o que precisa ser feito de pesquisa em Psicologia no Brasil. Para poder dizer isso, porém, é necessário ter um pouco mais claro o que está sendo reivindicado pela comunidade científica deste País. É uma comunidade que vive angustiada pelos problemas típicos do Terceiro Mundo. Nunca essa angústia foi tão perceptível como nos últimos anos. Nunca esteve tão presente no meio científico como está hoje. Ela vai se avolumando de uma forma tal que, se não for feita alguma coisa dentro do campo da Ciência e da Tecnologia no país, o Brasil – e cada um de nós! – vai perder... e por muitas dezenas de anos.

A grande quantidade do que precisa ser pesquisado conta com uma pequena quantidade de pessoas a pesquisar.

Atualmente ninguém mais tem dúvidas de que a pesquisa científica está relacionada com desenvolvimento social. Considerando que o Brasil é um país do Terceiro Mundo, com grande quantidade de problemas e enormes dificuldades sociais, é muito simples a conclusão de que tem muito a pesquisar para resolver esses problemas e dificuldades. A grande quantidade do que precisa ser pesquisado, porém, conta com uma pequena – muito pequena! – quantidade de pessoas a pesquisar. Isso traz certas implicações para os pesquisadores, coletivamente, e para cada um, individualmente.

Escolher a atividade de pesquisar e escolher o objeto-alvo dessa atividade é uma responsabilidade coletiva de todos os cientistas do País.

Nesse contexto, especificamente, o que pesquisar não é mais uma opção que o indivíduo faz porque acha que é distinto dos demais, diferente dos outros ou porque vai ter os seus prazeres, satisfações e sucessos particulares. É uma atividade que tem um compromisso muito sério; que tem uma responsabilidade social muito grande. E se nós, cientistas, queremos realmente fazer alguma coisa que sirva à Ciência e à população deste País, temos que assumir esse compromisso e essa responsabilidade. Um compromisso e uma responsabilidade de toda a comunidade científica. Escolher a atividade de pesquisar e escolher o objeto-alvo dessa atividade são compromisso e responsabilidade coletiva de todos os cientistas do País.

As opções pela pesquisa e as escolhas do que pesquisar devem ser feitas como uma opção de serviço.E devem ocorrer assim porque a população precisa de ajuda.

As opções pela pesquisa e as escolhas do que pesquisar não são feitas, ou não devem ser feitas, porque os cientistas são diferentes do resto da população. Elas devem ser realizadas como uma opção de serviço. Elas devem ocorrer assim porque a população precisa de ajuda. Inclusive, porque a população precisa ser auxiliada para poder acompanhar os cientistas e estar junto com eles. E essa é uma tarefa enorme e desafiadora que o cientista tem neste País: ele não pode continuar a falar sozinho ou para seus pares, ele precisa aprender a falar também para as pessoas dos mais diferentes segmentos da população.

Ainda falta a noção de que Ciência e Tecnologia são dois dos ingredientes que poderão ajudar a superar muitos problemas de desenvolvimento do País.

Não podemos mais considerar que, fazendo reuniões científicas, estamos progredindo em Ciência. Talvez estejamos em parte, uma vez que esse é um dos aspectos ou momentos do trabalho científico, mas não estamos fazendo ainda o que é necessário e o que precisamos realizar para fazer Ciência no Brasil. Falta ainda, para o País e para grande parte dos pesquisadores, uma percepção fundamental: é imprescindível que aqueles que já se dedicam à pesquisa, junto com os que procuram encontrar oportunidades e condições para pesquisar, tenham claro e sempre presente que Ciência e Tecnologia são dois dos ingredientes que poderão ajudar a superar muitos problemas de desenvolvimento do País.

Para fazer Ciência também é necessário que os cientistas do País dominem o conhecimento existente no mundo.

Nessa perspectiva, para conceber e trabalhar com Ciência e Tecnologia, os cientistas brasileiros precisam "dominar o conhecimento" existente. E esse é um desafio para cada cientista: aprender o que existe já conhecido (e conhecido da melhor forma!). O conhecimento existente no mundo, pelo menos na área em que cada cientista atua e em áreas afins, é fundamental para o desenvolvimento como Ciência e como sociedade. Não apenas o conhecimento científico como também o conhecimento produzido por outros processos (ou maneiras) de conhecer. Todos são contribuições que precisam ser conhecidas. Sem "dominar o conhecimento" existente, não superaremos as condições em que vivemos. E isso constitui um desafio e uma responsabilidade muito grandes para quem quer ser cientista neste País: estudar sempre, muito e de tudo que possa relacionar-se com a área em que trabalha.

O conhecimento não se reduz a uma "prateleira de supermercado", nem às contribuições de cada cientista, ao longo da história, as "mercadorias" a escolher ou descartar sem exame e avaliação cuidadosos.

A disposição dos alunos, por exemplo, principalmente daqueles que começam a estudar Psicologia, não pode ser a de que "esperam isto", "esperam aquilo", "não gostam disso", "não querem aquilo". O aluno precisa ser uma pessoa com participação ativa, com a visão de que ele precisa dominar o conhecimento existente porque é disso que depende o desenvolvimento do País onde ele está. É uma finalidade que não tem nada do egoísmo de interesses ou preferências pessoais e, sim, – é preciso insistir – muito de desafio e responsabilidade social. O conhecimento não se reduz a uma "prateleira de supermercado", nem às contribuições de cada cientista ao longo da história, a "mercadorias" para escolher ou descartar sem exame e avaliação cuidadosos.

Como cientistas, precisamos dominar o conhecimento existente, independentemente de onde esteja sendo produzido ou de qual seja sua origem.

"Dominar" o conhecimento existente é uma finalidade importante também para os cientistas porque não somos os únicos a produzir o conhecimento – em muitos casos nem sequer produzimos algum conhecimento ou não produzimos a quantidade da qual precisamos. Até para superar as nossas limitações de produção e para termos uma base e localização na empresa social que representa a atividade científica, precisamos "dominar o conhecimento" existente, independentemente de onde estiver sendo produzido ou de qual seja sua origem.

A grande tarefa da Universidade é a de produzir o conhecimento e torná-lo acessível a todos; por isso, debater a pesquisa obriga a debater a Universidade.

"Dominar" o conhecimento existente (alguns diriam "apropriar-se do conhecimento") e tornar esse conhecimento acessível à sociedade são tarefas que já têm, inclusive, uma agência definida para realizá-la: a Universidade. E essa pode ser a grande tarefa dessa instituição. É por isso que discutir a pesquisa em Psicologia obriga a discutir a Universidade. Ela é o lugar – e, em certo sentido, a "frestinha" que existe – para fazer pesquisa. E não podemos perder esse lugar, essa oportunidade, essa "frestinha" que ainda resta para desenvolver o conhecimento. Mesmo nos países desenvolvidos, onde as empresas fazem pesquisa e onde existem muitos institutos de pesquisa, a grande parte da produção de conhecimento é feita nas universidades ou com a colaboração e participação delas.

Os procedimentos pelos quais fazemos a Universidade são parte dos problemas de dependência dos países do Terceiro Mundo. É importante examinar a Universidade como parte do problema da construção da Ciência por que é nela que se realiza a limitada pesquisa que existe e onde são formados os cientistas do País.

Quando os cientistas reivindicam recursos, é importante lembrar que o dinheiro reivindicado para fazer Ciência é um dinheiro do povo. Investir esse dinheiro adequadamente é dever do Governo e é uma responsabilidade coletiva. A Universidade, como agência social, é uma parte fundamental e é um dos problemas – talvez pela maneira como procede – relacionados à dependência dos países do Terceiro Mundo. Temos uma Universidade que incomoda a todo mundo, que apresenta uma grande quantidade de problemas. E problemas que apenas estamos aprendendo a diagnosticar, e ainda estamos longe de caracterizar, sem falar na identificação de seus determinantes. E esse é um diagnóstico, uma caracterização e uma identificação necessários que precisam da participação do pesquisador que atua no País. Isso é importante porque é na Universidade que se realiza a pesquisa que existe e por que é nela que são formados os cientistas que trabalharão no País.

As universidades do País aproximam-se de uma "anulação" na medida em que, aos poucos, estão lhes tirando (ou extinguindo) tudo e reduzindo-as a uma instituição, inútil, inócua, improdutiva, inexistente para a maioria das pessoas.

Participar da discussão sobre a Universidade não pode limitar-se a dizer aquilo que ela tem de ruim. Apontar defeitos, deficiências e problemas têm sido no que mais permanecemos e emperramos no País. Isso é o que faz, inclusive, com que, se alguém ameaçar "fechar as universidades", não aconteça muita coisa como reação. E isso não é apenas uma metáfora. As universidades do País aproximam-se disso porque aos poucos estão lhes tirando tudo, reduzindo-as a uma instituição inútil, inócua, improdutiva, inexistente, "fechada". E sem uma Universidade que mereça esse nome, a Ciência e a pesquisa ficam sem a sua única base possível para, efetivamente, integrar-se à sociedade. Essa parece ser a tendência que existe nos últimos anos no Brasil. Estamos, nós mesmos, participando da extinção da Universidade necessária para o País.

Mais do que ressaltar os defeitos e limitações da Universidade existentes, precisamos propor o que deve caracterizá-la, de forma a mais pessoas poderem agir de forma a construir a Universidade necessária e não apenas acabar com a que não está satisfazendo.

Um dos problemas para o desenvolvimento da pesquisa em Psicologia (do conhecimento sobre esse tipo de fenômeno) é a necessidade da existência de uma instituição cuja natureza, características, organização e estrutura sejam adequadas para a construção do conhecimento. Isso não significa manter a Universidade com as características que tem hoje, mas construir uma outra com características necessárias, próprias, que interessa para realizar sua responsabilidade social. A Universidade precisa ser mantida, mas também precisa ser examinada, discutida, estudada, avaliada de maneira apropriada. Com isso será possível, mais do que ressaltar seus defeitos e limitações, propor o que precisa caracterizá-la, de forma a aumentar a probabilidade de mais pessoas agirem de forma a construir a universidade necessária e não apenas acabar com aquela que não está sendo satisfatória.

Não basta, na Universidade, fazer pesquisa como um procedimento de ensino ou para manter imagem diante do público que interessa como clientela. A Universidade precisa produzir o conhecimento como matéria prima para o ensino e para a construção da Sociedade.

Hoje, a luta ainda é pela manutenção de uma Universidade. E de uma Universidade Pública porque até agora, no País, são poucas as universidades "particulares" que não foram reduzidas a "escolas" e que ainda participam da produção de conhecimento científico no Brasil. Em geral, o interesse é outro que não a produção do conhecimento necessário para o desenvolvimento científico, tecnológico e social. Umas poucas que fazem pesquisa, distinguem-se das demais, mas, mesmo assim, o interesse predominante raramente é a produção de conhecimento e a sua divulgação para o desenvolvimento do País. Muitas instituições estão enfatizando o uso do conhecimento que existe para "ensinar" diferentes profissões, fazendo umas poucas pesquisas ligadas às atividades de ensino. Em vários casos, há universidades que fazem alguma "pesquisa" voltada para manter o status oficial de universidades ou realizar uma atividade cosmética que contribua para oferecer uma boa imagem ao público que lhe interessa como cliente.

Apesar das limitações, indefinições e dos problemas existentes, a Universidade ainda sobrevive onde há oportunidades, necessidades e condições para produzir conhecimento relevante.

Apesar das limitações, indefinições e dos problemas atuais, a Universidade ainda existe onde há oportunidades, necessidades e condições (poucas!) para pesquisar e produzir conhecimento relevante. É fundamentalmente por essa razão que os cientistas – incluindo os que estão se formando para isso – têm que participar da discussão e da defesa dessa instituição, sendo na Universidade que são formados os novos quadros de profissionais de nível superior para trabalhar no País, inclusive os novos cientistas e pesquisadores. Isso faz com que os pesquisadores tenham que apresentar uma intensa e competente participação na construção e defesa da Universidade como fonte e local de condições para realizar a pesquisa que produzirá o conhecimento necessário para o Brasil. Destruir as oportunidades, as condições ou as delimitações de necessidades de produção de conhecimento é também destruir a Universidade e suas perspectivas e, com isso, destruir também as bases da Ciência e da Tecnologia que o País necessita.

Não se trata de apenas "reivindicar coisas" e sim de reivindicar as condições efetivas e inquestionavelmente necessárias que ela exerça seu papel de agência de produção e de divulgação do conhecimento importante para o País.

Não se trata de apenas "reivindicar coisas" e sim de reivindicar para a Universidade as condições necessárias para que ela exerça seu papel (ou responsabilidade social) específico: agência de produção e divulgação do conhecimento que alicerçará as atividades capazes de produzir condições para o desenvolvimento que a população do País necessita. Como acontece na maioria dos países do chamado Terceiro Mundo, as universidades brasileiras foram transformadas em "escolas profissionalizantes" e isso precisa ser superado. Esclarecer, evidenciar e exigir que a Universidade realize seu papel e reivindicar as condições para isso é uma tarefa bem maior e mais exigente do que apenas reivindicar o que "lhe foi tirado", ou que o que "lhe faz falta".

A atividade da Universidade não pode reduzir-se a "capacitar profissionais, ou o desenvolvimento do conhecimento em Psicologia" simplesmente não existirá, nem como preocupação.

A Universidade é mais do que uma escola para "repassar" informações, técnicas ou "teorias". Ela, mais do que isso, é a base para a produção de informações que possam ser consideradas "conhecimento de valor" para a sociedade. Sem as condições técnicas, financeiras, administrativas e políticas para fazer Ciência na instituição, esse trabalho não existirá, deixando o País de produzir o conhecimento, insumo fundamental para a educação e para o desenvolvimento social. A Psicologia, no Brasil, também é uma das vítimas desse processo de redução das universidades a escolas profissionalizantes. Esse processo "marcou a área a ferro e fogo". Quem conheceu a Psicologia antes da implantação dos cursos de Psicologia sabe o que isso significa. A luta pelos Departamentos em substituição às cátedras individuais e vitalícias, foi um esforço para que os pesquisadores de cada área se reunissem em núcleos produtivos de pesquisa e não em oligarquias administrativas ou burocráticas para continuar controlando o ensino de graduação. Mas, isso parece estar "perdido" até hoje. Poucos ainda lembram do conceito inicial de Departamento que orientou o movimento pela extinção das cátedras.

A Universidade é, antes de tudo, constituída por núcleos de cientistas organizados em diferentes áreas, elaborando o conhecimento para "sustentar" a formação de pessoas para trabalhar em diferentes campos de atuação.

A atividade da Universidade, no caso dos departamentos de Psicologia, não pode reduzir-se a formar profissionais, substituindo ou assumindo o papel de coordenações de cursos de graduação ou de pós-graduação. Ou, então, o desenvolvimento do conhecimento em Psicologia simplesmente não existirá, nem como preocupação. Os departamentos deveriam ser, antes de qualquer outra coisa, a integração de vários núcleos de pesquisa nos quais trabalham cientistas na produção do conhecimento relativo à área do Departamento e na difusão desse conhecimento, o que envolve oferta de professores capacitados para ensinar, em diferentes cursos da Universidade, aquilo que o conhecimento produzido na área mostra ser importante para cada campo de atuação profissional cujos agentes serão capacitados pelos diferentes cursos de cada universidade.

Os profissionais que o País necessita precisam ser profissionais que tenham uma formação científica suficiente para serem capazes de produzir conhecimento e atuar na sociedade de maneira coerente com o melhor conhecimento existente.

Fomos levados, durante muitos anos, na "onda" de sermos um país dependente, respondendo a propostas, exigências e necessidades "de fora". A Universidade Brasileira transformou-se em uma escola para profissionais que pudessem tornar exeqüível ou viável o modelo dominante: um país de consumo, de mercado para outros. Isso não é suficiente. Os profissionais que o País necessita para resolver os seus problemas precisam ser profissionais formados em pesquisa. Devem ser profissionais com um lastro suficiente e adequado de formação científica (capazes de produzir conhecimento) necessária para atuar no País e não o profissional técnico formado de acordo com receitas e modelos que só fazem o País ficar mais apto como mercado para outras nações. É o que faz com que a Universidade e os pesquisadores em cada área sejam alijados dos processos de decisão. As concepções e receitas já vêm prontas e de fora. Isso aconteceu com o ensino de Primeiro Grau, de Segundo Grau, de Terceiro Grau, com a Pesquisa e, agora, nos últimos anos, com a Pós-Graduação. Não há novidade; só que não é mais possível continuar a carregar esse fardo. Não parece aceitável ver a extinção de muitas condições criadas para responder a necessidades do País, sendo substituídas por rotinas de atividades consagradas pela inércia e pelo hábito dos que já aprenderam a realizar essas atividades sob as condições existentes hoje. A gênese de muito do que a Ciência conseguiu nos dias atuais está em algumas décadas antes e nós ignoramos isso. Sem história não faremos Ciência. Pelo menos Ciência digna desse nome.

A Universidade precisa ter interlocutores na população tanto quanto precisa tê-los entre aqueles que ocupam os cargos de representação política.

A única esperança que parece restar é de um movimento que comece na Universidade. É a própria instituição que precisa dizer "a que vem", qual sua proposta, que identidade quer ter. Ela, porém, não pode ficar falando sozinha. Precisa ter interlocutores. Precisa ter interlocutores na população tanto quanto precisa tê-los entre aqueles que ocupam os cargos de representação política. É preciso convencer as pessoas que estão no Congresso e nas Assembléias Legislativas de que a Ciência é um empreendimento e um tipo de atividade muito importantes para o País. É preciso falar e discutir sobre isso até demonstrar e convencer tanto os agentes governamentais quanto nossos próprios colegas e administradores institucionais e a população do País. Em muitos casos, nem sequer consideramos os próprios alunos como interlocutores. Nós os reduzimos a "simples ouvintes" para registrar de alguma maneira o que lhes apresentamos como informação e que, com freqüência, confundimos com "conhecimento".

Se o País perder a Universidade pública que tem, por deterioração, má administração, ou por reduzi-la a um mero papel de escola profissional, haverá um atraso científico e social muito grande.

Preservar a Universidade como instituição e mudá-la como organização são duas grandes aspirações da comunidade científica. E essas são, também, duas tarefas muito sérias. Se o País perder a Universidade pública que tem, por deterioração, má administração, ou por reduzi-la a um mero papel de escola profissionalizante, haverá um atraso científico e social muito grande, talvez irrecuperável. O trabalho que lhe cabe fazer não será feito por outro tipo de instituição e isso não pode continuar a ser escamoteado do País, dos estudantes e até dos próprios cientistas e pesquisadores.

O que precisa ser recuperado na Universidade é muito e é tão importante quanto o que ainda falta construir.

Uma outra aspiração – e reivindicação – que faz a comunidade científica (que também vive em um país do Terceiro Mundo) é a existência de verbas públicas adequadas para o financiamento da pesquisa científica. Reivindicar é uma expressão bondosa. Mais claramente, ela precisa gritar, esbravejar, lutar para conseguir um mínimo em relação ao que seria necessário para desenvolver alguma pesquisa de valor no País. O que temos para recuperar do que já foi perdido é muito e é tão importante quanto o que nos falta construir.

Núcleos de pesquisa que existiam se transformaram, deterioraram ou desapareceram. O País parou ou interrompeu muito da produção de conhecimento que apoiaria a construção da tecnologia necessária para superar seus problemas.

Nos últimos 20 anos, as verbas públicas para pesquisa foram reduzidas a um terço do que eram. Isso significa que, à medida que os problemas sociais e as necessidades do País se agravaram, o investimento em pesquisa foi brutalmente reduzido em relação ao que era há 20 anos. O que significou isso para o País? Significou – e significa – que iniciativas de núcleos de pesquisa que existiam se transformaram, deterioraram e até desapareceram. Significa que o país parou a produção de conhecimento que possibilitaria a construção de tecnologia necessária para superar seus problemas. E ainda continuam existindo procedimentos e concepções, em várias instâncias, promovendo a extinção de núcleos de pesquisa e de departamentos (conjuntos de núcleos por área do conhecimento), nos quais esses núcleos deveriam estar sendo uma "solução" para a "crise" da Universidade.

Em 1940, o Brasil era um país que produzia tecnologia. Hoje, sabe-se quase nada sobre o que ele produzia. O que presenciamos no faz ficar espantados, incrédulos e desanimados.

Em 1940, o Brasil era um país que produzia tecnologia. Quarenta e poucos anos depois, sabe-se quase nada sobre o que ele produzia. Em muitas áreas de conhecimento e em muitos setores das universidades nem sequer sabe-se como fazer para produzir a tecnologia necessária para desenvolver o País. Hoje o Brasil "compra tecnologia" e "adota informações"; ele consome o que outros países produzem. Há um engodo nisso tudo, nessa conversa de "transferência de tecnologia", como muitos nomeiam tal tipo de "estratégia" ou "procedimento". Isso é muito grave e exige atenção. Afinal de contas, se o País compra tecnologia, não precisamos produzi-la, não precisamos construir conhecimento para fazer isso.

É importante, como cientistas e pesquisadores, reagir e participar da construção e das reivindicações sobre nossa própria produção de conhecimento e tecnologia, por meio de uma universidade íntegra e competente.

Nesse sentido, a universidade poderia ser apenas uma escola, os departamentos poderiam reduzir-se a meras agências de administração ou burocracia do ensino. Não é o que precisamos. Nem o que queremos. Mas, são essas concepções, essas maneiras de entender e agir quanto ao conhecimento científico, à pesquisa e à Universidade que levaram à deterioração sistemática dessas atividades, desses recursos e desse patrimônio do País. Até o ponto que hoje presenciamos todos, entre espantados, incrédulos e desanimados. É importante, como cientistas e pesquisadores, reagir e participar da construção e das reivindicações do que é fundamental: nossa própria produção de conhecimento e de tecnologia, por meio de uma universidade íntegra e competente e com os recursos necessários para fazer isso.

Quem decide o que é relevante pesquisar e quais recursos devem ser alocados para cada tipo de pesquisa necessária para o País?

Existe, "pró-forma" nesta República, um orçamento de Ciência e Tecnologia. É "pró-forma" porque sabemos quase nada sobre o que ele significa. Embora o CNPq até publique dados sobre isso, não é conhecida a proposta orçamentária para Ciência e Tecnologia no País. Muito menos se conhece sobre sua execução orçamentária. A pouca "transparência", a falta de acesso e a ausência de participação dos cientistas e Universidades na elaboração do orçamento de Ciência e Tecnologia são problemas muito sérios. Esse orçamento delimita e define muito da atividade científica no País. Como fazer Ciência sem ter possibilidade de sequer conhecer com clareza como se decide o que vai ser investido nisso? Essa é uma decisão só técnica? Só política? Os cientistas não devem participar? Quem decide (e quem deve fazê-lo?) o que é relevante pesquisar e quais recursos devem ser alocados para cada tipo de pesquisa necessária?

A integração das múltiplas agências envolvidas na realização e administração da produção de Ciência e Tecnologia, incluindo a participação das universidades e sociedades científicas é fundamental para o País desenvolver a Ciência e a Tecnologia que atenda às necessidades da população que o constitui.

A comunidade científica brasileira tem feito propostas ao Governo e, em geral, não tem sido atendida. Um exemplo dessas propostas está em uma regra muito simples que poderia mudar a direção da tendência de diminuição constante de verbas para a pesquisa no País. A comunidade científica propôs ao governo que os cientistas participassem das decisões nas agências responsáveis pelo apoio à Ciência e à Tecnologia. Os cientistas consideram que a atual organização do Sistema de Ciência e Tecnologia Nacional tem muitos defeitos. Não parece adequado para o desenvolvimento que o FINEP faça algumas coisas, o CNPq outras, às vezes funcionando como empresas (ou como empresários?). As fundações estaduais fazendo outras coisas e assim por diante. A integração dessas agências em um sistema coerente com uma política bem definida de apoio à Ciência e à Tecnologia, incluindo a participação das universidades e sociedades científicas, é fundamental para o País desenvolver a Ciência e a Tecnologia da qual necessita, que atenda às necessidades de sua população. Aliás, é preciso não esquecer que as fundações estaduais (de amparo à Ciência e à Tecnologia) precisam existir e participar disso também. Por enquanto, ainda não temos fundações estaduais em quantidade e com características adequadas como a FAPESP, por exemplo, conseguiu ter no Estado de São Paulo. Essa é uma reivindicação que os pesquisadores de cada Estado podem fazer: insistir nas assembléias legislativas que se formem fundações estaduais e que se destine uma percentagem do orçamento do Estado para esse tipo de trabalho.

Os valores destinados e efetivamente alocados e acessíveis para os pesquisadores produzirem Ciência e Tecnologia oscilam ao gosto dos governantes ou por fatos emergenciais e não por orientação de uma política definida para o desenvolvimento de Ciência e Tecnologia no País.

Com essas condições, as verbas federais e estaduais poderiam constituir uma condição para o desenvolvimento de Ciência e Tecnologia. O que existe hoje, infelizmente, nem sabemos quanto é. O que se conhece é que o que vai para as pesquisas, não chega a um terço do que foi destinado. Não adianta o Governo, o Presidente da República ou o Ministro dizer que há milhões ou bilhões de reais para a Ciência e Tecnologia. O que de fato acontece é que esses valores oscilam ao gosto dos governantes ou de fatos emergenciais e não por uma política definida para o setor. Em um ano existe e em outros desaparece a verba necessária. Ou é alocada de forma inadequada em relação às prioridades do País, atendendo a "demandas" ou "lobbies" não facilmente identificáveis.

Por que não integrar os múltiplos institutos e agências públicas de Ciência e Tecnologia em um sistema com a participação da comunidade científica nas decisões sobre o que seja importante pesquisar no País?

Arrisco afirmar que não há clareza também sobre "para onde as verbas estão indo..." Há casos em que não é muito fácil entender as razões de algumas proporções de verbas. Sabemos, por exemplo, que a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – tem (embora também esteja diminuindo progressivamente) um orçamento maior que o do CNPq. E este é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para todas as áreas em todo o País. Não quer dizer que a EMBRAPA não faça um trabalho importante. Pelo contrário, ele é extremamente necessário para o País. Mas, por que essa diferença? Por que não integrá-la em um sistema com a participação da comunidade científica nas decisões? A EMBRAPA não faz parte de um sistema de desenvolvimento de Ciência e Tecnologia para o País? Há exemplos muito bons de como é possível administrar os Recursos de Ciência e Tecnologia para o país. A FAPESP, na própria legislação que a criou, tem definido que a verba para administração não pode ultrapassar 5% de seu orçamento. Em agências federais há casos em que só o pagamento de pessoal administrativo ultrapassa de 30% a 60% do orçamento das agências. No primeiro exemplo, a maior parte da verba vai, de fato, para a pesquisa. No segundo caso é quase toda gasta com a administração. Por essas e por outras razões é grave a pouca participação da comunidade científica nas decisões dessas agências. O pedido de participação feito ao governo até agora foi considerado ingênuo e não foi atendido nos termos em que foi apresentado.

Se a Psicologia, nas universidades, ficar fora das discussões e deliberações sobre os recursos para fazer, para direcionar ou incentivar a pesquisa, ela ficará à margem da própria ciência e tecnologia feitas no País.

Muitos podem dizer que essas reivindicações caracterizam apenas um trabalho de "ativistas políticos". É, porém, uma tarefa de todo cientista, de qualquer pesquisador. Enquanto a Psicologia ficar fora das discussões e deliberações sobre os recursos para fazer, para direcionar ou incentivar a pesquisa em Psicologia ela ficará à margem das próprias Ciência e Tecnologia que serão feitas no País. Ficará fora porque não participa. Ficará fora porque tem o "defeito" de ser "Ciências Humanas e Sociais" que, em geral, não são consideradas prioridades quando se trata de Ciência e Tecnologia.

A transformação do serviço público, das universidades, em empregos sem caracterização ou identidade faz com que a instituição deixe de realizar ciência e tecnologia, mas mantém um orçamento pesado e dois tipos de indigência graves: profissional, por má produção e social, por baixos salários.

Considerando a Universidade como agência de produção de Ciência e Tecnologia, o CNPq, há algum tempo, firmou um compromisso com a comunidade científica: não criar mais institutos de pesquisa fora das universidades. Em geral esses institutos são organizações públicas com muito peso na parte de pessoal e o trabalho que fazem, com as devidas condições, recursos e administração pode ser feito nas universidades. Aliás, também as universidades, sem cuidados desse tipo, podem ficar prejudicadas na realização de sua responsabilidade em relação à produção de Ciência e Tecnologia. Na década de 1980 houve um exemplo triste do que tudo isso pode significar. A grande quantidade de funcionários mal pagos nas universidades os está tornando uma grande quantidade de "escravos improdutivos". Grande parte dos funcionários da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, moraram em favelas por um bom tempo. A transformação do serviço público, das universidades no caso, em empregos sem maior caracterização ou identidade faz com que esse tipo de instituição deixe de realizar Ciência e Tecnologia, mas mantenha um orçamento pesado e dois graves tipos de indigência: profissional, por má produção, e social, por baixos salários.

Multiplicação de atividades, agências, instâncias de poder e pulverização de recursos em condições de apoio sem um sistema articulado que dê orientação e articulação a tudo isso é contribuir para o empobrecimento da Ciência e da Universidade, o que inclui muito do que ainda é preciso fazer em Psicologia.

É por isso que se torna cada vez mais necessário estabelecer um sistema, com regras bem definidas coletivamente, para as agências responsáveis pela Ciência e Tecnologia no País. Em caso contrário, cada agência, cada grupo de pesquisadores, cada instituição ou cada sociedade científica irá criar as suas revistas, realizar os seus congressos, ter os seus instrumentos, os seus funcionários... Isso poderá ser apenas muita gente fazendo ou repetindo as mesmas atividades, esforços, recursos. Desperdiçando, duplicando e fazendo desnecessariamente e prejudicialmente o que poderia ser feito de outra forma. Teremos, em pouco tempo, uma proliferação de tudo isso sem constituir uma integração que dê identidade, direção e coesão ao trabalho de produção de Ciência e Tecnologia no País. A Psicologia parece ser um caso típico de proliferação de atividades e organizações cada vez mais desligadas umas das outras.

Qual o sistema e quais os seus componentes que precisamos para o desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior que o País necessita?

Hoje, há uma "Secretaria da Ciência e Tecnologia" no País2 2 Quando ocorreu o debate em que professora Carolina fêz essa exposição, não havia ainda um Ministério da Ciência e Tecnologia que, mais tarde, viria a existir sucedendo a Secretaria da Ciência e Tecnologia criada pelo governo, como resposta e uma forte e constante reivindicação da comunidade científica, em especial da SBPC, ao longo de vários anos. Algo parecido aconteceu com as Secretarias Estaduais de Ciência e Tecnologia nos anos que se seguiram à década de 1980. . O que cabe a essa "Secretaria"? Ela deve ou não fazer a integração das agências que produzem Ciência e Tecnologia? Como e onde ficam as Universidades? No Ministério da Educação? Na Secretaria de Ciência e Tecnologia. Em ambos? Vão ser reduzidas a escolas? A Secretaria de Ciência e Tecnologia vai ignorar os departamentos nas universidades como unidades-base da produção de conhecimento no Brasil? Vai criar seus próprios instrumentos e instituições? Quem vai coordenar os esforços existentes, capacidades disponíveis e instituições ou agências já existentes? Como isso será feito? Vamos alocar tudo isso na Secretaria da Ciência e Tecnologia? E cada um vai administrar o que? Vai integrar ou articular o que? Qual o sistema que precisamos para o desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior que o País necessita?

Sem debate, reivindicação e organização dos cientistas isso tudo permanecerá distante e parecerá irreal ou impossível.

Os pesquisadores precisam debater essas questões e participar das decisões a esse respeito. Criar um sistema para tudo isso ocorrer e participar ativamente dele é definir instâncias de poder e instrumentos para seu exercício. É por essa razão que vai sendo feita muita coisa para, exatamente, "tomar esse poder" ou, como é dito cada vez mais natural e freqüentemente, "para ocupar espaços". É importante lembrar que, para tanto, é preciso dinheiro e pode ser o dinheiro da pesquisa que será usado para sustentar a administração e os custos de cada agência criada, cada funcionário contratado, cada momento tirado da pesquisa para atividades administrativas. Por tudo isso a comunidade científica não pode ceder em suas propostas e reivindicações: participação dos cientistas nos órgãos de decisão e um sistema de integração da diversidade de agências e instituições de pesquisa e de apoio à pesquisa. Os cientistas querem decidir junto com todos os ministérios e agências que usam o dinheiro da pesquisa para saber quanto usam e como usam. É basicamente isso. Mas parece que sem maior participação, debate, reivindicação e organização dos cientistas isso tudo permanecerá distante e parecerá sempre irreal ou impossível.

Não basta falar ou reclamar quando o dinheiro do projeto não veio, a bolsa não saiu... É preciso falar e participar em um nível mais alto da hierarquia de decisões e em um momento mais precoce de todo o processo.

O que foi examinado não acontece apenas com Ciência e Tecnologia. No orçamento para a Educação, quanto dinheiro vai ser, de fato, destinado para isso? A maior parte dessa verba corre o risco de ser dispersa por atividades que não resultam em educação ou não a constituem. Essa distribuição de verbas entre ministérios, agências, instituições não pode ser algo feito "à vontade". A comunidade científica – desde os estudantes – precisa conhecer os processos pelos quais são tomadas essas decisões, onde elas são tomadas, desde o FMI, o Banco Mundial ou outras agências, inclusive as nacionais, alheias à realidade social e científica do País. Não basta falar ou reclamar quando o dinheiro do projeto não chegou ou a bolsa não saiu... É preciso participar e falar em um nível mais alto da hierarquia de instâncias de decisão e em um momento mais precoce de todo o processo do que aquele em que já ocorreram prejuízos, atrasos ou descaso.

Os pesquisadores precisam falar e reivindicar para todas as áreas de Ciência e Tecnologia. A Psicologia precisa participar dessa reivindicação. Isso é fundamental para a Ciência e para a Psicologia no País.

Os pesquisadores brasileiros precisam falar e reivindicar para todas as áreas de Ciência e Tecnologia. A Psicologia precisa participar dessa reivindicação e, ao mesmo tempo, da reivindicação de sua parte. Isso é fundamental para a Ciência e para a Psicologia crescerem e contribuírem com o desenvolvimento do País. Sem essa participação há o risco de as agências governamentais "inventarem novidades" para o País. Um exemplo disso foi o "Programa de Apoio para o Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia" (PADCT), já bastante conhecido de todos. As áreas que fizeram parte do PADCT foram decididas e escolhidas fora do País. As percentagens de distribuição das verbas para esse Programa já vieram, no início, decididas por agências de fora do Brasil. As reações da comunidade científica alteraram as decisões iniciais. Mas só em parte. A verba desse programa era estimada com proporções: o governo brasileiro pagava dois terços, o Banco Mundial pagava um terço, mas... em equipamento comprado fora do País.

Se não reagirmos e não nos importarmos, faremos apenas a Psicologia que ditarem ou dirigirem de fora ou burocraticamente, nas agências de poder já consolidadas de acordo com interesses e objetivos que podem não corresponder às necessidades do País e de desenvolvimento da Psicologia.

Isso, embora seja um exemplo ilustrativo, pode até parecer caricatural, mas é um risco que permanece em maior amplitude: reproduzir, em Ciência, o modelo econômico a que, há muitos anos, estamos submetidos. Diante de coisas desse tipo, feitas em nome da Ciência e da Tecnologia, os cientistas precisam manifestar-se, reivindicar sua participação, dizer o que pensam sobre isso e sobre o que é necessário ser feito no País. Psicologia não está à parte ou imune a essas influências. Mais cedo ou mais tarde, a direção de alguém acontecerá... por interessar ao governo ou para contentar algum grupo de pesquisadores, até do próprio País. Assim como o sistema educacional, a política e a economia do Brasil são "estudados" por agentes externos ao Brasil e por grupos políticos e econômicos diversos, também a Psicologia no País interessa ser "estudada" como um possível meio para interferir no que é feito no País. Assim como é "determinado" o que devemos fazer com a Educação, a Política e a Economia, por meio de vários "tutores" de alguma forma atuantes no País, também em Psicologia acontece isso. E, se não reagirmos e nos impormos, faremos apenas a Psicologia que ditarem ou dirigirem de fora ou burocraticamente, nas agências de poder já consolidadas de acordo com interesses e objetivos que correm um alto risco de não corresponder ao que interessa ao País e ao desenvolvimento do conhecimento em Psicologia.

Grande parte das perguntas que temos são angustiantes. A Psicologia faz parte disso tudo e precisa decidir qual destino ou direção quer para que possa fazer o que é necessário de forma a definir e orientar seu desenvolvimento, seu "destino", sua contribuição.

Grande parte das perguntas que temos e que aparecem quando debatemos a pesquisa no País são angustiantes. Principalmente porque revelam as dificuldades para fazer Ciência em um país do Terceiro Mundo. Na base de todas essas angustiantes questões e dessa situação da pesquisa no País está um pressuposto perigoso e destrutivo para o desenvolvimento científico e tecnológico: "para que inventar ou descobrir se há cientistas em outros países mais desenvolvidos e nós podemos comprar deles? Basta comprarmos essa tecnologia e não precisamos investir e gastar com a ciência incipiente que temos". Não parece nem sequer razoável aceitar questões ou afirmações como essas como razão para não investir e dedicar esforços para fazer Ciência e Tecnologia no País e para superar suas atuais condições econômicas, sociais, políticas, educacionais, de saúde etc. A Psicologia faz parte disso tudo e precisa decidir já qual destino ou direção quer para poder fazer o que é necessário e, com isso, definir e orientar seu desenvolvimento, seu "destino", sua contribuição.

Quem deve decidir que Ciência e que Tecnologia precisam ser feitas são aqueles que estão envolvidos e conhecem o que já foi feito, o que ainda está sendo feito, o que não está sendo feito, o que precisa ser feito etc.

É possível deixar mais claro onde agir e o que é possível fazer. Tem sido reivindicado que é necessário haver mais bolsas de iniciação científica, que os valores das bolsas de mestrado e doutorado têm que ser mais altos. Tem havido decisões sobre quais pesquisas devem ser financiadas, sobre que incentivos devem ser dados... Têm sido implementados (pelo governo) programas de pesquisa ou de apoio a pesquisas de certas áreas ou de certos tipos. Quem deve decidir isso? Não devem ser os técnicos do governo, do CNPq, da FINEP ou da FAPESP ou de quaisquer outras fundações. Devem ser as pessoas que trabalham com a produção do conhecimento e da tecnologia em cada área. Devem ser aqueles que estão envolvidos e conhecem o que já foi feito, o que ainda está sendo feito, o que não está sendo feito, o que precisa ser feito etc.

A direção do trabalho precisa ser orientada sobre a segura base do conhecimento da realidade social com suas necessidades e da área de conhecimento como conjunto de atividades de várias pessoas, incluindo a produção de conhecimento internacional, também do passado, e em todas as unidades ou núcleos de pesquisa no País, mesmo os ainda incipientes ou iniciantes

A direção do trabalho científico e tecnológico precisa ser orientada sobre a segura base do conhecimento da realidade social com suas necessidades e de cada área de conhecimento como conjunto de atividades (não como erudição ou informação acadêmica de alguém ou de alguns) de várias pessoas. Isso inclui a produção de conhecimento internacional, também do passado, e em todas as unidades ou núcleos de pesquisa no País, mesmo os ainda incipientes ou iniciantes. Uma das razões pelas quais é importante a participação dos pesquisadores nas agências de apoio à pesquisa é que eles são os que melhor podem dizer que problemas e que pesquisas, em cada área, são os mais importantes. As várias agências consideram que existe prioridade para certas áreas e para certas pesquisas. E esse conceito – de prioridade – é muito influente nas decisões dessas agências. E, com isso, começam vários problemas: Psicologia, por exemplo, não é prioridade, Ciências Humanas e Ciências Sociais também não são prioridades. O que é prioridade? Prioridade de que ponto de vista? Prioridade para quem? Para o governo? Para o País? Para o desenvolvimento da Ciência? Para algum grupo? Para as empresas e empresários? Ou para algumas delas ou deles?

É necessário identificar com clareza como essas decisões influenciam o trabalho de cada um, como direcionam ou interferem com cada pesquisa e com o conjunto das atividades científicas e suas conseqüências para o Brasil.

Parece que, em muitos casos, "prioridade" tem sido "fazer aquelas pesquisas que dão informações para a tecnologia que vai ser desenvolvida fora do Brasil". Isso só leva a uma destruição do desenvolvimento científico e tecnológico do próprio País. Isso só faz existir grupos de pesquisadores isolados a produzir pesquisa que não é necessariamente útil ou importante para o Brasil. E, em relação a isso, não basta lutar ou reclamar. É preciso identificar com clareza como essas decisões influenciam o trabalho de cada um, como direcionam cada pesquisa ou como interferem com elas e com o conjunto das atividades científicas e suas conseqüências para o País. É preciso identificar com clareza a manipulação do dinheiro da Ciência, as agências valorizadas e as agências que são abandonadas (como a Universidade, por exemplo) ou deterioram enquanto outras são criadas, consumindo ainda mais recursos.

A Universidade é inventiva, criadora mas o resultado disso, fica nas gavetas, vai para fora, perde-se, morre...

A Universidade Brasileira tem muitos aspectos de inventividade. Ela produz conhecimento novo, original. Embora seja ainda muito pouco em relação às suas possibilidades, ela é inventiva e criadora em relação à produção de conhecimento. O resultado dessa inventividade, porém, não chega até o público, até a população. Ela fica nas gavetas, vai para fora, perde-se, morre... Quando há uma pesquisa relevante para o País, as condições existentes ainda tornam seus resultados inacessíveis a quem necessita do conhecimento que foi produzido por meio dela.

Entre o desenvolvimento do conhecimento científico na Universidade e a situação da população há uma grande lacuna.

Entre o desenvolvimento do conhecimento científico na Universidade e a situação da população há um grande hiato. Quanto mais esse conhecimento se aproxima de ser transformado em tecnologia, maior é o hiato em relação à situação da população. Nesse sentido, a invenção não se torna uma inovação. Os resultados, os produtos dos estudos feitos na Universidade, dificilmente ultrapassam as fronteiras da própria universidade. O conhecimento pode até ser disponível, mas difícil e raramente se torna acessível e, muito menos ainda, útil à população.

Onde está a pesquisa em Psicologia no Brasil? O que é feito com essa pesquisa? Quanto é publicado do que é feito pelos pesquisadores? Quanto do que é descoberto se torna acessível a quem?

Quando João Cláudio Todorov* perguntou "onde está a pesquisa em Psicologia no Brasil? O que é feito com essa pesquisa? Quanto é publicado do que é feito pelos pesquisadores?" ele indicou um problema muito sério que prejudica muito ao País: a produção científica e tecnológica não é acessível. Mesmo para apoiar outros trabalhos científicos no País, o conhecimento parece pouco acessível. Há pouco tempo, dois autores brasileiros encontraram que mais de 95% das referências da revista Psicologia são estrangeiras. Vale insistir na pergunta de João Cláudio Todorov: onde está a pesquisa em Psicologia no Brasil? Talvez as condições existentes constituam uma parte daquilo que leva muitos pesquisadores a publicar no exterior. Pelo menos eles encontram interlocutores, alguém que "ouve", alguém que fala, dá feedback, usa o conhecimento... Mas será que isso resolve, não o problema do indivíduo ter interlocutores, mas o uso do conhecimento científico na sociedade? Essa é uma pergunta necessária porque cada vez mais temos cientistas descobrindo, propondo soluções para problemas, obtendo resultados impressionantes em pesquisas nacionais e... alguém se apropria disso! Alguém as conhece, leva embora, leva para fora, ou, se não lhe for conveniente, procura encobrir ou manter desconhecido (*As questões foram apresentadas na exposição de João Cláudio Todorov também na mesa redonda sobre "A pesquisa no Brasil; problemas e soluções" realizada na XIV Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto -SP, em outubro de 1984).

Feito e relatado para as bancas examinadoras ou para a comunidade especializada, o trabalho do cientista está encerrado?

O que estamos fazendo com as descobertas de nossas próprias pesquisas? Porque muito do que foi descoberto, do que está sendo descoberto ou já é conhecido não é utilizado no País? Porque ainda faz parte tão forte do sistema administrativo do País as "engrenagens" da "política científica e tecnológica" que o governo tem, principalmente em relação aos compromissos internacionais, incluindo manter a população como "mercado consumidor" para outros países ou para grandes empresas. O trabalho de produção de Ciência e Tecnologia fica, no Brasil, sempre incompleto. Feito, relatado (para as bancas examinadoras ou para a comunidade especializada) o trabalho do cientista está encerrado?

Ainda somos incapazes de ver que, quando alguém chega a um resultado, a um produto em qualquer trabalho científico, esse produto dever ser tratado em termos políticos. A quem serve? Como e a quem deve tornar-se acessível?

Ainda não é discutido nem administrado o produto da atividade científica que também precisa ser entendido e incluído como parte integrante da atividade do cientista. Ainda somos incapazes de ver que, quando alguém chega a um resultado, a um produto em um trabalho científico, na Universidade, esse produto deve ser considerado também em termos políticos. A quem serve? Como e a quem pode ou deve tornar-se acessível? São perguntas políticas, mas precisam ser enfrentadas pelos cientistas que devem ser também responsáveis pela implementação das respostas a elas. As providências que as responderiam são partes integrantes do trabalho de fazer Ciência.

Não há uma política de administração da utilização do conhecimento científico fora da Universidade. Utilização por aqueles que, com seu trabalho, produzem a riqueza que sustenta o trabalho dos cientistas.

Insistindo mais uma vez: embora tenhamos muita inventividade em Ciência e Tecnologia nas universidades, é preciso também uma política de inovação no uso e na administração do produto da atividade científica. Nas universidades existem muitas idéias e pesquisas de ótima qualidade. Mas, no momento em que elas precisam sair da universidade, sair da instituição, aparecem várias dificuldades. Essas dificuldades são reais, mas são criadas pelos que trabalham na própria Universidade. Ainda não temos clareza sobre os problemas e limitações que os cientistas e os administradores têm pra realizar essa etapa do trabalho científico e tecnológico. Não são dificuldades inerentes ao trabalho científico ou à população. O que não há é uma política de administração da utilização do conhecimento científico fora da Universidade, utilização por aqueles que, com seu trabalho, produzem a riqueza que sustenta, que paga o trabalho dos cientistas.

Ciência não é uma atividade individual; é um empreendimento coletivo. Por isso exige decisões coletivas e políticas que orientem as atividades individuais. Decisões políticas, por sua natureza, são um tipo de atividade eminentemente coletiva.

A Ciência que temos e que fazemos ainda precisa encontrar soluções para uma grande parte de seus problemas. É necessário que todos participem das atividades e decisões que produzirão essas soluções e indicarão esses caminhos, em todos os níveis. Ciência não é uma atividade individual, é um empreendimento coletivo. Por isso exige decisões coletivas e políticas que orientem as atividades individuais. E decisões políticas, por sua própria natureza, são um tipo de atividade eminentemente coletiva. É nesse sentido que política científica em Psicologia não se fará sem a participação dos cientistas e das universidades do País. Nem se fará sem instrumentos, instituições e atividades que sejam, indubitavelmente, condições apropriadas para que essa participação coletiva seja real, significativa e emancipadora. Não apenas dos cientistas ou da Ciência como instituição, mas da própria população. Uma população que depende desse tipo de trabalho para superar as condições que a impedem de viver com dignidade.

A exposição da professora Carolina Martuscelli Bori é, agora em 2007, apresentada em um contexto social, político e científico e tecnológico muito diferente do ano em que fez a exposição oral (metade da década de 1980). Muito do que professora Carolina afirmava na época fazia parte daquilo pelo qual a cada dia se trabalhava para superar, aperfeiçoar, desenvolver. Quando fazia esse debate não havia no Brasil um Ministério da Ciência e Tecnologia. Apenas uma Secretaria fazia esse papel. Quando, já como decorrência dos esforços dos cientistas, especialmente da SBPC e da força da professora Carolina nessa instituição, durante o governo do Presidente Sarney, criado o Ministério da Ciência e Tecnologia, foi constituído um "Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia" que excluía as Universidades. Em poucos dias, a professora Carolina estava com a Direção da SBPC em Brasília, em audiência com a Presidência, reiterando correção disso.

Os tempos eram outros e muito difíceis. Várias providências foram tomadas desde então e até mesmo como decorrência de muito do que professora Carolina Bori nos mostrou naqueles tempos. Muitas dessas providências ainda são parciais. Por exemplo, ainda é recente a criação de Secretarias de Estado da Ciência e Tecnologia e, na maioria dos casos, como consolidação de fundações estaduais ou com funções meramente burocráticas e não de liderança e consolidação de um sistema de desenvolvimento de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior para consolidar bases de conhecimento necessárias para o desenvolvimento social. Várias delas foram feitas apenas nos moldes de uma adaptação do que existia, mantendo as velhas estruturas e antigos procedimentos que garantem até hoje muitos redutos de poder e uma ainda alta exclusão dos que fazem Ciência. Grande parte dos agentes – cientistas, estudantes, instituições – são tolerados apenas como espectadores (e até como clientes ou pedintes) em muitas circunstâncias. Isso também é visível em congressos que se tornaram muito mais centros de exibição e oportunidades de acompanhar o que acontece do que de debate real do que está sendo feito pelos diferentes grupos de cientistas, pesquisadores ou outros profissionais que procuram pesquisar também no seu exercício profissional.

A própria proliferação de "sociedades científicas" e "congressos de cientistas" ou "de profissionais" aumentou exponencialmente e o debate, que antes já era pouco, tende a ser mais uma confraternização em torno de idéias semelhantes, fechamento entre "iguais" ou "exclusão dos diferentes". Com isso, diminui cada vez mais um sistema articulado de Ciência e Tecnologia que, em governos patrimonialistas e centralizadores, só tenderão a fazer articulações de interesse da manutenção de determinados grupos no poder ou de interesses e controle da participação de quem for conveniente para manter o sistema como interessar aos que ocuparem cargos de poder no País.

As questões, afirmações e provocações de professora Carolina Martuscelli Bori parecem atuais, com as devidas correções nas proporções dos exemplos e dados. Os debates sobre participação, organização, representação da Psicologia ou de qualquer tipo de contribuição para sua construção no País, não devem desconsiderar essas eternas contribuições de professora Carolina. Por essa razão, reiteramos, que lhes apresentamos essa exposição, partilhando a riqueza do exame de professora Carolina com outros psicólogos. Esperamos estar acertando em fazer isso, com as também reiteradas desculpas por, provavelmente, prejudicarmos a riqueza do que seria ouvir as palavras da própria professora Carolina. O esforço de algumas centenas de horas trabalhando com este texto nunca nos pareceu muito. A tarefa final parece ser a de partilhar tudo isso. Isso nos deixa com a sensação de que cumprimos um dever que temos em relação aos cientistas, psicólogos, estudantes de Psicologia e brasileiros, todos que podem ser beneficiários do conhecimento sobre Psicologia.

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    Quando ocorreu o debate em que professora Carolina fêz essa exposição, não havia ainda um Ministério da Ciência e Tecnologia que, mais tarde, viria a existir sucedendo a Secretaria da Ciência e Tecnologia criada pelo governo, como resposta e uma forte e constante reivindicação da comunidade científica, em especial da SBPC, ao longo de vários anos. Algo parecido aconteceu com as Secretarias Estaduais de Ciência e Tecnologia nos anos que se seguiram à década de 1980.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      2007
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