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Saúde e Doença nas Experiências Religiosas/Espirituais: Integrando Modelos de Wilber e Cloninger

Health and Illness in Religious/Spiritual experiences: integrating Wilber’s and Cloninger’s Models

Salud y Enfermedad en Experiencias Religiosas/Espirituales: integración de los modelos de Wilber y Cloninger

Resumo

O estudo científico das experiências religiosas/espirituais tem sido negligenciado ao longo da história da Psicologia, ocasionando uma indiferenciação destas e dos sintomas psicóticos de conteúdo religioso/espiritual. O objetivo deste artigo foi analisar e comparar duas teorias: a Psicologia Integral, de Wilber, e o Modelo Psicobiológico de Cloninger, a fim de desenvolver critérios para diferenciar saúde e doença mental em experiências religiosas/espirituais. O conceito wilberiano de “Falácia Pré-Trans” aparece enquanto chave de leitura para a diferenciação entre experiência religiosas/espirituais e transtornos mentais, aproximando-se da concepção de maturidade de caráter observada nos conceitos de autodirecionamento e de autotranscendência de Cloninger.

Palavras-chave:
experiências religiosas; transpessoal; autodirecionamento; autotranscendência

Abstract

The scientific study of religious/spiritual experiences has been neglected throughout the history of psychology causing a lack of differentiation between them and psychotic symptoms. The objective of this study was to analyze and compare two theories: Integral Psychology, by Wilber, and the Psychobiological Model, by Cloninger, in order to distinguish health and mental illness in religious/spiritual experiences. The Wilberian concept of “Pre-Trans Fallacy” is a reading key to differ religious/spiritual experiences from mental disorders. It is similar to the conception of Maturity of Character observed in Cloninger’s concepts of Self-directedness and Self-transcendence.

Keywords:
Religious experiences; Transpersonal; Self-directedness; Self-transcendence

Resumen

El estudio científico de las experiencias religiosas/espirituales ha sido descuidado a lo largo de la historia de la Psicología causando una indiferencia de éstas y de los síntomas psicóticos de contenido religioso/espiritual. El objetivo de este artículo fue analizar y comparar dos teorías: la Psicología Integral, de Wilber, y el Modelo Psicobiológico de Cloninger, con el fin de desarrollar criterios para diferenciar salud y enfermedad mental en experiencias religiosas/espirituales. El concepto Wilberiano de “Falacia Pre-Trans” aparece como clave de lectura para la diferenciación entre la experiencia religiosa/espiritual y los trastornos mentales, acercándose a la concepción de madurez de carácter observada en los conceptos de Autodirección y Autotrascendencia de Cloninger.

Palabras-clave:
Experiencias religiosas; Transpersonal; Autodirección; Autotrascendencia

Entre as classificações internacionais de transtornos mentais, alguns dos mais graves sintomas encontram-se no âmbito das alucinações e delírios psicóticos (APA, 2013American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders, 5th Edition: DSM-5 (5 edition). Washington, D.C: American Psychiatric Publishing.). Ao mesmo tempo, várias experiências psicóticas apresentam, em seu conteúdo, elementos religiosos e/ou espirituais (R/E) (Dalgalarrondo, 2007Dalgalarrondo, P. (2007). Brazilian studies on religion and mental health: History and current perspectives. Revista de Psiquiatria Clínica, 34, 25-33. doi: 10.1590/S0101-60832007000700005
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). Ao longo da história da Psiquiatria e da Psicologia, há um amplo espectro de experiências de caráter R/E que foram consideradas como parte de um quadro característico de doença mental (Almeida & Lotufo Neto, 2004Almeida, A. M. de, & Lotufo Neto, F. (2004). Mediumship seen by some pioneers of mental health. Revista de Psiquiatria Clínica, 31(3), 132-141. doi: 10.1590/S0101-60832004000300003
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; Moreira-Almeida, Silva de Almeida, & Neto, 2005). E, embora atualmente se tenha uma compreensão mais abrangente de certos fenômenos, permanece a dificuldade de diferenciação entre experiências R/E não patológicas e sintomas psicóticos de conteúdo R/E (Koenig, 2007Koenig, H. G. (2007). Religião, espiritualidade e psiquiatria: Uma nova era na atenção à saúde mental. Revista de Psiquiatria Clínica. (São Paulo), 34(supl.1), 5-7. doi: 10.1590/S0101-60832007000700002
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; Moreira-Almeida & Cardeña, 2011Moreira-Almeida, A., & Cardeña, E. (2011). Differential diagnosis between non-pathological psychotic and spiritual experiences and mental disorders: A contribution from Latin American studies to the ICD-11. Revista Brasileira de Psiquiatria, 33, s21-s28. doi: 10.1590/S1516-44462011000500004
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).

Claridge (2010Claridge, G. (2010). Spiritual experience: Healthy psychoticism? Em Clarke (Ed.), Psychosis and Spirituality (pp. 75-87). John Wiley & Sons, Ltd. Recuperado de http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9780470970300.ch7/summary
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) afirma que, se as experiências e crenças espirituais são fenomenologicamente semelhantes à visão de mundo psicótica, restam apenas duas posições: 1 - concluir que a religião é apenas uma forma de loucura e que os religiosos são meramente insanos; ou 2 - decidir que as pessoas diagnosticadas como psicóticos podem ser verdadeiramente visionários incompreendidos, rotulados erroneamente e menosprezados por aqueles que não possuem a mesma sensibilidade. Segundo o autor, ambas são respostas generalistas. Caso a experiência espiritual e a psicose guardem algumas semelhanças, não significa que tenham a mesma etiologia. É necessário observar criteriosamente o vasto espectro de fatores culturais, sociais, psicológicos e biológicos implicados nessa questão.

William James [1842-1910], em seu livro “Variedades da Experiência Religiosa”, define as características da experiência religiosa como: 1) Inefável tão extraordinária que não pode ser descrita de forma inteligível para nenhuma pessoa que não tenha tido uma experiência semelhante; 2) Noética - a experiência provoca uma forma de insight, trazendo algo como uma “revelação”; 3) Transitória - não dura mais do que meia hora; 4) Passiva - a experiência não pode ser “criada” e as pessoas relatam terem sido “tomadas por algo” (James, 1929James, W. (1929). The varieties of religious experience. London: Modern Library.).

Em virtude das semelhanças fenomenológicas entre sintomas psicóticos e algumas experiências R/E não patológicas, Grof e Grof (1989Grof, S., & Grof, C. (1989). Spiritual emergency: When personal transformation becomes a crisis. Los Angeles: New York: Warner Books., 1997Grof, C., & Grof, S. (1997). Stormy search for the self, the: A guide to personal growth through transformational crisis (Reprint edition). Flushing, N.Y.: Jeremy P Tarcher.) criaram o conceito de emergências espirituais (spiritual emergences) a fim de nomear crises existenciais em que experiências R/E poderiam emergir tanto de uma forma saudável (spiritual emergence) quanto perturbadora (spiritual emergency). Outros autores também têm apontado uma série de terminologias utilizadas para identificar experiências que se assemelham a sintomas psicóticos, embora não sejam necessariamente patológicas (Cardeña, Lynn, & Krippner, 2004Cardeña, E., Lynn, S. J., & Krippner, S. (2004). Varieties of anomalous experience: Examining the scientific evidence. Washington, DC: American Psychological Association.). Mais recentemente, o termo “experiência anômala” tem sido proposto para nomear sem assumir implicações psicopatológicas - vivências incomuns, diferentes do habitual ou das explicações usualmente aceitas como realidade (Cardeña et al., 2004Cardeña, E., Lynn, S. J., & Krippner, S. (2004). Varieties of anomalous experience: Examining the scientific evidence. Washington, DC: American Psychological Association.; Martins & Zangari, 2012Martins, L. B., & Zangari, W. (2012). Relations among typical contemporary anomalous experiences, mental disorders and spiritual experiences. Revista de Psiquiatria Clínica, 39(6), 198-202. doi: 10.1590/S0101-60832012000600004
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).

Alguns estudos foram conduzidos no Brasil visando compreender as experiências anômalas em contexto religioso, trazendo importantes contribuições a esse tema (Menezes Jr., Alminhana, & Moreira-Almeida, 2012Menezes Jr., A., Alminhana, L., & Moreira-Almeida, A. (2012). Perfil sociodemográfico e de experiências anômalas em indivíduos com vivências psicóticas e dissociativas em grupos religiosos. Revista de Psiquiatria Clínica, 39(6), 203-207. doi: 10.1590/S0101-60832012000600005
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; Moreira-Almeida, Lotufo Neto, & Greyson, 2007Moreira-Almeida, A., Lotufo Neto, F., & Greyson, B. (2007). Dissociative and psychotic experiences in Brazilian spiritist mediums. Psychotherapy and Psychosomatics, 76(1), 57-58. doi: 10.1159/000096365
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). Em uma revisão sistemática, Menezes Jr e Moreira-Almeida apresentam “Nove Critérios Diferenciais entre Experiências Religiosas e Transtornos Mentais”. Embora seja um importante esforço em direção a maior compreensão do fenômeno, os Nove Critérios não foram respaldados em evidências empíricas e, mesmo após terem sido testados, apenas a metade mostrou correlação com saúde mental, carecendo de mais estudos (Menezes Jr, 2012Menezes Jr., A. (2012). Estudo prospectivo sobre o diagnóstico diferencial entre experiências mediúnicas e transtornos mentais de conteúdo religioso (Tese de doutorado em Saúde). Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora/MG.; Menezes Jr & Moreira-Almeida, 2009Menezes Jr., A., & Moreira-Almeida, A. (2009). Differential diagnosis between spiritual experiences and mental disorders of religious content. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), 36(2), 75-82. doi: 10.1590/S0101-60832009000200006
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).

Frente a esse cenário, o principal objetivo deste artigo é apresentar duas teorias de personalidade que integram a espiritualidade em seu modelo. Estas sugerem critérios teóricos e experimentais que permitem uma compreensão mais ampla das diferenças entre saúde e doença mental nas experiências anômalas de caráter R/E (Cloninger, Svrakic & Przybeck, 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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; Wilber, 2000bWilber, K. (2000b). The marriage of sense and soul: Integrating science and religion. New York: Broadway Books.).

A Abordagem Integral em Psicologia: Ken Wilber e a “Falácia Pré-Trans”

A chamada Abordagem Integral reflete uma tentativa teórica de sistematização capaz de integrar, de maneira harmoniosa, diferentes perspectivas psicológicas sobre a consciência (Tatton-Ramos & Alminhana, 2007Tatton-Ramos, T., & Alminhana, L. O. (2007). Por uma epistemologia maior O “essencialismo” como necessidade na sociologia transcendental de Ken Wilber. Revista Virtú-ICH. 5 ed. ISSN 18089011. Recuperado de http://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/5a-1.pdf
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; Wilber, 1996Wilber, K. (1996). The spectrum of consciousness (2nd edition edition). Wheaton, IL USA: Quest Books, U.S., 2000aWilber, K. (2000a). Integral psychology: Consciousness, spirit, psychology, therapy (1st Pbk. Ed edition). Boston: Shambhala Publications Inc.). A partir de uma volumosa revisão de literatura sobre diferentes estados de consciência, Ken Wilber desenvolveu um modelo teórico que denominou de “Abordagem Integral em Psicologia”. Pautado em uma fenomenologia similar àquela de Eliade (1959Eliade, M. (1959). The sacred and the profane: The nature of religion. New York: Harcourt Australia.), ou seja, por meio da busca de elementos essenciais em diferentes tradições místicas - do ocidente e do oriente - a Abordagem Integral promoveu um embate inovador entre Psicologia, R/E e saúde mental (Wilber, 2000aWilber, K. (2000a). Integral psychology: Consciousness, spirit, psychology, therapy (1st Pbk. Ed edition). Boston: Shambhala Publications Inc.). Embora vários livros do autor tenham sido traduzidos para o português, suas discussões epistemológicas ainda não tiveram inserção importante no âmbito acadêmico.

No trabalho de Wilber, Engler, & Brown (1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.), realizado com o apoio de psiquiatras de Harvard como Jack Engler e Daniel P. Brown, é elaborada uma lista de possíveis psicopatologias para diferentes níveis de desenvolvimento do ego (da noção de “eu”). Estes incluem desde processos psicológicos básicos até experiências R/E ou anômalas. Portanto, ao invés de ignorar essa suposta dimensão da experiência religiosa, os autores tomam como fenomenologias válidas as experiências de místicos ocidentais e orientais, tais como São João da Cruz, Eckhart, Sri Aurobindo e Nagarjuna. Assim procedendo, retomam e ampliam o caminho trilhado décadas antes por um dos pais da Psicologia, William James, no clássico “As variedades da Experiência Religiosa” (James, 1929James, W. (1929). The varieties of religious experience. London: Modern Library.). Também contribuem com a chamada Psicologia da Religião, da década de 1880, a qual sempre esteve presente na história da Psicologia (Paiva, 2002Paiva, G. J. Ciência, religião, psicologia: Conhecimento e comportamento. Psicologia: Reflexão e Crítica, 15(3), 561-567.).

Conceitos ainda recentes - porém pouco conhecidos - desenvolvidos pela Abordagem Integral, como “falácia pré-trans” e “ciência ampla”, tratam da dificuldade em legitimar o grau de fidedignidade de uma experiência R/E (Wilber, 2000bWilber, K. (2000b). The marriage of sense and soul: Integrating science and religion. New York: Broadway Books.). Essa “fidedignidade” seria um reflexo da organização da experiência R/E ao nível do ego em que é vivenciada (Wilber et al., 1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.). Por exemplo, uma experiência que pode ser interpretada como “falar com Deus”, dependendo do nível de organização egoica do indivíduo que a experimenta, pode ser tanto a consequência de um adoecimento psíquico quanto uma vivência mística ou transcendente potencialmente saudável (Wilber et al., 1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.). Essa compreensão, somada à instrumentalização de epistemologias teológicas, como a teoria dos “três olhos do conhecimento” de São Boaventura, levada a cabo pela Abordagem Integral, permite o desenvolvimento de ferramentas que proporcionam um avanço para as pesquisas sobre as relações entre experiências R/E e saúde (Wilber, 2000bWilber, K. (2000b). The marriage of sense and soul: Integrating science and religion. New York: Broadway Books., 2001Wilber, K. (2001). Eye to eye: The quest for the new paradigm (New edition edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.; Wilber et al., 1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.).

Falácia Pré-Trans

Segundo Wilber (1996Wilber, K. (1996). The spectrum of consciousness (2nd edition edition). Wheaton, IL USA: Quest Books, U.S., 2000aWilber, K. (2000a). Integral psychology: Consciousness, spirit, psychology, therapy (1st Pbk. Ed edition). Boston: Shambhala Publications Inc.), a personalidade se desenvolve por meio de diferentes estruturas e níveis, que vão desde camadas pré-egoicas até a dimensão transegoica, passando - propriamente - pela formação do eu (nível egoico). Manifestações comuns ao nível transegoico podem incluir experiências anômalas de diferentes ordens, incluindo aquelas observadas na esfera da R/E, exemplarmente representadas pela vivência de êxtase místico (Walsh & Vaughan, 1994Walsh, R. N., & Vaughan, F. (1994). Paths beyond ego: Transpersonal vision. Los Angeles, CA: Warner Books.; Wilber et al., 1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.). Ao incluir a investigação desse nível no desenvolvimento da personalidade, Wilber se coloca ao lado de uma longa e respeitada tradição da Psicologia que inclui estudiosos, como William James, Erik Erikson, Erich Fromm, Carl G. Jung, Viktor Frankl, A. Maslow e M. Seligman (Argyle, 1999Argyle, M. (1999). Psychology and religion: An introduction. London; New York: Routledge.; Paloutzian & Park, 2013Paloutzian, R. F., & Park, C. L. (2013). Handbook of the psychology of religion and spirituality, second edition (Second Edition edition). New York, NY: The Guilford Press.; Wulff, 1997Wulff, D. H. (1997). Psychology of religion: Classic and contemporary views (2nd Edition). New York: John Wiley & Sons.). Essa perspectiva contrapõese a modelos que - peremptoriamente - compreendem as experiências R/E como formas gerais de neuroses, ilusões, distorções cognitivas e infantilidade do pensamento, como a interpretação freudiana clássica (Freud, 2001Freud, S. (2001). Complete psychological works of sigmund freud, The Vol 21: “The Future of an Illusion”, “Civilization and Its Discontents” and Other Works Vol 21 (New Ed edition). London: Vintage Classics.) e os demais reducionismos (Dawkins, 2007Dawkins, R. (2007). The God Delusion (New Ed with additions edition). London: Black Swan.; Dennett, 2007Dennett, D. C. (2007). Breaking the spell: Religion as a natural phenomenon (Reprint edition). London: Penguin.).

Em seu modelo, o nível pré-egoico resume as teorias clássicas do desenvolvimento, compreendendo o pré-ego como o período que abrange as vivências básicas da infância. Parte dessas vivências, na criança, envolve não apenas as dificuldades de diferenciação “eu-outro” e formação de uma identidade, mas também a imersão em um universo de fantasias, tais como experiências que podem incluir o diálogo com “amigos invisíveis” e universos autorreferenciais. Na criança, ou seja, no pré-ego, tais experiências são naturais e quase sempre saudáveis, sendo parte natural do processo de formação do eu. Porém, no adulto, vivências pré-egoicas estão associadas a experiências psicotizantes, que podem incluir alucinações e delírios de conteúdo R/E ou não (p. ex., delírios de onipotência onde o indivíduo acredita que está em contato direto com Deus).

A novidade no modelo de Wilber (2008Wilber, K. (2008). Collected Works of Ken Wilber: v.2: Atman Project, Up from Eden, Selected Essays: Vol 2. Boston: Shambhala Publications Inc.) está na investigação das estruturas trans-egoicas que transcendem a formação de um eu saudável. As vivências do tipo trans-egoicas estão associadas ao bem-estar, qualidade de vida e estruturação saudável da personalidade. Podem incluir estados místicos, de bem-aventurança e diversas vivências R/E (Wilber, 2008Wilber, K. (2008). Collected Works of Ken Wilber: v.2: Atman Project, Up from Eden, Selected Essays: Vol 2. Boston: Shambhala Publications Inc.). A principal diferença entre uma experiência de caráter pré-egoico e outra de caráter transegoico é a presença ou não de um ego saudável capaz de traduzi-la de forma coerente, madura, atribuindo-lhe um sentido que signifique e integre essa experiência na vida do indivíduo como um todo.

Um trecho de Campbell (1995Campbell, J. (1995). Myths to live by. London: Souvenir Press Ltd.), resume de forma poética as ideias apresentadas acima:

O místico, dotado de talentos inatos e seguindo a instrução de um mestre, entra na água e descobre que sabe nadar; o esquizofrênico, por sua vez, despreparado, sem orientação e sem dotes, caiu nela, ou mergulhou voluntariamente, e está se afogando ( Campbell, 1995Campbell, J. (1995). Myths to live by. London: Souvenir Press Ltd. , p.119).

Wilber (1996Wilber, K. (1996). The spectrum of consciousness (2nd edition edition). Wheaton, IL USA: Quest Books, U.S.; 2008Wilber, K. (2008). Collected Works of Ken Wilber: v.2: Atman Project, Up from Eden, Selected Essays: Vol 2. Boston: Shambhala Publications Inc.), no entanto, aponta para um problema central no entendimento tradicional da Psicologia em relação ao amplo espectro de experiências R/E - a chamada falácia pré-trans. O autor chama a atenção para o fato de que a influência das teorias psicodinâmicas induziu a uma classificação incorreta das experiências R/E na perspectiva da saúde, já que estas tendem a confundir estruturas de desenvolvimento pré-egoicas com as transegoicas (Wilber, 1996Wilber, K. (1996). The spectrum of consciousness (2nd edition edition). Wheaton, IL USA: Quest Books, U.S.). Isso ocorreria quando uma experiência de caráter pré-egoica é erroneamente classificada como uma experiência transegoica, e vice-versa, justamente pela semelhança fenomenológica das vivências descritas em cada uma delas (Wilber, 1996Wilber, K. (1996). The spectrum of consciousness (2nd edition edition). Wheaton, IL USA: Quest Books, U.S.).

Talvez devido à sua eloquência metafísica, linguagem um tanto esotérica e, especialmente falta de pesquisa experimental, a Abordagem Integral ainda não está devidamente inserida no meio acadêmico. Permanece, portanto, como uma engenhosidade filosófica e teórica que, como pensador pode auxiliar na reflexão sobre as relações entre personalidade e espiritualidade. Não obstante, o modelo é parcialmente resgatado por C. Robert Cloninger para o desenvolvimento do modelo Psicobiológico do Temperamento e Caráter (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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).

C. Robert Cloninger e o Modelo Psicobiológico de Temperamento e Caráter

O Modelo Psicobiológico é dividido em dois aspectos fundamentais: o Temperamento e o Caráter (Cloninger, Bayon & Svrakic, 1998Cloninger, C. R., Bayon, C., & Svrakic, D. M. (1998). Measurement of temperament and character in mood disorders: A model of fundamental states as personality types. Journal of Affective Disorders, 51(1), 21-32. doi: 10.1016/S0165-0327(98)00153-0
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; Cloninger et a., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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). De acordo com Cloninger, o Temperamento reúne as bases neurogenéticas que fundamentam a personalidade e pode ser observado por meio de respostas automáticas em relação a estímulos emocionais. As características de temperamento de cada indivíduo determinarão as diferenças em suas respostas emocionais habituais, como medo, raiva e aversão. As dimensões do temperamento identificadas por Cloninger (2004Cloninger, C. R. (2004). Feeling good: The science of wellbeing. Oxford; New York: OUP USA.) são: Busca por Novidade; Evitação por Danos; Dependência de Recompensa e Persistência.

Observando que características como maturidade, flexibilidade e intuição não eram contempladas em seu modelo de personalidade, Cloninger (2004Cloninger, C. R. (2004). Feeling good: The science of wellbeing. Oxford; New York: OUP USA.) comparou a dinâmica do temperamento com sistemas que descreviam o caráter humano, como a Psiquiatria Psicodinâmica e as Psicologias Humanistas e Transpessoal. Depois disso, concluiu que o “Caráter” seria o reflexo de objetivos e valores pessoais, surgindo por meio das interações do indivíduo com a realidade que o cerca (relações sujeito-objeto).

Dessa forma, o caráter seria a consequência de três aspectos do desenvolvimento de autoconceitos: 1) o quanto uma pessoa é capaz de se ver como um indivíduo autônomo; 2) como uma parte integral da humanidade ou da sociedade; 3) como uma parte integral do Universo, como um “todo”. Assim sendo, cada aspecto de autoconceito, corresponde a uma das três dimensões de Caráter: 1) Autodirecionamento; 2) Cooperatividade; 3) Autotranscendência (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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).

  • Autodirecionamento: quando um indivíduo é capaz de controlar, regular e adaptar o comportamento para se ajustar à determinada situação, de acordo com objetivos e valores que ele mesmo tenha escolhido. Capacidade de autocrítica, sentido de propósito na vida, capacidade de adiar gratificações e superação de desafios (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
    https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
    ). Baixo autodirecionamento é a característica comum entre os transtornos de personalidade, os transtornos psicóticos e de humor (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
    https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
    ; Gonzalez-Torres et al., 2009Gonzalez-Torres, M. A., Inchausti, L., Ibáñez, B., Aristegui, M., Fernández-Rivas, A., Ruiz, E., … Bayón, C. (2009). Temperament and character dimensions in patients with schizophrenia, relatives, and controls: The Journal of Nervous and Mental Disease, 197(7), 514-519. doi: 10.1097/NMD.0b013e3181aacc1a
    https://doi.org/10.1097/NMD.0b013e3181aa...
    ; Gutiérrez-Zotes, Córtez, Valero, Peña, & Labad, 2005Gutiérrez-Zotes JA, Cortés MJ, Valero J, Peña J, & Labad A. (2005). Psychometric properties of the abbreviated Spanish version of TCI-R (TCI-140) and its relationship with the Psychopathological Personality Scales (MMPI-2 PSY-5) in patients. Actas Esp Psiquiatr. 33(4), 231-237.).

  • Cooperatividade: capacidade de identificar-se e de aceitar as outras pessoas; sociabilidade que é oposta ao egocentrismo e à hostilidade. Pessoas cooperativas são descritas como tolerantes, empáticas, solícitas e compassivas (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
    https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
    ).

  • Autotranscendência (self-aware consciousness): Fundamentada na Psicologia Humanista, Transpessoal e Integral (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
    https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
    ). Apesar da importância dessas experiências, elas têm sido sistematicamente negligenciadas e omitidas de inventários de personalidade (Alminhana & Moreira-Almeida, 2009Alminhana, L. O., & Moreira-Almeida, A. (2009). Personality and religiousness/spirituality (R/E). Revista de Psiquiatria Clínica, 36(4), 153-161. doi: 10.1590/S0101-60832009000400005
    https://doi.org/10.1590/S0101-6083200900...
    ). Autotranscendência se refere à capacidade de “esquecer” de si mesmo, indo além dos impulsos egoístas e familiares. Possibilidade de aceitar a existência de relações que podem estar além das soluções meramente analíticas e dedutivas, como ocorre em experiências relacionadas à espiritualidade (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
    https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
    ).

Assim definido, o Caráter envolveria a aprendizagem baseada em insight ou conceitual que emerge após a aprendizagem pré-conceitual e está associada ao temperamento (Cloninger, 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
). Segundo Cloninger, Svrakic e Przybeck (1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
), o desenvolvimento da personalidade é um processo epigenético interativo onde os fatores hereditários do temperamento motivam a aprendizagem por insight, a qual, por sua vez, modifica a significância do estímulo percebido.

A partir disso, Cloninger et al. (1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
), desenvolveram o Inventário de Temperamento e Caráter (ITC), a fim de mensurar quantitativamente as sete dimensões de personalidade. O ITC tem sido administrado em inúmeros estudos, em diversos países e, por integrar a espiritualidade como um constructo ligado à maturidade do caráter, tem apresentado resultados importantes para o avanço da compreensão das relações entre personalidade e espiritualidade (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
; Cloninger, Svrakic, & Svrakic, 1997Cloninger, C. R., Svrakic, N. M., & Svrakic, D. M. (1997). Role of personality self-organization in development of mental order and disorder. Development and Psychopathology, 9(04), 881-906. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/9449010
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/94490...
; Guillem, Bicu, Semkovska, & Debruille, 2002Guillem, F., Bicu, M., Semkovska, M., & Debruille, J. B. (2002). The dimensional symptom structure of schizophrenia and its association with temperament and character. Schizophrenia Research, 56(1-2), 137-147. doi: 10.1016/S0920-9964(01)00257-2
https://doi.org/10.1016/S0920-9964(01)00...
; Hori et al., 2008Hori, H., Noguchi, H., Hashimoto, R., Nakabayashi, T., Saitoh, O., Murray, R. M., … Kunugi, H. (2008). Personality in schizophrenia assessed with the Temperament and Character Inventory (TCI). Psychiatry Research, 160(2), 175-183. doi: 10.1016/j.psychres.2007.05.015
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2007....
).

Autotranscendência: Sanidade ou Loucura?

A Autotranscendência (AT) é a dimensão do caráter que mais tem apresentado resultados controversos em pesquisas que investigam as relações entre personalidade e transtornos mentais. Vários estudos sobre esquizofrenia e esquizotipia têm apresentado um mesmo perfil de personalidade relacionado à presença de transtornos mentais: baixos escores em autodirecionamento (AD), baixos escores em cooperatividade (C) e altos escores em autotranscendência (AT) (Bayon, Hill, Svrakic, Przybeck, & Cloninger, 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/89233...
; Bora & Veznedaroglu, 2007Bora, E., & Veznedaroglu, B. (2007). Temperament and character dimensions of the relatives of schizophrenia patients and controls: The relationship between schizotypal features and personality. European Psychiatry: The Journal of the Association of European Psychiatrists, 22(1), 27-31. doi: 10.1016/j.eurpsy.2006.07.002
https://doi.org/10.1016/j.eurpsy.2006.07...
; Daneluzzo, Stratta, & Rossi, 2005Daneluzzo, E., Stratta, P., & Rossi, A. (2005). The contribution of temperament and character to schizotypy multidimensionality. Comprehensive Psychiatry, 46(1), 50-55. doi: 10.1016/j.comppsych.2004.07.010
https://doi.org/10.1016/j.comppsych.2004...
; Gonzalez-Torres et al., 2009Gonzalez-Torres, M. A., Inchausti, L., Ibáñez, B., Aristegui, M., Fernández-Rivas, A., Ruiz, E., … Bayón, C. (2009). Temperament and character dimensions in patients with schizophrenia, relatives, and controls: The Journal of Nervous and Mental Disease, 197(7), 514-519. doi: 10.1097/NMD.0b013e3181aacc1a
https://doi.org/10.1097/NMD.0b013e3181aa...
; Hori et al., 2008Hori, H., Noguchi, H., Hashimoto, R., Nakabayashi, T., Saitoh, O., Murray, R. M., … Kunugi, H. (2008). Personality in schizophrenia assessed with the Temperament and Character Inventory (TCI). Psychiatry Research, 160(2), 175-183. doi: 10.1016/j.psychres.2007.05.015
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2007....
). Hori et al. (2008)Hori, H., Noguchi, H., Hashimoto, R., Nakabayashi, T., Saitoh, O., Murray, R. M., … Kunugi, H. (2008). Personality in schizophrenia assessed with the Temperament and Character Inventory (TCI). Psychiatry Research, 160(2), 175-183. doi: 10.1016/j.psychres.2007.05.015
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2007....
encontraram associações entre esquizofrenia, baixos escores em AD e altos escores em AT, sugerindo que esta última seria uma dimensão da personalidade substancialmente relacionada com a gravidade dos sintomas positivos da doença.

Tais resultados parecem se contrapor à teoria desenvolvida no Modelo Psicobiológico (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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). Segundo esse modelo, as três dimensões do caráter (AD, C e AT) estariam apontando em direção à maturidade. A dimensão de autotranscendência (AT) foi especificamente relacionada às capacidades de ajustamento, satisfação pessoal e ir além do autocentramento e do pensamento analítico (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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). Por tudo isso, observa-se uma aparente contradição entre a proposta de maturidade do “eu” em relação à natureza e a totalidade do universo (altos escores em AT) e os achados que mostram alta AT como indicativo de presença de transtornos mentais ou de tendência para desenvolvê-los. Tal contradição reforça a dificuldade de compreender e diferenciar experiências de caráter R/E saudáveis de sintomas psicopatológicos, também apresentada na falácia pré-trans de Wilber (2008Wilber, K. (2008). Collected Works of Ken Wilber: v.2: Atman Project, Up from Eden, Selected Essays: Vol 2. Boston: Shambhala Publications Inc.).

Ao mesmo tempo, Guillem, Bicu, Semkovska e Debruille (2002Guillem, F., Bicu, M., Semkovska, M., & Debruille, J. B. (2002). The dimensional symptom structure of schizophrenia and its association with temperament and character. Schizophrenia Research, 56(1-2), 137-147. doi: 10.1016/S0920-9964(01)00257-2
https://doi.org/10.1016/S0920-9964(01)00...
) afirmam que altos escores em AT parecem caracterizar indivíduos que são capazes de tolerar a ambiguidade e que devem experimentar pensamento mágico e associações em consonância com os sintomas psicóticos. Em outro estudo, os autores sugerem que AT pode estar associada a dois constructos diferentes: um ligado à propensão à psicose, com imaturidade de caráter; e outro relacionado à “criatividade madura”, ou seja, abertura para sentimentos, pensamentos e comportamentos incomuns e também facilidade para oferecer significados incomuns e conexões imaginativas para as experiências. Assim, o que irá definir adoecimento ou saúde mental será a relação de AT com as demais características, principalmente aquelas ligadas ao desenvolvimento de maturidade do caráter (altos escores em AD e C) (Daneluzzo et al., 2005Daneluzzo, E., Stratta, P., & Rossi, A. (2005). The contribution of temperament and character to schizotypy multidimensionality. Comprehensive Psychiatry, 46(1), 50-55. doi: 10.1016/j.comppsych.2004.07.010
https://doi.org/10.1016/j.comppsych.2004...
).

Pessoas com alta AT que conseguiram desenvolver também uma estrutura de “eu” ou de “ego”, autonomia, responsabilidade, capacidade de relacionar-se com os demais (altos AD, C e AT), apresentam melhores níveis de saúde mental, criatividade e espiritualidade (Cloninger & et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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; Cloninger, 2004Cloninger, C. R. (2004). Feeling good: The science of wellbeing. Oxford; New York: OUP USA.; Fodor, 1995Fodor, E. M. (1995). Subclinical manifestations of psychosis-proneness, ego strength, and creativity. Personality and Individual Differences, 18(5), 635-642. doi: 10.1016/0191-8869(94)00196-Y
https://doi.org/10.1016/0191-8869(94)001...
). Por outro lado, indivíduos que apresentam alta AT, mas não conseguiram estruturar-se como indivíduos autônomos, possuem a tendência de culpar os outros ao invés de assumir responsabilidade por seus comportamentos e apresentam dificuldades para desenvolver relações interpessoais maduras e duradouras (baixos AD e C, embora alta AT), apresentam forte tendência para o desenvolvimento de uma série de transtornos mentais (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
; Bayon et al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
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; Cloninger, 2004Cloninger, C. R. (2004). Feeling good: The science of wellbeing. Oxford; New York: OUP USA.).

As relações entre AT e transtornos mentais já eram apresentadas de forma clara por Cloninger e seus colegas desde seus primeiros estudos (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
; Bayon et al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/89233...
). Nestes, os autores mencionam que AT seria particularmente útil para diagnosticar pacientes esquizotípicos, já que estes possuem a tendência de sustentar questões sobre percepção extrasensorial e demais elementos que apresentam fenomenologia similar às experiências anômalas observadas em certas manifestações de R/E (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
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).

Além disso, nesses estudos, os autores analisaram as relações entre os escores do ITC e os transtornos clínicos e de personalidade (Eixo I e II do DSM-III). Os resultados confirmaram que baixos escores em AD e C parecem ser as características essenciais associadas a todos os transtornos de personalidade. Além disso, alta AT está associada à tendência a ver significados não usuais e conexões imaginativas nas experiências vividas (Bayon et al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/89233...
).

Em resumo, tudo indica que o conceito de autotranscendência (AT) constitui uma medida confiável para a compreensão das experiências relacionadas a R/E. Igualmente, quando AT é observada isoladamente, é difícil classificá-la como um indicador de maturidade (saúde) ou imaturidade (patologia). A fenomenologia presente na experiência do místico, por exemplo, se analisada isoladamente, é pouco elucidativa, posto suas semelhanças com a experiência da loucura. Apenas a associação dessas vivências com os níveis de autodirecionamento (AD) e de cooperatividade (C) é que poderão apontar de maneira acurada para as consequências de adoecimento ou saúde (Bayon et.al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/89233...
). Mais especificamente: altos escores em AT, AD e C sugerem saúde; altos escores em AT e baixos escores em AD e C sugerem adoecimento (Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
; Bayon et al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/89233...
).

Os Construtos de “Falácia Pré-trans”, “Autodirecionamento” e “Autotranscendência”: Visões Complementares sobre Saúde Mental e R/E

Os dois modelos de personalidade apresentados anteriormente, a Abordagem Integral e o Modelo Psicobiológico de Temperamento e Caráter, mostram pontos de encontro fundamentais para o entendimento das relações entre experiências R/E e níveis de saúde/adoecimento. Apesar de Wilber e Cloninger adotarem perspectivas epistemológicas distintas, os modelos possuem pontos de contato e, em grande parte, as duas teorias apresentam semelhanças. Conceitos semelhantes, tais como: maturidade do ego (“nível egoico”, em Wilber, e “autodirecionamento”, em Cloninger) e vivência de experiências R/E (vivências transegoicas, em Wilber, e experiências de autotranscendência, em Cloninger).

Como apresentado anteriormente, Cloninger (2004Cloninger, C. R. (2004). Feeling good: The science of wellbeing. Oxford; New York: OUP USA.) chama a atenção para a correspondência entre o que ele define como “desenvolvimento da dimensão do caráter” e o que é chamado - em outras teorias - de maturação cognitiva, desenvolvimento psicossexual ou desenvolvimento do ego. Tais relações recebem suporte de estudos que mostram que os traços do caráter estão, de fato, fortemente relacionados à maturidade das defesas do ego (Mulder, Joyce, Sellman, Sullivan, & Cloninger, 1996Mulder, R. T., Joyce, P. R., Sellman, J. D., Sullivan, P. F., & Cloninger, C. R. (1996). Towards an understanding of defense style in terms of temperament and character. Acta Psychiatrica Scandinavica, 93(2), 99-104. doi: 10.1111/j.1600-0447.1996.tb09809.x
https://doi.org/10.1111/j.1600-0447.1996...
). Nesse sentido, Holt et al. (2008Holt, N., Simmonds-Moore, C., Moore, S., Holt, N., Simmonds-Moore, C., & Moore, S. (2008). Benign schizotypy: Investigating differences between clusters of schizotype on paranormal belief, creativity, intelligence and mental health. Em S. Sherwood & S. Sherwood (Eds.), Proceedings of Presented Papers: The Parapsychological Association 51st Annual Convention (pp. 82-96). Parapsycholgical Association. Recuperado de http://eprints.uwe.ac.uk/15726/
http://eprints.uwe.ac.uk/15726/...
) e Claridge (2010Claridge, G. (2010). Spiritual experience: Healthy psychoticism? Em Clarke (Ed.), Psychosis and Spirituality (pp. 75-87). John Wiley & Sons, Ltd. Recuperado de http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9780470970300.ch7/summary
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.10...
) apontam para características chamadas de “força do ego”, ou uma tendência a não ver as coisas de forma autorreferenciada. Investigando a influência da propensão à psicose e da força do ego na criatividade de estudantes universitários, Fodor (1995Fodor, E. M. (1995). Subclinical manifestations of psychosis-proneness, ego strength, and creativity. Personality and Individual Differences, 18(5), 635-642. doi: 10.1016/0191-8869(94)00196-Y
https://doi.org/10.1016/0191-8869(94)001...
), define força do ego como a capacidade de tolerar e de se realizar por meio da independência e flexibilidade.

Em se tratando de força do ego (Fodor), Autodirecionamento (Cloninger) ou Ego maduro (Wilber), observa-se a importância central da estruturação da noção de “eu” (ego), sendo este o elemento central que direciona as experiências para a saúde ou para a doença. Dessa forma, altos escores em Autotranscendência - isoladamente - podem sugerir características do nível pré-egoico de Wilber, associadas ao espectro das psicoses (Wilber et al., 1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.). Essa relação é particularmente forte quando essas vivências não estão associadas com maturidade do “eu” (altos escores em Autodirecionamento (AD) no modelo de Cloninger). Por outro lado, quando experiências de AT estão associadas à maturidade de caráter (altos escores em AD e C) é provável uma relação com a saúde e o bem-estar do nível transegoico descrito por Wilber (Wilber, 2000aWilber, K. (2000a). Integral psychology: Consciousness, spirit, psychology, therapy (1st Pbk. Ed edition). Boston: Shambhala Publications Inc.).

A confusão ou falácia poderá ocorrer quando se observa unicamente a relação entre alta AT e experiências psicóticas, desconsiderando-se o papel fundamental da força do ego ou, especificamente, do Autodirecionamento nas experiências anômalas ou R/E (Bayon et al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
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; Bora & Veznedaroglu, 2007Bora, E., & Veznedaroglu, B. (2007). Temperament and character dimensions of the relatives of schizophrenia patients and controls: The relationship between schizotypal features and personality. European Psychiatry: The Journal of the Association of European Psychiatrists, 22(1), 27-31. doi: 10.1016/j.eurpsy.2006.07.002
https://doi.org/10.1016/j.eurpsy.2006.07...
; Daneluzzo et al., 2005Daneluzzo, E., Stratta, P., & Rossi, A. (2005). The contribution of temperament and character to schizotypy multidimensionality. Comprehensive Psychiatry, 46(1), 50-55. doi: 10.1016/j.comppsych.2004.07.010
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; Gonzalez-Torres et al., 2009Gonzalez-Torres, M. A., Inchausti, L., Ibáñez, B., Aristegui, M., Fernández-Rivas, A., Ruiz, E., … Bayón, C. (2009). Temperament and character dimensions in patients with schizophrenia, relatives, and controls: The Journal of Nervous and Mental Disease, 197(7), 514-519. doi: 10.1097/NMD.0b013e3181aacc1a
https://doi.org/10.1097/NMD.0b013e3181aa...
; Smith, Riley, & Peters, 2009Smith, L., Riley, S., & Peters, E. R. (2009). Schizotypy, delusional ideation and well-being in an American new religious movement population. Clinical Psychology & Psychotherapy, 16(6), 479-484. doi: 10.1002/cpp.645
https://doi.org/10.1002/cpp.645...
; Svrakic et al., 2002Svrakic, D. M., Draganic, S., Hill, K., Bayon, C., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (2002). Temperament, character, and personality disorders: etiologic, diagnostic, treatment issues. Acta Psychiatrica Scandinavica, 106(3), 189-195. doi: 10.1034/j.1600-0447.2002.02196.x
https://doi.org/10.1034/j.1600-0447.2002...
; Hori et al., 2008Hori, H., Noguchi, H., Hashimoto, R., Nakabayashi, T., Saitoh, O., Murray, R. M., … Kunugi, H. (2008). Personality in schizophrenia assessed with the Temperament and Character Inventory (TCI). Psychiatry Research, 160(2), 175-183. doi: 10.1016/j.psychres.2007.05.015
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).

Conclusão

Este artigo versou sobre as relações entre quatro temas centrais: 1 - o modelo da Abordagem Integral, de Ken Wilber; 2 - o Modelo Psicobiológico do Temperamento e Caráter, de Cloninger; 3 - experiências anômalas e R/E; 4 - os conceitos de saúde e adoecimento. Buscou-se oferecer critérios teóricos e experimentais mais robustos e atuais para avaliação das relações entre experiências R/E e desfechos de saúde. Foi possível perceber nos dois modelos não apenas a inclusão de elementos R/E como fatores importantes no desenvolvimento da personalidade, mas também as propostas similares e complementares no que tange a diferenciação entre experiências do tipo saudáveis e patológicas (Wilber & colaboradores, 1991Wilber, K., Engler, J., & Brown, D. (1991). Transformations of consciousness: Conventional and contemplative perspectives on development (1 edition). Boston: New York: Shambhala Publications Inc.; Wilber, 2008Wilber, K. (2008). Collected Works of Ken Wilber: v.2: Atman Project, Up from Eden, Selected Essays: Vol 2. Boston: Shambhala Publications Inc.; Cloninger et al., 1993Cloninger, C. R., Svrakic, D. M., & Przybeck, T. R. (1993). A psychobiological model of temperament and character. Archives of General Psychiatry, 50(12), 975-990. doi: 10.1001/archpsyc.1993.01820240059008
https://doi.org/10.1001/archpsyc.1993.01...
).

Assim sendo, talvez seja possível responder às indagações levantadas por Claridge (2010Claridge, G. (2010). Spiritual experience: Healthy psychoticism? Em Clarke (Ed.), Psychosis and Spirituality (pp. 75-87). John Wiley & Sons, Ltd. Recuperado de http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9780470970300.ch7/summary
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), quando traz à tona a questão sobre o que diferencia duas pessoas que possuem a mesma propensão a experiências anômalas, sendo uma levada ao transtorno e outra à “inspiração”, espiritualidade ou criatividade. Quais seriam os determinantes para isso?

Em resposta à indagação, é legítimo pensar que os parâmetros oferecidos pela análise da estrutura da personalidade possam servir como uma ferramenta importante para diferenciar um quadro de psicopatologia de uma experiência R/E saudável. Os estudos têm evidenciado o papel do desenvolvimento do caráter, enquanto maturidade do “eu” (AD); do “nós” (C) e do “todo” (AT), na diferenciação entre saúde e doença mental (Bayon et al., 1996Bayon, C., Hill, K., Svrakic, D. M., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (1996). Dimensional assessment of personality in an out-patient sample: Relations of the systems of Millon and Cloninger. Journal of Psychiatric Research, 30(5), 341-352. Recuperado de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8923338 http://dx.doi.org/10.1016/0022-3956(96)00024-6
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; Bora & Veznedaroglu, 2007Bora, E., & Veznedaroglu, B. (2007). Temperament and character dimensions of the relatives of schizophrenia patients and controls: The relationship between schizotypal features and personality. European Psychiatry: The Journal of the Association of European Psychiatrists, 22(1), 27-31. doi: 10.1016/j.eurpsy.2006.07.002
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; Daneluzzo et al., 2005Daneluzzo, E., Stratta, P., & Rossi, A. (2005). The contribution of temperament and character to schizotypy multidimensionality. Comprehensive Psychiatry, 46(1), 50-55. doi: 10.1016/j.comppsych.2004.07.010
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; Gonzalez-Torres et al., 2009Gonzalez-Torres, M. A., Inchausti, L., Ibáñez, B., Aristegui, M., Fernández-Rivas, A., Ruiz, E., … Bayón, C. (2009). Temperament and character dimensions in patients with schizophrenia, relatives, and controls: The Journal of Nervous and Mental Disease, 197(7), 514-519. doi: 10.1097/NMD.0b013e3181aacc1a
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; Svrakic et al., 2002Svrakic, D. M., Draganic, S., Hill, K., Bayon, C., Przybeck, T. R., & Cloninger, C. R. (2002). Temperament, character, and personality disorders: etiologic, diagnostic, treatment issues. Acta Psychiatrica Scandinavica, 106(3), 189-195. doi: 10.1034/j.1600-0447.2002.02196.x
https://doi.org/10.1034/j.1600-0447.2002...
; Hori et al., 2008Hori, H., Noguchi, H., Hashimoto, R., Nakabayashi, T., Saitoh, O., Murray, R. M., … Kunugi, H. (2008). Personality in schizophrenia assessed with the Temperament and Character Inventory (TCI). Psychiatry Research, 160(2), 175-183. doi: 10.1016/j.psychres.2007.05.015
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2007....
).

Conclui-se assim, que a mera observação e descrição de uma determinada experiência religiosa/ espiritual, ou mesmo a observação dos critérios sintomatológicos apresentados em manuais de transtornos mentais, como o DSM (American Psychiatric Association, 2013), parecem limitados para classificar uma experiência desse tipo como saudável ou patológica (Moreira-Almeida & Cardeña, 2011Moreira-Almeida, A., & Cardeña, E. (2011). Differential diagnosis between non-pathological psychotic and spiritual experiences and mental disorders: A contribution from Latin American studies to the ICD-11. Revista Brasileira de Psiquiatria, 33, s21-s28. doi: 10.1590/S1516-44462011000500004
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). Quando um indivíduo relata experiências anômalas de conteúdo R/E (autotranscendência), é preciso examinar a maturidade de ego, o nível de autodirecionamento, a capacidade de independência, responsabilidade e autocrítica. Também é preciso avaliar o nível de cooperatividade, de tolerância e aceitação das diferenças, de empatia e capacidade de relacionamento social. Ao que tudo indica, somente agregando esses critérios, pode-se avaliar com mais clareza a natureza saudável (transegoica) ou patológica (pré-egoica) da experiência. Futuros estudos poderão verificar a viabilidade de tais apontamentos por meio de análises teórico-experimentais, especialmente utilizando as ferramentas aqui apresentadas, a saber: os conceitos teóricos da Abordagem Integral e o Inventário de Temperamento e Caráter (ITC). Desse modo, será possível reunir elementos teóricos fundamentais com um instrumento capaz de mensurar e avaliar empiricamente as relações entre experiências R/E e transtornos mentais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2015
  • Revisado
    28 Mar 2016
  • Aceito
    31 Mar 2016
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