Resenha1
O direito à humanidade
The right to the humanity
Le droit à l'humanité
El derecho a la humanidad
Olgária Matos
Universidade de São Paulo - USP
Patto, M. H. S. (2000). Mutações do cativeiro: escritos de psicologia epolítica. São Paulo: Hacker.
"Mutações do Cativeiro (Escritos de Psicologia e Política)" de Maria Helena Souza Patto, é também resistência ao cativeiro. Reunindo ensaios sobre a escrita dahistória em Michelet, o ofício do artista em Cézanne, a educação e a cultura, realiza a crítica à racionalidade política contemporânea, que, nas democracias ocidentais, atua segundo o abuso do poder econômico e a humilhação dos indivíduos, operando ativamente a exclusão social, não apenas dos direitos civis e políticos, massobretudo da educação e da cultura, que, para Maria Helena, constituem a quintessência da cidadania. Seu eixo encontra-se na concepção de cultura e de educaçãoem tempos neoliberais, "pragmáticos", performáticos e globalizantes.
No ensaio "Mutações do cativeiro (Caminhos da semiformação)", a autora revela o modo de produção que transforma o cidadão em necessitado, a consciênciapública em filantropia e a conseqüente tradução do indivíduo marginalizado àcondição de "incompetente social". Ao tratar de uma pesquisa em educação realizada na Universidade de Yale sobre técnicas de aprendizagem e "inteligência emocional", para fins de "sucesso escolar", Maria Helena escreve:
O livro silencia sobre a qualidade do ensino, os preconceitos e estereótiposque grassam no ambiente escolar, as humilhações freqüentes a que são submetidas as crianças pobres em sala de aula... e o confronto de interesses das classes no interior das escolas numa palavra, omite a dimensão política dainstituição escolar. (p. 168).
O discurso da ciência constrói e legitima a marginalização que supostamente deveria combater: a ciência é "preconceito compartilhado" quando dissimula o sentido que deveria revelar e a "racionalidade" que a habita. Ideológica, mostra Maria Helena, é a racionalidade compreendida como mensuração e calculabilidade, bem como "autodomínio" de emoções desestabilizadoras de comportamentos desejáveis pela instituição, a fim de ajustar "emocionalmente" o estudante aos fins do mercado:
Além da volta ao organicismo dos anos sessenta e setenta (quando a disfunção cerebral mínima explicou todos os desvios da norma), à deficiência intelectuale cognitiva acrescenta-se agora uma nova explicação para as dificuldades deescolarização de crianças pobres em escolas públicas a deficiência de inteligência emocional inscrita em rotas neurais inatas que não foram corrigidas. Uma volta, com sofisticação técnico-científica, ao acento naturalista presentena psicologia desde seu nascimento, inclusive no Brasil. Tudo indica que, em matéria de avaliação psicológica, diagnósticos neuropsíquicos dos excluídos substituirão em breve a psicanálise vulgar e o cognitivismo raso dos laudosatuais. (p. 16).
Neste sentido, o racionalismo moderno comporta a tese dogmática segundo a qual só é racional o que for classificável e só o que é calculável e pensável. Motivo pelo qual ratio vem a significar adequação de pensamentos e atos a "fatos" e situações.
Para uma crítica da razão psicométrica" mostra as questões científicas, técnicas, econômicas e de poder ocultadas pelas noções de objetividade e neutralidade axiológica, "inocentes" com respeito a seus "objetos de reflexão": "Noções neutralizadas e matematizadas de diferenças individuais e grupais de capacidade psíquica foram elaboradas a partir de condições sócio-históricas determinadas que é preciso desvendar. Foi desta perspectiva que se pôde fazer a crítica da cruzada psicométrica do começo do século XX e da "teoria" dacarência cultural.... Isto posto, três afirmações intimamente relacionadas, quese fazem presentes nos debates sobre testes, precisam ser revistas: a primeira qualifica a crítica ético-política como fácil, superficial e inútil, pois, para realizá-la, supõe-se que bastaria apresentar-se como "marxista" e em seguida taxar tudo de ideológico; a segunda separa ciência e ética a partir do pressuposto de que "Ciência é uma coisa, Ética, outra"; a terceira classifica a crítica ético-política como crítica externa ao conhecimento, em contraposição à análiselógico-formal da correção do pensamento..., esta sim tida como verdadeira crítica interna. (pp. 76-78).
A preocupação de Maria Helena com estas técnicas de ensino diz respeito à educação e à democracia, quando a quantificação é tomada como índice de escolarização. Educação "barata" supõe a substituição da educação formadora das potencialidades de cada um, o desenvolvimento de suas habilidades pelo "analfabetismo secundário" instrução "curta", feita por professores "curtos" (com baixo custo de formação) em cursos "curtos" (supostamente profissionalizantes).
O presente trabalho se constrói como engajamento ético, poisprioriza a educação formadora nos termos da tradição humanista do Ocidente, dos valores herdados da Grécia, de Roma, de Jerusalém phylia, cidadania civil e amor ao próximo , o que se condensa na prioridade à leitura atenta e concentrada e à produção artística. Não por acaso, fazem parte desta coletânea o diálogo entre Cézanne e Zola e um texto dedicado ao "historiador-poeta" Michelet. Ambos atestam um fazer que requisita tempo e método, método compreendido, antes de mais nada, como "afeição" aos "objetos de reflexão". Anteriores à compartimentação cientificista das competências contemporâneas e contemporâneos da interlocução dos saberes são o pintor e o historiador. Quanto ao historiador, Maria Helena observa:
(Michelet) certamente foi mais que um historiador: referências à sensibilidadede poeta, ao efeito sinfônico da composição verbal, à noção precisa da relação entre forma e conteúdo da escritura, à acuidade da visão dramática, à apreensão shakespeareana dos fatos, à tristeza dostoievskiana de seus escritos são freqüentes entre críticos e intérpretes. Mais do que cientista, Michelet foi um cientista-artista que não aderiu à assepsia exigida pela ciência e transpôs a fronteira que a separava da arte numa época em que esta divisão foi-se tornando mais radical nas ciências do homem. (p. 12)
Também a importância do tempo a necessidade de dedicação e assiduidade , encontra-se em Cézanne. "dada não só a complexidade do quadro da natureza, mas também à sua diversidade" (p. 52).
No que tange à educação e à cultura, Maria Helena esclarece a diferença entre o "espírito enciclopedista" que acumula conhecimentos sementre eles tecer relações de significação e "espírito culto" aquele para quem a cultura se tornou uma maneira de ser e de viver. Não por acaso a autora se volta para as reflexões de Adorno acerca da educação como barreira contra os totalitarismos. Trata-se, no ensaio que dá nome ao livro, da educação que, à distância da indústria cultural que veicula e produz estereótipos e da educação performática ou semiformação não oculta a sua identidade: ela é humanista, forma o indivíduo no reconhecimentodos bens culturais, pois, como escreveu Adorno, "os deserdados da cultura são os verdadeiros herdeiros da cultura". A educação liga-se à experiência emocional e intelectual que exige distância da aceleração do tempo nas sociedades globais e globalizadoras que fazem coincidir consumo e felicidade.
Trabalho e trabalho espiritual não se dissociam, assim como o "olhardo artista" não é só percepção mas também reflexão a mesma que se encontra na literatura e na narrativa histórica de Michelet. O tempo dareflexão não segue a velocidade das revoluções técnicas e científicas ligadas à indústria e à microeletrônica. Que se pense e também aqui é grande o mérito dos escritos deste livro na educação como experiênciade pensamento, isto é, de autoconhecimento. Que se lembre, para enfatizar esta "resistência ao cativeiro", das palavras de Proust. Em "À Sombradas Raparigas em Flor", o narrador descreve como se foi constituindo para ele, progressivamente, a "Sonata de Venteuil", cujos compassos acompanham toda a "Recherche":
Esse tempo de que necessita um indivíduo para ingressar em uma obra profunda é como o resumo e símbolo dos anos e por vezes séculos que devem transcorrer até que o público possa apreciá-la verdadeiramente.... Foram os próprios quartetos de Beethoven que levaram 50 anos para dar vida e número ao público de suas composições, realizando o que seria impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, criaturas capazes de amá-la.
O presente trabalho nos convida a reconhecer nas obras de pensamento partes de uma vida inteira constituída de paradoxos, enganose liberdade. É preciso gerações para recebê-las e interpretá-las, para decifrar a serenidade de Sócrates no momento de sua morte, os êxtases de Plotino, as noites atormentadas das "Meditações Metafísicas" de Descartes.
Realizando uma "crítica à razão excludente", encontramos nas linhase entrelinhas deste trabalho a presença de Adorno, filósofo da educação e crítico da cultura. Para ele e para a autora, à distância de fundamentalismos econômicos, religiosos e ódios étnicos, pensar a educação formadora humanista constitui uma barreira contra a violência e é prática anti-dogmática de hospitalidade e amizade.
Olgária Matos, Professora Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Loefgreen, 1667, Vila Clementino, São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04040-030. Endereço eletrônico: olgaria@uol.com.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Out 2011 -
Data do Fascículo
Set 2011