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Governabilidade, força e sublimação: Freud e a filosofia política

Governability, strength and sublimation: Freud and politics philosophy

Gouvernabilité, force et sublimation: Freud et la philosophie politique

Gobierno, poder y sublimación: Freud y la filosofía política

Resumos

A proposta deste ensaio é estabelecer as relações entre as questões de governabilidade e da força em psicanálise, indicando as possibilidades e as impossibilidades presentes no campo da política para a realização da sublimação. Para isso o ensaio realiza a leitura sobre a política no pensamento de Freud nas suas relações com a filosofia política.

Força; Sublimação; Política; Filosofia política


The aim of this paper is of setting up the conections between governability and strength’issues in psychoanalysis, pointing out the possibilities and the impossibilities in the politic’s field for the accomplhishment of the sublimation. For that the paper works over the politic’s issue in the Freud’s thinking in their conections with the politics philosophy.

Strenght; Sublimation; Politics; Philosophy politics


Le présent essai vise à établir les relations entre les questions de la gouvernabilité et de la force en psychanalyse, en indiquant les possibilités et les impossibilités présentes dans le champ de la politique, pour la réalisation de la sublimation. Dans ce but, cet essai réalise une lecture de la politique dans la pensée de Freud, dans ses rapports avec la philosophie politique.

Force; Sublimation; Politique; Philosophie politique


El propósito de este ensayo es establecer la relación entre las cuestiones de la gobernanza y la fuerza en el psicoanálisis, lo que indica las posibilidades e imposibilidades presentes en el campo de la política para la realización de la sublimación. Para esta prueba lleva a cabo la lectura de la política en el pensamiento de Freud en las relaciones con la filosofía política.

Fuerza; Sublimación; Política; Filosofia política


Dossiê Sublimação

Governabilidade, força e sublimação Freud e a filosofia política1 1 Este texto foi escrito a partir das notas que me orientaram na conferência realizada na Universidade de São Paulo, no Departamento de Psicologia, no Colóquio franco-brasileiro sobre “A força e a sublimação”, em 6 e 7 de novembro de 2009.

Governability, strength and sublimation. Freud and politics philosophy

Gouvernabilité, force et sublimation. Freud et la philosophie politique

Gobierno, poder y sublimación. Freud y la filosofía política

Joel Birman

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

A proposta deste ensaio é estabelecer as relações entre as questões de governabilidade e da força em psicanálise, indicando as possibilidades e as impossibilidades presentes no campo da política para a realização da sublimação. Para isso o ensaio realiza a leitura sobre a política no pensamento de Freud nas suas relações com a filosofia política.

Palavras-chave: Força. Sublimação. Política. Filosofia política.

ABSTRACT

The aim of this paper is of setting up the conections between governability and strength’issues in psychoanalysis, pointing out the possibilities and the impossibilities in the politic’s field for the accomplhishment of the sublimation. For that the paper works over the politic’s issue in the Freud’s thinking in their conections with the politics philosophy.

Keywords: Strenght. Sublimation. Politics. Philosophy politics.

RÉSUMÉ

Le présent essai vise à établir les relations entre les questions de la gouvernabilité et de la force en psychanalyse, en indiquant les possibilités et les impossibilités présentes dans le champ de la politique, pour la réalisation de la sublimation. Dans ce but, cet essai réalise une lecture de la politique dans la pensée de Freud, dans ses rapports avec la philosophie politique.

Mots-clés: Force. Sublimation. Politique. Philosophie politique.

RESUMEN

El propósito de este ensayo es establecer la relación entre las cuestiones de la gobernanza y la fuerza en el psicoanálisis, lo que indica las posibilidades e imposibilidades presentes en el campo de la política para la realización de la sublimación. Para esta prueba lleva a cabo la lectura de la política en el pensamiento de Freud en las relaciones con la filosofía política.

Palabras-clave: Fuerza. Sublimación. Política. Filosofia política.

1 Abertura

O que está em pauta neste ensaio é o estabelecimento das relações entre o conceito de sublimação e a problemática da força. É preciso dizer, logo de início, que tais relações são bastante difíceis de serem definidas e bem delineadas. Por quê? Porque elas não podem ser estabelecidas de maneira simples, tampouco lineares, na medida em que para serem tecidas é preciso conjugar domínios e territórios heterogêneos, que remetem a campos de positividades diferenciados.

Assim, se a sublimação é um conceito eminentemente psicanalítico, que foi forjado por Freud desde o início de seu percurso teórico em “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos” (Freud, 1908/1973), a problemática da força, em contrapartida, não é o objeto específico de nenhuma disciplina, no sentido estrito. A dita problemática da força, com efeito, aparece como questão em diferentes discursos teóricos, como a filosofia, a política, a antropologia, a psicologia e até mesmo a biologia, mas não é o objeto teórico específico de nenhuma delas. No próprio discurso psicanalítico o tema da força se delineia também como questão e até mesmo como problemática primordial, mas não se pode dizer que a força se constitui efetivamente como objeto teórico do discurso psicanalítico. Portanto, a questão da força se configura como uma problemática eminentemente interdisciplinar, na medida em que pode ser tematizada no campo de diferentes discursos teóricos. Daí, enfim, tem-se a heterogeneidade de domínios e de territórios que existe entre o conceito de sublimação e a problemática de força.

Ao enunciar isso a minha intenção inicial é de não apenas sublinhar a dificuldade da questão que foi aqui colocada como tema deste colóquio, mas principalmente a de indicar que é necessário configurar um caminho de acesso para fazer conjugar e dialogar o conceito de sublimação e a problemática de força. Uma operação de ordem metodológica deverá ser então empreendida, para tornar tais conjugações e diálogos possíveis. Além disso, como é o discurso psicanalítico que está em pauta, terei que encontrar necessariamente este caminho de acesso a partir do conceito de sublimação, para poder então estabelecer os liames com a problemática da força.

Para isso, no entanto, é preciso estabelecer a que responde o conceito de sublimação em psicanálise, isto é, quais foram as condições de possibilidade para o enunciado deste conceito no discurso freudiano. Ao lado disso, é preciso depreender como a questão da força se inscreve no campo das condições de possibilidade para a formulação do conceito de sublimação.

Comecemos então pela configuração esquemática do conceito de sublimação em psicanálise, assim como de suas condições de possibilidade, numa leitura inicial do discurso freudiano.

2 Força e sublimação

Desde que foi inicialmente enunciado por Freud (1908/1973), o conceito de sublimação permaneceu como uma referência permanente ao longo do discurso freudiano. Contudo, como será aqui destacado tal conceito foi reconfigurado e remanejado ao longo deste discurso teórico, sendo então transformado no seu enunciado e nas suas articulações conceituais. Portanto, nas suas formulações inicial e final, no campo do discurso freudiano, o conceito de sublimação indica características bem diferenciadas, que são até mesmo opostas.

Assim, se foi apenas em “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos” (Freud, 1908/1973) que o discurso freudiano forjou decisivamente o conceito de sublimação, podemos rastrear, contudo, a preocupação de Freud com esta questão num tempo histórico anterior. Com efeito, na sua correspondência com Fliess, Freud já aludia ao campo teórico que viria a constituir o dito conceito, mas sem enunciá-lo efetivamente.

Ao que aludia Freud, afinal das contas? Freud afirmara então que o que existia de mais elevado na condição humana, do ponto de vista espiritual, teria a mesma origem daquilo que seria também o que existia de mais vil na dita condição humana, isto é, os imperativos da sexualidade e do gozo (Freud, 1887-1902/1973). Portanto, de um mesmo tronco poderiam se forjar derivações diversas e até mesmo opostas, conduzindo ao que seria o mais torpe e o mais sublime da produção humana.

Nesta alusão à sexualidade, que pode conduzir o sujeito a produções psíquicas opostas, Freud delineou a presença do imperativo do prazer, que lhe regularia. Foi por este viés que posteriormente, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Freud, 1905/1962), ensaio publicado em 1905, Freud formulou o conceito de pulsão, como uma exigência de trabalho que é imposta ao psíquico em decorrência de sua ligação com o corporal (Freud, 1905/1962). Viria a ser, portanto, do imperativo da ação da pulsão sobre o psiquismo que adviria o mais torpe e o mais sublime na condição do sujeito, a que Freud aludiu inicialmente. Enfim, a pulsão seria então o tronco comum entre essas derivações opostas na produção do sujeito.

Assim, se o alvo da pulsão é sempre a obtenção do prazer, tal finalidade pode conduzir o sujeito tanto ao erotismo quanto à violência, à agressividade e à crueldade, por um lado. Por outro lado, pode conduzi-lo também em direção à produção do sublime. Portanto, foi neste campo imantado por destinos diversos e até mesmo opostos, delineado pelo conceito de pulsão, que Freud inscreveu o conceito de sublimação no discurso psicanalítico.

De qualquer maneira, mesmo para que se constituíssem esses diferentes destinos para a força (Drang) da pulsão (Freud, 1905/1962), seria preciso que a dita força fosse capturada pelo aparelho psíquico. Com efeito, em “O eu e o isso” (Freud, 1923/1981), ensaio publicado em 1923, Freud concebeu o psiquismo como um aparelho de captura da força da pulsão, para que esta pudesse então se derivar por diferentes destinos no campo do psíquico. Portanto, o psiquismo foi então concebido como um aparelho de captura da força pulsional, para que fossem então forjados diferentes destinos para a dita força.

Pode-se depreender então facilmente, neste esboço inicial da metapsicologia freudiana, como a questão da força se configurou no discurso psicanalítico. A força, como excitação e intensidade, que se imporia então como um imperativo ao psíquico e que delineia para este uma inequívoca exigência de trabalho para capturá-la e constituir destinos para aquela, estaria assim sempre presente. Isso porque a pulsão seria, para Freud, uma força constante (Freud, 1915/1968), que poderia produzir desprazer e dor. Eis o motivo pelo qual seria preciso capturar e construir destinos para a dita força no psiquismo, inscrevendo-a nos caminhos da produção do prazer.

Portanto, a sublimação seria um dos destinos a ser forjado para a dita força da pulsão. Com efeito, em “A pulsão e seus destinos” (Freud, 1915/1968), ensaio publicado em 1915, Freud enunciou a existência de quatro diferentes destinos para a dita força: a passagem da atividade à passividade, o retorno ao próprio corpo, o recalque e a sublimação. Portanto, por esses diferentes destinos a força da pulsão se inscreveria num processo de subjetivação, de maneira que aquela pudesse ser devidamente regulada .

Assim, a força da pulsão estaria sempre presente como exigência e como condição de possibilidade para a produção da sublimação. Dito isso, é preciso destacar agora como o discurso freudiano enunciou diferentes leituras sobre a sublimação, ao longo de seu percurso teórico.

3 Leituras sobre a sublimação

Da concepção inicial enunciada em 1908, em “A moral sexual ‘civilizada’ e as doenças nervosas dos tempos modernos” (Freud, 1908/1973) até as “Novas conferências sobre a psicanálise” (Freud, 1933/1984), a formulação sobre a sublimação se transformou radicalmente. É importante ressaltar que no início e no final do discurso freudiano, o que estaria em pauta no processo sublimatório não seria mais a mesma coisa.

Com efeito, se inicialmente Freud concebeu a sublimação como uma operação psíquica voltada para a deserotização da pulsão sexual, mas pela qual seria mantido o mesmo objeto de investimento da pulsão, de maneira que o dito objeto se transformaria de erótico em sublime, no final do seu percurso, em contrapartida, o que estaria em pauta seria outra operação metapsicológica. Nesse contexto, erotizar e sublimar se oporiam à crueldade e à destrutividade, no equilíbrio sempre instável que seria estabelecido entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Além disso, neste outro contexto a sublimação implicaria agora na invenção de novos objetos de investimento para a pulsão, de forma que a pulsão de vida pudesse regular devidamente a pulsão de morte. Portanto, se inicialmente a sublimação e a erotização estariam inscritas em polos opostos no psiquismo, posteriormente estariam bem mais próximas e inscritas no mesmo polo psíquico, ambas buscando a afirmação da vida contra a morte.

Essas duas leituras diferentes sobre a sublimação –, fundadas seja na disjunção, seja na conjunção possível entre a erotização e a sublimação – conduziram a duas interpretações opostas sobre o mal-estar na civilização. Assim, em “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos” (Freud, 1908/1973), o imperativo da sublimação impediria a plena expansão do erotismo no psiquismo, produzindo o dito mal-estar em decorrência disso. Em contrapartida, em o “Mal-estar na civilização” (Freud, 1930/1971), ensaio publicado em 1930, o mal-estar seria produzido pela destrutividade e pela crueldade, que poderiam ser regulados pela erotização e pela sublimação, na regulação da pulsão de morte pela pulsão de vida.

De qualquer maneira, para que o aparelho psíquico pudesse então capturar e forjar devidamente os diferentes destinos para a força da pulsão, a sublimação se inscreveria em dois domínios diversos, realizando assim as suas operações numa dupla direção. Com efeito, se por um lado pela sublimação seria preciso constituir objetos social e culturalmente valorizados e compartilhados, oferecendo à força da pulsão uma satisfação outra que a erótica, por outro, seria ainda pela sublimação que os traços do caráter do sujeito seriam também construídos (Freud, 1905/1962). Portanto, a sublimação incidiria nos registros do dentro e do fora do aparelho psíquico, delineando tanto a interioridade quanto a exterioridade.

Assim, se seria pela operação psíquica do recalque que a sexualidade perverso-polimorfa poderia ser regulada psiquicamente, de maneira a promover pelo asco, pela piedade e pela vergonha a impossibilidade efetiva da sexualidade infantil (Freud, 1905/1962), a sublimação relançaria, em contrapartida, a sexualidade perverso-polimorfa e estes afetos primordiais em direção aos domínios do belo e do sublime. Nesta perspectiva, a leitura freudiana do campo da moral se imbricaria intimamente com a leitura do campo da estética, face e verso que seriam de uma mesma problemática, inscrevendo-se ambas nas bordas entre o dentro e o fora do aparelho psíquico, de maneira a configurar decisivamente a interioridade e a exterioridade.

Foi em decorrência disso que o discurso freudiano concebeu a sublimação em “O eu e o isso” (Freud, 1923/1981) como um efeito decisivo da perda da satisfação direta da pulsão e do seu objeto correlato de investimento. Assim, com a perda do objeto e da satisfação correlata, o dito objeto seria inscrito no psiquismo como um traço. Por conta disso, o eu passou a ser então concebido como um conjunto disperso de traços psíquicos, que seriam oriundos da perda de objetos (Freud, 1923/1981).

Estaria assim delineado o campo do conceito de sublimação no discurso freudiano, nas suas implicações metapsicológicas, de maneira sintética. No entanto, o campo teórico deste conceito incidia em diferentes domínios, que cabe agora evocar, não apenas no que se refere ao discurso freudiano, mas também no que concerne aos destinos pós-freudianos da psicanálise.

4 Arte, moral e política

Assim, Freud trabalhou e explorou o conceito da sublimação em diferentes domínios, de maneira a incidir sobre temas específicos do campo do pensamento na modernidade. Não obstante a conjunção existente entre tais domínios e temas, este mantém, contudo, uma certa autonomia teórica na leitura freudiana. Nessa leitura, Freud realizou a problematização destes temas e domínios.

Quais foram estes domínios e temas? Os registros da arte, da moral e da política. Nas problematizações destes existia sempre a referência direta ao registro do sujeito, pela qual este se inscrevia e promovia ao mesmo tempo as experiências da arte, da moral e da política. Portanto, seriam sempre os registros do sujeito e da subjetivação que estariam em pauta, nas problematizações empreendidas sobre aqueles domínios e temas no discurso freudiano.

Porém, a tradição psicanalítica pós-freudiana tratou desses temas e domínios de maneira nitidamente desigual, seja nos desdobramentos e interpretações que realizaram sobre a sublimação, seja nas leituras que empreenderam do discurso freudiano. Com efeito, nesta tradição, a questão da sublimação foi bastante trabalhada no que concerne o campo da arte, sobre o qual se pode destacar uma ampla bibliografia, mas também no registro da moral, principalmente no que se refere aos registros do super-eu, do ideal do eu e do eu ideal. No entanto, o registro da política ficou no segundo plano, para sermos generosos com esta tradição, pois se poderia até mesmo dizer que ficou completamente esquecido e como foi mesmo descartado pelo discurso psicanalítico.

Assim, mesmo na leitura de grandes obras de referência de Freud, como “Totem e tabu” (Freud, 1913/1975) e “O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1938/1986), nas quais a problematização da política é evidente e que se encontra até mesmo no primeiro plano da leitura de Freud, esta problematização não é frequentemente evocada pelos comentadores. O que se coloca em evidência nas releituras dessas obras são os registros da moral e da religião.

Pode-se arguir sobre as razões presentes neste silêncio e neste descarte, na problematização da política no discurso freudiano, na medida em que eles são bastante eloquentes. Suponho até mesmo que tal indagação deva ser feita, pois se trata de uma questão crucial para o futuro da psicanálise. Isso porque o que está em causa nesta interpelação não é apenas a possível reconstrução da história do discurso freudiano e da tradição psicanalítica pós-freudiana, mas também o destino da psicanálise na contemporaneidade.

5 A política na tradição pós-freudiana

No que concerne à política na tradição pós-freudiana, é possível levantar diversas hipóteses que se encontram entrelaçadas. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a comunidade psicanalítica seria bem pouco politizada, de forma que a questão da política não foi efetivamente trabalhada pela primeira e foi até mesmo excluída muitas vezes nas leituras do discurso freudiano. Assim, a redução ostensiva do campo psicanalítico ao estatuto de ser uma simples terapêutica do psiquismo e que implicou numa evidente medicalização e psiquiatrização da psicanálise, seria o correlato deste baixo nível de politização na comunidade psicanalítica.

Porém, é preciso reconhecer, logo em seguida, que tal nível restrito de politização seria discutível, pois existiria efetivamente a presença de um grande conservadorismo na comunidade psicanalítica. Portanto, o que estaria em causa seria menos a despolitização presente na comunidade psicanalítica, do que o seu conservadorismo.

Nessa perspectiva, a melhor forma de lidar com a problematização da política, presente na leitura freudiana, numa comunidade marcadamente conservadora, seria a transformação do discurso psicanalítico num discurso eminentemente técnico, voltado para a terapêutica das perturbações psíquicas. Se foi por este viés que o domínio da política foi claramente silenciado e descartado pela tradição psicanalítica pós-freudiana, esta realizou ainda, de maneira correlata, releituras do discurso freudiano nas quais a problematização da política desapareceu também de maneira eloquente.

Nos últimos anos, no entanto, uma transformação importante aconteceu no campo psicanalítico, de maneira que o domínio da política passou a se fazer novamente presente no discurso psicanalítico. Poder-se-ia supor inicialmente que talvez a comunidade analítica tenha se tornado menos despolitizada e menos conservadora. Contudo, não estou certo disso.

Poderíamos pensar, em seguida, que a disseminação de instituições psicanalíticas e a multiplicação nessas de diferentes referenciais teóricos na contemporaneidade teriam conduzido a uma disputa política maior e mais acirrada na comunidade analítica, o que também não acontecia antigamente, em decorrência da soberania presente nessa comunidade. Parece-me que esta hipótese é mais plausível, pois em decorrência disso poderia supor-se que uma politização maior teria se feito mais presente na comunidade analítica.

De qualquer maneira, isso ainda não é tudo para interpretar devidamente a maior presença do domínio da política no discurso psicanalítico na contemporaneidade. Assim, é preciso destacar ainda as transformações que ocorreram no espaço social contemporâneo, que incidiram de maneira decisiva no funcionamento psíquico dos sujeitos. Com efeito, é preciso, ainda, reconhecer que existe uma disseminação de formas inéditas de violência e de crueldade hoje, em que se pode depreender como as perturbações psíquicas se evidenciam principalmente no registro da ação e na qual o registro da palavra se evapora ostensivamente. Seria por causa disso que a questão da passagem ao ato está na ordem do dia na contemporaneidade.

Com isso, as formas de ser das subjetividades hoje indicam a existência de novas modalidades de dor e de sofrimento (Birman, 2006/2009), que colocam em questão o funcionamento do dispositivo psicanalítico clássico (Birman, 2006/2009). Diante disso, os analistas devem necessariamente se voltar para o domínio da política, para se indagarem pelas transformações radicais que ocorrem hoje no espaço social, com o intuito de se aproximarem das novas formas de subjetivação produzidas.

Parece-me que foi em decorrência disso que um colóquio como este foi organizado, procurando pensar nas relações existentes entre os registros da força e da sublimação, não apenas porque a problemática da força remete diretamente ao domínio da política, mas também porque as novas formas de subjetivação na contemporaneidade evidenciam pequena possibilidade de sublimação. Seria por isso que as perturbações psíquicas centradas na ação se disseminam tanto na atualidade.

Para retomar então a leitura do domínio da política, assim como delinear as relações existentes entre a força e a sublimação no discurso freudiano, vou realizar um duplo movimento teórico. Inicialmente, vou indicar de maneira esquemática e introdutória como no discurso freudiano a leitura do aparelho psíquico supõe que se levem sempre em consideração as formas de sociabilidade e as formas de poder. Vale dizer, estas seriam o Outro na leitura que Freud realizou dos processos de subjetivação.Em seguida, vou me centrar nas diferentes leituras sobre a governabilidade que foram enunciadas por Freud, ao longo de seu percurso teórico.

6 Narcisismo e alteridade

Como Freud era inequivocamente um analista clínico, ele teve que pensar na condição específica do sujeito na modernidade. Esta foi a condição de possibilidade para a constituição de outra modalidade de clínica, que foi realizada com a invenção da psicanálise. A construção teórica que Freud realizou do aparelho psíquico foi o desdobramento dessa condição. Isso porque o que estava em causa eram os impasses do sujeito na modernidade.

Entretanto, o sujeito em questão não se reduzia à noção de indivíduo concebido de maneira solipsista, de maneira que o sujeito em questão teria de estabelecer laços sociais com os demais sujeitos e ser ainda regulado por códigos coletivos. Portanto, esses laços e códigos seriam constitutivos do sujeito, delineando então as suas bases.

Contudo, para isso seria preciso realizar uma leitura do psiquismo pela qual o laço do sujeito com o outro seria fundamental. Com efeito, para Freud, o campo psíquico estaria polarizado entre a relação do sujeito com si mesmo e com o outro, de maneira permanente e sempre relançada. Vale dizer, o sujeito estaria sempre polarizado entre o registro do narcisismo e o da alteridade, numa dialética permanentemente recomeçada e sem trégua, que não se fixaria nem em um polo nem no outro. Portanto, se o sujeito no discurso freudiano seria marcado pela divisão e atravessado sempre pelo conflito, tal divisão e este conflito não se circunscreveriam ao registro da interioridade, mas se fariam também presentes na relação entre a interioridade e a exterioridade, isto é, entre o dentro e o fora.

Por isso mesmo, no ensaio intitulado “Psicologia das massas e análise do eu”, publicado em 1921, Freud pôde enunciar que em psicanálise não existiria a diferença entre a psicologia individual e a psicologia coletiva (Freud, 1921/1981), em decorrência da polaridade entre narcisismo e alteridade sempre presente no sujeito. Com efeito, aquela diferença e oposição teóricas, que foram estabelecidas na psicologia por Wundt, não teriam então qualquer validade para a psicanálise. Além disso, Freud indicava desta maneira a sua ruptura com o discurso da psicologia, evidenciando então que a psicanálise não era uma modalidade de psicologia, pois não legitimava a oposição entre os registros do indivíduo e da sociedade.

Parece-me que Lacan se aproximava do projeto teórico de Freud sobre o assunto. Com efeito, nos ensaios sobre a agressividade em psicanálise (Lacan, 1948/1966) e o estágio do espelho (Lacan, 1949/1966), publicados em 1948 e 1949 respectivamente, Lacan estabeleceu a oposição entre os registros do eu (moi) e do sujeito, indicando assim a ruptura teórica da psicanálise com a psicologia. Em decorrência disso, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (Lacan, 1953/1966), Lacan enunciou ainda que o registro do inconsciente era transindividual, isto é, o sujeito estaria no registro do inconsciente e não se superpunha ao registro do eu. Enfim, trata-se da mesma oposição entre o narcisismo e alteridade mais uma vez recolocada na cena teórica da psicanálise, desta vez por Lacan, em um momento decisivo da história da psicanálise, quando esta passou a se centrar no registro do eu, por meio da tradição norte-americana da psicologia do eu.

Dessa maneira, para realizar a leitura do sujeito e das formas de subjetivação, num campo psíquico polarizado entre os registros do narcisismo e da alteridade, o discurso freudiano teve que considerar na sua interpretação teórica as formas de sociabilidade e de poder. Certamente, pelo imperativo de constituir um discurso clínico que fosse rigoroso, a psicanálise teve de se centrar nos registros do sujeito e das formas de subjetivação. No entanto, isso implicava na consideração efetiva das formas de sociabilidade e de poder.

A questão que se coloca agora é como foi que o discurso freudiano realizou esta articulação e conjunção teóricas? A resposta para isso é clara e sem qualquer ambiguidade: pela problemática do mal-estar na modernidade.

7 Mal-estar na modernidade

Assim, pode-se afirmar que o mal-estar na modernidade é uma problemática fundamental do discurso freudiano e foi nesse conjunto maior que este discurso inscreveu a questão do sujeito. Porém, é preciso dizer que esta problemática não foi enunciada pelo discurso freudiano apenas no final do seu percurso, no “Mal-estar da civilização” (Freud, 1930/1971) como se enuncia comumente, mas desde o seu início, em “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos” (Freud, 1908/1973).

O título do ensaio é exemplar e eloquente no que concerne à problemática do mal-estar. Isso porque Freud procurou estabelecer a conjunção existente entre o código moral presente na modernidade e a doença nervosa, articulando assim de maneira cerrada os registros da sociabilidade, do poder e do sujeito.

No entanto, é preciso dizer ainda que o discurso freudiano realizou diferentes leituras sobre o mal-estar na modernidade ao longo do seu percurso teórico de maneira que a leitura empreendida no início não era a mesma que realizou no seu final. Estas diferentes leituras implicaram não apenas possibilidades diversas da psicanálise incidir decisivamente no dito mal-estar, mas também diferentes leituras sobre a governabilidade. No que concerne a isso, é preciso dizer que o diálogo em surdina que o discurso freudiano empreendeu com os diversos discursos oriundos da tradição da filosofia política evidenciam as leituras diferentes que Freud realizou sobre o mal-estar e a governabilidade.

Assim, no ensaio “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos”, Freud procurou estabelecer a diferença existente entre a sua leitura sobre o mal-estar na modernidade e as leituras que foram formuladas pelos discursos da medicina e da psiquiatria no início do século XX. Com efeito, o que estaria em pauta para Freud não era a incidência de certas características da experiência moderna e da sociedade em questão, como a aceleração do tempo e a maior regulamentação das práticas sociais sobre o sistema nervoso central, mas os impasses existentes entre as exigências eróticas do sujeito e os códigos instituídos de sociabilidade. Portanto, uma dissonância foi então estabelecida entre o registro da força, representada pela pulsão sexual no seu imperativo de satisfação, e os códigos morais estabelecidos.

Nessa perspectiva, a constituição da família nuclear burguesa e o imperativo da monogamia nos processos de acasalamento impediriam que o sujeito pudesse afirmar e fazer valer a potência da sexualidade perverso-polimorfa como pretenderia. Em decorrência disso, os imperativos da sexualidade perverso-polimorfa seriam inicialmente reprimidos, retornando, em seguida, sob a forma de sintomas, nas diferentes modalidades de neuroses. Ou, então, seriam produzidas inibições psíquicas severas, que impediriam a afirmação e a expansão do sujeito.

O discurso freudiano retomou assim, na sua leitura inicial sobre o mal-estar na modernidade, a concepção sobre a sexualidade que desenvolvera nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Freud, 1905/1962), quando enunciou pela primeira vez o conceito de pulsão sexual. Ao lado disso, procurando caracterizar devidamente a oposição existente entre a Antiguidade e a modernidade, no que concernia à relação do sujeito com o campo da sexualidade, o discurso freudiano afirmava que os antigos valorizavam mais a potência erótica, isto é, a sexualidade perverso-polimorfa, enquanto os modernos dariam ênfase excessiva às modalidades do objeto, por meio dos quais poderia realizar a finalidade da satisfação sexual (Freud, 1905/1962). Vale dizer que na modernidade a codificação excessivamente moralizante e moralista dos objetos permitidos e interditos, para o usufruto do gozo erótico, produziria a repressão da pulsão sexual e das inibições psíquicas de maneira a engendrar o incremento das perturbações psíquicas.

Dessa maneira, o sujeito não suportaria o excesso de sublimação que seria dele exigido por este código moral e por esta modalidade de sociabilidade, de forma que seria conduzido ao mal-estar. O incremento das perturbações psíquicas na modernidade seria o signo mais eloquente desse processo e impasse crucial.

Neste contexto, a psicanálise poderia incidir decisivamente sobre o dito campo do mal-estar, ao desvendar a construção dos sintomas nas diferentes neuroses e indicar os impasses presentes nas inibições psíquicas, de maneira a promover a cura das perturbações psíquicas e de promover a prevenção destas, pela sua leitura sobre as neuroses e a sexualidade. Com efeito, ao oferecer outro destino à força pulsional, que não fosse a repressão da pulsão sexual, a psicanálise possibilitaria o incremento da potência do sujeito e a sua expansão psíquica.

8 Conjuração da força

Em 1913, Freud procurou pensar nas condições de possibilidade para a conjuração da onipotência da força pulsional, pretendendo delinear assim a constituição da sociedade e da democracia modernas. O contexto desta elaboração teórica foi a publicação do ensaio intitulado “Totem e tabu” (Freud, 1913/1975), no qual o discurso freudiano enunciou de maneira mítica a constituição da modernidade política no Ocidente. Seria, portanto, pela regulação da força pulsional na sua onipotência, que seria possível a constituição de formas de subjetivação marcadas pela igualdade dos sujeitos. Desta maneira, poderia ser então possível pensar na configuração da democracia e da república, na modernidade ocidental.

Como Freud construiu a sua leitura? Pela evocação de um mito das origens, que retirou da biologia evolucionista de Darwin (Freud, 1913/1975). Assim, teria existido nas origens a figura de um pai onipotente que teria matado os seus filhos, todas as vezes que esses quisessem compartilhar com ele os objetos da experiência do gozo. Neste contexto, todas as fêmeas desta horda originária poderiam servir apenas para o gozo do pai primordial e os filhos não poderiam ter qualquer acesso à experiência de gozo, sob pena de serem mortos pelo pai onipotente. Como a figura paterna era onipotente do ponto de vista da força, os filhos não poderiam se confrontar com ela para não serem destruídos, caso ousassem rivalizar com o pai de maneira isolada, isto é, um contra um. Portanto, a submissão absoluta dos filhos à figura paterna era a contrapartida da onipotência do pai originário (Freud, 1913/1975).

Contudo, em um determinado momento, os filhos perceberam que separados não poderiam jamais enfrentar a figura onipotente do pai, mas que poderiam efetivamente conseguir enfrentá-lo caso fizessem a associação de suas forças individualmente débeis. Com esta associação de forças poderiam ser então bem mais fortes do que o pai de maneira a confrontá-lo e até mesmo derrotá-lo, decisivamente. Realizaram então esse projeto, matando o pai originário pela conjunção de suas frágeis forças (Freud, 1913/1975).

Porém, o desdobramento seguinte deste mito foi a culpa dos filhos por terem trucidado a figura do pai. Forjaram, então, em decorrência disso um totem, como representação de sua origem e de sua filiação, face o qual ritualizavam regularmente o crime originário. Ao lado disso, os filhos estabeleceram um pacto entre si, de forma que se qualquer um deles quisesse ocupar a mesma posição onipotente do pai de outrora teria então o mesmo destino deste, isto é, a morte (Freud, 1913/1975). Estabeleceu-se, assim, uma associação entre os irmãos, fundada na igualdade de condições entre eles, de maneira que nenhum poderia ter privilégios sobre os demais, abolindo então a hierarquia anterior, que era baseada no critério da onipotência da força (Freud, 1913/1975).

Pode-se depreender facilmente desta construção mítica que o que estava aqui em pauta era a constituição da modernidade política no Ocidente, a qual se caracterizaria pela ruptura violenta com a onipotência da força do um e pela constituição correlata da multiplicidade de forças, que passariam então a se confrontar em posição de igualdade. Vale dizer, a sociedade moderna seria marcada pela fraternidade, correlata da condição de igualdade dos cidadãos

Assim, face à sociedade anterior caracterizada pela tirania e pela soberania do rei, se constituiu uma associação fraterna de iguais, de maneira que o múltiplo seria o que passou a caracterizar a sociedade moderna. De forma que a onipotência da força teria sido conjurada pela associação estabelecida entre iguais.

No entanto, o discurso freudiano estaria também enunciando que a culpa seria a mediação efetiva para regular a onipotência, que estaria presente como espectro em cada um dos irmãos. Porém, se a culpa não regulasse a dita onipotência da força de maneira simbólica, a morte violenta poderia então se impor novamente, em face de qualquer um que pretendesse ocupar a antiga posição de onipotência do pai.

Pode-se dizer que o discurso freudiano realizou aqui a leitura mítica da constituição da sociedade e da democracia modernas, nas quais a onipotência da força foi efetivamente conjurada pela associação dos iguais. Freud se refere aqui, nos interstícios de seu discurso e em filigrana, à Revolução Francesa, que teria inaugurado a modernidade política em conjunção com a Revolução Americana. Teria assim se constituído a ordem social segundo o modelo de uma associação de cidadãos, que deteriam desde então a soberania do povo, isto é, a soberania do múltiplo.

Contudo, nesta associação de iguais seria a culpa o que poderia regular os laços sociais e o exercício do poder, ao mesmo tempo. Com efeito, seria pela mediação da culpa que a repressão das pulsões perverso-polimorfas poderia ser efetivamente realizada, de forma que Freud deu continuidade aqui ao que já enunciara em “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos”, como vimos anteriormente. Enfim, o discurso freudiano realizou uma leitura metapsicológica da sociedade moderna, na qual seria pela culpa que um limite efetivo poderia ser colocado à onipotência da força presente em cada um dos cidadãos, para que a democracia pudesse ser então possível.

9 Culpa e piedade: Freud e Rousseau

Assim, por esta posição estratégica atribuída à culpa, como reguladora da intensidade da força e para o estabelecimento dos laços sociais no campo da modernidade política, seria possível aproximar a leitura de Freud da que foi formulada por Rousseau na antropologia e na filosofia política. Pode-se afirmar que a filosofia política formulada por Rousseau foi a contrapartida da sua antropologia filosófica, de maneira que ambas estão bem articuladas. O que foi colocado em evidência nesta foi a posição fundamental atribuída à experiência da piedade no indivíduo, para a constituição da ordem social.

O que estaria, então, em pauta nas origens míticas da ordem social e na posição específica atribuída à piedade? No discurso sobre as desigualdades, Rousseau formulou a existência originária de um estado de natureza e, portanto, pré-social (Rousseau, 1971), que estaria também sempre presente como referência na filosofia política enunciada por outros contratualistas no século XVIII, como Hobbes (1651/1971). Nesse contexto, todos lutariam contra todos, em nome da manutenção da vida e da sobrevivência, valendo-se, então, para isso da violência e correndo ostensivamente o risco da morte. No entanto, diferentemente da figura do indivíduo traçado por Hobbes – que temeria a morte e em nome do imperativo da vida abriria mão da violência, de forma a constituir a figura do soberano e do Estado (Hobbes, 1651/1971) –, o indivíduo em Rousseau seria tomado pela piedade face à dor e à morte possível do rival, suspendendo assim o exercício da violência (Rousseau,1971).

Seria em decorrência disso que a ordem política seria constituída, com a construção correlata da ordem social (Rousseau, 1971). Com efeito, se delinearia assim a condição de possibilidade para a constituição do contrato social e da ordem política propriamente dita (Rousseau, 1971). Portanto, seria pelo abandono da violência em decorrência da piedade face à possível dor e morte do outro que os laços sociais entre estes e a ordem política seriam então constituídas.

Pode-se delinear por este viés específico a proximidade teórica existente entre o discurso freudiano e o que foi formulado por Rousseau, na constituição dos laços sociais e da ordem política. Assim, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud formulara que no movimento originário da pulsão, pelo qual a força da pulsão seria expulsa e descarregada sobre o outro, a tentativa de domínio sobre o outro e sobre o objeto promoveria um movimento oposto, pelo qual a força da pulsão seria então incorporada e introjetada. Dessa maneira, no registro específico da pulsão de domínio, o sadismo originário seria transformado em masoquismo secundário, possibilitando assim a subjetivação originária, que seria constitutiva do psiquismo (Freud, 1905/1962).

Depreende-se disso facilmente como a culpa e a piedade seriam os operadores psíquicos cruciais para a transformação do sadismo em masoquismo, possibilitando ao mesmo tempo a constituição dos laços sociais e dos processos de subjetivação. A ordem política seria disso resultante.

Pode-se dizer assim que o discurso freudiano se valeu aqui decisivamente da matriz teórica que foi formulada por Rousseau, na antropologia filosófica e na filosofia política, para conceber a passagem não apenas do registro da força pulsional para o da subjetivação, como também para a constituição de laços sociais entre os corpos. Enfim, o que estaria em causa seria a passagem do registro da natureza para o da sociedade.

Seria ainda este modelo teórico que conjugava intimamente força e culpa, para regular a intensidade da primeira pelo limite e pela medida imposta pela segunda, que estaria presente na construção da modernidade política por Freud, em “Totem e tabu”.

Com efeito, pela transformação do sadismo originário em masoquismo, como derivação do campo delineado pela pulsão de domínio, a onipotência originária da força seria então desmantelada e a associação entre os indivíduos seria constituída, numa associação marcada pela igualdade e pela fraternidade.

10 O modelo da repressão

Porém, pode-se dizer ainda algo a mais sobre este modelo teórico inicial presente no discurso freudiano na leitura da ordem social e da ordem política. O que se colocou aqui em destaque foi a operação da repressão, nos destinos a serem delineados para a força pulsional, ao mesmo tempo no registro do sujeito e no registro do laço social. Seria, portanto, a repressão da intensidade da força pulsional, pela mediação da culpa, que seria a condição de possibilidade para a constituição dos processos de subjetivação e dos laços sociais.

Assim, podem-se encontrar os rastros deste mesmo modelo teórico na tradição freudo-marxista alemã, em certas dimensões de sua leitura da ordem social e na leitura que realizou dos impasses presentes na modernidade. Com efeito, de Reich (1972a, 1972b) a Marcuse (1963) esta leitura inicial de Freud estava em pauta, na qual estes autores colocaram decididamente em evidência os efeitos da repressão da sexualidade para a construção de certas formas de subjetivação e de laços sociais, destacando ao mesmo tempo os impasses do erotismo na modernidade, em decorrência deste processo estratégico.

Assim, se Reich nos falou da constituição da psicologia de massas do fascismo em decorrência do esvaziamento da potência erótica do indivíduo, colocando em evidência a figura de uma subjetividade pobre, homogênea e sem rosto diferenciado (Reich, 1972a), Marcuse, em contrapartida, nos falou dos efeitos empobrecedores da sublimação sobre o sujeito, em “Eros e civilização”. Ao lado disso, Fromm retomou ainda este modelo teórico para formular uma ideia bastante controvertida, qual seja, a existência de sociedades sadias e alienadas (Fromm, 1967), em decorrência da extensão do campo da repressão.

Outros teóricos desta mesma tradição teórica nos falaram dos destinos da repressão da sensorialidade no Ocidente, isto é, da força pulsional, para a produção e o incremento da razão instrumental. Pode-se colocar isso facilmente em evidência na leitura realizada por Adorno e Horkheimer sobre a civilidade ocidental, em “A dialética da razão” (Adorno & Horkheimer, 1974). O que estaria então em questão, nos impasses da razão no Ocidente, seria a modalidade de sublimação que seria assim exercida, nesta repressão da sensorialidade e da força pulsional. Enfim, os impasses presentes na modernidade e as ideologias que seriam nestas prevalentes, fundadas no entendimento e na razão instrumental, seriam as consequências do processo repressivo.

Portanto, esses diferentes autores colocaram em pauta o modelo teórico inicial de Freud na sua leitura da ordem social e do pacto político, na leitura que este realizara da modernidade. Enfim, ofereceram um destino teórico para esta leitura freudiana na interpretação que realizaram da modernidade avançada e das ideologias nestas presentes.

11 Guerra e paz

No entanto, no ensaio intitulado “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (Freud, 1915/1981), tudo se transformou na leitura realizada por Freud sobre a ordem política e a governabilidade. O que foi colocado aqui em pauta foi outra interpretação sobre o Estado e da relação deste com a violência, que se contrapunha radicalmente com o que fôra formulado em “Totem e tabu”. Se nesta obra, com efeito, a sociedade fraternal poderia conjurar a onipotência da força pulsional, em “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, em contrapartida, o Estado proibiria ostensivamente a onipotência da força pulsional em tempos de paz, mas a promoveria de maneira eloquente em tempos de guerra. Enfim, na paz e na guerra a relação do Estado face à onipotência da força pulsional não seria a mesma e sim oposta, se deslocando da interdição para a incitação da violência.

O ensaio em questão foi escrito no contexto histórico da Primeira Guerra Mundial, que colocou em confronto direto as mais importantes potências políticas europeias, que eram, ao mesmo tempo, as representantes mais avançadas da civilização ocidental. Assim, França, Inglaterra e Alemanha foram as grandes protagonistas deste embate sangrento, que não deixaram de pé pedra sobre pedra, num grande espetáculo de dizimação. Foram aqui utilizados de maneira ostensiva os instrumentos mais valorizados da civilidade ocidental, quais sejam, os avanços mais significativos da racionalidade científica e da tecnologia, com a finalidade de promover literalmente a destruição e para se impor sobre o inimigo por meio da força. Enfim, o que importava para os diferentes Estados, em confronto bélico era a destruição militar do inimigo pela força das armas e da violência.

Em decorrência disso, certas barreiras antes respeitadas na situação de paz, no Ocidente, foram ultrapassadas e transgredidas com a instauração da guerra. Assim, populações civis foram diretamente atacadas, sendo então privilegiadas como alvos do cenário bélico, não se restringindo este ao confronto entre os exércitos. Ao lado disso, armas perigosas e letais, oriundas dos avanços da ciência e da técnica, foram utilizadas para destruir o inimigo. De forma que, para a memória histórica de então, foi a guerra mais violenta que já havia ocorrido até então; ela também marcara uma descontinuidade evidente com tudo o que ocorrera outrora no registro bélico.

Por conta disso, Freud não podia compreender como os representantes maiores da civilidade ocidental, que tinham adquirido um elevado desenvolvimento científico, tecnológico e espiritual pudessem dar vazão a tanta violência e destrutividade. Como é que seria possível, para tais tradições sócio-culturais abrirem mão da racionalidade e da moral, de forma a passarem a ato de maneira direta, brutal e mortífera (Freud, 1915/1981)?

Freud estava literalmente perplexo diante do que se passava na Europa, não sabendo aquilatar devidamente todas as coordenadas do processo em pauta. A perplexidade de Freud devia-se à sua firme convicção na razão, como obstáculo e barreira seguros contra a onipotência da força, tal como delineara no contexto teórico de “Totem e tabu”, no qual a culpa poderia regular a onipotência da violência mortífera.

Não obstante a sua evidente perplexidade, Freud realizou alguns comentários importantes sobre o acontecimento citado, indicando assim a sua diferença teórica face à leitura realizada anteriormente em “Totem e tabu”. Vale dizer que outra leitura sobre a civilidade e sobre a governabilidade fora então forjada, a qual indicava uma descontinuidade evidente face às leituras sobre tais problemáticas que realizou anteriormente.

Em primeiro lugar, Freud procurou comparar as sociedades modernas com as sociedades primeiras, para sustentar que existiria nestas a presença de uma modalidade de sociabilidade que não existiria naquelas. O que estaria aqui em pauta seriam certos parâmetros de ordem da ética, que estariam presentes nas sociedades primeiras e que teriam desaparecido das sociedades modernas. O que se destacaria aqui era o respeito face à morte, que era valorado naquelas e que teria entrado nestas num estado de suspensão. Com efeito, mesmo na condição limite e no cenário brutal da guerra, as sociedades primeiras tratavam da morte e do morto com dignidade, qualidade supostamente desaparecida nas sociedades modernas (Freud, 1915/1981).

Em decorrência desse comentário inicial sobre a ética, necessário seria que Freud passasse a considerar agora a relação entre civilização e barbárie de maneira diferente. Freud enuncia aqui uma leitura marcadamente antievolucionista, pois numa perspectiva estritamente evolucionista se concebia que as sociedades modernas teriam maior nível de civilidade face às sociedades primeiras, pois as modernas teriam regulado as práticas da barbárie pela disseminação do campo da razão. Pelo critério da eticidade, em contrapartida, poder-se-ia afirmar que a barbárie estaria bem mais presente nas sociedades modernas do que nas sociedades primeiras, contrariando então os pressupostos do evolucionismo (Freud, 1915/1981). Enfim, a crueldade estaria efetivamente bem mais presente naquelas e não nestas, pelo que se poderia depreender do cenário apocalíptico da guerra moderna, orientado paradoxalmente pela ciência e pela técnica.

Em seguida, Freud indicou uma transformação teórica crucial na sua nova leitura do Estado na modernidade. Assim, se cada Estado realizava a repressão ostensiva da força no interior das fronteiras do Estado-nação em tempos de paz, para manter a governabilidade e a prática da política na relação com os demais Estados-nações em tempos de guerra, em contrapartida, o Estado incitaria os cidadãos à violência e à promoção da morte. Com efeito, entre a guerra e a paz a relação do Estado com a violência se transformaria radicalmente, se deslocando da repressão à incitação, ao mesmo tempo em que a relação com a violência não seria a mesma no interior do Estado-nação e no contexto internacional, isto é, na relação entre os diferentes Estados-nações (Freud, 1915/1981).

O discurso freudiano começou a esboçar então uma leitura diferencial sobre a guerra e a política na sua configuração do Estado na modernidade, na medida em que este promoveria a onipotência da força, por um lado, mas realizaria a sua repressão, pelo outro. Se esta oposição foi aqui formulada de maneira esquemática, ela será complexificada logo em seguida, como ainda veremos adiante. Isso porque as fronteiras entre estes dois campos vão se esfumaçar e se embaralhar, de forma que de dois territórios estanques e com fronteiras bem estabelecidas, a guerra e a política vão se transformar em territórios que podem efetivamente se superpor, onde os espaços serão fluídos e marcados pela porosidade,caracterizando-se pela mobilidade das bordas nos seus limites.

12 O homem é o lobo do homem: de Rousseau à Hobbes

Contudo, para fundamentar este novo limiar da crueldade, que a experiência da guerra revelara, o discurso freudiano teve que transformar, em seguida, a sua teoria das pulsões. Assim, se inicialmente Freud opunha o registro das pulsões sexuais ao das pulsões da autoconservação (Freud, 1905/1962), tendo que retificar logo em seguida tal oposição com a proposição da oposição entre pulsão sexual e pulsão do eu quando passou a conceber todas as pulsões como sexuais (Freud, 1910/1973), em 1920, no entanto, passou a opor a pulsão de vida e a pulsão de morte (Freud, 1920/1981). Com efeito, em “Além do princípio do prazer” o discurso freudiano teve que reformular o seu último dualismo pulsional, pela consideração que teve que atribuir à crueldade e à pulsão de destruição neste novo contexto teórico e histórico.

Assim, se a pulsão sexual e a pulsão do eu se inscreviam agora no campo de pulsão de vida, pela intrincação e a ligação que a pulsão de vida realizaria da pulsão de morte, a crueldade e a destrutividade seriam os efeitos diretos da pulsão de morte, quando esta seria deixada em estado livre e não sendo mais regulada pela pulsão de vida (Freud, 1920/1981). Foi ainda em decorrência disso que o trauma foi aqui retomado como problemática maior pelo discurso freudiano, na medida em que a crueldade e a potência de destruição passaram a ocupar lugares privilegiados na leitura teórica de Freud (1920/1981). Enfim, a compulsão à repetição seria a operação psíquica nova, formulada então por Freud, para regular o registro do traumático no psiquismo.

Porém, foi ainda em decorrência desta transformação teórica maior na sua leitura sobre a governabilidade, iniciada em “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, que o discurso freudiano transformou as suas referências teóricas no campo da filosofia política. Se anteriormente a sua referência maior era o discurso de Rousseau, agora, no entanto, o discurso freudiano passou a se referir à filosofia política de Hobbes.

Com efeito, foi a partir deste contexto teórico que o discurso freudiano passou a se referir ao “Leviatãn”, de Hobbes (1651/1971), evocando de maneira insistente a formulação neste presente de que “o homem é o lobo do homem”, pela qual se afirmaria o potencial de violência e de crueldade presente no sujeito. Para Hobbes, para a preservação da vida e dos direitos naturais, o homem teria que abdicar de sua violência originária em nome da constituição de um Estado onipotente, para tornar assim possível a constituição da ordem social (Hobbes, 1651/1971), numa leitura do pacto social que seria diferente da que fora formulada por Rousseau.

Assim, o discurso freudiano retomou esta leitura de Hobbes de maneira nuançada, em diversos textos, mas principalmente em “Mal-estar na civilização” (Freud, 1930/1971). Porém, a insistência de Freud foi a de colocar em evidência que o sujeito não abriria mão jamais desta violência e desta crueldade a favor da instância psíquica do Estado. Por isso mesmo, a proibição do exercício da violência e da crueldade seriam agora uma das condições de possibilidade para a disseminação do mal-estar social (Freud, 1930/1971).

Portanto, Freud realizou uma leitura nuançada e crítica de Hobbes, incorporando alguns dos seus enunciados e se descartando de outros. No entanto, não resta qualquer dúvida de que o deslocamento do discurso de Rousseau a Hobbes se realizou efetivamente no discurso freudiano.

13 Guerra disseminada

No entanto, o discurso freudiano retomou logo em seguida a oposição estabelecida entre os registros do interior e do exterior do Estado, no que concerne à proibição e à promoção da violência, enunciados em “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (Freud, 1915/1981), para relançá-la e aprofundá-la num campo teórico bem mais complexo.

Assim, no ensaio intitulado “Psicologia das massas e análise do eu”, o discurso freudiano procurou indicar que a confrontação mortal entre os sujeitos não ficava restrita aos tempos de guerra e apenas na relação mortífera estabelecida entre os diferentes Estados-nações, mas se disseminava também no interior de cada Estado-nação. Existia nestes, com efeito, a confrontação entre diferentes grupos, segmentos e classes sociais, que se realizava de maneira permanente e insistente (Freud, 1921/1981).

Para dar conta disso, o discurso freudiano formulou o conceito de narcisismo de pequenas diferenças, de forma que os diversos agrupamentos sociais, que teriam identidades diferentes, se digladiavam permanentemente entre si, seja para afirmar a sua própria identidade seja para destruir a identidade dos oponentes. Estes passaram então a ser concebidos como inimigos. O espaço social passou a ser então delineado de maneira diferenciada e fragmentada, pois não conseguiria se constituir como uma unidade e como um conjunto. Com isso, a relação com a diferença passou a ser transformada na relação com o inimigo, de forma que a guerra passou a ser a marca por excelência que pautaria as relações do sujeito com os outros (Freud, 1921/1981).

Portanto, a presença do narcisismo das pequenas diferenças nos agrupamentos humanos, em diferentes níveis de grandeza (grupos, segmentos e classes sociais), em decorrência de uma lógica da identidade, conduziria à guerra face à diferença, de maneira ampla, geral e irrestrita. Enfim, o ideário da multiplicidade triunfaria sobre o ideário da unidade, numa lógica moral marcadamente agnóstica e permeada pela conflitualidade

Foi ainda neste contexto teórico, para fundamentar a sua leitura sobre o narcisismo das pequenas diferenças, que Freud retomou e positivou a metáfora enunciada por Schopenhauer, segundo o qual o homem seria como um porco-espinho. Vale dizer, cada homem teria que manter certa distância face aos demais, pois se ficasse muito próximo do outro repeliria este e vice-versa, como fazem os porcos-espinhos (Freud, 1921/1981).

Em decorrência disso, o discurso freudiano enunciou uma tese que se contrapõe rigorosa e literalmente ao que formulara anteriormente em “Totem e tabú” segundo o qual o homem seria um animal da horda e não um animal de massa (Freud, 1921/1981). Vale dizer, a horda originária não seria jamais ultrapassada pela ordem social e pela ordem política, como concebera inicialmente, mas se manteria subjacente a estas, pois o homem, pelo narcisismo das pequenas diferenças, não se massificaria e não se homogeneizaria. Seria ainda por conta disso, enfim, que a multiplicidade triunfaria sobre a unidade.

Além disso, no ensaio intitulado “O problema econômico do masoquismo” (Freud, 1924/1973), Freud enunciou outra formulação teórica que foi no mesmo comprimento de onda do que fora enunciado em “Psicologia das massas e análise do eu”. Assim, foi neste contexto teórico que Freud inverteu as posições atribuídas até então ao sadismo e ao masoquismo, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, nos quais o sadismo seria primário e o masoquismo secundário (Freud, 1905/1962). Na inversão que passou a propor agora, em “O problema econômico do masoquismo”, o masoquismo seria primário e o sadismo seria secundário. O que estaria em pauta era a nova maneira de Freud conceber a violência e a crueldade, no sujeito e na inscrição social deste na relação com os outros.

Assim, seria preciso agora que o sujeito pudesse dirigir a violência ao outro e deslocá-la para o exterior de si, para se proteger então dos efeitos da violência no interior do corpo e do psiquismo. Para isso, o sujeito expulsaria a violência para fora para não ser por ela destruída, de maneira que o masoquismo agora primário precisaria ser parcialmente expulso como sadismo, em nome da afirmação da vida pelo sujeito (Freud, 1905/1962). Porém, se o masoquismo passou a ser primário, isso se deveria à presença originária da pulsão de morte, que teria que ser expulsa pela pulsão de vida, para tornar possível a organização do sujeito (Freud, 1905/1962).

Pode-se dizer assim que, se a vida triunfa sobre a morte nas relações permanentes estabelecidas entre a pulsão de vida a pulsão de morte, o preço a pagar por isso é a disseminação da violência na relação do sujeito com os outros e no registro dos laços sociais, como condição preliminar para a afirmação da vida pelo sujeito. O espaço social seria então permeado pela violência e pela agressividade, enfim, como estratégia decisiva da pulsão de vida para dominar e promover a ligação da pulsão de morte.

Seria o modelo da guerra que estaria agora no fundamento das relações do sujeito com os outros, de forma que os laços sociais seriam sempre perpassados pelo imperativo da guerra. Se as relações conflituais entre os registros da pulsão de vida e da pulsão de morte estariam agora no fundamento da leitura pulsional de Freud, o conceito do narcisismo das pequenas diferenças colocaria em evidência o registro da subjetivação presente neste processo, que conduziria à afirmação radical de que o homem seria sempre um animal da horda e jamais um animal de massa.

14 Guerra e política

Em decorrência da disseminação do modelo de guerra, para enunciar a conflitualidade que marcaria os laços sociais e as relações entre os sujeitos, é que Freud pôde criticar o conceito de paz perpétua que foi enunciada por Kant (1991), no ensaio intitulado “Por que a guerra?” (Freud, 1932/1978, pp. 203-215). Neste ensaio publicado em 1932, em um diálogo com Einstein promovido pela Liga das Nações, o discurso freudiano se contrapõe ao de Einstein (1932, pp. 199-202), quando este foi na direção de uma possível paz perpétua, nas trilhas do pensamento de Kant. Para Freud, com efeito, as relações conflituais e sempre relançadas entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, tornaria impossível a prevenção da guerra e a instauração da paz perpétua.

O que implica em dizer que a tensão e o conflito entre a governabilidade e a guerra estariam sempre presentes no horizonte do espaço social, em decorrência da polaridade insistente e sempre relançada entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Com isso, se torna eloquente a figura do sujeito como animal de horda como limite a todo e a qualquer processo possível de governabilidade, pois a sombra do animal de horda estaria sempre presente no campo e no horizonte do animal de massa.

Por isso mesmo, num ensaio tardio intitulado “Análise com fim e análise sem fim” (Freud, 1938/1985), o discurso freudiano pôde enunciar que existiriam três práticas sociais impossíveis: educar, governar e psicanalisar. Por que tal alinhamento de práticas sociais e sua caracterização são marcados pelo signo da impossibilidade?

Esta impossibilidade se fundaria no que existiria de limite intransponível no psiquismo para a regulação possível da pulsão de morte pela pulsão de vida, de maneira que um resto estaria sempre presente no polo da pulsão de morte, no campo do psíquico. De forma que isso colocaria tanto um limite absoluto para qualquer pedagogia, assim como para qualquer projeto de governabilidade. Além disso, no campo da experiência psicanalítica o que estaria sempre em pauta seria um confronto interminável entre os registros da força e do sentido, num campo sempre aberto e imprevisível, no qual venceriam sempre “os batalhões mais fortes” (Freud, 1938/1985).

Na alusão aos “batalhões mais fortes” e à metáfora militar de exércitos num contexto bélico, o discurso freudiano afirmava a dominância ostensiva do projeto da guerra sobre o da política, no qual o polo da força não seria jamais subjugado pelo polo do sentido e da política, isto é, pelo registro efetivo da negociação. Seria então a força o que prevaleceria sobre o sentido, na luta sempre recomeçada e permanentemente relançada entre os registros da pulsão de vida e da pulsão de morte.

Parece-me que nesta dominância da guerra sobre a política, na sua leitura final sobre esta problemática, o discurso freudiano se aproximou decididamente do discurso de Nietzsche (1971), cuja interpretação das experiências moral, social e política, assim como da retomada genealógica realizada por Foucault (1997), para contestar a proposição de Clausewitz de que a guerra seria a continuação da política (Clausewitz, 1996). Com efeito, se para este a guerra seria modelada pela política e seria a continuação desta por outros meios, para Foucault, em contrapartida, seria a problemática da guerra o que dominaria efetivamente os destinos da política e da governabilidade, como sustentou no curso “Em defesa da sociedade”.

Pode-se compreender tal limite radical imposto pela força, face à governabilidade e à política de diferentes maneiras, de forma que seria a guerra o que dominaria fartamente as relações do sujeito com os outros. Não é o lugar aqui para desenvolver esta questão, pois não teríamos nem espaço nem tempo para isso e a tarefa exigiria outro ensaio. Porém, pode-se enunciar que o que está em pauta no discurso de Freud, como também nos de Nietzsche e de Foucault, é a dimensão efetiva da liberdade que seria inalienável e que marcaria a ferro e fogo o sujeito ético na sua constituição. Portanto, a referência ao sujeito como animal de horda no campo do pensamento freudiano, indicaria a existência de um sujeito ético que estaria no limite de qualquer possibilidade sublimatória, colocando assim um limite absoluto a qualquer projeto de governabilidade. Enfim, seria a afirmação radical da liberdade e do sujeito ético os dois polos fundamentais que marcariam a produção dos processos de subjetivação, num confronto permanente sempre relançado do sujeito com a governabilidade, o que foi enunciado pelo discurso freudiano no final do seu percurso teórico de maneira eloquente.

Recebido em: 15/12/2009

Aceito em: 08/02/2010

Joel Birman, Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas, Universidade Paris VII, Pesquisador Associado do Laboratório “Psicanálise e Medicina” da Universidade Paris VII. Endereço para correspondência: Rua Marquês de São Vicente, 250, Gávea. CEP: 22451-040, Rio de Janeiro, RJ. Endereço eletrônico: thais@andreagv.com.br

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    Este texto foi escrito a partir das notas que me orientaram na conferência realizada na Universidade de São Paulo, no Departamento de Psicologia, no Colóquio franco-brasileiro sobre “A força e a sublimação”, em 6 e 7 de novembro de 2009.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Recebido
      15 Dez 2009
    • Aceito
      08 Fev 2010
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