Open-access Em torno da complexa articulação sujeito e cultura 1

Autour du complexe articulation sujet et culture

Alrededor de la compleja articulación sujeto y cultura

Resumo

Freud explicitou, desde o início da psicanálise, que o sujeito é inseparável da cultura. A experiência subjetiva implica, necessariamente, a referência do sujeito ao Outro, objeto de amor e de ódio, e à linguagem. Neste artigo, buscamos abordar a contribuição da psicanálise à abordagem da cultura, ressaltando sua especificidade, que é a de que suas hipóteses têm origem na clínica. A partir da psicanálise, podemos observar que, se o mal-estar na cultura, devido às restrições que são impostas às pulsões, é inevitável, os adoecimentos psíquicos costumam apontar criticamente para aspectos “insalubres” da cultura em determinados momentos históricos.

Palavras-chave: psicanálise; psicopatologia; cultura; subjetividade

Résumé

Freud a expliqué, depuis le début de la psychanalyse, que le sujet est inséparable de la culture. L’expérience subjective implique nécessairement la référence du sujet à un autre, objet de l’amour et la haine, et le langage. Dans cet article, nous abordons la contribution de la psychanalyse à l’étude de la culture, mettant l’accent sur sa spécificité, qui est que ses hypothèses proviennent de la clinique. De la psychanalyse on voit que, si le malaise dans la culture, en raison des restrictions imposées aux pulsions, est inévitable, les maladies psychiques servent souvent à identifier critiquement les aspects « malsains » de la culture dans certains moments historiques.

Mots-clés: psychanalyse; psychopathologie; culture; subjectivité

Resumen

Freud explicitó, desde el inicio del psicoanálisis, que el sujeto es inseparable de la cultura. La experiencia subjetiva implica necesariamente la referencia del sujeto al otro, objeto del amor y odio, y al lenguaje. En este artículo, buscamos abordar la contribución del psicoanálisis al enfoque de la cultura, resaltando su especificidad, que es la de que sus hipótesis tienen origen en la clínica. A partir del psicoanálisis, podemos observar que, si el malestar en la cultura, debido a las restricciones impuestas a las pulsiones, es inevitable, las enfermedades psíquicas suelen señalar críticamente aspectos «insalubres» de la cultura en determinados momentos históricos.

Palabras clave: psicoanálisis; psicopatología; cultura; subjetividad

Abstract

From the beginning of psychoanalysis, Freud explained that the subject is inseparable from culture. The subjective experience necessarily implies the reference of the subject to the Other, object of love and hate, and language. In this article, we discuss the contribution of psychoanalysis to the approach of culture, highlighting its specificity, which is that its hypotheses originate from the clinic. From psychoanalysis, we can observe that if the discontent present in culture is unavoidable, due to the constraints that are imposed on drives, psychic illnesses usually critically point to “unhealthy” aspects of culture at certain historical moments.

Keywords: psychoanalysis; psychopathology; culture; subjectivity

Poucos anos depois de ter inaugurado a psicanálise com a Interpretação dos sonhos (Freud, 1900a/1976, 1900b/1976), texto chave para a compreensão da escrita do inconsciente, Freud assina sua primeira crítica à cultura sob a forma de um artigo intitulado Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna (Freud, 1908/1977). Pode parecer ter sido um salto prematuro do fundador da ciência dos sonhos, submergido, então, na tarefa de articular dois de seus principais conceitos: inconsciente e pulsão. Entretanto, uma análise rigorosa demonstra que o tema da relação do sujeito com a cultura está em lugar central desde os primeiros passos da psicanálise. Já no Projeto (Freud, 1950/1977), encontramos sob a designação de “complexo do próximo” o jogo que ocorre na emergência do humano. Este tem início em uma cena em que o recém-nascido estabelece o primeiro e rudimentar laço social com o ser próximo (Nebenmensch), o primeiro Outro que atende ao seu grito de socorro, satisfazendo sua sede e fome. No entanto, tudo terminaria por aí caso o bebê precisasse do Outro apenas como instrumento adequado para reparar uma falta localizável no corpo. Para além de mera expressão de uma necessidade biológica, o grito passará a agir como apelo por socorro e invocação à presença materna.

Um laço se estabelece entre o bebê e aquele - geralmente a mãe - que ocupa o lugar do Outro da linguagem. Ela significa e nomeia sua dor, incentiva-o a julgar e reconhecer as excitações internas que emanam de seu próprio corpo e a se separar da fonte de excitações externas que fluem sobre si, o mundo externo. O termo com o qual Freud designa essa assistência, indispensável ao advento do infans como ser falante, é “ajuda estrangeira”.

O termo estrangeiro remete ao não familiar, ao desconhecido, àquilo que é apreendido com horror. Entretanto, a psicanálise descortina um paradoxo: para o pequenino ser, o Outro é um desconhecido situado numa relação de extrema proximidade. O próximo é, ao mesmo tempo, seu primeiro objeto de satisfação, fonte da experiência mítica de prazer absoluto que a criança tenta reproduzir posteriormente, e também seu primeiro objeto hostil: presença estranha e ameaçadora, e única potência capaz de prestar socorro, aquele que acolhe e responde afetivamente a seu desconforto, ordenando suas manifestações pulsionais. Objeto ambíguo: que se quer reencontrar, e de repulsa, no qual evita-se até pensar, o Outro, na perspectiva freudiana, se constitui como “familiar-estrangeiro” (Unheimlich).

Em resumo, fertilizada pela libido e pela linguagem, a sociabilidade tem início exatamente nesse ponto de captura da estranheza do próximo. Momento do nascimento de uma relação de parentesco, para além de toda a biologia, com alguém que é, a um só tempo, o semelhante - imagem do eu do sujeito -, e aquilo que há de mais estranho e estrangeiro dentro de si: o impossível de metabolizar. O desamparo da criança, manifestado no primeiro grito, que é demanda de presença e não apenas descarga de tensão, “adquire uma função secundária da maior importância, a de comunicação, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte primária de todos os motivos morais” (Freud, 1950/1977, p. 317)2. É a dependência e amor ao adulto, o medo de perder seu amor, que está na base de toda a aceitação das leis da cultura da qual a mãe é o primeiro porta-voz. Entretanto, nessa primeira relação, para a criança são apenas os caprichos dessa figura poderosa que estão em jogo, resto não passível de ser tomado nos meandros da cultura.

A experiência subjetiva implica, necessariamente, a referência do sujeito ao Outro, objeto de amor (modelo) e de ódio (obstáculo), e à linguagem. Ao retomar esse “Outro” que Freud identificou como dobradiça entre o sujeito individual e o coletivo, Lacan introduz os termos Sujeito e Outro, articulando com precisão o que designou como a transindividualidade primordial do inconsciente: para além das marcas libidinais que recebe de seus próximos, o sujeito é marcado, de forma indelével, por representações sociais e políticas de seu tempo. A originalidade da leitura de Lacan reforça a verdade do destino que Freud reservara a seus herdeiros: agregar à prática clínica do um a um, a função de críticos da cultura que testemunhassem. Tão central é essa função, que é indispensável ao trabalho do psicanalista.

O primeiro texto freudiano diretamente concernido com a cultura, e com a leitura que dela a psicanálise nos permite efetuar, é Moral sexual “civilizada” e doença moderna nervosa (1908/1977). Uma visão do tempo histórico-cultural em que foi escrito permite seguir mais de perto o modo como Freud tece sua análise crítica da época, a partir do que pôde apreender, na clínica, sobre o inconsciente em sua realidade sexual. A um só tempo, afirma que a psicanálise diz respeito ao sujeito em sua singularidade, mas que, por estar ligado à linguagem, esse singular faz parte da grande história.

Sob quais balizas histórico-culturais Freud formalizou a tese desenvolvida neste artigo? Do final do século XIX até a chegada dos nazistas em 1938, Viena tornou-se o palco de questões em torno do projeto da modernidade, a produção histórica que rompeu com as amarras do homem ao cosmo e às tradições, ao elevar o discurso da ciência à posição de agenciador da verdade. O movimento modernista, advindo da forte crise instalada pelo novo paradigma, era a consciência crítica do processo de modernização e de seus resultados. Entre as inúmeras tentativas de reescrever as bases de inserção do sujeito moderno, a psicanálise talvez tenha sido a mais fiel das produções do modernismo. Sabe-se que Freud descentrou o homem de si mesmo, solapando a ilusão da identidade entre consciência e mente, reconhecendo sua fragilidade. Apesar de ser um pensador oriundo do Iluminismo, mostrou ser possível dissipar significações fixadas e completas para dar lugar a que o sentido venha a emergir, sempre lacunar. Assim foi que o inventor da psicanálise rompeu com muitos a priori que fundamentavam o saber de seu tempo histórico.

O tema do nervosismo moderno era o pano de fundo da literatura artístico-cultural no Ocidente, em meados do século XIX. O estado de alma de quem efetivamente vivia os efeitos do progresso da civilização iluminista era descrito como “nervoso” pelas artes e a filosofia. Como formula o crítico literário Jacques Le Rider (1992, p. 68), em A modernidade vienense e as crises de identidade, no pensamento filosófico crítico da decadência moderna iniciado por Nietzsche, sobretudo em Humano, demasiadamente humano, os significantes “modernidade” e “nervosismo” são usados quase como sinônimos. Para este filósofo, o fardo da cultura - a exigência que esta impõe ao indivíduo de tudo conhecer e dominar - se tornou uma fábrica de neuroses que atingiam, principalmente, as classes cultivadas dos países europeus. Em geral, os textos literários que se seguiram à obra de Nietzsche revelam intensa perplexidade e apelo à regeneração da humanidade perdida entre o início do fracasso do projeto iluminista e os sintomas produzidos pelo progresso. O nervosismo era uma figura obsediante em discursos e obras literárias.

Na esteira dessas mesmas críticas, as hipóteses surgidas em campos diversos, como os da medicina, psicologia e psiquiatria, ganharam destaque. Wilhelm Erb, em sua obra sobre o nervosismo contemporâneo, Binswanger, no ensaio sobre neurastenia e progresso da cultura americana, e Krafft-Ebing, em base às próprias reflexões sobre degenerescência, neurose e neurastenia, reconheciam e ressaltavam a doença nervosa moderna como efeito do “aumento das exigências sociais e econômicas que acarretam um maior dispêndio de energia, do qual frequentemente se tem poucas oportunidades de se recuperar” (Freud, 1908/1977, p. 185). Partes dessas críticas, como se sabe, estão transcritas em Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. Freud não as descarta completamente, embora estabeleça um corte com essas teorias, ao afirmar que o sofrimento do homem moderno dependia de um fator fundamental - a sexualidade. Com isso, além de marcar uma ruptura com o modo de pensar o sofrimento vigente na época, o fundador da psicanálise circunscreve o campo e a especificidade de sua disciplina.

Muitos romancistas e psicólogos haviam estabelecido a ligação entre devassidão sexual e nervosismo. A genialidade de Freud, segundo Peter Gay (1986, p. 351), foi ousar reverter essa perspectiva e afirmar que a repressão3 da sexualidade - isto é, a regulação e codificação do sexo e do laço social entre os homens - seria, na verdade, a grande fonte de doenças da alma do homem moderno. Ao reconhecer que o recalque da sexualidade corresponde a uma operação psíquica do próprio sujeito diante das exigências da cultura, anunciava um dos destinos da força da pulsão. Um pouco mais tarde, a partir do desenvolvimento lógico das teses do texto de 1908, todas elas construídas exclusivamente a partir da escuta clínica, apela à feiticeira (a metapsicologia) para desenvolver o conceito do recalque originário. Com muita “feitiçaria”, cria o mito de Totem e tabu, o “mito científico”, uma narrativa sobre a origem do sujeito e da cultura, obra metapsicológica que procura responder a questões fundamentais da investigação psicanalítica. Totem e tabu (Freud, 1913/1976), texto pelo qual o autor jamais escondeu sua predileção, mapeia com precisão os pressupostos psicanalíticos sobre as bases e condições da civilização: a) supressão da figura de poder excessivo e onipotente, detentora do gozo absoluto; b) obediência às leis que asseguram a linguagem e o laço social (Fuks, 2003, p. 28).

No contexto histórico da obra de Freud, a ideia de que o recalque da sexualidade produzia o nervosismo moderno foi tributária do conceito de pulsão inaugurado em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1976), embora, aqui ou acolá, Freud já houvesse usado a palavra Trieb anteriormente4. Em 1905, desprovido de qualquer moralismo ou traço ideológico, Freud irá colocar as pulsões parciais como aquilo que, no homem, não tem remédio e nunca terá. Caracteriza-as não apenas como parciais, mas como polimorfas e perversas. Tomando a noção de perversão para conceituar a sexualidade infantil, Freud rompe inteiramente com os pressupostos nos quais essa noção, na época, repousava. No senso comum, o significante perversão englobava as ideias de sexualidade anormal e defeito moral, ideias que vão ganhar legitimidade científica e consistência conceitual por obra da medicina legal do século XIX.

A sexualidade normal, da qual a perversa seria um desvio, é aquela que é útil à conservação da espécie, dentro de um ideário evolucionista. Ao caracterizar a sexualidade infantil como polimorfa e perversa, Freud subverte essa noção, já que o termo perversão não mais designa uma anomalia ou desvio da norma, mas a sexualidade infantil normal. A “perversão” é tomada como parte da constituição do sujeito humano, o que significa que a noção de instinto é abandonada. Na psicanálise, a pulsão sexual, em sua indeterminação, extrema plasticidade e “desadaptação”, representa o afastamento completo do paradigma do instinto. Ao contrário deste, a pulsão não possui um objeto natural ao qual se adaptar. Embora enigmática, definida de forma ambígua e interpretada de muitas maneiras discordantes, algumas reducionistas, a teoria da pulsão é uma inovação importante na noção de sexualidade hegemônica vigente até então. Ao conceituar a sexualidade de forma inédita e representá-la através dos destinos da pulsão, Freud assinava a tese de que a sexualidade humana é estruturalmente desnaturalizada.

As pulsões não podem ser reduzidas à biologia. Elas se constituem por apoio na satisfação das necessidades e são, portanto, traços e resíduos das vivências com o Outro materno que causaram prazer e que se deseja para sempre reviver. São o fundamento e o correlato dos primeiros laços sociais, e a matéria bruta de que se serve Eros em sua busca de combinar indivíduos, famílias, povos, em uma unidade, já que “a cultura é um processo a serviço de Eros” (Freud, 1930/1976, p. 106). Nesse sentido, pode-se dizer que a pulsão foi uma importante ferramenta conceitual utilizada por Freud em seu movimento de invalidar a diferença entre psicologia individual e coletiva, tomando o homem como um ser da cultura, assim como de desconstruir a continuidade entre a psicologia humana e a animal, que era a base de muitas teorias e reflexões do campo da psicologia.

Em Moral sexual “civilizada” e a doença nervosa moderna, o autor, num primeiro momento, impregnado das mesmas preocupações que seus contemporâneos, perscruta o modo como as barreiras históricas impostas pelo movimento civilizatório à sexualidade (o que, da pulsão, está regulado pela linguagem e submetido, portanto, à lei do incesto) adoecem o sujeito. A esse respeito, não passará despercebida ao leitor a transcrição da fala de um de seus pacientes submergido pelos ditames morais da época: “Em nossa família todos tornamo-nos neuróticos porque queríamos ser melhores do que, como nossa origem, somos capazes de ser” (Freud, 1908/1977, p. 164). Uma exigência da cultura moderna? Parece que sim, responde Freud conforme dados da pesquisa de W. Erb, embora esses fatores predisponentes à neurose possam exercer ou não esse efeito:

As demandas à eficiência dos indivíduos na luta pela existência aumentaram muito. . . . Ao mesmo tempo as demandas de gozar a vida aumentaram em todas as classes. Um luxo sem precedentes se espalhou para as camadas da população que anteriormente estavam excluídas disto. (Freud, 1908/1977, p. 164-165)

O espantoso é que um texto escrito há mais de um século nos dá a impressão de ser um comentário sobre os impasses da época em que vivemos. Modernidade: gozo excessivo, luxo, irreligiosidade, músicas barulhentas, novos meios de comunicação, pressa, agitação etc. Com muita razão, a literatura acerca da modernidade da Viena de Freud mostra que ela adiantou, em muitos aspectos, a nossa pós-modernidade. Entre esses, entretanto, não está a moralidade sexual civilizada da época, à qual Freud tece críticas severas, apontando-a como a principal responsável pelas neuroses que encontrava em sua clínica. Alguns autores o acusam, por esse motivo, de ceder à utopia, ao acreditar que, fosse menos rígida essa moral, os homens seriam mais felizes, e consideram que apenas mais tarde, em Mal-estar na cultura (1930/1976), Freud teria admitido que o mal-estar é irredutível, já que a cultura repousa necessariamente sobre a supressão de tendências sexuais e destrutivas. Essa é, não obstante, uma leitura apressada de Moral sexual, já que a complexidade do argumento lá desenvolvido não autoriza a esperança em algum happy ending.

Uma leitura mais cuidadosa do texto de 1908 já nos indica que a análise do sofrimento psíquico não pode se basear na concepção de uma simples oposição entre cultura e sexualidade. A aporia permeia o texto. Se, por um lado, a cultura exige o recalque da sexualidade para seu benefício, por outro, isto não impede que o recalque roube da cultura preciosos aportes. Freud observa, por exemplo, que como as mulheres eram educadas a não se ocupar intelectualmente de sexo e não ceder à sua curiosidade sobre esse tema, muitas vezes o recalque da curiosidade sobre o sexual não obtinha seus efeitos sem resultar em uma inibição geral do pensamento. Assim, a dita (na época) inferioridade intelectual das mulheres seria consequência desse estado de coisas. Da mesma forma, Freud observa que um homem que recalque suas inclinações para a dureza e a crueldade, tornando-se bondoso como compensação, provavelmente fará muito menos pelos outros, devido à inibição, do que se não tivesse recalcado a hostilidade.

São todas essas considerações que levaram Freud a insistir em que as neuroses sempre conseguem frustrar os propósitos da cultura e que, efetivamente, fazem o trabalho das forças mentais recalcadas que são hostis à cultura:

A natureza associal das neuroses tem sua origem genética em seu propósito mais fundamental, que é escapar de uma realidade insatisfatória para o mundo mais prazeroso da fantasia. O mundo real, que desta forma é evitado pelos neuróticos, está sob o domínio da sociedade humana e das instituições coletivas por ela criadas. Virar as costas para essa realidade é, ao mesmo tempo, retirar-se da comunidade dos homens. (Freud, 1913/1976 , p. 74)

Por isso o sintoma deve ser também considerado uma ação de protesto contra a ação de coerção civilizatória. As metáforas bélicas e disciplinares utilizadas por Freud para esclarecer o mecanismo da neurose - defesa, resistência, freio, recalque, censura etc., revelam o estado de tensão que o psicanalista concebe como permanente entre o sujeito e o Outro da cultura. Ataques histéricos e outras esquisitices sintomáticas da histeria, cuja lógica permanecia incompreensível até o advento do talking cure, figuram em Estudos sobre a histeria (Freud,1893/1976) como objeção ao controle excessivo do Outro. Não sem razão, os Estudos são um tratado sobre os efeitos da política de repressão sexual novecentista à mulher, no qual a psicanálise é apresentada ao leitor como um saber, um bem da cultura, que incentiva o regresso das paixões à cena do social.

Valorizando a cultura, não apenas em seu papel de impor a repressão às pulsões, mas como terreno onde estas podem se exercer, Freud toma sem hesitação o mecanismo de inibição como uma linha divisória entre neurose e normalidade. A inibição não é apenas consequência da perda da energia que, em toda neurose, tem que ser permanentemente empregada na manutenção do recalque. O primeiro movimento na neurose é um afastamento da realidade pela introversão da libido (Freud, 1924/1976) e esse afastamento subjaz toda a sintomatologia neurótica. O termo introversão, forjado por Jung, é reinterpretado por Freud e passa a designar a retirada do investimento libidinal dos objetos da realidade cotidiana e seu emprego para o investimento de objetos imaginários. A introversão é uma contrapartida do recalque produzido pelo eu sob a influência de um conflito das pulsões com a realidade.

A consequência é que os objetos imaginários passam a ser investidos e a libido fica, em parte, restrita ao mundo da fantasia. A partir de então, as satisfações serão predominantemente imaginárias e a procura pelas satisfações na realidade ficará relegada a segundo plano. Essa forma de satisfação imaginária da pulsão é a outra face da inibição do ato. O eu tentará impedir a satisfação substitutiva da pulsão recalcada de ter qualquer efeito na realidade. O sintoma neurótico, como uma satisfação pulsional substitutiva, rebaixa as satisfações pulsionais ao plano imaginário, pela fuga do ato. Bem ao contrário, há outro destino para a pulsão, alternativo ao recalque: a sublimação que coloca uma enorme carga de energia à disposição do trabalho a favor da cultura.

A pulsão sexual, que na neurose está inibida e mal se satisfaz, já que só o faz imaginariamente, pode efetivamente encontrar satisfação na sublimação. Diferentemente do recalque, a sublimação incita o sujeito a ultrapassar o narcisismo, a desacatar os mandatos do supereu. Trata-se de um modo de conquista do erotismo pela via da elevação estética e ética:

Aquele que, em consequência de sua constituição indomável, não consegue concordar com a supressão da pulsão, torna-se um “criminoso”, um “outlaw”, (proscrito), a menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam impor-se como grande herói. (Freud, 1908/1977, p. 187)

Heróis, criadores e artistas são aqueles que, de algum modo, colocam a atividade pulsional a serviço de sua obra. A obra criativa sempre envolve uma transgressão, o encontro do novo, do que não estava contido no status quo. Em Mal-estar na cultura, voltando ao tema da sublimação, Freud (1930/1976) mostra como a criação artística contribui para minorar o poder da repressão social às pulsões. O impacto de determinadas obras plásticas sobre a civilização, com seu eventual valor subversivo, testemunha o vigor dos efeitos da sublimação sobre a vida social.

A via de realização de desejo presente nas fantasias e sintomas neuróticos, a satisfação imaginária, é considerada por Lacan (1975/1982), como uma “satisfação” paradoxal. O objeto imaginário com o qual ela passa a se contentar não é bem talhado para a satisfação pulsional. As satisfações imaginárias, por evitarem os riscos do desprazer, são insuficientes do ponto de vista do gozo (Bekerman, 1990, p. 77). É no ato que a pulsão pode encontrar sua satisfação.

O terreno da pulsão é o do ato. Por isso ela é definida por Freud (1915/1976) como uma peça de atividade, ideia adotada por Lacan (1986/1988), quando localiza no traçado do ato a essência da pulsão. Expor-se à angústia é a contrapartida de não inibir o ato, não fugindo ante a exigência pulsional. Freud não chegou a desenvolver sistematicamente a noção de sublimação, ou talvez o tenha feito no ensaio perdido que a ela teria dedicado. Entretanto, referiu-se a ela de forma que não deixa dúvidas sobre o papel de fundamental importância que assume na psicanálise.

A sublimação é consequência direta da extrema plasticidade pulsional, da polimorfia perversa com a qual Freud caracterizou a sexualidade humana, ao contrário da sexualidade “tipo” das outras espécies animais, cujo repertório é bastante previsível, e que bem se adapta ao seu objeto natural. Quanto à pulsão, ao contrário, o objeto é o que há de mais contingente. Por isso pode se transmutar, voltando-se para alvos e objetos que nada mais parecem ter de sexuais e que representam algo de valor para a cultura. Sobre ela, pouco mais Freud nos legou, exceto a clara indicação, em Pulsões e seus destinos (Freud, 1915/1976), de que ela é um destino independente da pulsão que não se confunde com o recalque, o que nos permite concluir que seus efeitos não são sintomáticos, não partilham com os sintomas sua estrutura de formação de compromisso, não constituem uma forma de satisfação deformada ou cifrada, desconhecida pelo sujeito, e que se mantém predominantemente no plano imaginário, como os sintomas neuróticos. A sublimação ocupa um lugar particular na sustentação do narcisismo porque implica a utilização das exigências pulsionais em benefício do progresso espiritual na cultura (Freud, 1939/2013).

Recalque e sublimação foram objetos de reflexões detalhadas em A moral sexual “civilizada” e, a bem da verdade, algumas delas anteciparam e prepararam a emergência, anos mais tarde, das teses de O Mal-estar na cultura. Nessa outra grande obra de Freud sobre a cultura, já na segunda tópica, a solidariedade entre sexualidade e cultura será enfatizada, pela razão de que serão subsumidos, nas pulsões de vida (Eros), a sexualidade, o amor e todo laço social. Além disso, o conflito fundamental não é mais localizado no embate entre cultura e sexualidade, mas na luta entre pulsões de vida e de morte, ou entre Eros e Thanatos: “Como já sabemos, o problema que temos pela frente é saber como se livrar do maior estorvo à civilização, isto é, a inclinação constitutiva dos seres humanos à agressividade mútua” (Freud, 1930/1976, p. 137-138).

É uma nova época, em que a questão apresentada pela atualidade ao psicanalista não é mais centrada no recalque da sexualidade, mas no impacto representado pela Primeira Guerra Mundial, com a revelação de que, mesmo nos países que haviam alcançado o mais alto nível de realizações culturais, a violência e a barbárie puderam emergir em sua face mais brutal. A destrutividade tem como resposta as neuroses traumáticas de guerra, que vêm a denunciá-la. Entretanto, isso não significa que o recalque da sexualidade tenha deixado de ser considerado como um determinante potencial para o adoecimento neurótico. Ao contrário, em 1930, Freud reafirma a tese de que a vida sexual do homem culto estava severamente prejudicada em razão das exigências da vida moderna.

Como é comum acontecer na obra freudiana, novas elaborações não significam o abandono das antigas, mas sua inclusão em uma nova configuração teórica, o que obviamente as qualifica de nova maneira. Há entre as duas tópicas uma tensão permanente. Se a questão que convocava Freud a pensar a cultura era a produção de histerias como denúncia da moral sexual civilizada muito repressiva, especialmente em relação às mulheres, em 1930 eram as patologias resultantes da violência da Primeira Guerra Mundial, assim como a explicitação do alcance da destrutividade humana, que instigavam o psicanalista a refletir sobre a terceira fonte de mal-estar na cultura: a relação do homem com o Outro. Embora assumindo as mais diferentes tonalidades ao longo do tempo, ambas as questões ainda nos acossam nos dias atuais.

A preocupação de situar a psicanálise em relação à nossa época, a todas essas mudanças e às suas características político-sociais é grande entre os psicanalistas, uma vez que os pacientes que chegam aos consultórios não são os mesmos de mais de um século atrás. Os esforços em dar conta da mutável realidade cultural são mais do que legítimos, são verdadeiramente indispensáveis à vitalidade do campo psicanalítico.

Muitos se perguntam se a psicanálise ainda teria um lugar nessa época do “tudo é permitido”, em que a moralidade do capitalismo é a de tudo comprar, para de tudo gozar e logo descartar. O desânimo com as perspectivas futuras da psicanálise às vezes chega ao ponto de que, ao invés de situar a psicanálise na atualidade, alguns comentaristas neguem a ela qualquer lugar em nosso tempo (Melman, 2002).

As tentativas de “diagnóstico” do sujeito contemporâneo pelos psicanalistas, ou seja, o recurso aos quadros clínicos para caracterizá-lo, são discutíveis. Ao diagnosticar esse sujeito, seja como perverso, melancólico ou borderline, o que se consegue é eliminar completamente a ideia da singularidade em nome de um sujeito médio que representaria a sociedade. A propriedade desse procedimento é questionada mesmo na sociologia. A sociedade é constituída de leis que regem as relações entre as pessoas. Tende-se então a criar, para servir de suporte às regularidades sociais, uma “mentalidade coletiva” ou “organismo coletivo” (Elias, 1939/1994, p. 24). O “sujeito contemporâneo”, seja ele diagnosticado como for, representa uma instância dessa tendência. É também uma construção que serve para dar suporte às regularidades das relações sociais, atribuindo a elas uma substância (Rudge, 2006).

Há franca oposição à proposição de um sujeito médio e representativo de uma cultura ou época, e o ponto de vista da psicanálise que se volta para os sujeitos “um a um”. Não se pode desconsiderar o fato de que as miríades de diferenças que podemos observar entre valores e formas de viver não apenas se distribuem entre culturas diversas; dentro de uma mesma cultura, herdamos muitas tradições que podem ser incompatíveis e fazemos coisas muito conflitantes (Eagleton, 1998, p. 87). Há sempre uma contradição entre a particularidade de experiências que são restritas a certos indivíduos ou grupos, com a universalização de outras experiências que se expressam culturalmente por meio de conjuntos de símbolos que as tornam homogêneas (Velho, 1987, p. 18).

Apesar da necessidade de respeitar as fronteiras entre os diversos campos de saber e a complexidade de um estudo interdisciplinar, a preocupação em articular o que encontramos na clínica ao nosso meio cultural é legítima e fundamental. Os sintomas e queixas encontrados na prática clínica devem ser efetivamente considerados como inseparáveis do contexto histórico e de normas sociais vigentes e datadas. Uma bússola para o analista que deseja seguir o exemplo de Freud é, perscrutando a alma humana em sua clínica, deixar-se sensibilizar pelos problemas emergentes da época. Levando em conta a dimensão histórica e a diversidade sociocultural e mantendo fidelidade aos conceitos fundamentais da psicanálise, é possível produzir uma leitura crítica de nossa época. Quanto a isso, em seu ensino, desde muito cedo Lacan já advertia que o analista deve renunciar de exercer a psicanálise, se “não puder alcançar, em seu horizonte, a subjetividade de sua época” (Lacan, 1953/1998, p. 322).

Desde a revolução sexual dos anos 1960 e do advento da pílula anticoncepcional, a repressão sobre a mulher recuou no Ocidente. A organização familiar vem sofrendo mudanças importantes, a informação corre célere, as novidades resultantes dos avanços tecnológicos são impressionantes. Novas questões sobre a sexualidade se impõem na contemporaneidade e, com isso, nasce a demanda de uma escuta ao que não era sequer aventado na época de Freud, como a transexualidade, por exemplo. Os analistas não podem escapar da necessidade de avaliar cada caso clínico, relendo a metapsicologia em função do que se escuta na clínica de nosso tempo. É aí que devemos interrogar a teoria psicanalítica seguindo a trilha de Freud, que a revisou inúmeras vezes. A psicanálise, como observa seu criador, é “sempre inacabada, pronta a deslocar as ênfases de suas teorias ou a modificá-las” (Freud, 1923/1976, p. 249).

Em nome de estudos interdisciplinares entre sociologia e psicanálise, o sociólogo Ehrenberg (2000, 2004) tende a descartar algumas formulações da teoria freudiana. Considera que o culto à performance e à valorização da autonomia, valores centrais da sociedade atual, têm responsabilidade na produção da depressão, o estado anímico que considera o sintoma princeps do mal-estar de nossa época. Em uma sociedade em que a autonomia e a realização pessoal são qualidades tão valorizadas, o temor de não estar à altura do que se espera torna-se constante. A depressão seria um modo de responder a esses novos problemas e, para o autor, teria substituído a neurose.

La fatigue d’être soi é um estudo de caso no qual procurei mostrar que, na passagem da neurose para a depressão, se passa de uma patologia do conflito - que coloca em cena o desejo -, para uma patologia da insuficiência - que coloca em jogo a questão da ação. (Ehrenberg, 2004, p. 50)

A depressão, que as estatísticas sugerem ser um problema cada vez maior em nossa época, talvez tenha essa dimensão de patologia da insuficiência, mas do ponto de vista da psicanálise não se desconsidera o conflito psíquico como permanente e inarredável. Ela envolve uma dimensão de denúncia e de contestação à situação criada pela expansão econômica do capitalismo que depende de consumidores sem hesitações, sempre prontos para a rápida busca dos últimos objetos e insígnias da moda, ávidos e adictos em relação aos objetos. Ou seja, o sujeito é chamado ao lugar de consumidor dentro da lei atual do mercado, que não o leva em consideração. Vigora a produção de pseudonecessidades que mascaram a falta e, por consequência, a produção de objetos novos oferecidos como solução imediata. A depressão pode ser tomada como denúncia e rebeldia em relação ao estímulo ao consumo e à valorização das pessoas a partir da posse dos objetos signos de sucesso e de poder e, em última instância, à objetificação do sujeito.

Um dos bastiões mais inexpugnáveis da ação de protesto da neurose, que ganham expressão cada vez maior no século XXI, são as chamadas patologias do corpo, das quais a anorexia é o carro chefe. Essa patologia é considerada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) como um transtorno autônomo. Freud a tratou como um sintoma, que eventualmente estava presente na histeria, mas que surgia especialmente como um dos sintomas da melancolia entre outros, como inibição, depressão, autoacusações, insônia e expectativa delirante de castigo. As elaborações sobre a melancolia formalizadas em 1917 apontaram para a perda objetal, a ambivalência e a identificação narcísica com o objeto perdido como fatores centrais nesse quadro.

A partir da distinção conceitual entre necessidade, demanda e desejo, Jacques Lacan abre uma nova via ao entendimento e amplia o alcance da clínica psicanalítica em relação ao tratamento da anorexia e da bulimia. Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, enfatiza que a mãe da anoréxica, em consonância com o empuxo ao consumo, “empanturra-a com a papinha sufocante daquilo que ela tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor” (Lacan, 1958 /1998, p. 634). Resta à criança recusar o alimento. Na história pessoal das pacientes anoréxicas, o Outro materno apresenta-se sem deixar margem para que o lugar da falta possa ser criado. Responde rapidamente às demandas como necessidades, sem proporcionar o espaço necessário para que o desejo apareça. Num movimento de oposição, a criança, recusando-se a satisfazer a demanda da mãe de que coma, exige que esta tenha um desejo para além dela, porque é essa a via que lhe falta para o caminho em direção ao desejo.

É bem conhecida a expressão comer nada (Lacan, 1994/1995, p. 188) para designar o ato que denuncia a necessidade da anoréxica de que algo faça falta, e que assim seja reduzida a onipotência do Outro. Em Clínica del vacío, anorexias, dependencias, psicosis, Massimo Recalcati (2003) retorna a essa trilha aberta pelo mestre de Paris e insiste em que a eleição da anoréxica de comer nada consegue tornar esse nada o objeto separador do Outro. Por meio do nada - do comer nada -, a anoréxica abre um furo no Outro. O nada aparece na obra de Lacan como escudo e suporte do desejo; eleger o nada constitui uma defesa subjetiva que salvaguarda o desejo, operando uma pseudosseparação entre o sujeito e o Outro. Entretanto, como observa o analista italiano, a separação é “como se”, porque a anoréxica se consome como pura atividade de negação, em uma oposição unilateral ao Outro. Dessa forma, não leva em conta a dependência simbólica em relação ao Outro e, por isso, a radicalização da eleição anoréxica implica uma “paixão absoluta pela liberdade em detrimento do vínculo imposto pelo significante” (Recalcati, 2003, p. 23).

Há duas feições do “nada” que podem se manifestar na anorexia. Assim, enquanto o nada na neurose é uma tentativa de afirmação do desejo, o segundo nada está referido a uma modalidade de gozo assexuada, sem relação com o falo e a castração. Trata-se de um nada congelado, impossível de dialetizar, e que expressa justamente uma recusa à alteridade do Outro. A inclinação à passagem ao ato, nesses casos, requer muita cautela do analista que, dispondo-se a atendê-los, corre o risco de presenciar uma vitória da pulsão de morte sobre a pulsão de vida. Desde essas duas versões da anorexia - como separação do Outro, como afirmativa do sujeito do desejo, e como desejo de morte -, podemos discernir nas passagens ao ato, sempre presentes nesta última forma, os imperativos mortíferos do supereu. Assim, a anorexia situa-se em uma posição contrária à do discurso capitalista. Diz não à alimentação asfixiante que lhe oferece a mãe que, desde uma outra perspectiva - a do discurso capitalista - se manifesta como “a disponibilidade ilimitada de objetos garantidos pela globalização do mercado” (Recalcati, 2004, p. 251).

Continuamos a encontrar histerias, neuroses obsessivas e neuroses traumáticas em nossa clínica. Pacientes continuam desafiando os analistas a escutar suas hesitações quanto ao próprio sexo. Insistem em lhes endereçar suas dúvidas obsessivas acerca do desejo e, cada vez mais, os sujeitos acossados por traumas sociais procuram na psicanálise um lugar para testemunhar a dor indizível da alma ferida.

Retomemos essa escalada de desafios que enfrentamos no dia a dia da clínica do século XXI. Um sintoma é uma forma inconsciente de recusar adaptar-se a uma forma de repressão social, o que nos permite considerar uma patologia, afinal de contas, como uma força revolucionária (Israël, 1994, pp. 119-120). Daí porque Freud, além de considerar o conflito como inerente ao processo civilizatório, advogou o mal-estar na cultura como inarredável. Isso porque a pulsão garante a presença de uma oposição às imposições culturais por parte desse objeto ingovernável, descoberto pelos poetas e elevado pela psicanálise à dignidade da ciência (Braunstein, 2011). Contudo, o psicanalista sempre acreditou na possibilidade de que, ao invés de recorrer a um afastamento da realidade - seja por meio da introversão da libido e escolha pelo mundo da fantasia, como no caso da neurose, seja pelo recolhimento da libido para o eu na psicose -, esse mal-estar possa levar ao que Freud chamou de modificações aloplásticas. Ou seja, ao trabalho e à satisfação pulsional através da criação e da busca de transformação de aspectos da cultura que causam sofrimento.

Para finalizar, vale ressaltar que os sintomas neuróticos ou psicóticos possuem um potencial de crítica social que só poderá encontrar terreno fértil para exercer seus efeitos se houver quem se disponha a eles dar ouvidos. Foi o que fez Freud com as histéricas, que denunciavam sua insatisfação sexual por meio de seus sintomas; com Schreber, escritor das minúcias de seu delírio em que afloravam referências ao rigor e ao sadismo que presidiram sua criação pelo pai, sadismo que portava traços da moralidade cruel da Alemanha pré-nazista; e com os neuróticos de guerra que expressavam, em seus distúrbios motores e crises de angústia, seu desespero e recusa à brutalidade da guerra.

Referências

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  • 1
    Pesquisa conduzida com o apoio da Funadesp e do CNPq.
  • 2
    Neste artigo, todas as citações das obras em língua estrangeira foram traduzidas pelas autoras.
  • 3
    Empregamos o termo repressão para nos referirmos às normas e imperativos presentes na cultura que regulam e proibem a manifestação da sexualidade. O termo recalque será reservado para a operação psíquica que impede o acesso à consciência de idéias e impulsos que possam gerar conflitos (Verdrangung).
  • 4
    O termo aparece, antes de 1905, algumas vezes na correspondência de Freud com Fliess. Em seguida, 1895, no Projeto para uma psicologia científica, nos Estudos sobre a histeria, de 1895, num parágrafo do artigo A sexualidade na etiologia das neuroses, de 1898, e uma vez na Interpretação dos sonhos, em 1900. Entretanto, só em 1905 toma um valor conceitual.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2016
  • Revisado
    30 Jun 2017
  • Aceito
    27 Ago 2017
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