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PALCO PÚBLICO DE DRAMAS PRIVADOS: A CLÍNICA PSICANALÍTICA NOS AMBULATÓRIOS INSTITUCIONAIS

Public Stage for Private Dramas: The Psychoanalysis at the Institutional Ambulatories

Resumos

Utilizando os conceitos frankfurtianos de público e privado, o texto parte da problemática do atendimento psicanalítico em ambulatórios institucionais para analisar os fundamentos sócio-culturais e históricos que embasaram a fundação da clínica psicanalítica caracterizando-a como um método específico para lidar com as categorias privadas do indivíduo levando à necessidade de re-pensarmos sua utilização dialetizando-a ao momento histórico atual.

Psicanálise; Clínica psicanalítica; Atendimento psicológico; Cultura; Ambulatório


Employing the frankfurtian concepts of "public" and "private," this paper begins by dealing with the issue of institutional psychoanalytical clinic in order to analyze the socio-cultural and historical aspects which were present at the foundation of psychoanalysis and which have made it a specific method for dealing with individuals’ private categories. The paper ends by suggesting the necessity of rethinking the utilization of psychoanalytical method dialectically to the current historical moment.

Psychoanalysis; Psychoanalytical clinic; Psychological assistence; Culture; Ambulatory


PALCO PÚBLICO DE DRAMAS PRIVADOS: A CLÍNICA PSICANALÍTICA NOS AMBULATÓRIOS INSTITUCIONAIS

Nadja Nara Barbosa Pinheiro1 1 Endereço para correspondência: E-mail: felipebp@ruralrj.com.br

Programa de Pós-Graduação, Doutorado em Psicologia Clínica PUC-Rio.

Utilizando os conceitos frankfurtianos de público e privado, o texto parte da problemática do atendimento psicanalítico em ambulatórios institucionais para analisar os fundamentos sócio-culturais e históricos que embasaram a fundação da clínica psicanalítica caracterizando-a como um método específico para lidar com as categorias privadas do indivíduo levando à necessidade de re-pensarmos sua utilização dialetizando-a ao momento histórico atual.

Descritores: Psicanálise. Clínica psicanalítica. Atendimento psicológico. Cultura. Ambulatório.

O interesse pelo tema desse estudo baseia-se em dois pontos distintos: uma constatação e um incômodo. O primeiro diz respeito ao fato de perceber, a partir do trabalho em um hospital geral, a dificuldade em se desenvolver atendimentos psicanalíticos em ambulatório institucional de forma similar àqueles transcorridos em consultório particular. O incômodo é consequência dessa constatação. Da confluência de ambos, inúmeros questionamentos foram sendo suscitados: porque trabalhar em uma instituição engendra uma inserção profissional diversa daquela encontrada nos consultórios particulares? Porque, apesar de tentarmos atuar de uma forma similar, o trabalho institucional imprime uma dinâmica transferencial mais lábil, mais fugás, mais tênue que acaba determinando que na maioria os casos, os pacientes interrompam os atendimentos de uma maneira que nos parece prematura? Ou ainda, que retornem ao hospital em busca de atendimento psicológico sem se importarem muito em serem atendidos por outro profissional da clínica, o que em muitos casos, acaba por fazer com que a mesma pessoa seja atendida por quase todos os psicólogos, sem demonstrar qualquer reação a esse fato? Enfim, qual o papel que a transferência institucional estaria desempenhando no desenvolvimento desses atendimentos, tanto para os pacientes quanto para os profissionais?

As dúvidas e questões são muitas, legitimando o fato de inúmeros trabalhos teóricos terem sido desenvolvidos, nas quatro últimas décadas, abordando esse assunto. Partindo de proposições distintas, a maioria desses estudos salienta as dificuldades em se desenvolver processos analíticos em ambientes institucionais. No entanto, eles trazem, também, algumas inconsistências internas, entre as quais destaco o fato de duas variáveis estarem presentes sem sofrerem uma diferenciação:esses atendimentos se passam em uma instituição e se destinam a pacientes provenientes de uma população de baixa renda. Essas duas variáveis confluíram de forma a determinar maior dificuldade no entendimento do uso da psicanálise nos ambulatórios, fazendo com que o principal da questão acabasse ficando de fora: o fato de tratar-se de uma transposição do método clínico psicanalítico do consultório particular para o ambiente institucional sem que se levasse em conta os diferentes tipos de contextos implicados no processo. Diferença de contextos sócio-culturais aos quais pertencem os pacientes que freqüentam a clínica privada e a clínica ambulatorial, diferença entre as concepções de mundo dos profissionais e dos pacientes, e, principalmente, diferença de contextos entre os ambientes nos quais os atendimentos transcorrem. Talvez a não percepção dessas interposições de contextos tenha se baseado na suposição de que a psicanálise constitui uma ciência universal, a-histórica e a-temporal, sendo, portanto, passível de ser aplicada em todo e qualquer lugar, para todos os casos e para todas as pessoas. Tal posicionamento, nos informa Costa (1990), é fonte de um grande engano que faz com que a teoria e a clínica psicanalíticas sejam constantemente utilizadas sem que haja uma reflexão crítica por parte dos analistas tanto em termos de sua consistência teórica quanto em relação aos limites e abrangências de sua prática. Tal engano, acredito, reaparece, na clínica ambulatorial, através da suposição de que as dificuldades encontradas são decorrentes de fatores externos à psicanálise. Dessa forma a responsabilidade pelos obstáculos é colocada ou nas precárias instalações institucionais que oferecem deploráveis condições de trabalho, ou na pele dos pacientes que, carentes economicamente, se mostram pobres psiquicamente para trabalharem através de um método tão rico, teoricamente. Confunde-se aqui, como ressalta Vilhena (2000) miséria neurótica com miséria econômica, esquecendo-se que, para a psicanálise, a moeda corrente refere-se ao investimento pulsional ordenador do desejo singular de cada paciente.

Procurando driblar essa confusão de contextos, minha proposta é a de procurar distinguir os ambientes nos quais a clínica se processa: ambulatório institucional e consultório particular para, a partir daí, começar a trabalhar, no sentido de demonstrar que diferentes contextos engendram diferentes formas de inserção profissional e passional, tanto por parte dos analistas quanto dos pacientes. Desta feita o engano se faz no sentido de se acreditar poder proceder de forma igual nos dois ambientes. Muda-se o contexto, muda-se o trabalho. Com isso desejo afirmar a existência de uma diferença, apenas isso. Diferença que, deixo claro, não significa uma inferioridade ou superioridade de um ou de outro, uma vez que não há como comparar termos que diferem entre si.

Para levar adiante minha proposta, tomarei como ponto de partida a divisão do corpo social, corrente entre os estudiosos da Escola de Frankfurt, em esferas pública e privada para utilizar estes conceitos como definidores dos contextos do ambulatório institucional e do consultório particular, respectivamente. Ressalto nessa minha distinção que, ambulatório institucional ou público, em meu estudo, não dependerá desse ser ou não gerido por uma verba governamental ou de se destinar a uma clientela em particular. Atendimento ambulatorial se refere a qualquer processo analítico que transcorra em um ambiente institucional, ou seja, regulado pela lógica da publicidade comum, isto é, aberto à visibilidade e à intromissão de regras que não especificamente se relacionem com o processo psicanalítico em si. Essa dinâmica significa que o paciente não tem privacidade na exposição de sua intimidade uma vez que sobre ele pesam inúmeros olhares, quer seja dos médicos, dos atendentes, ou dos companheiros com os quais compartilha a sala de espera; pelo lado do analista, seu trabalho é questionado, avaliado pela equipe, pela coordenação, e regido por todo um conjunto de regras institucionais às quais tem que se submeter.

Na verdade, creio que esbarramos aqui em uma característica da modernidade: tudo se abre aos olhares públicos da indiscrição. Por isso mesmo, acredito, que os atendimentos ambulatoriais revelem, nada mais nada menos, algo que é representativo do momento histórico em que vivemos. Ou seja, eles exemplificam, na esfera psi, aquilo que está ocorrendo em outras esferas sociais: o transbordamento da privacidade sobre a publicidade, tornando os limites entre ambos imperceptíveis e pouco eficazes, de forma a abrir, aos olhares e à curiosidade pública, a interioridade devassada.2 2 Assistimos, na televisão brasileira, inúmeros programas nos quais tal procedimento ocorre. Programas como o do "Ratinho" nos quais as brigas familiares e íntimas são apresentadas ao público, assim como toda a "novidade" de programas nos quais os participantes são observados 24 hrs ao dia ("No limite," "Sufoco," "Território Livre"). Portanto, refletir sobre formas atuais de lidar com essa nova configuração social se torna uma tarefa não apenas clínica, porém essencialmente política.

Meu estudo, portanto, procura refletir, como uma teoria e uma prática que foram construídas para trabalhar com as categorias privadas do indivíduo pode ser transposta para outro contexto sem perder sua especificidade, ainda que se revele de uma forma diferenciada. Para tal iniciarei por uma pequena análise das relações estabelecidas no campo social, ao longo do tempo, entre as esferas pública e privada. Em seguida procurarei demonstrar, através da análise dos primeiros casos clínicos freudianos, como a construção da psicanálise se processou caracteristicamente como uma teoria e uma clínica voltadas para trabalhar com as categorias da privacidade, em um momento histórico específico que ficou conhecido como "modernidade vienense." Assim, creio, poderemos refletir sobre o nosso próprio tempo e nosso próprio espaço clínico para, a partir daí, produzirmos uma análise crítica sobre o exercício da psicanálise hoje, em diferentes contextos, para diferentes camadas sociais, sem que nossa escuta se torne hegemônica, etnocêntrica ou colonizadora.

Entre o público e o privado: uma sociedade dividida.

A compreensão da divisão da sociedade em esferas pública e privada passa, necessariamente, por uma visão histórica da cultura ocidental. A partir dessa perspectiva histórica, podemos compreender como as transformações ocorridas nas sociedades tanto em termos culturais quanto ideológicos, econômicos e filosóficos, acabaram por impor modos de subjetivação distintos ao longo do tempo. Segundo Dumont (citado por Figueira, 1981) podemos detectar alguns pontos de referência cruciais no desenvolvimento das sociedades ocidentais entre os quais nos interessa destacar a ascensão dos Estados Absolutistas na Europa, no transcorrer do século XVI, e o concomitante declínio do poder, principalmente ideológico, da Igreja. Tal fato possui uma importância particular para nosso estudo, pois a partir dele novos sistemas de inteligibilidade do mundo puderam ser construídos. Na medida em que uma perspectiva religiosa impõe uma concepção dogmática, e, portanto, autoritária, na qual a Verdade já aparece como um dado íntegro e completo que impede o exercício reflexivo de uma consciência autônoma, a superação dessa perspectiva possibilitou, ao homem, exercer a reflexão crítica e construir novas e diversas formas de pensamento. A partir desse momento, não havia mais uma Verdade, porém múltiplas propostas de alcançá-la, as quais procuraram, cada uma a seu modo particular, ocupar o lugar hegemônico anteriormente ocupado pela religião.

Justamente, esse momento histórico, é identificado por Figueiredo (1996) como sendo aquele no qual podemos encontrar a efetuação da cisão do campo social em duas regiões: o público e o privado. O autor argumenta que, ao findar o Renascimento, nas principais capitais européias, as constantes lutas políticas e religiosas deflagradas, promoveram uma instabilidade social crescente e penosa para seus habitantes. Procurando aplacar as guerras e recuperar a estabilidade, os Estados Absolutistas lançaram mão de inúmeros dispositivos sociais ordenadores os quais, embora tenham conseguido re-ordenar a vida social, transferiram a instabilidade externa para a interioridade pessoal: ou as pessoas obedeciam às leis régias ou se mantinham fiés às suas convicções internas. Qualquer que fosse a escolha, o resultado produzido era, constantemente, a culpa, por se estar traindo ou a confiança do rei ou as suas próprias crenças. A solução encontrada para lidar com essa contradição foi efetuar a divisão entre os domínios público e privado, garantindo para cada um deles formas de organização, espaços de aplicação e objetos organizados distintos. Assim, a esfera pública, comum a todos, era regulada pela ordem política absolutista e as leis do direito civil que foram sendo paulatinamente construídas. Já à esfera privada reservava-se a liberdade vigiada de se gerir os próprios negócios, as atividades e as relações familiares, as crenças religiosas e as convicções políticas. Podemos notar, então, que mesmo nesse longínquo momento histórico, ambas concepções já receberam, desde aí, uma compreensão bastante próxima daquela encontrada nos dias atuais, ou seja, "público" era definido como aberto à observação de todas as pessoas, enquanto "privado" constituía uma região protegida da vida formada pela família e amigos próximos (Sennet, 1974).

Segundo Sennet (1974) tal divisão permaneceu estável até o século XVIII, permitindo que as pessoas pudessem investir diferentes tipos de paixão em cada uma das esferas distintamente. Foi somente no transcorrer desse século que se iniciou o desequilíbrio entre público / privado, observado atualmente, o qual é tributário de uma transformação histórica proveniente da implantação de um sistema econômico capitalista, secular e urbano, que teve início ainda no transcorrer do Antigo Regime. O autor observa que o processo de implantação da economia capitalista impeliu o crescimento das cidades assim como a criação de relações de sociabilidade intensas e independentes do controle real direto nas principais capitais européias. A vida urbana cresceu de forma assustadora, tornando necessário a abertura de espaços urbanos onde um número cada vez maior de estranhos se encontrava e se relacionava. Construíram-se parques, ruas de passeio público, teatros e óperas que podiam ser freqüentadas pelo público em geral e não apenas pela corte real, ou seja, permitiu-se que as comodidades, facilidades, privilégios e prazeres pudessem ser desfrutados por um número cada vez maior de pessoas do povo, os quais deixaram, dessa forma, de serem restritos a uma pequena elite da corte. Nesse burburinho citadino, os burgueses passaram a se preocupar menos em esconder suas origens sociais, já que o crescente número de estranhos tornava a multidão homogeneizada, garantindo, pelo anonimato, a privacidade intocada. Nos locais públicos, protegidos pelo anonimato, as pessoas se sentiam livres para representar diante de estranhos guardando para o seio familiar a atuação verdadeira. Assistiu-se, aqui, a concretização de uma dicotomia também nos modos de atuação: à dissimulação, hipocrisia e fingimento relativos à representação em público, opôs-se a sinceridade moral e a autenticidade de sentimentos privados.

No âmbito econômico, com a implantação do capitalismo, os novos mercados urbanos se expandiram de forma desorganizada e incompreensível para os habitantes das cidades os quais cada vez mais se afastavam da esfera pública e se refugiavam na privacidade e segurança da família, exacerbando e incentivando a exploração do rico mundo da subjetividade. Nesse sentido, as concepções liberais, de cunho Iluminista, permitiram que os direitos naturais do indivíduo fossem assegurados por leis de um Estado que deveria se mostrar presente minimamente, envolvendo-se na vida das pessoas apenas no sentido de resolver os conflitos pessoais, porém, visando sempre a manutenção da privacidade (Figueiredo, 1996).

De qualquer maneira é importante observar que, para que o capitalismo, enquanto força transformadora das relações sociais, pudesse exercer sua ação foi necessário que ele estivesse acompanhado por um novo sistema de credibilidade secular. Por esta razão, para Sennet (1974), não devemos entender secularidade como oposição à religiosidade, porém como um conjunto de imagens e de símbolos que tornam o mundo e as pessoas compreensíveis. A crença secular instaurada pelo Iluminismo desbancou a concepção, vigente à época, segundo a qual o mundo e as pessoas eram compreensíveis a partir do lugar que ocupavam dentro de uma ordem da Natureza que as precedia e transcendia, para fundar uma compreensão a partir do imanente e do instante como se fossem realidades em si mesmas. Ou seja, embora, no Antigo Regime, tenha ocorrido a substituição da transcendência religiosa por uma crença fundada na Natureza, nesse sistema de credibilidade, a compreensão do mundo e do homem ainda se processava a partir do lugar que estes ocupavam dentro de uma ordem que lhes era transcendente. O século XIX, entretanto, é marcado por uma radicalidade mais profunda, pois aí se perdeu a transcendência para se fundar um sistema de credibilidade no qual a sucessão lógica dos fatos tornou-se o próprio sistema regulador. Desta feita o homem não abdicou de crer, porém mudou seu foco: de uma crença transcendente passou a crer na Ciência, imanente. O centro passou a ser o próprio homem e as experiências pessoais imediatas, as quais permitiram que o entendimento do mundo tomasse a subjetividade como paradigma conceitual para a existência social, possibilitando que a partir daí as formas individuais e singulares das vivências internas ganhassem meios de expressividade cada vez mais valorosos e seguros. Para o autor, a implantação do capitalismo industrial nas capitais acompanhado por essa crença secular, imprimiu uma força, sem igual, para a privatização familiar, iniciando a desestabilização existente entre as esferas pública e privada observada na atualidade.

Nesse momento, pressionadas e assustadas por terem que viver publicamente em um caos urbano e desconhecendo as coordenadas reguladoras do capitalismo, as pessoas passaram a se concentrar cada vez mais na esfera familiar, fazendo com que a família deixasse de ser percebida como um espaço diferenciado do público para se tornar um refúgio idealizado e moralmente superior. Uma vez, supostamente, afastada da inspeção e intromissão externas, a família burguesa seguia regras rígidas e estáveis tornando segura a vida privada, sendo justamente essa idealização o que possibilitará que a legitimidade da ordem pública seja posta em questão. É o que propõe Habermas (1981), ao afirmar que podemos observar, nesse momento histórico, a ocorrência de uma emancipação psíquica que corresponde à emancipação ocorrida no nível político-econômico. Ainda que, ilusoriamente, a família burguesa tenha se pensado como independente do controle externo, posto que, na verdade, sua constituição foi historicamente determinada, tal ilusão de liberdade ofereceu as bases para a noção de que a família se estrutura a partir de três coordenadas distintas:

- o caráter voluntário (as pessoas se unem por vontade própria, revelação plena do individualismo na medida em que as pessoas perdem sua inscrição social e passam a contar individualmente);

- o amor natural (fundamento da noção de que aquilo que mantém a união matrimonial é a natureza humana e seus aspectos subjetivos estruturados pelos laços fraternos da paternidade e maternidade sem interesses econômicos);

- a educação (a finalidade da família era interna e não externa)

Essas três coordenadas se articularam de forma a sustentar a ideia de uma humanidade que deve ser inerente à natureza humana, fundando uma esfera que se emancipa de finalidades exteriores à ela, criando suas próprias leis de organização cujas coordenadas principais são o amor (revelado pelos laços de parentesco) e a sexualidade.3 3 Com a psicanálise, posteriormente encontramos a junção dessas duas primeiras coordenadas, já que, em seu corpo teórico a sexualidade se une aos laços de parentesco na travessia do complexo edipiano. Com isso, a esfera privada pôde ganhar espaço e ser tomada como paradigma a partir do qual a sociedade pudesse ser avaliada, imprimindo um interesse cada vez maior pela intimidade, própria e dos outros, abrindo-a à exploracão e ao desvelamento. Havendo, portanto, uma superposição do público e do privado já que a privacidade, ao ser desvelada, se abre aos olhares públicos da indiscrição.

Durante o século XVIII, portanto, a privacidade estava em ascenção e se converteu em um poderoso instrumento crítico da ordem político-social de certa forma invadindo o espaço público através da liberdade reflexiva da consciência, a independência da razão, a autenticidade dos afetos e sentimentos. Iniciando aqui o processo, tão bem apontado por Sennet (1974), que acabou determinando o esvaziamento da esfera pública, a exacerbação da intimidade e a superposição imaginária entre as esferas pública/privada. Porém, paradoxalmente, foi a partir da própria exacerbação da intimidade que a subjetividade entrou em crise e abriu as portas à construção de um campo de saber que a tomará como objeto de investigação: o campo da psicologia. Tal processo, assinala Figueiredo (1996), será estruturado na conjugação de três vértices distintos: o liberalismo (e seu corolário o individualismo), o romantismo e o regime disciplinar, os quais organizavam a política, a estética e a sociedade, respectivamente. Segundo o autor, o Estado Liberal, ao propor a proteção dos direitos individuais à liberdade e à propriedade, ofereceu, desavisadamente, um fértil terreno sobre o qual se desenvolveu uma sociedade individualista e atomizada. Abrindo as portas à elaboração de uma concepção utilitarista a qual suplantou a crença liberal da defesa dos direitos naturais por uma crença que objetivava a eficiência e a utilidade. Com isso coube ao Estado uma nova tarefa: promover o bem-estar social através de uma série de dispositivos controladores de cada indivíduo os quais se estabeleceram através de inúmeras estratégias exercidas pelo controle social, tais como a administração burocrática, a opinião pública e todas as tecnologias coercitivas, tão bem descritas por Foucault (1977). A família também não escapou dessa fúria disciplinadora e se transformou, no século XIX, em mais uma agência reguladora cuja função seria a de normatizar e individualizar seus membros.4 4 Não é à toa, portanto, que Lacan destaca a função normalizadora do processo de recalcamento o qual podemos entender como sendo uma privatização de estruturas sociais, tão bem descrito no mito individual do neurótico.

Nesse processo, a concepção de família como um lugar de segurança no interior do qual as pessoas pudessem descansar e serem livres para exercerem sua individualidade perdeu sua eficácia, já que invadida pelo espaço público pulverizado em inúmeros tentáculos os quais penetraram na individualidade para exercerem aí o seu controle e domínio. No entanto, Figueiredo (1996) seguindo Foucault e Tocqueville, adverte que não devemos entender ingenuamente as relações entre regime disciplinar e individualismo. Para o autor, ocorre, na verdade, um pacto perverso entre as forças coercitivas, que invadem a privacidade, e os indivíduos que solicitam tal regulação. Esse pacto, beneficia tanto o Estado, que se vê fortalecido, quanto o indivíduo, que se supõe protegido. Podemos assinalar também que Freud, de forma perspicaz, percebeu essa dupla vinculação entre as necessidades internas e externas presentes no processo do recalcamento a qual permite que o sistema psíquico funcione de forma a satisfazer exigências contraditórias, ainda que às custas da divisão da subjetividade, porém sempre a partir de uma ação exercida pelo próprio sujeito.

Segundo Figueiredo (1996) é no ponto exato dessa tensão que podemos identificar o momento da invasão do espaço público pelas categorias da privatização, as quais, ameaçadas pela coerção e invadidas progressivamente pela exterioridade, receberam do liberalismo (e sua valorização do "eu") e do romantismo (com seu projeto restaurador da identidade) forças suficientes para se transformarem em critérios pessoais para avaliar, tomar decisões e participar da vida social. Nessa perspectiva, seguindo as indicações do autor, podemos inscrever a proposta freudiana entre aquelas que procuraram defender e recuperar a importância da intimidade frente à ameaça de destruição que vinha sofrendo, juntando-se, nessa empreitada, ao individualismo e ao romantismo, uma vez que Freud enfatizou a singularidade e a diferença como fundamentos do sujeito. Assim, ao individualismo coube exacerbar o "reinado do eu," permitindo a construção de identidades bem delimitadas, capazes de invariância ao longo do tempo, já que sustentadas pela nítida cisão, embora imaginária, entre as esferas pública (domínio das leis, das convenções, do decoro, da racionalidade e funcionalidades) e privada (exercício da liberdade individual sem interferências alheias). Ponto sobre o qual, acredito, posteriormente, Freud baseará suas noções sobre o caráter conflitivo do aparelho psíquico que procura dar conta de exigências opostas utilizando-se para tal dos dois princípios básicos do funcionamento mental: os princípios da realidade e do prazer, respectivamente.

Já o romantismo trouxe à baila os valores da espontaneidade impulsiva, identidades pouco definidas, posto que atravessadas pela história, pela sociedade e pela natureza. O projeto de restauração do "eu" desenvolvido pelo romantismo passava pelas experiências e vivências extremadas, míticas, subjetivas, alucinógenas, desagregadoras, loucas e mortais. Aqui já não havia mais a tentativa de exercer a liberdade sem interferências externas, porém cientes dessas interferências, a liberdade é praticada no sentido de se exercer a autonomia e o auto-engendramento, tornando possível que os sujeitos se constituam como responsáveis pelas suas escolhas e decisões e revelem seu verdadeiro ser em uma personalidade singularizada (Figueiredo, 1996).

A partir daí, ocorre uma mudança crucial na relação entre público e privado a qual, no liberalismo original, baseava-se em uma nítida cisão que determinava a distinção espacial e ordenadora que permitia formas de atuação e de investimentos pessoais próprios e distintos em cada uma das esferas. Já no liberalismo romantizado do século XIX, os valores e procedimentos da privacidade passaram a ser tomados como parâmetros para o julgamento da vida pública permitindo a supervalorização daquela sobre essa última. Sennet (1974) assinala que nesse momento, a invasão do espaço público pelas categorias da privacidade, trouxe, contraditoriamente, um intenso temor de que as emoções íntimas pudessem ser reveladas, involuntariamente, em público. Tal temor foi reforçado pela construção de teorias que procuravam demonstrar, cientificamente, que a privacidade poderia ser visualizada por aspectos físicos e, portanto, públicos, já que aberto aos olhos de todos (por exemplo, pela face na fisiognomia, ou pelo crânio, na frenologia). Freud, ele também, não escapou a essa suposição ao demonstrar o quanto revelamos, involuntariamente, de nossa intimidade ao cometermos um ato falho ou na construção dos chistes e até mesmo nas formações sintomáticas. Tal ameaça, levou as pessoas, de uma forma defensiva, a se protegerem desse perigo, tornam-se cada vez mais retraídas, caladas e passivas quando se encontravam em público. Esse tipo de comportamento demarcou um verdadeiro isolamento em meio à visibilidade, frente à ameaça de se ter a intimidade devassada independente de sua vontade.5 5 Creio que podemos entender um pouco daquilo que acontece nos ambulatórios de psicanálise a partir desse paradoxo da visibilidade/isolamento: nos atendimentos ambulatoriais, não há em concretude, a possibilidade de se resguardar sigilo e segredo para a exposição das experiências íntimas de cada paciente, e nem do trabalho do psicanalista que se vê invadido pela dinâmica das outras clínicas e da equipe de sua prórpia clínica. Pelo lado do paciente, no hospital ele se encontra fragmentado, dissecado, avaliado, prescrutado por inúmeros profissionais, atendentes, enfermeiros, amigos, vizinhos, etc... Pelo lado do analista, esse vê seu trabalho ser interrogado, avaliado, medido, restringido por regras instituicionais, perpassado por inúmeras interferências externas.

Não foi à toa, portanto, que a doença da "belle époque," que melhor captou tal problemática da expressividade tenha sido a histeria. Nela, encontrava-se, de forma contundente, as características acima assinaladas: a repressão familiar burguesa da era vitoriana; o medo e a crença de que seus desejos mais íntimos pudessem escapar ao controle e aparecer "na superfície," ou seja, a demonstração contundente de uma profunda confusão entre imaginários público e privado. Podemos perceber essa confusão na maneira através da qual a histeria tomou a representação cênica como forma de expressividade para seus conflitos íntimos: grandes ataques, desmaios, paralisações físicas contundentes, etc. Por seu turno, Charcot, de forma perspicaz, absorveu todo o potencial da teatralidade histérica ao devassar clinicamente a intimidade de suas pacientes aos olhares curiosos e estasiados dos médicos de sua comunidade, transformando seu curso teórico em um espaço de encenação e de representação em potencial.

Foi nesse campo, contraditório por excelência, que Freud iniciou seus estudos sobre a histeria, finalizando por construir um corpo teórico e um método clínico voltados para lidar com as categorias da privacidade, sustentado em um ideário individualista, romântico e moralmente repressor bastante representativo do século XIX. Não sendo à toa, portanto, que os pilares em torno dos quais a psicanálise se edificou girem em torno das regras estruturadoras da privacidade: silêncio e discrição, pudor e desvelamento paulatino, repressão da sexualidade, decoro e reserva, renúncias e ressentimentos, desejos inconscientes, disfarçados, matizados, frustrados e insatisfeitos. Sendo esses os aspectos que, acredito, estão presentes na interpretação freudiana de seus primeiros casos clínicos, para demonstrá-lo me servirei mais especificamente do tratamento desenvolvido pelo autor com a Sr von N.6 6 Nessa proposta sigo mais de perto as indicações fornecidas por Costa (1994) ao analisar a obra "Aquele rapaz" de Bernadet.

Freud, Viena "fin-de-siécle" e a constituição da psicanálise

É interessante observar como, nos anos compreendidos entre 1890 a 1910 estabeleceu-se, em Viena, uma série de movimentos inaugurais em diversos campos da atuação humana. Tal riqueza intelectual acabou por caracterizar um período histórico que se convencionou denominar de "modernidade vienense." A esse respeito, Rider (1992) destaca o surgimento dos seguintes estudos: o positivismo e a epistemologia de E. Mach; a fenomenologia e filosofia da linguagem de F. Brentano (desembocando na "gestaltpsichologie" e no Círculo de Viena); o movimento de Secessão de G. Klimt e o expressiomismo de Kokoschka; a música de Mahler e Schomberg; e, como não poderíamos deixar de mencionar, a Psicanálise de Freud.

Ao se debruçar sobre esse período histórico, Schorske (1990), propõe que a modernidade vienense possa ser entendida como um movimento de crítica e questionamento sobre as formas tradicionais de se pensar o mundo e o homem, principalmente a partir do desencanto existencial engendrado pela desilusão acarretada com o fracasso da proposta iluminista de proporcionar o bem-estar social e individual. Para o autor, todas essas manifestações intelectuais que eclodiram na virada do século XIX, foram tributárias do movimento revolucionário ocorrido em 1848 na França, o qual, por sua vez, nasceu no rastro das idéias liberais propagadas pela revolução francesa, procurando dar uma solução para as crises política e social que teimavam em se manter, no período pós-revolucionário. Embora quase que totalmente silenciados por toda França, os ideais revolucionários permaneceram permeando e estruturando as novas formas de concepção de vida e de pensamento, sobretudo no que diz respeito ao pensamento crítico e reformulador que influenciou sobremaneira os vienenses.

Na Áustria, os reflexos da revolução de 1848 puderam ser sentidos na instalação de uma crise política sem precedentes. Sob tensão, o poder burguês se esfacelou determinando com isso a instalação de um governo parlamentar o qual, ao lado do Imperador Francisco José, trazia como proposta a modernização política através de uma perspectiva liberal. Nesse período, Viena se tornou uma cidade moderna e progressista. Suas velhas casas cederam lugar a modernas construções, entre as quais a famosa Ringstrasse, que se tornou o símbolo de uma nova era. Concomitantemente, a renovação da infra-instrutura urbana cresceu em ritmo acelerado. Foram iniciadas e concluídas obras como as de abastecimento de água potável, melhoramento de rede ferroviária urbana, distribuição de gás e eletricidade, etc. Em suma, tributários dos ideais propostos pela revolução de 1948, o projeto liberal propunha a substituição gradual do absolutismo aristocrático por uma monarquia constitucional, a ciência em substituição à religião e, por fim, promulgava a idéia de que o saber racional substituiria a ignorância popular e se reverteria em prol da construção de uma sociedade ideal, sob a égide de uma ordem democrática ampla que abarcaria a união de todas as nacionalidades e etnias na formação de um estado multinacional (Rider, 1992).

Tais esperanças, contudo, não lograram êxito, e o partido liberal foi afastado do poder em 1900. Na verdade, o fracasso liberal representou uma ruptura com a noção iluminista sobre o curso natural da história uma vez que a sociedade alcançou o poder político sem ser orientada pela racionalidade, impondo uma revolta contra a razão e a lei que extrapolou os limites políticos para se tornar parte da revolução cultural que estava por ser iniciada. Podemos entender a base desse movimento, através da noção de que o liberalismo, a partir do iluminismo, depositava toda sua confiança no poder da racionalidade, tomando-a como instrumento de controle da natureza e das ações morais humanas, em prol da construção de uma sociedade ideal. Nesse projeto, o pensamento iluminista, despojando a idéia de progresso, buscou ativamente o rompimento com a tradição e a história, fazendo do transitório, do fugidio e do fragmentário, conceitos que permearam e sustentaram as bases do projeto modernizador (Harvey, 1994). Uma vez que esse projeto tenha fracassado, a crise existencial se abateu sobre os vienenses que passaram a buscar soluções de restauração desse ‘eu-liberal’ em crise de diversas maneiras em diversos campos do saber. Por essa razão, para Rider (1992), o movimento da modernidade vienense pode ser caracterizado como sendo a tentativa de se enfocar criticamente a modernidade e seu projeto. Essas tentativas centralizaram-se em preocupações estéticas, éticas e psicológicas considerando com ceticismo determinadas idéias modernas como a de progresso guiado pela racionalidade cientifica e o programa de emancipação dos indivíduos animado pelo otimismo iluminista. De todo esse questionamento ocorreu, sobretudo, a substituição da concepção de homem racional, centrado no domínio de si mesmo e da natureza voltada para a construção de uma sociedade ideal, por um conceito de homem muito mais rico e abrangente. Uma concepção de homem muito mais complexa e multifacetada, passional e inconstante denominada por Schorske (1990) de o "homem psicológico."

Nesse sentido, o autor assinala que o marco característico da modernidade vienense é um sentimento de perda, de decadência, de desmoronamento do mundo e de desconfiança no futuro, sublinhando que, em todos os campos intelectualizados, tal mal-estar tenha sido problematizado em termos individualistas a partir da intimidade, da privacidade. Em consonância, para Rider (1992), a modernidade vienense se caracterizou por vivenciar a crise do indivíduo sentida como uma perda produzindo, em conseqüência, inúmeras tentativas de reconstrução do "eu," destroçado, inseguro, dividido e desesperançoso.

Os primeiros casos freudianos:

Esse era o pano de fundo sobre o qual Freud iniciou seu trabalho ao retornar à Viena, após um estudo prolongado com Charcot, em Paris, sobre a histeria. Sua clínica, nesse início, desenvolveu-se, mais estreitamente com pacientes histéricas provenientes das classes burguesa e aristocrática da cidade, o que, no entanto, não impediu a construção de uma teoria geral das neuroses, que se expandiu à compreensão da mente humana como um todo. Esse primeiro momento de produção freudiana aparece no livro publicado em parceria com o Dr Breuer, Estudos sobre a Histeria (Breuer & Freud, 1893-1895), no qual encontramos a tentativa impetrada pelos autores em especificar, originariamente, a problemática essencial de suas indagações teóricas assim como seu campo de aplicabilidade técnica. Esse livro consta de uma introdução escrita em conjunto pelos dois médicos: "Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos: Comunicação Preliminar" (1893), seguido pela apresentação de cinco casos clínicos, sendo um de Breuer (o famoso caso de Anna O) e quatro de Freud. Na segunda parte do livro, os autores tecem suas "Considerações Teóricas" separadamente, inicialmente Breuer e finalmente Freud com sua "A Psicoterapia da Histeria," artigo rico teoricamente, e perspicaz clinicamente, que encerra uma etapa abrindo as portas a indagações futuras.

O tratamento desenvolvido por Freud com a sra. Emmy von N., possui para a história da psicanálise um valor especial, pois através dele podemos perceber as dificuldades encontradas pelo autor em utilizar a hipnose e a sugestão como instrumentos terapêuticos assim como encontramos a primeira menção à utilização da regra da livre associação, no momento em que a própria paciente pede ao médico que não a interrompa com tantas perguntas e que a deixe falar livremente sobre suas queixas. O atendimento se desenrolou por aproximadamente cinco semanas, durante as quais Freud visitou a paciente todos os dias, duas vezes ao dia. Segundo o seu relato, a Sra von N., indicada por Breuer, era uma mulher de aproximadamente 40 anos, histérica, que sofria de problemas nervosos. Freud indicou um tratamento hipnótico, acompanhado por banhos quentes e massagens corporais, permanecendo a paciente internada e, portanto, afastada da família e da realidade social. O trabalho terapêutico visava a eliminação dos sintomas de forma a permitir que a paciente retomasse suas atividades junto à família e à empresa que gerenciava. E, embora tenha encontrado um êxito apenas parcial, pois apesar de enfraquecidos em sua intensidade, os sintomas histéricos se tornaram recorrentes, Freud considerou o tratamento bastante satisfatório tecendo inúmeras considerações acerca dos mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos em geral. No curso da exposição do caso, o autor faz inúmeras referências à moralidade repressora vigente à época, na qual imputa a responsabilidade pelos problemas neuróticos desenvolvidos pela paciente. O autor é categórico em ressaltar as qualidades intelectuais e morais da paciente afirmando que ela possui um caráter impecável e desfruta de um modo de vida bem orientado segundo as regras sociais: preocupa-se sobremaneira com a educação das filhas, consegue gerir a empresa da família com sabedoria, apresenta maneiras requintadas e uma profunda humildade de espírito.

Podemos perceber nessas indicações o referencial paradigmático da moralidade de uma época na qual reservava-se um lugar e uma expectativa específicos para as mulheres: moralidade estrita, sexualidade reprimida, cordialidade, maternidade e humildade de espírito como atributos naturais da feminilidade e cuidado com a educação familiar. Ou seja, encontramos nesses referenciais, os pilares estruturais da sociedade burguesa: regras morais rígidas, sexualidade reprimida, valorização do núcleo familiar e individualidade.

Costa (1994) ao analisar as relações entre organização social e construção da subjetividade, propôs que o momento histórico referente ao final do século passado era dominado, ainda, pela cisão imaginária, entre as esferas pública e privada. Tal situação repercutia de forma especifica no modo através do qual as pessoas podiam estruturar suas concepções de vida e de mundo. Concentrada na intimidade, a construção da subjetividade se processava a partir de regras morais bem determinadas no seio da esfera familiar. Segundo Sennet (1974), tal configuração, relacionada estreitamente à concepção individualista, permitiu que o amor e a sexualidade perdessem sua inscrição social e passassem a ser concebidos como referentes à individualidade. Sem os laços sociais, as pessoas puderam se ligar umas às outras independentemente de suas famílias, o que permitiu à Sra von N. ter se casado contra a vontade dos familiares de seu marido, os quais, após sua morte prematura, procuraram incriminá-la acusando-a de ser a assassina de seu próprio esposo.

Da mesma forma, a compreensão da instauração da doença histérica pôde ser tomada como desconectada do social e baseada etiologicamente sobre a intensidade das experiências traumáticas particulares individuais, da infância. Tal fato demonstra, como nos informa Sennet (1974) que a implantação da secularidade demarca o momento no qual se deu a passagem da compreensão da expressividade como inscrita em uma ordem transcendente que permitia uma leitura geral, igual para todos, para um momento no qual a expressividade se faz em termos de representação e encenação. Sem uma ordem transcendente, a expressão de estados e sentimentos na sociedade intimista se tornou dependente daquele que o está expressando, é idiossincrática, contingente e necessita ser interpretada a partir da história individual de cada um. Sendo assim, sem um entendimento transcendente à individualidade, no qual o médico pudesse basear a compreensão das afecções "psi," tornou-se necessário que o próprio paciente relatasse a história de sua vida pessoal para obter a compreensão de como se deu a construção neurótica. Tal conhecimento poderia ser advindo de lembranças, sonhos, memórias pessoais e infantis as quais iam tecendo as redes construtoras de uma história individual, única e singular. Conseqüentemente, o processo de discorrer vagarosamente e paulatinamente sobre experiências passadas, durante o tratamento, produzia um efeito terapêutico na medida em que as recordações e os relatos obtidos iam adquirindo um novo lugar no interior da rede de significações produzindo novos sentidos e permitindo que o paciente reformulasse sua percepção de seus modos de vida. Assim, cada consulta médica implicava no ato de desfiar inúmeras recordações que iam perdendo os seus poderes patogênicos ao serem traduzidas em palavras. Razão pela qual Freud tenha proposto que sua conduta terapêutica visava desfiar, dia após dia, o acervo das lembranças patogênicas até poder esgotá-las (Freud, 1893-1895, p. 113).

Por outro lado, esse desvinculamento social levou à necessidade de construção de regras precisas a partir das quais as subjetividades individuais pudessem ser estruturadas, transparecendo em diversas formas rígidas de controle moral (Costa, 1994). Nesse ponto Freud foi bastante perspicaz ao observar a relação entre repressão da sexualidade e neurose, em um momento em que se pensava justamente o contrário, ou seja, que a causa da neurose estaria na depravação sexual das metrópoles modernas (Gay, 1989).Tal fato impôs uma condição: a moralidade estrita exigia que os desejos íntimos passassem por um processo de ocultação tão violento que muitas vezes eles se tornavam indecifráveis para o próprio indivíduo, tornando-os dissimulados, deslocados e/ou substituídos engendrando uma culpa difusa, que podia ser notada de diversas maneiras sintomáticas produzidas pela paciente: severidade com suas ações "diante os mais ínfimos sinais de negligência" (Freud, 1893-1895, p. 124). Dessa forma,tal configuração estruturadora no seio familiar permitia a construção de identidades morais responsáveis tanto pelas escolhas pessoais, como também pelo bem-estar das pessoas próximas, permitindo uma intensa preocupação com as atividades sociais, profissionais e familiares, não sendo à toa, portanto, que a Sr von N. se preocupasse sobremaneira em controlar a sexualidade própria e de suas filhas, assim com em gerenciar seus negócios e organizar a vida familiar com responsabilidade e competência (Freud, 1893-1895, p. 124).

Finalizando, assim como Costa (1990) nos indicou, nesse momento histórico, a construção da subjetividade se processava de forma a possibilitar a estruturação de um indivíduo com responsabilidade e autonomia moral, seguindo, bem de perto, as regras da privacidade:

- Silêncio e discrição: a construção e revelação do desejo, na intimidade, seguem as regras do pudor e da não revelação imediata, mas visando o decoro e a reserva, o torna disfarçado, oblíquo, enviesado, insatisfeito.Da mesma forma, a psicanálise se constituiu como um método terapêutico o qual, visando conhecer e decifrar a verdade desse desejo, procurou fazê-lo através de declarações paulatinas, em um ambiente arquitetonicamente preparado para recriar uma esfera de intimidade e privacidade, tendo no sigilo profissional uma regra de base que lhe confere credibilidade e poder terapêutico (Figueira, 1981).

- Renúncias e repressões: os desejos e aspirações pessoais passam inicialmente pelo crivo das considerações familiares e sociais para poderem ser concretizados ou expressos. Não sendo à toa, portanto, que os conceitos de defesa, recalque, e desejos inconscientes irromperam na teoria freudiana com toda sua força e potência, revelando o conflito permanente entre as esferas íntima e pública, entre as exigências internas e externas.

- Dissimulação e disfarce: máscaras e simulacros recobrem a intimidade resguardando-a da indiscrição dos olhares públicos e permitindo sua proteção.

Conclusão:

Através da análise histórica das transformações sociais ocorridas nas relações estabelecidas entre as esferas pública e privada das sociedades modernas, procurei demonstrar como a constituição da psicanálise se processou a partir de coordenadas que privilegiam o espaço da intimidade. Baseada em um ideário individualista, romântico e repressor do final do século passado, a psicanálise se mostra como uma teoria e um aparato clínico bastante condizente às concepções de seu momento histórico. Com essa afirmação procuro apenas demonstrar a necessidade de submetermos suas premissas e fundamentos à uma reflexão crítica a partir de nosso próprio espaço social e momento histórico-cultural para não corremos o risco de tomá-la como uma concepção dogmática e portanto autoritária. Ao privilegiar os primeiros casos clínicos freudianos procurei demonstrar como o próprio autor não se furtou à tarefa de pensar a subjetividade em relação aos aspectos sócio-culturais que a mediatizam e determinam. Acredito que esse fato nos impõe o dever de procedermos da mesma maneira ao procurarmos entender o sujeito na atualidade, ou seja, em um momento que se apresenta radicalmente diferente ao de Viena "fin-de-siécle" uma vez que as sociedades atuais, regidas pela lógica do consumo capitalista, impõem uma perspectiva ideológica especifica na qual tudo pode ser identificado à mercadoria: pessoas, corpos, desejos, valem pelo valor econômico que alcançam no mercado. Refletirmos sobre a questão do sujeito na atualidade a partir do instrumental da psicanálise me parece imprescindível até mesmo como oposição à cooptação de nossos esforços clínicos por essa lógica mercadológica. Com isso estaremos, creio, seguindo a perspectiva freudiana, pois, ao privilegiar a verdade do inconsciente, Freud nos indicou, sobretudo, que a riqueza do sujeito não é econômica, porém essencialmente humana. E é nessa riqueza que, acredito, vale a pena investir.

Pinheiro, N. N. B. (2001). Public Stage for Private Dramas: The Psychoanalysis at the Institutional Ambulatories. Psicologia USP, 12 (2), 49-71.

Abstract: Employing the frankfurtian concepts of "public" and "private," this paper begins by dealing with the issue of institutional psychoanalytical clinic in order to analyze the socio-cultural and historical aspects which were present at the foundation of psychoanalysis and which have made it a specific method for dealing with individuals’ private categories. The paper ends by suggesting the necessity of rethinking the utilization of psychoanalytical method dialectically to the current historical moment.

Index terms: Psychoanalysis. Psychoanalytical clinic. Psychological assistence. Culture. Ambulatory.

Recebido em 13.02.2001

Aceito em 05.10.2001

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  • 1
    Endereço para correspondência: E-mail:
  • 2
    Assistimos, na televisão brasileira, inúmeros programas nos quais tal procedimento ocorre. Programas como o do "Ratinho" nos quais as brigas familiares e íntimas são apresentadas ao público, assim como toda a "novidade" de programas nos quais os participantes são observados 24 hrs ao dia ("No limite," "Sufoco," "Território Livre").
  • 3
    Com a psicanálise, posteriormente encontramos a junção dessas duas primeiras coordenadas, já que, em seu corpo teórico a sexualidade se une aos laços de parentesco na travessia do complexo edipiano.
  • 4
    Não é à toa, portanto, que Lacan destaca a função normalizadora do processo de recalcamento o qual podemos entender como sendo uma privatização de estruturas sociais, tão bem descrito no mito individual do neurótico.
  • 5
    Creio que podemos entender um pouco daquilo que acontece nos ambulatórios de psicanálise a partir desse paradoxo da visibilidade/isolamento: nos atendimentos ambulatoriais, não há em concretude, a possibilidade de se resguardar sigilo e segredo para a exposição das experiências íntimas de cada paciente, e nem do trabalho do psicanalista que se vê invadido pela dinâmica das outras clínicas e da equipe de sua prórpia clínica. Pelo lado do paciente, no hospital ele se encontra fragmentado, dissecado, avaliado, prescrutado por inúmeros profissionais, atendentes, enfermeiros, amigos, vizinhos, etc... Pelo lado do analista, esse vê seu trabalho ser interrogado, avaliado, medido, restringido por regras instituicionais, perpassado por inúmeras interferências externas.
  • 6
    Nessa proposta sigo mais de perto as indicações fornecidas por Costa (1994) ao analisar a obra "Aquele rapaz" de Bernadet.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2002
    • Data do Fascículo
      2001

    Histórico

    • Aceito
      05 Out 2001
    • Recebido
      13 Fev 2001
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