Open-access Donald Trump e o fascismo: uma análise inspirada na teoria crítica

Donald Trump and fascism: an analysis inspired by critical theory

Donald Trump y el fascismo: un análisis inspirado en la teoría crítica

Donald Trump et le fascisme : une analyse inspirée de la théorie critique

Resumo

A atuação de Donald Trump durante o período em que esteve na presidência dos Estados Unidos suscita a investigação de possíveis semelhanças entre ele e líderes fascistas do passado. A proposta deste ensaio é apresentar reflexões sobre a atuação política de Trump, inspiradas pelas discussões sobre a psicologia e a propaganda fascista na teoria crítica. Embora pareça impossível tomar Trump por um líder fascista clássico, principalmente em razão de contextos históricos muito diferentes, também é impossível desconsiderar o nexo entre suas estratégias políticas e o modus operandi de agitadores fascistas no século XX. Além disso, é inegável que sua política mobiliza elementos sociopsicológicos que remontam às análises da emergência do fascismo histórico, como a identificação com uma figura idealizada e transcendente, a submissão a uma autoridade ou causa superior e a agressividade direcionada às ameaças do out-group.

Palavras-chave: fascismo; teoria crítica; fascismo digital; psicologia social

Abstract

Donald Trump’s actions during his presidency calls for an investigation regarding possible similarities between him and fascist leaders of the past. This essay is reflects on Trump’s political actions inspired by discussions on fascist psychology and propaganda within Critical Theory. Although Trump may escape the category of a classic fascist leader, mainly due to the different historical contexts, the similarities between his political strategies and those of 20th-century fascist agitators is undeniable. Moreover, his politics mobilize socio-psychological elements that date back to the emergence of historical fascism, such as identification with an idealized and transcendent identity, submission to a superior authority or cause, and aggressiveness directed to out-group threats.

Keywords: fascism; critical theory; digital fascism; social psychology

Resumen

La actuación de Donald Trump durante el período en el que fue presidente de los Estados Unidos plantea la posibilidad de investigar posibles similitudes entre los líderes fascistas del pasado y él. El propósito de este ensayo es presentar reflexiones sobre la actuación política de Trump inspiradas en discusiones sobre psicología y propaganda fascista en teoría crítica. Si bien parece imposible ver a Trump como un líder fascista clásico, principalmente debido a contextos históricos muy diferentes, también es imposible ignorar el nexo entre sus estrategias políticas y el modus operandi de los agitadores fascistas en el siglo XX. Además, es innegable que su política moviliza elementos sociopsicológicos que se remontan al análisis del surgimiento del fascismo histórico, como la identificación con una identidad idealizada y trascendente, la sumisión a una autoridad o causa superior, y agresividad dirigida a amenazas del out-group.

Palabras clave: fascismo; teoría crítica; fascismo digital; psicología social

Résumé

Les actions de Donald Trump au cours de sa présidence appellent une enquête sur les similitudes possibles entre lui et les leaders fascistes du passé. Cet essai réfléchit aux actions politiques de Trump en s’inspirant des discussions sur la psychologie et la propagande fasciste au sein de la Théorie Critique. Bien que Trump puisse échapper à la catégorie de leader fasciste classique, principalement en raison de contextes historiques très différents, les similitudes entre ses stratégies politiques et celles des agitateurs fascistes du XXe siècle sont indéniable. En outre, sa politique mobilise des éléments socio-psychologiques qui remontent à l’émergence du fascisme historique, tels que l’identification à une identité idéalisée et transcendante, la soumission à une autorité ou à une cause supérieure, et l’agressivité dirigées vers les menaces du out-group.

Mots-clés: fascisme; théorie critique; fascisme numérique; psychologie sociale

Introdução

O termo “fascista” costuma ser usado para desqualificar desafetos localizados em qualquer ponto do amplo espectro político-ideológico. Recuperando a história do fascismo, é preciso lembrar que “a direita é o gênero de que o fascismo é espécie” e “a ideologia de direita representa sempre a existência de forças sociais empenhadas em conservar determinados privilégios . . . de que tais forças são beneficiárias” (Konder, 2009, p. 27). O fascismo, contrapondo-se à influência das ideias liberais na própria direita, promove um Estado-nação transcendente e totalizante (Mann, 2008; Paxton, 2008). No entanto, não é raro encontrar o adjetivo “fascista” associado a ideias progressistas, o que seria suficiente para implodir o termo, necessariamente associado, em sua origem, a um tipo de conservadorismo de direita.

Verifica-se que o senso comum atribui ao termo “fascismo” sentidos diversos que o afastam de sua configuração original. Mesmo que as múltiplas acepções insultuosas do significante “fascismo” não sejam nítidas, nota-se tendência de associá-lo ao autoritarismo, à rigidez e à negação do humano. Tais associações são compreensíveis, ao considerar que os movimentos fascistas originais se tornaram regimes políticos conhecidos por eliminarem seus oponentes pelo uso “justificado” da violência, excluírem os que consideravam indesejáveis e submeterem todos/as ao regime. O uso comum da palavra “fascismo” para denunciar ações contra grupos vulneráveis e posicionamentos políticos autoritários e inflexíveis demonstra que os modos de agir dos regimes fascistas das primeiras décadas do século XX - que passaremos a chamar de fascismo histórico (Mann, 2008) para melhor orientar a leitura - permanecem na memória coletiva e nos discursos do presente.

O fascismo histórico foi um movimento político emergente no início do século XX, marcado pelas seguintes características: nacionalismo, chauvinismo étnico e racial, estatismo, paramilitarismo, conteúdo social conservador, uso de mitos irracionais para a justificação de sua prática política, antiliberalismo, antidemocracia e antissocialismo (e.g. Bianchi & Melo, 2018; Konder, 2009; Mann, 2008). Torna-se possível, em acordo com Freud, porque “a dicotomia entre in-group e out-group é de uma natureza tão profundamente enraizada que afeta até mesmo aqueles grupos cujas ideias aparentemente excluem tais reações” (Adorno, 2015a, p. 174). Sendo assim, Freud livra-se da “ilusão liberal de que o progresso da civilização iria produzir automaticamente um aumento de tolerância e uma diminuição da violência contra os out-groups” (Adorno, 2015a, p. 174). Por isso o fascismo, enquanto uma tendência política, permanece nos dias atuais. Atualiza-se de acordo com condições históricas objetivas, mas permanece.

Problema e método

Neste ensaio, buscamos levantar algumas reflexões sobre a atuação política de Donald Trump, inspirados pelas discussões sobre psicologia e propaganda fascista a partir da teoria crítica (Adorno, 2015a, 2015b; Carone, 2002; Fromm, 1980), em conexão com outros estudos sobre o fascismo histórico (e.g. Mann, 2008; Paxton, 2008) e sobre as tendências fascistas na política contemporânea (e.g. Fielitz & Marcks, 2019; Neiwert, 2017). Nosso problema é lançar luz sobre como uma questão do presente - a emergência da extrema direita no cenário político estadunidense - pode ter confluências com análises de um fenômeno político do passado.

Anteriormente um outsider da elite política norte-americana, Trump foi eleito 45º presidente dos Estados Unidos, em 2017 - cargo que exerceu até janeiro de 2021 -, através de uma campanha permeada por polêmicas e conflitos, amparando-se em uma agenda radicalmente neoliberal no campo econômico (avessa a direitos trabalhistas, políticas sociais etc.) e conservadora no campo cultural (xenófoba, contra as lutas dos movimentos LGBTI+, feminista e negro etc.). Embora pareça impossível tomar Trump por um líder fascista clássico, principalmente em razão de contextos históricos muito diferentes, também é impossível desconsiderar o nexo entre suas estratégias políticas e o modus operandi de líderes fascistas no século XX. Além disso, é inegável que sua política mobiliza elementos sociopsicológicos que remontam às análises da emergência do fascismo histórico.

Nosso objetivo neste ensaio não é discutir exaustivamente os conceitos envolvidos em nossa análise, mas sim traçar, de forma ampla, reflexões que produzam o debate acadêmico e possam ser reaproveitadas no futuro, inspirando novos estudos. Por meio dos fundamentos da teoria crítica, compreendemos que os fenômenos políticos estão intrinsecamente conectados a elementos sociopsicológicos responsáveis por constituir a vida humana em sociedade (Azevedo & Menin, 1995). Paralelamente, tais fenômenos estão permeados por relações e estruturas de poder, sendo um dos fins do pensamento crítico o desvelamento das desigualdades e opressões que tornam a vida em sociedade miserável para a maioria das pessoas. Como definido por Max Horkheimer (2002), a teoria crítica é “uma teoria dominada em todos os aspectos por uma preocupação com condições razoáveis de vida” (p. 1999), por um compromisso teórico com a justiça social e a emancipação humana.

Consonâncias e dissonâncias

A discussão sobre a medida em que Trump e seu projeto de poder se assemelham ao fascismo histórico e, portanto, podem ser caracterizados como neofascistas, requer urgência, uma vez que projetos análogos, os quais propõem retrocessos sociais e políticos - ameaças às liberdade civis, proposições etnonacionalistas, negacionismo científico e afrouxamento de regras ambientais -, podem ser identificados em diferentes países, como Hungria, com Orbán; Turquia, com Erdogan; Filipinas, com Duterte; Rússia, com Putin; e Brasil, com Bolsonaro (Löwy, 2019).

Inspirado em certa redução da influência dos Estados Unidos no cenário internacional e na ameaça econômica representada pela China, o mote da campanha presidencial de Trump foi “Make America Great Again” (MAGA), em que se evidenciam dois elementos: o nacionalismo e a necessidade de reerguer a pátria. Tais elementos são amplamente reconhecidos como características fulcrais e indispensáveis ao fascismo (e.g. Griffin, 1991; Turner, 2019). É razoável que o líder de uma nação a tenha em alta conta, mas o que se viu na campanha de Trump e ao longo de seu mandato foi a exacerbação da ideia de nação como um mito, exatamente como Mussolini havia feito no século anterior: “Criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. . . . O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação!”1 (Konder, 2009, p. 36).

Embora espere-se que um projeto de governo inclua políticas que zelem pelos interesses do país, Trump baseou o seu governo na afirmação de que os Estados Unidos são uma nação ameaçada que deve ser defendida ardorosamente, bem ao gosto de líderes fascistas do passado. Em um discurso realizado no dia 3 de julho de 2020, num evento comemorativo da independência dos Estados Unidos, em meio a aplausos e um acalorado público, Trump anunciou que:

Nossos fundadores declararam ousadamente que nós somos todos dotados dos mesmos direitos divinos - dados a nós por nosso Criador no Céu. E o que Deus nos deu, não permitiremos a ninguém, nunca, tomar de nós - nunca . . . Nossa nação está testemunhando uma campanha impiedosa para varrer nossa história, difamar nossos heróis, apagar nossos valores e doutrinar nossas crianças. . . . Eles pensam que o povo americano é fraco e brando e submisso. Mas não, o povo americano é forte e orgulhoso, e ele não permitirá que nosso país, e todos os seus valores, história e cultura, sejam tomados dele (“Remarks…”, 2020).

É importante diferenciar o uso da “nação” como mito capaz de unir uma coletividade a serviço de algo maior do que si mesma do conceito de “Estado”. As concepções do fascismo histórico e de Trump quanto ao Estado, como ente político organizativo de uma sociedade, são muito diferentes. Mussolini chegou a declarar que nada deveria haver fora do Estado. É claro que o Duce não se referia a um Estado popular, democrático ou socialista, mas sim a um Estado capitalista-corporativista e intervencionista que deveria se submeter a seus desígnios ditatoriais. O estatismo é um elemento primordial do fascismo histórico (Mann, 2008), sendo o Estado autoritário, avesso às premissas do liberalismo, um meio de consolidação do imaginário de nação.

Na Europa do século passado, os movimentos fascistas surgiram em contraposição aos governos liberais, nos quais “esperava-se que a intervenção governamental se limitasse às poucas funções que os indivíduos não podiam desempenhar para si próprios” e que “os assuntos econômicos e sociais fossem entregues ao livre jogo das escolhas individuais no âmbito do mercado” (Paxton, 2008, p. 135). Trump não preconizou a interferência do Estado na economia de seu país. Ao contrário, defendeu o modelo neoliberal ao trabalhar para reduzir a participação do Estado em programas de saúde implementados pelo seu antecessor, reforçando a ideia de autorregulação dos mercados e de supressão de políticas sociais (Bianchi & Melo, 2018). Enquanto as lideranças do fascismo histórico são frutos da crise dos regimes liberais do início do século XX (Fromm, 1980; Mann, 2008), Trump surge no contexto de hegemonia neoliberal existente no mundo globalizado, reafirmando as premissas basilares do capitalismo financeiro em plano geopolítico, a despeito de algumas medidas protecionistas para favorecer o mercado estadunidense contra a concorrência externa.

O ideário liberal, contra o qual o fascismo histórico se lançou, não repercute apenas nos modos de funcionamento das economias. Ele se assenta na ideia de liberdade individual como direito fundamental dos/as integrantes de uma dada sociedade. O fascismo histórico, ao contrário, preconiza a subordinação de cada homem e mulher ao “bem comum”, com estreita margem para escolhas livres e pessoais - o que o torna essencialmente antidemocrático. Trump não ameaçou abertamente as liberdades individuais e nem propôs institucionalmente restrições democráticas, mas buscou apagar a estrutura multicultural da sociedade estadunidense. Ao desqualificar as pessoas latinas, muçulmanas, asiáticas, negras e de outros segmentos populacionais vulneráveis, por contraste, acabou por delinear um modelo de cidadão/ã ideal, baseado em raça/cultura, acentuando o imaginário de poder da população branca e cristã, revitalizando as políticas segregacionistas que marcaram a história dos Estados Unidos.

Outro inimigo do fascismo histórico foi o comunismo. Também nos Estados Unidos, durante a guerra fria, a retórica da ameaça comunista foi mobilizada por grupos de direita. Expoentes da política institucional, como o senador McCarthy, precedidos por religiosos, como Martin Luther Thomas, entre outros ativistas de extrema direita, tratavam os comunistas como “inimigos do povo” (Carone, 2002, p. 198), justificando políticas que suspendiam liberdades e direitos civis. Em seu período como presidente, no qual o comunismo não mais se configurava como ameaça, Trump elegeu as pessoas imigrantes, em especial muçulmanas e latinas, como inimigas dos valores de sua nação. E o fez de forma muito semelhante a seus antecessores de extrema direita, conforme se nota ao comparar sua retórica anti-imigração ao padrão da propaganda norte-americana do início do século XX (Adorno, 2015a; Carone, 2002). Ao alertar para os riscos de permitir a permanência de imigrantes indesejados/as no país, Trump inverteu os papéis de agressor e vítima. Segundo Iray Carone (2002), “o aspecto psicológico imanente à construção ideológica que converte o agressor em vítima ameaçada e a vítima em agressor, consiste em estimular e justificar a violência contra os out-groups, neles projetando o que deles se imagina” (p. 202).

A respeito do vazio de argumentos que justificassem uma cruzada pró-americana nos discursos da extrema direita norte-americana do passado, Carone (2002) acrescenta: “a argumentação era substituída pelo artifício de nomear grupos, pessoas e raças como alvo de suas diatribes” (p. 205), exatamente como fez Trump em diversos discursos sobre imigrantes (e.g. Lind, 2019). Não é por acaso que o público-alvo desses discursos - “pessoas de baixa classe média, com pouca escolaridade, sujeitos de meia-idade ou idosos com profundas convicções religiosas de caráter fundamentalista ou sectário” (p. 199) - se assemelha ao público de seguidores/as mais fanáticos/as de Trump.

Esses/as eleitores/as foram convencidos/as, como se deu no fascismo alemão e italiano do século passado, de que se tornaram “vítimas de um sistema de exploração internacional” (Konder, 2009, p. 37), e se sentiram impelidos/as a lutar contra o inimigo para buscar “uma restauração de algo do passado - uma revolução conservadora, a volta aos bons velhos tempos” (Carone, 2002, p. 208). Sendo assim, intencionalmente ou não, Trump agiu como um herdeiro genuíno da retórica e das tendências fascistas existentes em grupos da extrema direita estadunidense do século XX, ressentidos com os processos de democratização e o avanço dos movimentos por direitos civis para grupos historicamente excluídos e perseguidos.

O personagem

O fascismo é indissociável da figura de um líder capaz de sensibilizar uma massa de seguidores a cultuá-lo e apoiá-lo em suas pretensões. Foi isso que Trump fez ao incitar seguidores a invadirem o Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Nesse dia, ele discursou para milhares de pessoas na capital estadunidense e insuflou uma multidão a marchar e, posteriormente, invadir violentamente o Congresso para tentar impedir o término da sessão que formalizaria a vitória de seu sucessor à presidência da república. Repetindo o slogan “Stop the Steal”, Trump enfatizou que as eleições foram fraudadas para “impedir sua esmagadora vitória”, mesmo sem qualquer evidência ou compromisso em provar essas graves acusações (“Trump’s…”, 2021).

Theodor Adorno tratou sobre a retórica de líderes fascistas com maestria. Ele nos fala de uma atmosfera de agressividade emocional propositadamente promovida pelo líder, de uma reiteração constante de ideias, da necessidade de o líder atuar narcisicamente para permitir a identificação narcísica de seus seguidores (Adorno, 2015a). Tais características são frequentemente identificadas nos discursos de Trump e em suas constantes postagens nas redes sociais. Conforme enfatizado por Ruth Wodak (Jackson, 2021), foram 34 mil tweets disparados por Trump entre junho de 2015 e janeiro de 2021, nos quais circulou grande parte de sua propaganda - que privilegiou a escandalização, a provocação, a violação de normas e a incitação ao ódio como formas de mobilização de seus apoiadores/as. Sobre isso, Adorno (2015a) afirma:

O líder pode adivinhar os desejos e necessidades psicológicas daqueles suscetíveis à sua propaganda, porque os reflete psicologicamente e deles se distingue por uma capacidade de exprimir, sem inibições, o que é latente . . . a própria linguagem, desprovida de seu significado racional, funciona de uma forma mágica e favorece aquelas regressões arcaicas que reduzem os indivíduos a membros de multidões (p. 181).

Assim como as massas do entreguerras elegeram líderes fortes, potencialmente capazes de restaurar a ordem, nos dias atuais, quase metade do eleitorado estadunidense tentou eleger Trump para um segundo mandato, cuja campanha baseou-se em um suposto mito da “restauração nacional” diante das ameaças de inimigos internos e externos, presumidos como sabotadores de valores verdadeiramente americanos. Uma parte desse eleitorado se identificou de forma tão absoluta com seu líder político que chegou a crer nas afirmações de Trump, mesmo sem qualquer tipo de evidência, de que a eleição havia sido fraudada e que isso justificaria uma insurreição violenta.

É notável que o lema “Stop the Steal” tenha sido empregado de forma instrumental, como uma propaganda política sem qualquer compromisso com a verdade, tendo como objetivo final a mobilização de uma base social. Evidencia-se, assim, mais um elemento estruturante da ideologia fascista: a mentira como estratégia para construir uma realidade planejada (Arendt, 2012). Ao submeter a própria verdade a seu poder, o líder fascista pretende atingir os limites da dominação, e isso se torna possível, segundo Federico Finchelstein (2020), porque o que o líder diz ou faz torna-se mais importante do que os fatos. Conforme Jason Stanley (2018), “a política fascista troca a realidade pelos pronunciamentos de um único indivíduo. . . . Mentiras óbvias e repetidas fazem parte do processo pelo qual a política fascista destrói o espaço da informação” (p. 66).

A personalidade e a história de vida de Trump estão longe de serem compatíveis com o exigido para um líder responsável por combater a corrupção e pela regeneração dos valores da nação. Enquanto ele dizia defender valores conservadores do povo americano oprimido pelo corrupto establishment, sua história era permeada por contradições. Como um bilionário do ramo da construção e celebridade televisiva, Trump faz parte da elite econômica dos Estados Unidos. Sua história é permeada por polêmicas, dentre elas, diversos casos de corrupção e más práticas empresariais, infidelidade conjugal e escândalos sexuais (e.g. Dickinson, 2018; Prokop, 2016). No entanto, tais incoerências não abalaram a sua influência política e sua capacidade de convencimento de milhões de pessoas. Assim como no ambiente televisivo, o que prevaleceu foi a excelência na execução de um personagem, pois sua liderança não se sustentou na coerência de suas práticas, mas sim em sua performance como agitador e propagador de uma narrativa política. Em acordo com as reflexões de Adorno, esse elemento se assemelha à retórica de agitadores fascistas do início do século XX.

Este caráter fictício é o elemento vital das performances da propaganda fascista. . . . O caráter fictício da oratória propagandista, o hiato entre a personalidade do locutor e o conteúdo e caráter de suas afirmações são atribuíveis ao papel cerimonial que ele assume e que dele se espera. Essa cerimônia, entretanto, é meramente uma revelação simbólica da identidade que ele verbaliza, uma identidade que os ouvintes sentem e pensam, mas não podem exprimir. A gratificação que eles obtêm da propaganda consiste muito provavelmente na demonstração dessa identidade. . . . Certamente podemos chamar este ato de identificação um fenômeno de regressão coletiva (Adorno, 2015b, p. 146).

Desse modo, destacamos, a retórica fascista se sustenta em processos primários de identificação - já discutidos por Freud (2011) em seu texto sobre a psicologia das massas, retomado por Adorno (2015a) - em que a racionalidade das ações e a autonomia dos sujeitos é suspensa pelo culto à liderança que encarna valores e ideais superiores. Dentro dessa lógica, mentiras e afirmações não baseadas em evidências, sempre imersas em provocações e agitações, tornam-se práticas cotidianas no jogo político, pois a coerência da narrativa política não se dá por meio da racionalidade de suas proposições, mas através de processos de identificação. Isto é, pela evocação de uma identidade étnico-nacional idealizada e sempre em perigo.

Inúmeras vezes Trump utilizou a expressão “we, the american people” ao mesmo tempo que se apresentava como o único e legítimo representante dos interesses desse coletivo (que se entende como um povo-nação). Em seus pronunciamentos, ele constantemente utilizou a estratégia retórica de afirmação de si - o amor a si próprio do narcisismo (Freud, 2011) - novamente recorrendo a declarações inverificáveis. Já em 2015, quando se lançou candidato à presidência, Trump afirmou: “eu sou o único que pode fazer a América verdadeiramente grande novamente”. Ao longo dos seus quatro anos de presidência, declarações como “eu sou o único”, “sou o melhor” e “ninguém sabe mais do que eu” foram utilizadas com frequência em seus discursos, como uma forma de autoafirmação de sua autoridade (NowThis News, 2019; Vice News, 2020). Mesmo as afirmações mais absurdas, como “ninguém sabe mais sobre o Estado Islâmico que eu” e “sou o melhor presidente para as pessoas negras desde Abraham Lincoln [que aprovou o fim da escravidão em 1863]”, eram ouvidas com naturalidade e concordância por seus/suas eleitores/as.

Como evidenciado por Adorno (2015b), “o agitador fascista é usualmente um exímio vendedor de seus próprios defeitos psicológicos. Isso somente é possível devido a uma similaridade estrutural geral entre seguidores e líder” (p. 144). Em uma espécie de narcisismo coletivo, Trump corporificou a grandeza e infalibilidade da “nação americana”, angariando fervorosos/as seguidores/as que entregaram suas vidas e suas individualidades para uma causa maior e para a defesa da nação.

O movimento MAGA

O fascismo não se constitui apenas por uma retórica promovida por lideranças, agitadores e propagandistas, mas também por um movimento que mobiliza pessoas em ações políticas. Como agitadores fascistas convencem uma parcela significativa da população de que suas ideias políticas, geralmente incoerentes e irracionais, devem ser seguidas? Quais os mecanismos sociais e psicológicos que tornam possível a emergência de um movimento fascista de massas?

Existem diferenças importantes entre o contexto sociopolítico em que Trump presidiu os EUA e o da Europa do entreguerras, o que dificulta qualquer tipo de analogia direta e explícita (Bianchi & Melo, 2018). Entretanto, existem notáveis semelhanças entre as estratégias retóricas utilizadas por Trump enquanto líder político e as propagandas fascistas do século XX. Em relação ao caráter de seus/suas seguidores/as, também é possível traçar alguns paralelos a partir das discussões sobre os aspectos sociopsicológicos do fascismo histórico (Adorno, 2015a; Fromm, 1980).

Desde que se lançou como candidato à presidência dos Estados Unidos, Trump organizou em torno de si um potente movimento comprometido com sua eleição - e, posteriormente, reeleição - e com a defesa intransigente de sua liderança: o “Make America Great Again (MAGA)”. Slogans desse movimento foram estampados em camisetas, bonés e bandeiras, os quais se tornaram importantes elementos de autoidentificação e unificação de seus/suas seguidores/as. A lealdade intransigente a esse movimento foi enfatizada por diversos meios de comunicação e pelo próprio Trump em um comício de campanha, em 2016, quando afirmou que “eu poderia parar no meio da Fifth Avenue [movimentada via de Nova York] e atirar em alguém, e eu não perderia nenhum eleitor” (CNN, 2016), seguido por risadas e ovações do público que lhe assistia. De fato, a lealdade a esse movimento foi testada nas eleições de 2020, quando Trump recebeu 74 milhões de votos (em torno de 47% do total de votos) graças à mobilização de suas bases eleitorais.

No entanto, há muitas diferenças entre o movimento pró-Trump e o fascismo histórico. De modo distinto aos movimentos fascistas do século XX, não existiu unidade política e nem estrutura centralizadora no MAGA. Trump atuou por meio do Partido Republicano, porém não se ateve às decisões de seus organismos de direção. Ao contrário, procurou sempre impor suas decisões ao partido, recorrendo constantemente ao conflito direto com as principais lideranças partidárias quando contrariado. Diferentemente do fascismo histórico (Mann, 2008; Paxton, 2008), não houve unidade entre movimento, partido e liderança e, principalmente, não houve organismo paramilitar responsável pela operação da violência política. Apesar da existência de diversos grupos paramilitares pró-Trump - muitos responsáveis pela organização da invasão do Capitólio -, estes atuaram de forma independente às estruturas do Partido Republicano e à liderança de Trump. Sendo assim, o modo de operar do movimento político que sustentou Trump difere significativamente de seu correspondente no fascismo histórico.

Por outro lado, quando analisamos os mecanismos sociopsicológicos e as motivações que unificaram os/as seguidores/as de Trump em um movimento, algumas analogias são possíveis. Em suas teses sobre a psicologia do fascismo, Erich Fromm (1980) defendeu que fatores sociológicos relacionados à emergência do capitalismo - em especial, a expansão da liberdade individual e a desestruturação da ordem e da autoridade tradicional - produziram efeitos em nível psicológico, como o aumento da percepção da insegurança existencial e do desamparo social, que modificaram a relação dos sujeitos com o mundo. Atuante no plano político, o fascismo histórico surgiu em reação às incertezas e inseguranças do mundo moderno, tratando-se de uma resposta à universalização do individualismo (desagregador e desamparador) promovida pelo capitalismo e pelo liberalismo.

Fromm (1980) descreve dois mecanismos psicológicos que atuam como recursos para a fuga das incertezas geradas pela modernidade, podendo fazer as pessoas aderirem aos movimentos fascistas. O primeiro mecanismo é a renúncia do próprio ego individual e a sua fusão a algo maior (uma liderança ou uma causa), suprindo a impotência do eu perante o mundo. Trata-se de uma forma de controle das ansiedades por meio da submissão a uma autoridade ou identidade que promove estabilidade, ordem e controle. O segundo é o da destrutividade, isto é, a busca pela destruição dos objetos (podem ser grupos, pessoas, ideias etc.) considerados responsáveis pela insegurança e impotência perante o mundo. A destruição das ameaças produziria assim um mundo mais seguro e menos incerto. Ambos os mecanismos atuaram em conjunto no caso do fascismo histórico: “o indivíduo sobrepuja o sentimento de insignificância em comparação com o poder esmagador do mundo exterior, seja renunciando à sua integridade individual, seja destruindo outros de maneira que o mundo deixe de ameaçá-lo” (p. 150).

Adorno (2015a) também descreve alguns mecanismos psicológicos capazes de fazer as pessoas aderirem a movimentos fascistas; esses mecanismos estruturam traços de personalidade que os tornam o que o autor, ao tratar sobre a personalidade autoritária, chamou de indivíduos potencialmente fascistas (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson, & Sanford, 1950). Para ele, existe uma dinâmica entre submissão e agressividade que torna a retórica da liderança fascista verdadeiramente eficaz para o seu público-alvo, na qual “a imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor em se submeter à autoridade e ser ele mesmo a autoridade” (Adorno, 2015a, p. 172). Desse modo, há um ganho narcísico aos/às adeptos/as dos movimentos fascistas por meio da identificação de si em um coletivo que transcende o eu individual, com a elevação da autoestima e a idealização das características do in-group. Em contrapartida, intensificam-se as hostilidades contra o out-group, com o direcionamento de toda a agressividade a ameaças imaginárias (geralmente grupos minoritários e oprimidos) que desestabilizam a identidade transcendente idealizada.

No caso do MAGA, é evidente que tais mecanismos psicológicos atuaram no processo de mobilização política, seja pela intransigente submissão desse movimento à autoridade de Trump e à idealização de uma identidade nacional pura e transcendente (“os verdadeiros americanos”) ou pela agressividade extrema direcionada aos grupos que ameaçam essa autoridade e identidade (imigrantes, latinos, mulçumanos, negros etc.). Se por questões de estrutura organizacional é indevido identificar o movimento pró-Trump com fascismo per se, não é difícil visualizar suas tendências fascistas.

Fascismo no século XXI?

Respeitados os diferentes contextos econômicos, políticos e sociais, analistas sociais de todo o mundo (e.g. Bull, 2012; Foster, 2017; Löwy, 2019) apontam alguns motivos para o fortalecimento de movimentos de extrema direita capazes de pavimentar o caminho para a implementação de governos de característica fascista. Alguns desses motivos são: enfraquecimento dos movimentos de esquerda após a queda do muro de Berlim, avanço do neoliberalismo com supressão de políticas sociais e aumento da insegurança material, reação ao processo de globalização, aumento do sentimento de ameaça em razão da ação de grupos extremistas e imigração em massa de refugiados de guerras.

Os eleitores de Trump e de partidos de extrema direita fora dos Estados Unidos guardam semelhanças entre si e com aqueles que levaram os regimes fascistas do início do século XX ao poder. De acordo com Hannah Arendt (2012),

Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes. . . . Em sua ascensão, tanto o movimento nazista na Alemanha quanto os movimentos comunistas na Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros entre uma massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção. Isso permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política . . . (p. 439).

Decerto, Arendt referia-se à pesada máquina de propaganda nazifascista, a qual se utilizou sobretudo da tecnologia radiofônica, ao citar novos métodos de propaganda política. Sobre isso, Adorno (2015a) escreveu:“[a propaganda fascista] é psicológica por causa de seus objetivos irracionais e autoritários, que não podem ser alcançados por meio de convicções racionais, mas somente através do despertar habilidoso de ‘uma parte da herança arcaica do sujeito’” (p. 165). “O que acontece quando massas são subjugadas pela propaganda fascista [é] uma revitalização quasi-científica de sua psicologia. . . . A psicologia das massas foi apropriada por seus líderes e transformada em meio para dominação” (p. 186).

Nos dias atuais, não há dúvidas de que novas estruturas têm sido intensamente utilizadas para disseminar mensagens de cunho fascista. Aos meios de comunicação de massa corporativos, como redes de televisão e grande imprensa, junta-se a contribuição de recursos telemáticos (sistemas de comunicação imediata e de longa distância), que se constituem numa importantíssima arena de disputa ideológica. Usuários/as das redes sociais disseminam suas próprias versões sobre os acontecimentos e opinam obstinadamente sobre tudo e todos. A presumida possibilidade de anonimato, a sensação de plena liberdade para manifestar-se, a busca por reconhecimento, o descomprometimento com a verdade e a argumentação incipiente e superficial são alguns fatores que tornam as redes sociais ambientes propícios ao desmonte da racionalidade. Por meio delas, trafega instantaneamente imensurável quantidade de informações, dificultando um olhar consequente e apurado sobre elas e esmaecendo suas fronteiras com a realidade. O quadro se agrava quando as interações entre usuários/as são interpeladas por robôs e algoritmos que selecionam conteúdos de reforço, evitando a reflexão crítica e o contraditório.

Maik Fielitz e Holger Marcks (2019) descreveram a gramática da propagação de ideias da extrema direita contemporânea, constituinte do que denominam fascismo digital: uma variação do fascismo que não precisa de partidos, pois utiliza a estrutura do mundo digital para sua dinâmica. Segundo os autores, a internet tornou-se um território usado pela extrema direita para minar as sociedades democráticas, usando uma concepção ampliada de liberdade de expressão. As estruturas comunicacionais disponíveis nas redes sociais permitem a disseminação de discursos de intolerância, com conteúdos misóginos, LGBTfóbicos, racistas, xenófobos etc., cujos/as autores/as, quando confrontados/as, alegam ser vítimas de intolerância e terem sido alijados de sua liberdade de expressão. Trata-se de uma estratégia discursiva à qual Fielitz & Marks (2019), recorrendo à formulação liberal de Karl Popper, denominam reedição do paradoxo da tolerância. Isto é, tais grupos se utilizam da liberdade de expressão para serem intolerantes, atacando a liberdade de grupos minoritários ou destituídos de poder e, em última instância, minando a própria democracia e a liberdade geral.

Outra retórica largamente utilizada pela extrema direita por meio das redes sociais é o discurso do medo. Segundo Rebecca Lewis (2018), a extrema direita desenvolveu um sistema para descontextualizar fatos a fim de fazer sua audiência se sentir, em termos pessoais ou como sociedade, alvo potencial de um perigo iminente. Por exemplo, a notícia de que uma mulher foi atacada por um imigrante em um país distante pode basear uma mensagem como: “É urgente proteger nossas mulheres e crianças dos imigrantes”. Roger Griffin (1991) alerta para o fato de quase todos os estudos sobre a extrema direita atribuírem a ela o medo como estratégia política porque a ideia de uma sociedade ameaçada pode suscitar uma solução autoritária.

As mensagens que consubstanciam os discursos utilizados pela extrema direita têm origem em uma postagem de um/a líder, ou simplesmente numa fala pública que lança um tema a ser “trabalhado”. Os/as apoiadores/as fiéis - também chamados ativistas digitais ou influencers - formulam mensagens que serão disseminadas “por enxame”, utilizando a estrutura ramificada das redes sociais. Para terem maior impacto, essas mensagens são concebidas para serem consumidas rapidamente, com conteúdo simples e direto, de caráter visual (memes) e com apelo dramático (Fielitz & Marks, 2019).

Como redes sociais são remuneradas por publicidade, isto é, proporcionalmente à atenção que conseguem captar de seus bilhões de usuários, influencers se beneficiam economicamente do alcance de suas postagens e têm milhões de seguidores/as, os quais muitas vezes não se dão conta de que estão cooperando com uma dinâmica fascista. Os algoritmos de aproximação de usuários/as das redes sociais auxiliam o recrutamento de seguidores/as, pois permitem encontrar quem concorde com suas ideias e dão a sensação de que muitas pessoas estão ouvindo (Neiwert, 2017). As milhões de replicações de uma mensagem falaciosa tendem a fazê-la ser aceita como verdade, inibindo que o contraditório seja ouvido e confundindo a percepção de quem são seus/suas reais emissores/as. Diferentemente das estruturas comunicacionais utilizadas pelo fascismo histórico, no qual poucos/as emissores/as se dirigiam a muitos/as receptores/as, na era do fascismo digital (Fielitz & Marks, 2019), as mensagens originárias podem ir sofrendo ajustes à medida que são compartilhadas por múltiplos/as emissores/as, os quais passam a ser, de certo modo, seus/suas coautores/as.

A manipulação é vital para o fascismo digital. Mensagens ambíguas e imprecisas causam confusão sobre o que é a realidade, passando a impressão de que ela pode ser reinterpretada mesmo sem qualquer tipo de evidência (pós-verdade, fake news, realidade alternativa etc.). Ficou célebre o risível episódio em que o secretário de imprensa estadunidense, Sean Spicer, mentiu ao dizer que a tomada de posse de Trump bateu todos os recordes de participantes. Ao ser desmentido por inúmeros veículos de imprensa por meio de imagens inquestionáveis do evento, a porta-voz da Casa Branca, Kellyanne Conway, disse que o secretário apenas havia manifestado “fatos alternativos” (Jaffe, 2017). A manipulação de informações também foi usada pelo fascismo histórico e, por isso, foram desenvolvidos mecanismos de controle, tais como jornalismo profissional e rigor ético na produção de conhecimento (Fielitz & Marks, 2019).

Redes sociais são empreendimentos comerciais que movimentam trilhões de dólares e congregam bilhões de usuários/as. Ao serem questionadas sobre o uso pernicioso às sociedades democráticas das estruturas comunicacionais das redes sociais, as empresas responsáveis costumam argumentar que as redes são territórios livres nos quais todos/as podem se expressar em igualdade de condições. Entretanto, é preciso considerar que a racionalidade fascista não se atém aos limites éticos. No fascismo digital, segundo Fielitz e Marks (2019), a verdade não importa. As mensagens podem ser manipuladas para se tornarem dramáticas, com forte apelo emocional, pois assim se disseminam mais facilmente (Soroka, Young, & Balmas, 2015). Segundo Zeynep Tufekci (2017), política não se faz só com a razão, e o papel do líder de extrema direita é fazer funcionar em seu benefício “essa máquina emocional” - as redes sociais.

Entre os vários elementos envolvidos na psicologia das massas e na propaganda fascista - tais como vínculo entre os membros da “horda fraterna”, identificação narcísica, primazia da forma sobre o conteúdo discursivo, gratificação pela rendição à massa e renúncia da individualidade, hostilidade ao out-group etc. (Adorno, 2015a, 2015b; Fromm, 1980) -, há um que se destaca pela grande importância: o apelo à violência. De acordo com Adorno (2015a), “[há um] potencial atalho de emoções violentas a ações violentas enfatizado por todos os autores da psicologia de massa” (p. 161). Foi o que se viu na violenta invasão do Capitólio, possibilitada pela mobilização nas redes sociais, quando foi consumada a derrota de Trump para um segundo mandato. Para Robert Paxton (2021), reconhecido especialista no fascismo histórico europeu, esse episódio foi um importante ponto de virada em seu entendimento sobre o fascismo de Trump: “Eu hesitei em chamar Donald Trump de fascista. Até agora”, escreveu poucos dias após o evento.

Considerações finais

O fascismo italiano originário pode ser visto como uma ideologia para justificar um projeto de poder tido como necessário para defender a nação e reconduzi-la a um passado glorioso. Sobre essa ideia seminal, durante o século passado, outros movimentos políticos se desenvolveram, chegaram ao poder e operaram por meio de extrema violência. Segundo os autores evocados neste ensaio, o fascismo é notadamente fortalecido por nossa vocação intrínseca à autopreservação.

A partir do século XX, o exercício do poder, que nos séculos anteriores podia ser discricionário, passou a depender de eleições populares e, portanto, do convencimento das massas. Para isso, o método utilizado pelo fascismo é a propagação do medo para agregar multidões e emprestar uma noção ética ao uso da força. Neste século XXI, testemunhamos partidos conservadores de extrema direita tentando reeditar métodos do fascismo, adaptando-os a novos contextos socioeconômicos e informacionais. A veiculação maciça de tipos de discurso utilizados pela extrema direita, muitas vezes simplistas, manipulados, dramáticos e ameaçadores, causa erosão no entendimento intersubjetivo sobre o que é a verdade. Por isso, torna-se indispensável repensar estruturas que disseminam mentiras, produzem intolerância e alimentam as tendências fascistas de determinado grupo de pessoas.

Mas se é possível explorar as disposições psicológicas para o fascismo, presentes em todos/as nós, seria possível estimular a solidariedade e o respeito à diversidade? Se sim, como? Sabe-se que, apesar de nossa tendência à autoconservação, é possível acatar as necessidades do out-group como legítimas e, em alguma medida, sentirmo-nos comprometidos/as coletivamente com elas. Essa possibilidade, no sentido oposto ao da propaganda fascista, implica evocar o respeito à diferença, à justiça social, à razão crítica, ao método científico, e a capacidade de mobilizar-se em favor do outro. Se efetivada, marcará o futuro de nossa civilização.

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  • 1
    Tradução da fala original de Mussolini citada em Opera omnia (Vol. XVIII, p. 457).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2021
  • Revisado
    20 Abr 2022
  • Aceito
    05 Jul 2023
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