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O luto dos familiares de desaparecidos na Ditadura Militar e os movimentos de testemunho

Le deuil des proches des personnes disparues sous la dictature militaire et les mouvements de témoignage

El luto de los familiares de desaparecidos en la Dictadura Militar y los movimientos de testimonio

Resumo

Este artigo pretende compreender a forma como o processo de luto ocorreu entre os familiares de desaparecidos-mortos políticos durante a Ditadura Militar de 1964, que, valendo-se da Doutrina de Segurança Nacional, fez desaparecer militantes, ocasionando um hiato traumático no cerne das famílias, que precisaram lidar com o vazio próprio do desaparecido/desaparecimento. Sabendo que, para a elaboração do luto, se requer uma objetivação da morte - a identificação do corpo morto e os ritos de passagem da vida para a morte -, supomos haver dificuldade nessa possibilidade de elaboração do luto. Identificados com o trabalho freudiano Luto e melancolia, percorremos os dois caminhos por ele apresentados, sem intenção de abranger toda a complexidade humana no que tange às formas de sofrimento no luto, a saber: o luto e sua possibilidade de reinvestimento de libido; e os caminhos da melancolia, que paralisa o sujeito e impede que este faça novos investimentos pulsionais. Caminhando nos passos do pai da psicanálise, verificamos nos familiares de desaparecidos políticos que a melancolia paralisa o sujeito em um estado mortificante, enquanto no luto é possível algum movimento.

Palavras-chave:
luto; trauma; desaparecidos políticos

Resumé

Cet article a pour but de comprendre la manière par laquelle le processus de deuil a eu lieu parmi les proches des disparus ou défunts politiques pendant la dictature militaire de 1964, qui, à travers la Doctrine de la Sécurité Nationale, a fait disparaître des militants, provoquant un hiatus traumatique au sein des familles, qui ont dû faire face au vide propre de personne disparue/disparition. Sachant que, pour la préparation du deuil il faut une objectivation de la mort - l’identification du cadavre et des rites de passage de la vie à la mort -, nous supposons que cette possibilité présente des difficultés. Identifiées à l’œuvre freudienne Deuil et mélancolie (1917/2010), nous couvrons les deux voies qu’il a présentées, sans l’intention de comporter toute la complexité humaine concernant les formes de souffrance en deuil, à savoir: le deuil et sa possibilité de réinvestissement de libido; et les chemins de la mélancolie qui paralyse le sujet et l’empêche de faire de nouveaux investissements impulsifs. En marchant sur les traces du père de la psychanalyse, nous trouvons dans les proches des disparus politiques que la mélancolie paralyse le sujet dans un état de mortification, alors qu’en deuil quelque mouvement est possible.

Mots-clés:
chagrin; traumatisme; disparus politiques

Resumen

Este artículo pretende comprender la forma como el proceso de luto ocurrió entre los familiares de desaparecidos-muertos políticos durante la Dictadura Militar de 1964, que, valiéndose de la Doctrina de Seguridad Nacional, hizo desaparecer a estos militantes, lo que ocasionó un hiato traumático en el corazón de la familia, que necesitó lidiar con el vacío propio del desaparecido/desaparición. Sabiendo que, para la elaboración del luto, se requiere una objetivación de la muerte - la identificación del cuerpo muerto y los ritos de paso de la vida a la muerte -, suponemos que hay una dificultad en esa posibilidad de elaboración del luto. Con base en la obra Duelo y Melancolía (1917/2010) de Freud, recorremos los dos caminos que se presentan, sin la intención de abarcar toda la complejidad humana en lo que se refiere a las siguientes formas de sufrimiento en el luto: el luto y su posibilidad de reinversión de libido; y los caminos de la melancolía, que paraliza al sujeto y le impide hacer nuevas inversiones pulsionales. Siguiendo los pasos del padre del psicoanálisis, verificamos en los familiares de desaparecidos políticos que la melancolía paraliza al sujeto en un estado mortificante, mientras que en el luto es posible algún movimiento.

Palabras clave:
luto; trauma; desaparecidos politicos

Abstract

Through a bibliographical research, this article aims to understand how the mourning process occurred among relatives of persons who either disappeared or were killed for political reasons during the 1964 Military Dictatorship, which, using the National Security Doctrine, made these militants disappear, causing a traumatic hiatus in the heart of the family, which had to cope with the emptiness left by the disappeared person/disappearance. Knowing that processing the mourning requires objectification of death - identification of the dead body and rites of passage from life to death -, we suppose there is difficulty in this possibility of processing the mourning. Identified with Freud’s work Mourning and Melancholia, we follow the two paths he presented, with no intention of covering all human complexity regarding the forms of suffering in mourning, namely: mourning and its possibility of reinvestment of libido; and the paths of melancholy, which paralyzes the subject and prevents him from making new drive-related investments. Following in the footsteps of the father of Psychoanalysis, we observed in relatives of persons disappeared for political reasons that melancholy paralyzes the subject in a mortifying state, while in mourning some movement is possible.

Keywords:
mourning; trauma; forced disappearance

Introdução

O sentimento de perda nos acompanha constantemente e nos obriga a reagir. O luto demonstrado em Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e Melancolia. In Obras Completas (Vol. XII, pp. 170-194). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) é um exemplo de como o sujeito, ao perder um objeto de amor, como um ente querido, um objeto, uma posição, vê-se obrigado a desligar paulatinamente sua libido, até que por fim percebe que o objeto de amor não está mais ali; em outra possibilidade, a melancolia, a perda é de natureza mais ideal, quando o sujeito não sabe exatamente identificar o que foi perdido, mesmo muitas vezes identificando o objeto material perdido.

Ao nos debruçarmos sobre a questão do luto entre os familiares de desaparecidos políticos na Ditadura de 1964, vislumbramos as duas possibilidades mencionadas no texto freudiano: o luto e a melancolia. Ao sofrerem a perda do ente amado, alguns familiares, tendo disposição a uma estruturação melancólica, sentiram sua perda de modo paralisante, enquanto outros que não dispunham desse modo de estruturação puderam recorrer a outra forma de fazer seu luto, a atuação em movimentos sociais de testemunho e resistência.

Consideramos, portanto, que as truculências da Ditadura Militar de 1964 serviram de estopim para o desencadeamento de um modo de sofrer melancólico; porém, na ausência de uma pesquisa empírica que comprovasse a melancolia em familiares de desaparecidos políticos, tampouco que comprovasse que seu sofrimento tivesse sido desencadeado por meio da ação militar de prisões, torturas, ocultação de informação e de corpos - e, portanto, mortes -, optou-se neste trabalho por destacar o luto dos familiares prescindindo da melancolia, furtando-se ao risco de cometer uma psicanálise selvagem e uma análise brutal dos sujeitos em questão. Portanto, neste contexto prevalecerão as análises bibliográficas no que tange ao luto.

Em psicanálise, o luto, experimentado a cada perda sofrida pelo sujeito desde suas relações mais primordiais, é configurado em Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e Melancolia. In Obras Completas (Vol. XII, pp. 170-194). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) por elaborações sucessivas de redirecionamento da libido: a libido investida, ao perder seu objeto de investimento (de amor), faz seu retorno a outras representações. Quando da sua impossibilidade de desligamento, mediante fatores que prejudicam tal desinvestimento, pode ocorrer sua não elaboração. Aqui tomamos como objeto de estudo o luto dificultado nos familiares de desaparecidos políticos durante a Ditadura Militar de 1964.

Justificada pelo discurso de combate ao comunismo, a Ditadura instalou-se no Brasil em abril de 1964, impondo aos transgressores gradativos processos de repressão. Os dissidentes sentiram como efeito ações violentas motivadas a “educar” os então chamados “subversivos”. Tal “educação” buscava, sobretudo, inibir ações/ideias discrepantes do sistema imposto e, como consequência, ocorreram sequestros, torturas, mortes e ocultação/desaparecimento de pessoas.

O norte para esta pesquisa foi a busca pela compreensão do luto dos familiares de desaparecidos nesse contexto. Buscou-se compreender como o enlutado desinveste, se assim o faz, do ente desaparecido, visto que aos familiares foram negados os procedimentos necessários para a objetivação da morte, a saber: a notícia da morte, o encontro com o corpo morto, o velório, o enterro do ente querido e a possibilidade de um desinvestimento gradativo, pela certeza do não retorno.

Ariès (2014Ariès, P. (2014). O homem diante da morte. São Paulo, SP: Editora Unesp.), em uma obra esclarecedora acerca da história da morte, relata que foi somente depois do século XVIII que os corpos dos falecidos se tornaram responsabilidade dos familiares. Até então, o que se tinha era o abandono dos mortos à Igreja; entretanto, mesmo nesse momento sempre houve preocupação com a localização do corpo; a primeira responsável pela sepultura era a Igreja e, posteriormente, a família.

Assim, o século XIX trouxe uma nova expressão à morte. Vista como uma ruptura, os familiares passaram a ter necessidade de refletir acerca dela: suas consequências, implicações financeiras, sentimentos envolvendo a relação entre o morto e o enlutado e sua separação, entre outras questões. Ser indiferente ao acontecimento da morte não foi mais possível. A partir dessas mudanças, pelo contrário, a morte passou a ser agitada pela emoção. A morte está latente em toda a existência humana; para Kovácz (1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .), desde “o homem de Neanderthal são dadas sepulturas aos mortos” (p. 28). Isso se dá em decorrência da necessidade humana de proteger dos mortos e de lhes dar orientação quanto ao seu destino. Para Morin (como citado em Kovácz, 1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .), aqueles que “morreram mal”, que foram privados de sua sepultura, “vagueiam, aterrorizando os vivos” (p. 30). De acordo com Kovácz (1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .),

Uma série de rituais constitui os elementos de proteção contra estes seres, como colocar sal, virar um espelho, acender velas. Por isso os mortos têm de ser cuidados, lisonjeados, para que não se enfureçam. Eles podem ser muito mais temidos que a própria morte. Todos esses rituais, em sua particularidade, são desenvolvidos e manifestados com o intuito de colaborar com o mundo simbólico em seu trabalho de elaboração da morte. (p. 30)

O medo da morte, que é comum a toda a humanidade, pode ser mais bem aplacado em sociedades primitivas ou mais agregadas, em decorrência dos rituais coletivos de despedida e do melhor acolhimento nas relações interpessoais que cercam o enlutado.

De acordo com Cassorla (como citado em Kovácz, 1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .),

Durante o trabalho de luto, o ser humano deve recolher sua libido, suas fantasias destrutivas . . . que estavam dirigidas ao objeto, agora perdido. Na concepção freudiana essa “energia” se volta para o próprio ego, para a figura morta agora introjetada. Na Kleiniana, as fantasias inconscientes decorrentes dessa perda reativam fantasias anteriores, e o objeto introjetado passa a funcionar num padrão decorrente daquelas fantasias somadas à situação particular com esse ou outros objetos perdidos no passado. (p. 102)

O luto se refere ao sentimento que busca suportar a perda do objeto amado; é o mecanismo que o aparelho psíquico utiliza para lidar com as grandes emoções envolvidas. Para Kovácz (1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .), o luto se dá proporcionalmente à importância afetiva do objeto libidinal perdido. A autora explica ainda, a partir das ideias de John Bowlby, que a dor provocada pela separação ocorre devido à tenacidade da frustração quanto à satisfação dos desejos investidos no objeto, fazendo sentir intensa desilusão por não ter seus desejos satisfeitos e, além disso, o mais importante, por nem ao menos encontrar o objeto que seria a fonte de satisfações.

Ditadura Militar de 1964

A denominação colabora com a compreensão do momento, por isso, a partir da literatura pertinente e da análise dos fatos, primeiramente decidimos definir este período como Ditadura Civil-Militar, pois entendemos que houve participação da sociedade civil; entretanto, não interpretamos as responsabilidades civil e militar como tendo igual importância.

A discussão engrandecedora de Fico (2014Fico, C. (2014). O golpe de 64: momentos decisivos. Rio de Janeiro, RJ: Editora FGV.) acomodou nossas reflexões, ainda soltas, nesse âmbito. O autor esclarece acerca da diferença entre Ditadura Militar e Golpe Civil-Militar, destacando que, sem dúvida, houve grande influência civil para o golpe. Este teve o apoio de empresários e daqueles que, levados pela massificação midiática, colaboraram para o seu desenrolar. Entretanto, o que se deu após o golpe, ou seja, a ditadura propriamente dita, ficou a cargo dos militares. Assim, a atuação violenta no período, apesar de ser ideologicamente civil-militar, teve execução militar. Por compartilhar desta opinião, optamos pela denominação Ditadura Militar.

Demonstramos o processo. Em abril de 1964, o então presidente João Goulart, eleito legitimamente, foi deposto e, a partir daí, iniciou-se a prática militar, que se configurou em sequestros, prisões, torturas, desaparecimentos e mortes. Foram condutas que marcaram a história do período, justificadas pela Doutrina de Segurança Nacional1 1 Suas origens, grosso modo, idealizadas pela Escola Superior de Guerra (ESG). Foram determinadas em teorias geopolíticas que garantiam a compreensão das relações geográficas com os estados, por intermédio da postura de guerra total com a utilização de recursos ilimitados para atingir seus objetivos. Tal doutrina, de acordo com Cassol (2008), postula 28 elementos, tais como: independência, democracia, paz social, preservação dos valores morais e espirituais e defesa da propriedade privada, determinando seus objetivos nacionais com características próprias do sistema capitalista. , segundo a qual era preciso exterminar a qualquer custo, com ou sem sofrimento, aqueles que colocassem o Estado em “risco”, opondo-se a ele. Desse modo, estava legitimada a execução daquele que divergisse do regime militar, transformando-o em inimigo. Assim, a Ditadura Militar, com armas voltadas para seus próprios irmãos de pátria, deixou um legado sombrio, cujo efeito pode ser compreendido como per-dura-dor, aquele que não deixa que a violência, o sofrimento e a dor sejam elaborados. Essa dor reincide no trauma causado pelas torturas, pelas mortes, pela ocultação dos cadáveres dos militantes, nomeados desaparecidos pelos militares e que compreendemos como desaparecidos-mortos, por não haver seu retorno.

Para Endo (como citado em Arantes & Ferraz, 2016Arantes, M. A. A. C., & Ferraz F. C. (2016). Ditadura Militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer. São Paulo, SP: Escuta .), tornar indivíduos desaparecidos por seu ocultamento coloca o familiar em um lugar ativo perante a morte, deixando a seu encargo, a partir de suas elaborações, a definição de vivo ou morto para o ente desaparecido.

O desaparecimento

Cláudio Guerra, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Vitória, em entrevista a Dines (como citado em Arantes & Ferraz, 2016Arantes, M. A. A. C., & Ferraz F. C. (2016). Ditadura Militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer. São Paulo, SP: Escuta .), deixou clara sua ideia desembaraçada de fazer sumir os corpos dos chamados “subversivos” ou “rebeldes”: “A ordem era fazer desaparecer os corpos, foi ideia minha queimar os cadáveres no forno de uma usina de açúcar, na região de Campos. Os cadáveres não estavam identificados, mas eu descobri quem eram todos.” (p. 38).

De forma banal, em um tom quase heroico, o delegado nos mostra o ocultamento como um procedimento padrão, restando como produto, aos familiares e descendentes, o trauma. Entretanto, como diria Verissimo (1985Verissimo, L. F. (1985). A mãe do Freud. Porto Alegre, RS: L&PM.), desaparecer com um corpo não é coisa fácil; algo resta nesse corpo morto, resta o familiar, aquele que vive o luto por sua perda e que, por sua insistente reclamação pelos corpos desaparecidos e negligenciados, explicita o crime ali cometido, eternizando-o.

Com o discurso de desaparecimento, o governo militar nega sua culpa e responsabilidade pelo sumiço daqueles que foram ocultados; daqueles que, por terem sido mortos em torturas ou perseguições, tornaram-se desaparecidos. Assim, o desaparecimento foi um instrumento de desculpabilização, uma maneira que o governo militar encontrou para não reconhecer seus crimes, uma queima de arquivo vivo. Tal procedimento foi sustentado pelo discurso oficial de que os desaparecidos sumiram por vontade própria; por não haver um corpo que comprovasse efetivamente a morte, as autoridades ficavam desobrigadas da responsabilidade, afinal, como se costuma dizer, “se não há corpo, não há crime”. Criou-se, assim, um campo para a impunidade.

Nas valas clandestinas descobertas no Cemitério de Perus, foram encontradas várias ossadas de presos políticos, enterrados como indigentes, sem identificação, deixando vestígios de ocultamento político e pouca fundamentação para os alegados sumiços propositais.

Podemos dizer, então, que o conceito de desaparecido foi desenvolvido como artifício para o governo militar dizer que não fez o que de fato fez, ou seja, não assumir a culpa pelos assassinatos que cometeu. O desaparecido político foi um subproduto da Ditadura Militar, aquilo que restou dela, como explica Agamben (2008Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz. São Paulo, SP: Boitempo.), aquilo que ficou de lacuna, um hiato, uma fenda na sociedade e na memória coletiva.

Para Gatti (2008Gatti, G. (2008). El detenido-desaparecido: narrativas posibles para una catastrofe de la identidad. Montevideo: Trilce.), o desaparecido fica em uma espécie de limbo permanente: nem existe, nem deixa de existir, é um novo estado de ser. A questão do desaparecimento cinde o sujeito. Segundo o autor, o “detido-desaparecido é um indivíduo retalhado, é um corpo separado do nome, é uma consciência cindida do seu suporte físico; é um nome isolado de sua história; é uma entidade desprovida de sua credencial cívica, de suas cartas de cidadania” (Gatti, 2008Gatti, G. (2008). El detenido-desaparecido: narrativas posibles para una catastrofe de la identidad. Montevideo: Trilce., p. 47, tradução nossa).

O enigma do destino do desaparecido é algo que afeta todo o seu entorno; sua figura não possui sentido, é um vazio no cerne da família: nem vivo, nem morto, nem presente, nem ausente, estando, portanto, no mundo dos mortos-vivos.

Quando uma família é atingida por um evento traumático, como o ocultamento de um de seus membros, toda sua constituição é afetada, causando desorganização. De acordo com Benghozo (como citado em Silva & Féres-Carneiro, 2012Silva, M. R. N., & Féres-Carneiro, T. (2012). Silêncio e luto impossível em famílias de desaparecidos políticos brasileiros. Psicologia & Sociedade, 24(1), 66-74.), “estes eventos traumáticos são como uma fratura do tecido grupal familiar e comunitário, uma implosão catastrófica da própria identidade comunitária” (p. 2).

O sofrimento causado às famílias viola o tempo. Unidos, presente, passado e futuro se fizeram e ainda se fazem perceber, em casos não resolvidos, numa angústia intransponível. A dor que se manifestara imediatamente no referido período, motivada pelo ocultamento do familiar, perdura pelas condições de sua ocultação, pela negação e desinformação, por não se permitir qualquer certeza e, por consequência, qualquer luto, qualquer trégua. O sofrimento, pois, não se deu apenas com o passar do tempo, tempo sem respostas, o que inevitavelmente indicou que o familiar amado não voltaria; deu-se, também, com a falta de informação e de conhecimento acerca do destino do desaparecido e, para além dele, com o sofrimento duradouro, em meio a uma penumbra insuperável de sentimentos inomináveis, intraduzíveis.

O desajuste é um destino possível para aqueles que tiveram um familiar desaparecido; tal falha é composta pela anomia do fenômeno, da identidade, da linguagem, que não tem possibilidades de alcançar um conceito tão vazio de sentido, com tamanha falta de representação, como é o do desaparecido.

Luto traumático

A premissa básica para a elaboração do luto é que ele esteja desimpedido, livre para ser vivido por meio de rituais fúnebres e de comprovação da morte; para ser mais esclarecedor: a notícia da morte e suas evidências concretas.

Esse processo, do qual o luto é uma das etapas, se inicia com o investimento da libido em um objeto de amor. Na ocasião da perda do objeto, seja pela morte, seja pela separação, é esperado que a pessoa que investiu sua libido consiga buscar novos lugares de investimento, já que o objeto perdido não consegue mais devolvê-la.

De acordo com Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e Melancolia. In Obras Completas (Vol. XII, pp. 170-194). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), o luto, para ser elaborado, requer o teste de realidade; a morte, por sua vez, evidencia uma problemática: não tendo nunca passado por essa experiência na realidade, o sujeito a representa/concretiza por meio da presença do corpo morto, ofertando materialidade à situação, ensejando, dessa forma, sua representação. A busca de suporte, tal como o ritual fúnebre, é o mecanismo que o aparelho psíquico encontrou para lidar com as grandes emoções que envolvem essa perda.

Os rituais fúnebres parecem ter aqui um importante significado psicológico nos enlutados e, mesmo variando na cultura e na religião, de uma maneira geral são uma forma de compartilhar a passagem da vida para a morte, socializar a dor e iniciar o processo de luto. De fato, favorecem a resolução saudável do luto dando uma segurança psicológica aos enlutados que proporciona uma direção ao processo de luto através de locais e momentos específicos para a expressão da dor e do pesar. (Esteves & Roque, 2009Esteves, M. L., & Roque, A. R. (2009). O processo do luto na ausência do corpo. International Journal of Developmental and Educational Psychology, 1(1), 627-634., p. 629)

A morte sem corpo e sem ritos de passagem é terreno fértil para complicações emocionais e impedimento da vivência do luto. No caso aqui estudado - o dos familiares de desaparecidos -, supomos que uma forma de reparação desse impedimento pela ocultação de informação e do corpo morto, a reparação pública, permitiria às famílias a realização da representação e, por conseguinte, facilitaria a elaboração do luto, afinal, “qualquer grupo, mesmo os mais primitivos, não abandonam seus mortos” (Kovácz, 1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo ., p. 28).

A reparação falha do governo faz prevalecer o desmentido, o que põe à prova o discernimento entre fantasia e realidade. Será que o familiar morreu? Será que vive em algum lugar? Será que perdeu a memória? Questões que fazem o familiar não conseguir desinvestir sua libido de maneira que possa efetivar o trabalho do luto. Ao contrário, continua um quantum de investimento que não recebe retorno, que não oferta reinvestimento, dificultando a vivência do luto.

Cassorla (1992Cassorla, R. M. S. (1992). Reflexões sobre a psicanálise e a morte. In M. J. Kovács (Org.), Morte e desenvolvimento humano (pp. 90-110). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) assinala os fatores que dificultam a elaboração da morte: “negação da morte, o terror que ela inspira, a falta de rituais que auxiliem na sua elaboração” (p. 103). Para Kovácz (1992Kovácz, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .), quando não há clareza acerca da morte, a elucidação de sua verdade fica comprometida, e isso impede a elaboração da perda.

Para Silva & Féres-Carneiro (2012Silva, M. R. N., & Féres-Carneiro, T. (2012). Silêncio e luto impossível em famílias de desaparecidos políticos brasileiros. Psicologia & Sociedade, 24(1), 66-74.), a impossibilidade de elaboração do luto, nesse caso, se faz à medida que o “segredo de Estado” não permite a divulgação do destino dos desaparecidos, deixando no familiar uma memória sem respostas, esburacada por questionamentos abertos, “que só pode ser resgatada pela inscrição temporal dos acontecimentos, através da ritualização do luto e do conhecimento das circunstâncias da morte de seus entes, finalizando um ciclo inacabado” (p. 66).

Sendo assim, os desaparecimentos ocorridos na Ditadura de 1964 estão abertos, sem representação, inomináveis, sendo, portanto, caracterizados como eventos traumáticos no cerne da família, que não pode representar tal perda nem estabelecer em si a possibilidade de um luto, muito menos sua elaboração. O passado, como mencionado anteriormente, não pode ficar no passado; ele continua atuando, no agora e no futuro; fica, portanto, eternizado.

No caso das famílias dos desaparecidos, pôr o passado no passado e elaborar o luto só será viabilizado psiquicamente mediante a ritualização do simbólico, ou seja, daquilo que pode ser nomeado, pois a ausência do corpo atravessa o imaginário como um ciclo inacabado, por isso mesmo insuportável. O não dito para as famílias dos desaparecidos aparece também como um mecanismo defensivo, tendo em vista a peculiaridade que envolve a questão. (Silva & Féres-Carneiro, 2012Silva, M. R. N., & Féres-Carneiro, T. (2012). Silêncio e luto impossível em famílias de desaparecidos políticos brasileiros. Psicologia & Sociedade, 24(1), 66-74., p. 71, grifo nosso)

Para Endo (2013Endo, P. (2013). Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto e esquecimento. Revista USP, 98, 41-50.), a experiência do trauma, em sua conjuntura de irrepresentável e, portanto, não elaborável, fica instalada no sujeito, na sociedade, na cultura. O caminho para abrir possibilidades de nomeação a esse inominável do trauma é realizado na tentativa de dar figuração (forma), representação (significado) e compreensão (entendimento) a essa experiência traumática, tudo isso visando livrar o sujeito do sofrimento ocasionado pelo não representado. Essa coisa que pesa ao sujeito, sem nome e sem significado, continua a requerer ser reconhecida.

Essa característica petrificada, sem significação, foi denominada de “cripta” por Nicolas Abraham e Maria Torok (como citados em Antunes, 2003Antunes, S. P. (2003). Os caminhos do trauma: em Nicolas Abraham e Maria José Torok. São Paulo, SP: Escuta.), sendo conceituada como a “instalação, no interior do psiquismo de um sujeito, de uma nova configuração psíquica representada pelo interno ou pela conservação de uma experiência indizível.” (p. 15).

Essa experiência indizível, traumática, de dúvida de morte do militante, assim como seu ocultamento, ocasiona um evento traumático, ocorrendo, consequentemente, a incorporação do trauma. Aqui cabe um parêntese, pois há necessidade de explicar melhor a introjeção e a incorporação.

Como introjeção, temos o seguinte processo vincular: ao nascer, o bebê é um ser indiferenciado do meio externo. Na ocasião de sua primeira separação entre o Eu e o mundo externo, ele está realizando sua primeira operação projetiva, nomeada por Ferenczi (como citado em Mendlowicz, 2000Mendlowicz, E. (2000). O luto e seus destinos. Ágora, 3(2), 87-96.) como projeção primitiva. Entretanto, uma parte do mundo externo não renuncia, ao contrário, impõe-se ao Eu, que a assimila, constituindo a primeira introjeção, a introjeção primitiva, ato que enriquece o Eu.

A concepção ferencziana da introjeção implica uma valorização desse conceito como algo estruturante, constituinte do ego, fundamental ao desenvolvimento . . . introjetar é um processo de alargamento do ego, de inclusão da libido inconsciente, que, investida no objeto, permite a ampliação egóica. (Mendlowicz, 2000Mendlowicz, E. (2000). O luto e seus destinos. Ágora, 3(2), 87-96., p. 7)

Para Endo (2013Endo, P. (2013). Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto e esquecimento. Revista USP, 98, 41-50.), quando se fala de introjeção,

estamos falando desse trabalho psíquico excelso, que faz reparos e instrui o aparelho psíquico em direção ao seu próprio alargamento e expansão; que permite ao psiquismo, que uma vez se permitiu possuir e ser possuído pelo objeto, num segundo tempo penoso, após a perda do objeto, introjetar as pulsões desligadas sobrantes do objeto e que, ao fazê-lo, o eu se restaure e se expanda tornando-se novamente apto a se aliar a novas e inéditas experiências de investimento amoroso e libidinal. (p. 45)

Em contraponto, a incorporação, de acordo com Mendlowicz (2000Mendlowicz, E. (2000). O luto e seus destinos. Ágora, 3(2), 87-96.), tem como característica a operação compensatória de uma perda objetal; é um “mecanismo fantasmático” que atua com a perda do objeto, uma tentativa de negação da perda. Ocorre, portanto, uma fixação, que congela o objeto no interior do sujeito. “O ego tenta manter vivo o objeto imaginário mesmo à custa de sofrimento, na esperança de que algum dia seus desejos possam ser realizados e paga por isso com a doença do luto” (p. 9).

Segundo Mendlowicz (2000Mendlowicz, E. (2000). O luto e seus destinos. Ágora, 3(2), 87-96.),

O objeto como já observamos, permanece fixo, congelado, dentro do ego. Nessa perspectiva, os autores recuperam a introjeção como um mecanismo enriquecedor e expansor dos interesses do ego, dando a ele uma importância fundamental no processo de luto, resgatando a formulação original feita por Ferenczi . . . Acrescentaram que as perdas que têm por destino a incorporação são aquelas que não podem ser conscientemente admitidas. Tais perdas têm como consequência um luto indizível, instalando no sujeito uma “cripta” secreta. (p. 8)

Para Endo (2013Endo, P. (2013). Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto e esquecimento. Revista USP, 98, 41-50.),

Lá onde o próprio pensamento atestaria a sua inutilidade residiria o mecanismo . . . de incorporação, pois é do corpo que se trata, ou da projeção da superfície do corpo que conhecemos como eu (ego), em suma, da recomposição do objeto perdido, do “meu morto”, que passa a ser reincorporado como cripta ao próprio eu e arrastado pelo psiquismo. A cripta no seio do eu seria uma miscigenação estranha - tumoral - de uma composição sem dinâmica, exposta a uma intromissão que não admite questionamento. Uma recomposição quase física - ou corpórea, na qual o eu deve caminhar como se doravante carregasse um morto nas costas -, o seu morto que, paradoxalmente, estaria a salvo da morte precisamente aí onde há uma justaposição entre o eu-morto e o seu morto. O “morto que sou” e que ao mesmo tempo “guardo em mim e para mim”, a salvo, mais do que nunca de uma nova perda, cobiça ou desejo de outrem, é o “meu morto” e o “eu-morto” - resguardados e a salvo de ser, mais uma vez, arrancados do eu que os possui. (p. 45)

Assim, ao que tudo indica, enquanto a introjeção está a serviço da pulsão de vida, a incorporação é funcionária da pulsão de morte.

O desconhecimento do destino do militante na Ditadura de 1964 e a ignorância acerca dos acontecimentos relacionados a seu desaparecimento possibilitam o enterro petrificado desses sujeitos, ou seja, a ausência de significados, de simbolização, de representação adentra o núcleo familiar como um trauma.

Ferenczi (1933/1992Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In Obras completas: Psicanálise (A. Cabral, trad., Vol. IV, pp. 111-121) São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933)) nos auxilia na compreensão desse processo por meio do conceito de desmentido, pelo qual aquilo que ocorreu ao sujeito é considerado um equívoco, pouco importante ou, ainda, não ocorrido; neste caso, é a negação de que tivemos pessoas torturadas, mortas e desaparecidas na Ditadura Militar.

De acordo com Antunes (2003Antunes, S. P. (2003). Os caminhos do trauma: em Nicolas Abraham e Maria José Torok. São Paulo, SP: Escuta.), a desqualificação e a negação são tipos de violação psíquica que, operando de maneira traumática, engendram uma clivagem no seio do psiquismo. “Por ocasião desta clivagem, o sentido, o acontecimento traumático, é congelado, de modo que sua lembrança não mais seja acessível . . . a não ser sob o modo de culpa e da auto-agressão recriminatória decorrentes da ‘identificação com o agressor’” (p. 26).

Movimentos de resistência dos familiares dos desaparecidos políticos - memória e testemunho na elaboração do luto

Em alguns casos em que o luto foi possível mesmo diante das impossibilidades impostas pela realidade externa, configuradas na ausência de um corpo morto que comprove e objetifique a morte, vemos familiares de desaparecidos políticos que puderam representar as atrocidades cometidas contra sua família. A representação dada foi configurada pelos agrupamentos de denúncia e de resistência, por movimentos aqui considerados de testemunho e/ou sociais. Esses movimentos são considerados rituais substitutos dos ritos/símbolos fúnebres (velório, despedida, sepultamento, túmulo).

Os movimentos de testemunho são caracterizados pelos relatos dos familiares que presentificam o acontecimento traumático. Esses traumas, quando compartilhados por outros que padecem do mesmo sentimento, ganham novo significado para aqueles que testemunham; passam a ter valor de verdade, possibilitando aos familiares a elaboração do luto traumático.

Testemunhar é um ato que mescla a resistência e a denúncia, pois, ao se lembrar do acontecimento, o familiar resiste a ele e o relata; ele também denuncia as atrocidades contra si e contra seu ente querido. Quando os movimentos conduzidos por familiares de desaparecidos políticos narram um acontecimento, eles buscam presenciar o ato, retornar ao momento, buscar que o acontecimento não “aconteça”. Por intermédio do discurso, buscam denunciar culpados, angariar aliados e, sobretudo, afirmar a veracidade da dor e da agressão sofrida. Tudo isso como se buscassem testemunhas que denunciassem o trauma, a dor, possibilitando a condenação dos algozes e a certeza de que seus sentimentos e suas memórias não são insanidades. Segundo Teles (2010Teles, J. A. (2010) Os testemunhos e as lutas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In III Seminário Internacional Políticas de la Memoria. Recordando a Walter Benjamin: Justicia, Historia Y Verdad. Escrituras de la memoria. Buenos Aires: Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti.),

se esquecer experiências-limite é impossível, isso é ainda mais difícil quando o passado permanece recalcado. Sem ampla mobilização social e os rituais e leis que garantam o “direito à verdade”, os familiares de mortos e desaparecidos oscilam entre a busca por realizar um luto, o recalque e o desejo de restituição do passado. (p. 4)

Testemunhar é uma das maneiras de construção da memória coletiva. Além disso, a necessidade de narrar os fatos ocorridos é um meio de dar autenticidade à lembrança perturbadora do trauma vivenciado. Ao narrar um fato, reconstrói-se a memória, o que possibilita ligações rompidas pelo impacto do trauma. Assim, quando o familiar do desaparecido narra o que ocorreu ao seu ente amado, ele utiliza a palavra e, portanto, encena a verdade fantasmática. Se ele tiver um ouvinte, este se tornará uma testemunha da história, autenticando sua dor e tornando-se um aliado na busca por verdade e justiça.

A dupla narrador-ouvinte constitui uma inscrição coletiva daquilo que se conta. Essa narrativa, construída pela memória compartilhada e por seus componentes emocionais, deixa de ser um ato único, singular e subjetivo, para se tornar uma dor coletiva, um motivo de “batalha” comunitária, que, contrapondo-se ao status silencioso (antinarrativo) do trauma, contribui para que tal tragédia seja ao menos recordada, para que não volte a ocorrer e não haja mais vítimas de condutas tão desumanizadoras.

Controversamente, narrar o trauma é apenas narrar, pois não se alcança toda a complexidade das situações vividas; a palavra não dá conta de expressar o todo que envolve o sentimento e os fatos tais como invadiram o indivíduo. Em muitas situações, a linguagem não consegue expressar a experiência completa; o testemunho falha, não sendo possível traduzir o real e significar o trauma. Como parte-se da memória ao narrar um acontecimento, existe a possibilidade de sua simbolização. Entretanto, de acordo com Teles (2009Teles, J. A. (2009). Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In C. M. Santos, E. Teles & J. A. Teles (Orgs.), Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (Vol. 1, pp. 151-176). São Paulo, SP: Hucitec.), o trabalho de memória requer um terceiro externo que constitui um campo simbólico, significando e nomeando a cena traumática.

Ao narrar os fatos, ao deslindá-los em palavras, colocamos a possibilidade de reparação do dano e de construção da memória e do recordar. De acordo com Ramires (2014Ramires, A. L. M (2014). História, Memória e Psicanálise: do testemunho à reparação das vítimas e familiares que sofreram com a violência perpetrada pela ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. In XII Encontro Estadual de História: história, verdade e ética. Porto Alegre, RS: Anpuh-RS.), esta é “uma necessidade visceral” (p. 6) para que o discurso não seja constituinte e afirmador de delírio e de insanidade e, tampouco, continue no âmbito do privado, ou seja, trata-se de um rechaço à imposição do silêncio na Ditadura.

Ao tornar história um dado acontecimento, as marcas psíquicas são refeitas, e o sofrimento pessoal, particular e exclusivo é abandonado, indo ao encontro do social, do coletivo, tudo por uma necessidade corajosa de que a verdade implícita no sujeito apareça, ganhe vida e se faça verdade, possibilitando novas inscrições psíquicas.

O tempo do testemunho é, portanto, um tempo-outro que supõe esse jogo de ouvir e falar que afeta a ambos: quem testemunha sua história e quem a escuta. Todos que se implicam neste processo de reparação são afetados e esta implicação se dá tanto no campo da recomposição individual, com a quebra do silenciamento do não dito, quanto no campo coletivo, com a recuperação da história em sua dimensão social. (Perrone & Moraes, 2014Perrone, C., & Moraes, E. G. (2014). Do trauma ao testemunho: caminho possível de subjetivação. In Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Org.), Clínica do testemunho: reparação psíquica e construção de memórias (pp. 31-48). Porto Alegre, RS: Criação Humana., p. 24, grifo nosso)

Os movimentos de resistência e de denúncia buscam testemunhar o que de fato ocorreu na Ditadura Militar de 1964, tentando desvelar a verdade e representar, para o universo simbólico, aquilo que ficou escondido, não dito. Assim, muitos familiares buscam a elaboração de seus traumas - como o luto impedido - por meio da resistência e da denúncia, sendo eles as testemunhas do episódio “real” e traumático que ocorreu a seus entes queridos, denominados desaparecidos. Para Ramires (2014Ramires, A. L. M (2014). História, Memória e Psicanálise: do testemunho à reparação das vítimas e familiares que sofreram com a violência perpetrada pela ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. In XII Encontro Estadual de História: história, verdade e ética. Porto Alegre, RS: Anpuh-RS.), quando se narra um acontecimento, como é o caso de um familiar que conta sua versão dos fatos, se transmite a sua impressão do vivido, recuperando uma memória, um arquivo que é, ao mesmo tempo, particular e social, abrindo a possibilidade de recomposição simbólica e traduzindo, com isso, as marcas deixadas no psíquico: “Ao se inscrever como sujeito, reinscreve o social: há elaboração psíquica e recupera-se memória coletiva.” (p. 13).

Na face literal do testemunho está a busca da prevenção da angústia que se repete através dos anos. O “trabalho do trauma” procura integrar a cena traumática - a morte sob tortura ou a do corpo esquartejado e desaparecido - de modo articulado, consciente, gerando o desgaste da memória. Assim, o testemunho é também uma forma de esquecimento, uma fuga para frente em direção à palavra e à libertação do trauma. (Seligmann-Silva como citado em Teles, 2009Teles, J. A. (2009). Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In C. M. Santos, E. Teles & J. A. Teles (Orgs.), Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (Vol. 1, pp. 151-176). São Paulo, SP: Hucitec., p. 155)

Dessa forma, a reparação psíquica é possível pelo testemunho, porque possibilita a construção da memória. A Clínica do Testemunho, suporte do Ministério da Justiça e da Comissão de Anistia, se propõe a ser esse terceiro, o ouvinte. O projeto funciona nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, com o objetivo de propiciar reparação psíquica aos afetados pela violência de Estado no período da Ditadura: “é um projeto que visa a proporcionar escuta e desenvolver voz àqueles que tiveram suas vidas afetadas pela violência estatal” (Perrone & Moraes, 2014Perrone, C., & Moraes, E. G. (2014). Do trauma ao testemunho: caminho possível de subjetivação. In Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Org.), Clínica do testemunho: reparação psíquica e construção de memórias (pp. 31-48). Porto Alegre, RS: Criação Humana., p. 23).

O ato de testemunhar um evento traumático retira as vivências do registro do medo e da humilhação, pois decifra o acontecimento, retirando-o da ordem do mortífero, do horror, do indizível, fazendo cessar seus efeitos. Entretanto, isso apenas é possível se houver um ouvinte. Primo Levy (como citado em Perrone & Moraes, 2014Perrone, C., & Moraes, E. G. (2014). Do trauma ao testemunho: caminho possível de subjetivação. In Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Org.), Clínica do testemunho: reparação psíquica e construção de memórias (pp. 31-48). Porto Alegre, RS: Criação Humana.) assegura que “não há testemunho, sem quem o escute” (p. 23). Esse encontro entre testemunhar ou narrar e escutar possibilita construir sentidos e memória. Sem isso, a crueldade e a violência se tornam enlouquecedoras, com vozes que perturbam e deixam interrogantes na própria fala.

A contribuição da Psicanálise para a clínica do testemunho é exatamente garantir que a singularidade, o resto que marca a presença da dor, do excesso na história e na sociedade, esteja presente na reconstrução permanente da memória, não apenas a história como simples reflexo da realidade dos vencedores, que não cessam de vencer, como advertiu Benjamin. A realidade da memória, e suas construções sempre cambiantes, é que torna possível desencravar o destino, separar a repetição da fatalidade e, assim, os mecanismos das racionalidades, que não cessaram de produzir a violência e a dor, possam, finalmente, ser interrompidos. […] O sujeito ao recompor-se em sua palavra, reivindica ser sua própria expressão, devolvendo assim, aos protagonistas da crueldade, da violência e da barbárie a autoria inquestionável de seus atos. Ao singularizar-se em seu testemunho o sujeito rompe com o ‘silêncio do traumatizado’ ou com a ‘impossibilidade do dizer’, para alinhar a memória, o afeto e a representação em configurações atuais autorizadas nos atos de pensar-se, recompor-se e recriar-se. (Perrone & Moraes, 2014Perrone, C., & Moraes, E. G. (2014). Do trauma ao testemunho: caminho possível de subjetivação. In Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Org.), Clínica do testemunho: reparação psíquica e construção de memórias (pp. 31-48). Porto Alegre, RS: Criação Humana., p. 38-40)

Para Bauer (2012Bauer, C. S. (2012). Brasil e Argentina: ditadura, desaparecimentos e políticas de memórias. Porto Alegre, RS: Medianiz.), a denúncia desses familiares, o processo de seus lutos são demandas a serem atendidas em busca de “memória, justiça e verdade” (p. 115), possibilitando o desvelamento da verdade, a punição dos culpados e a coletivização das memórias.

Considerações finais

Este trabalho teve como objeto norteador a compreensão do luto vivido por familiares de desaparecidos políticos. Impedidos de ter acesso ao corpo, eles não puderam ter contato com o desaparecido/morto, o que impossibilitou que o processo de elaboração do luto fosse realizado de maneira completa.

O primeiro passo para compreender o impedimento do luto de familiares de desaparecidos políticos se deu com a investigação/contextualização da Ditadura Militar de 1964. O militante era identificado sob a estereotipia de marginal, de desordeiro. Sendo ele colocado no papel de marginal, ficava negado o conflito político entre o governo ditatorial e os movimentos de libertação. A culpa passava a ser atribuída aos militantes políticos. Ainda nesse ponto, buscamos entender e explanar a maneira como o militante foi tendo sua imagem construída ao longo de todo o processo ditatorial e como os supostos lemas de defesa da família e do patrimônio foram utilizados para, cada vez mais, persuadir a população, angariando aliados. Assim, o Estado justificou os processos de tortura e de ocultação/morte de pessoas. O discurso da Doutrina de Segurança Nacional foi utilizado para legitimar esta conduta violenta e cruel como um cuidado à nação, às pessoas “de bem” e ao desenvolvimento. Dessa forma, as torturas e os desaparecimentos foram legitimados como estratégias de salvação à pátria e de cuidado político.

A perda de um ente amado requer desinvestimento libidinal no objeto de amor; para tanto, a morte precisa ser objetivada, sentida no âmbito do real, e isso apenas é possível com um corpo morto que valide a não mais existência do falecido, encerrando a expectativa de que haverá um regresso. Quando, por algum motivo, esse real não existe, como no caso dos desaparecidos durante a Ditadura de 1964, o processo de elaboração de luto fica interrompido. Há, então, certa diferença entre a morte conhecida, factual, e aquela que se tem de presumir.

Obviamente, essa ausência do real, que se configura pela não materialização da morte (localização/presença do corpo), é um evento traumático, que adentra o aparelho psíquico sem que ele possa reagir a tão abrupto investimento; há familiares que são identificados com a luta de seus desaparecidos e que continuam a militância, com movimentos de testemunhos que denunciam as ações traumatizantes impostas pelo governo militar a seus entes amados, constituindo, dessa maneira, a memória coletiva acerca da Ditadura Militar, buscando a elaboração de seu luto.

O testemunho narrado favorece a representação do trauma, que por meio das palavras constrói sentido para a experiência traumática. Os movimentos sociais que promovem a escuta da narrativa dessa experiência servem à construção simbólica que coloca o sujeito em movimento, em busca da representação e, por conseguinte, em movimento em direção à vida.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade tenta, de forma institucional, criar uma nova narrativa histórica e transacional sobre o período conturbado da ditadura militar no Brasil. Narrar esse passado é um processo difícil, mas necessário para as vítimas que foram caladas e para a sociedade brasileira que precisa elaborar esse período traumático para seguir em frente. (Morais, 2015Morais, F. M. T. F. (2015). A redenção pela narrativa: lineamentos sobre a configuração e a importância das narrativas para elaboração de um passado traumático à luz da obra de Gabriel García Márquez e dos pensamentos de Paul Ricoeur (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG., p. 8)

Morais (2015Morais, F. M. T. F. (2015). A redenção pela narrativa: lineamentos sobre a configuração e a importância das narrativas para elaboração de um passado traumático à luz da obra de Gabriel García Márquez e dos pensamentos de Paul Ricoeur (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.), a propósito da Comissão Nacional da Verdade, confirma o valor do testemunho como medida de elaboração, que coloca o sujeito em movimento, antagonizando a paralisação traumática.

“Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é outra história. Inacabamento.” (Ricoeur, 2007, p. 513 como citado em Morais, 2015Morais, F. M. T. F. (2015). A redenção pela narrativa: lineamentos sobre a configuração e a importância das narrativas para elaboração de um passado traumático à luz da obra de Gabriel García Márquez e dos pensamentos de Paul Ricoeur (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG., p. 64).

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  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2018
  • Revisado
    24 Maio 2019
  • Aceito
    17 Set 2019
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