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Verdrängung, Unterdrückung e a querela das traduções

Verdrängung, Unterdrückung and the quarrel of translations

Verdrängung, Unterdrückung y la disputa de las traducciones

Verdrängung, Unterdrückung et la querelle de traductions

Resumo

Este estudo discute o uso freudiano dos termos Verdrängung e Unterdrückung e as polêmicas relacionadas às suas traduções. Aborda os livros A interpretação dos sonhos e O chiste e sua relação com o inconsciente, comparando-os com suas respectivas edições alemãs. Conclui que, se em alguns momentos tal discriminação entre Verdrängung e Unterdrückung pode ser sustentada, em diversos outros - não menos significativos e não menos frequentes - ela é consideravelmente prejudicada ou mesmo inviável.

Palavras-chave:
Verdrängung; Unterdrückung; Freud

Abstract

This study discusses the Freudian use of the terms Verdrängung and Unterdrückung and the controversies related to their translations. It approaches the books The Interpretation of Dreams and The Joke and its Relationship with the Unconscious and compares them with their respective German editions. It concludes that, if at times such discrimination between Verdrängung and Unterdrückung can be sustained, in several others - neither less significant nor less frequent - such discrimination is considerably impaired or even unfeasible

Keywords:
Verdrängung; Unterdrückung; Freud

Resumen

Este estudio discute el uso freudiano de los términos Verdrängung y Unterdrückung y las controversias relacionadas con sus traducciones. Para ello, se comparó las obras La interpretación de los sueños y La broma y su relación con el inconsciente con sus respectivas ediciones alemanas. Se concluye que a veces se puede sostener una distinción entre Verdrängung y Unterdrückung, en otras, no menos significativas y no menos frecuentes, esta distinción se ve considerablemente afectada o incluso inviable.

Palabras clave:
Verdrängung; Unterdrückung; Freud

Résumé

Cet étude examine l’utilisation freudienne des termes Verdrängung et Unterdrückung et les controverses liées à leurs traductions. Il aborde les livres L’interprétation des rêves et Les blagues et leur relation avec l’inconscient, en les comparant avec leurs éditions allemandes respectives. Il conclut que, si parfois une telle discrimination entre Verdrängung et Unterdrückung peut être maintenue, dans plusieurs autres moments - non moins importantes et non moins fréquentes - elle est considérablement entravée, voire irréalisable.

Mots-clés:
Verdrängung; Unterdrückung; Freud

Introdução

Com a recente passagem da obra de Freud para o domínio público, diferentes grupos editoriais ocuparam-se da sua tradução direta do alemão, cada um deles justificando suas opções terminológicas e defendendo, ora mais, ora menos explicitamente, sua maior fidelidade e superioridade em relação aos demais. Quem lida diariamente com bancas de mestrado/doutorado, de concursos públicos para docência, quem precisa publicar artigos em revistas especializadas sabe que tal disputa tem efeitos práticos: quais termos usar, instinto ou pulsão? Isso ou Id? Ansiedade ou angústia - ou medo? Afinal, não raro a temperatura nas bancas, nos congressos etc. aumenta justamente quando se cai no campo da batalha terminológica. Batalha inglória, já que, parafraseando Lacan (1966/1998)Lacan, J. (1998). Do “Trieb” de Freud e do desejo do psicanalista. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 865-868). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)., “mais leva cada um a fazer valer sua própria impermeabilidade” (p. 868).

No entanto, a recente corrida editorial não criou, mas apenas reanimou a já histórica querela das traduções no campo psicanalítico, que tem como um dos pontos nevrálgicos as traduções de Verdrängung e Unterdrückung, objeto deste estudo. A pesquisa se deu por meio da leitura de A interpretação dos sonhos e O chiste e sua relação com o inconsciente, pelas seguintes razões: (1) são textos pertencentes à fase inaugural da psicanálise, na qual seus conceitos fundamentais foram forjados; (2) no primeiro, a teoria da Verdrängung surge pela primeira vez em termos metapsicológicos; (3) no segundo, temos talvez o lugar em que mais se observa a emergência da palavra Unterdrückung, permitindo explorar amplamente seus sentidos e compará-los aos da Verdrängung.

Abaixo, o leitor encontrará primeiro uma apresentação do problema, seguida da discussão dos pontos mais emblemáticos relacionados a ele, localizados nas obras citadas. Por fim, nas considerações finais, serão apresentadas algumas interpretações possíveis para a insistente querela das traduções no campo psicanalítico.

Mapeando o problema

Para introduzir o problema, vale a pena resgatar algumas das críticas mais marcantes às traduções da obra de Freud, bem como as sugestões alternativas que as acompanharam ao longo da história da psicanálise. Trata-se de uma breve revisão assistemática, que de forma alguma pretende cobrir a diversidade de posições em torno do tema; no entanto, ela parece ser suficiente para mapeá-lo e abrir caminho para uma apreciação que, se não for de todo inédita, ao menos pode apresentar novas questões a respeito de concepções há muito instaladas e cronificadas em diversas tradições.

Segundo Souza (1999Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática.), Brant condena a tradução inglesa de Verdrängung por repression por entender que esta, além de comportar um cunho político, indica um sentido para a ação de empurrar - no caso, empurrar para trás, ou para baixo -, o que estaria ausente no termo original, que implica apenas a ideia de afastar e manter a distância. Ele sugeriu que repression fosse usada para traduzir Unterdrückung. Para Brant, portanto, há uma diferença essencial entre Unterdrückung e Verdrängung.

Bettelheim também condena a alternativa inglesa por entender que ela não transmite a noção de impulso interior na origem do processo defensivo, o que, segundo ele, é o traço essencial da palavra Verdrängung. Em vez disso, repression teria mais a ver com a ação de terceiros sobre determinado objeto ou indivíduo, o mesmo valendo para seu sinônimo suppression.

Tal como Brant, Bettelheim argumenta que repression seria o equivalente perfeito para verter Unterdrückung - concordado, então, que haveria diferença essencial entre Unterdrückung e Verdrängung. Quanto à melhor opção para Verdrängung, Bettelheim propõe repulsion, que, em sua opinião, deixa mais clara sua origem num processo interior pessoal.

Ainda segundo Souza (1999Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática.), na França, a história não foi muito diferente: répression foi desde a década de 1920 utilizada para verter Unterdrückung e a alternativa para Verdrängung foi refoulement. Nessa transposição, o movimento psicanalítico francês acentuou ainda mais a distinção entre os dois termos alemães, como mostra o esforço de Laplanche e Pontalis para diferenciar radicalmente refoulement de répression no famoso Vocabulário de psicanálise. Entre os argumentos para distinguir Unterdrückung/répression de Verdrängung/refoulement, o mais importante diz que no primeiro caso tem-se um processo que transcorre de forma consciente, afastando conteúdos do sistema Cs. para o Pcs., e não para o Ics. Para eles, repressão (répression) é um “equivalente errado de Verdrängung” (Laplanche & Pontalis, 2000Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2000). Vocabulário de psicanálise (P. Tamen, trad., 3a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 457).

No Brasil, a situação é mais variada: há, segundo Souza (1999Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática.), aqueles que entendem que recalque deveria ser usado para verter Verdrängung, e repressão para Unterdrückung, argumentando - como Laplanche e Pontalis - que somente Verdrängung/recalque comportam o traço essencial de ser um processo inconsciente. Souza lembra que Mezan, apesar de não adotar o termo recalque, concorda que Verdrängung diz de um processo inconsciente, enquanto Unterdrückung seria um processo consciente. Assim, tais conceitos nunca são confundidos na obra de Freud1 1 “‘Repressão’ alude à exclusão para o inconsciente, enquanto ‘Supressão’ indica o ato de manter algo no pré-consciente” (Mezan, 1987 citado por Souza, 1999, p. 110). .

Diversamente, encontramos em Coutinho Jorge (2005Coutinho Jorge, M. A. (2005). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais (Vol. 1, 2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) o seguinte:

há que ser feita uma distinção básica entre o mecanismo do recalque, Verdrängung, e a repressão, [aqui, em nota, consta: “que por sua vez não deve ser confundida com a supressão, Unterdrückung”] sem a qual deixamos de perceber que o recalque ocorre entre diferentes sistemas psíquicos, produzindo a mudança de algum elemento de um sistema para outro. O recalque independe de uma ação externa coercitiva, pela qual se caracteriza a repressão. (p. 22)

Vê-se aqui uma preocupação em diferenciar recalque e repressão. O segundo termo estaria atrelado à ideia de forças externas à psique atuando sobre ela; já o recalque seria uma atividade essencialmente intrapsíquica. Quanto a Unterdrückung, apesar de o autor não tecer comentários a respeito, fica subentendido que seria ainda um terceiro processo, inconfundível com os dois anteriores2 2 Há aqui um problema: se recalque equivale a Verdrängung e supressão, a Unterdrückung, qual termo alemão equivaleria à palavra repressão? .

Boag (2010Boag, S. (2010). Repression, supression and conscious awareness. Psychoanalytic Psychology, 27(2), 164-181. doi: 10.1037/a0019416
https://doi.org/10.1037/a0019416...
) apresenta um contraponto importante em relação à posição majoritária retratada acima. Ele entende que a discriminação entre ser um processo consciente ou inconsciente pode não ser um critério válido para diferenciar Unterdrückung e Verdrängung, já que a própria distinção entre Cs. e Ics. parece não ser tão clara. O autor termina afirmando que Verdrängung pode se dar conscientemente, enquanto Unterdrückung pode ocorrer inconscientemente.

Em suma, do exposto até aqui, extrai-se que a despeito das alternativas encontradas nos idiomas inglês, francês e português para os termos Verdrängung e Unterdrückung, tende-se a um consenso - à exceção de Boag (2010Boag, S. (2010). Repression, supression and conscious awareness. Psychoanalytic Psychology, 27(2), 164-181. doi: 10.1037/a0019416
https://doi.org/10.1037/a0019416...
) - sobre o fato de Verdrängung indicar um processo interno e exclusivamente inconsciente, implicando o atravessamento do Cs. para o Ics., enquanto Unterdrückung implica processos conscientes acionados por razões externas e que, no máximo, poderiam transpor algo do Cs. para o Pcs. Por fim, parece não haver dúvidas de que ambos os termos estão suficientemente bem diferenciados na obra de Freud, justificando, assim, que seus equivalentes em outros idiomas também o sejam.

Na sequência, pretende-se demonstrar o equívoco de tais afirmações; ou seja, que os referidos termos alemães são frequentemente intercambiáveis, ora ou outra utilizados como verdadeiros sinônimos, e que, portanto, os esforços em discriminar de modo radical seus equivalentes em outros idiomas não parece encontrar justificativa suficiente na obra de Freud.

O livro dos sonhos

O termo Unterdrückung aparece no texto metapsicológico inaugural de Freud desde o capítulo I, de início atrelado a autores diversos - Hildebrandt e Spitta na letra F, Delage na letra G -, mas logo é o próprio Freud quem dele se apropria:

o homem que está refletindo exerce também sua faculdade crítica; isso o leva a rejeitar [verwirft] algumas das ideias que lhe ocorrem após percebê-las, a interromper outras abruptamente . . . e a se comportar de tal forma em relação a mais outras que elas nunca chegam a se tornar conscientes e, por conseguinte, são suprimidas [unterdrückt] antes de serem percebidas. (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 136)3 3 Os termos em alemão presentes nas citações, indicados entre colchetes, referem-se às expressões originais localizadas nas obras de Freud (1948, 1961, 1968).

O trecho permite vislumbrar uma dimensão da vida psíquica que, devido a Unterdrückung, sequer alcança o sistema Cs - o que já sugere o caráter inconsciente de tal processo defensivo.

No capítulo IV, a palavra Verdrängung finalmente anuncia-se, porém intimamente ligada a Unterdrückung, quando Freud expõe sua famosa fórmula nos seguintes termos: “o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado) [(unterdrückten, verdrängten) Wunsches]” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 193).

Nota-se que no texto original não existe o “ou” entre os dois termos, mas sim uma vírgula, indicando antes uma relação de similaridade do que de contraposição, como sugere a edição standard brasileira. A sequência do texto não deixa dúvidas: dos autores que Freud cita, em notas, a fim de corroborar sua fórmula, vê-se que Spitteler fala em “anseios e desejos suprimidos [unterdrückter Sehnsuchtswünsche]”, enquanto Rank menciona “material sexual infantil recalcado [verdrängten infantil-sexuellen Materials]” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 193; Freud, 1900/1961Freud, S. (1961). Die Traumdeutung. In Gesammelte Werke, chronologisch geordnet - die Traumdeutung, Über den Traum (Vols. II/III, pp. 513-626). Frankfurt: S. Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 166). Freud, por sua vez, não demonstra preocupação em discriminar uma coisa da outra, reunindo ambas as citações para fortalecer sua concepção, a despeito dos citados utilizarem termos distintos.

É impossível ignorar o que encontramos no capítulo V, referindo-se especificamente à “teoria do recalcamento [Lehre von der Verdrängung], que é essencial ao estudo das psiconeuroses” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 263). A fim de esclarecer seu sentido, Freud afirma que:

O uso linguístico atinge o alvo ao falar de ‘supressão’ [unterdrücken] desses impulsos. Os arranjos psíquicos que facultam a esses impulsos [solche unterdrückte Wünsche]4 4 A tradução mais exata aqui seria “tais desejos suprimidos”, e não simplesmente “impulsos”. imporem sua realização continuam a existir e a funcionar perfeitamente. Na eventualidade, contudo, de um desejo recalcado [unterdrückter Wunsch]5 5 Incomum esta opção da edição standard brasileira de traduzir Unterdrückter por recalcado. Seja lá qual for a razão (desatenção fisiológica? lapso de escrita? má-fé?), é a segunda supressão (!) de Unterdrückung no mesmo parágrafo. desse tipo ser levado a efeito, e de sua inibição pelo segundo sistema (o sistema que é admissível à consciência) ser derrotada, essa derrota encontra expressão como desprazerosa [Unlust]. (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 263)

Em suma, Freud está afirmando que seu conceito psicanalítico de Verdrängung só tem a ganhar ao aproximar-se dos sentidos que o senso comum atribuíra a Unterdrückung6 6 Tal aproximação se fortalece ainda mais em todo o parágrafo seguinte, que só não é aqui transcrito por razões de espaço. Apenas para dar uma ideia: nele, Verdrängung e seus correlatos aparecem três vezes, o mesmo ocorrendo com Unterdrückung. .

No capítulo VII, ponto E, Freud traz mais elementos para definir recalcamento. Toma como ponto de partida o que acontece no aparelho psíquico quando nele se inscrevem “vivências de satisfação”, tema central do ponto C. Em seguida, por comparação, avalia o que acontece quando a vivência em jogo é qualitativamente oposta, ou seja, vivências de “pavor frente a algo externo”, de “excitação dolorosa”, de dor. Segundo Freud (1900/1996)Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., a tendência do aparelho psíquico diante de tais vivências dolorosas é exatamente inversa àquela verificada frente a vivências de satisfação: “não resta nenhuma inclinação a recatexizar a percepção da fonte de dor . . . . Pelo contrário, haverá no aparelho primitivo uma inclinação a abandonar imediatamente a imagem mnêmica aflitiva, caso algo venha a revivê-la” (p. 626). Esse movimento de evitar a lembrança ou algo que remeta à experiência dolorosa constituiria então “o protótipo e o primeiro exemplo do recalcamento psíquico [psychischen Verdrängung]” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 626).

Mais adiante, Freud refina o conceito ao discutir a importância das experiências infantis, em especial da sexualidade, como alvo privilegiado de medidas defensivas à medida que o organismo se desenvolve e precisa se inserir numa regulagem social/cultural essencialmente incompatível com a dimensão pulsional. A consequência é o gradual reconhecimento de uma contradição daquilo que de início resultava apenas em prazer - a satisfação mais imediata possível das pulsões -, mas que passou cada vez mais a acarretar também desprazer. Nesse ponto, em que a satisfação pulsional tende a gerar mais desprazer do que prazer, entraria em cena o recalcamento: “a realização desses desejos não mais geraria um afeto de prazer, mas sim de desprazer; e é precisamente essa transformação do afeto que constitui a essência daquilo a que chamamos ‘recalcamento’ [Verdrängung]” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 630).

É sensível ao leitor que Unterdrückung tenha se ausentado momentaneamente do texto, até que numa extensa nota de rodapé, quase no fim do ponto E do capítulo VII - ou seja, quase no fim do livro -, Freud escreve: “omiti declarar se atribuo sentidos diferentes aos termos ‘suprimido’ [unterdrückt] e ‘recalcado’ [verdrängt]. Há de ter ficado claro, entretanto, que este último dá mais ênfase do que o primeiro ao fato da ligação com o inconsciente” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 632). Eis um trecho no qual Freud ensaia, ainda que indecisamente7 7 Afinal, sua frase foi “omiti declarar se atribuo”, e não “que atribuo sentidos diferentes”. , separar os dois termos, o que para muitos estudiosos bastaria para se afirmar uma distinção inequívoca entre eles.

Mas, se lermos bem, é fácil perceber que se verdrängt “enfatiza” a ligação com o inconsciente, nada diz que essa ligação seja exclusividade da palavra Verdrängung. Mais ainda: tal indicação não impediu que o próprio Freud, no parágrafo seguinte, se servisse do termo Unterdrückt exatamente como sinônimo de Verdrängung: “poderemos dizer sobre os sonhos: eles provaram que o suprimido [Unterdrückt] continua a existir tanto nas pessoas normais quanto nas anormais e permanece capaz de funcionamento psíquico. Os próprios sonhos figuram entre as manifestações desse material suprimido [Unterdrückten]” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 633).

Como interpretar, então, essa nota de rodapé? Ela é suficiente para afirmar não haver confusão possível entre os dois termos na obra de Freud? Ou Freud a teria inserido justamente por reconhecer que em seu pensamento os dois termos são, de fato, equivalentes, podendo se substituir ora aqui, ora ali sem grandes problemas?

Um trecho do ponto A do mesmo capítulo VII favorece a segunda opção. Nele, Verdrängung e Unterdrückung confluem harmoniosamente em meio a uma discussão que trata de censura, fluxos associativos superficiais e profundos.

Para melhor elucidá-lo, será necessária uma pequena digressão. Trata-se de um momento em que Freud visa corroborar sua hipótese do radical determinismo psíquico guiando o movimento associativo, segundo a qual “nenhuma influência que possamos exercer sobre nossos processos anímicos nos facultará pensar sem representações-meta” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 559)8 8 Por representações-meta deve-se entender aquelas representações que norteiam o fluxo associativo, dando a ele uma direção ora mais, ora menos, porém sempre determinada. .

Ou seja, quando a conversa de um paciente neurótico parece vagar a esmo, tal liberdade seria apenas aparente, pois esconderia uma determinação oriunda de outro âmbito psíquico que, devido à censura, não encontrou expressão direta na consciência, empurrando em seu lugar outras representações menos ou nada objetáveis pela censura. O resultado desse processo seria um fluxo associativo mais superficial - aquela parte da sessão em que nada do que é dito parece relevante, tudo parece inútil e em vão -, mas cujos determinantes estariam ocultos, inacessíveis à consciência, abaixo da superfície.

Assim, Freud assinala a importância de valorizar também o discurso mais superficial de um paciente; afinal, há também aí a possibilidade de se acessar os determinantes inconscientes do fluxo associativo - as representações-meta inconscientes. O discurso superficial seria um substituto, mas não um substituto qualquer: “a verdadeira razão do predomínio de associações superficiais não está no abandono das representações-meta, mas sim na pressão da censura. As associações superficiais substituem as profundas quando a censura torna intransponível as vias normais de ligação” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 561).

Seguindo adiante - e finalizando nossa digressão -, Freud discute de que forma a censura atua nesse processo defensivo, recaindo sobre a ligação entre dois pensamentos que em si mesmos não seriam barrados no acesso à consciência ou sobre os pensamentos em si, devido ao fato de seus conteúdos bastarem para despertar a objeção. Em ambos os casos o que fora censurado é substituído e ligado por representações anódinas. É nesse ponto da discussão que ele escreve: “essa ligação costuma estar vinculada a uma parte do complexo de representações muito diferente em que se baseia a ligação suprimida [unterdrückte] e essencial” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 561).

Ora, não restam dúvidas de que estamos diante de processos e conteúdos inconscientes nos sentidos dinâmico - pois é pela violência da censura que há a necessidade de se recorrer a ligações superficiais, de empurrá-las para cima no lugar das “profundas” - e sistemático - pois as ligações superficiais se dão em instâncias psíquicas diferentes daquelas ligações originais, censuradas. Trata-se, portanto, de um processo que envolve a passagem - ou melhor, o bloqueio - entre as instâncias Pcs./Cs. e Ics. E a palavra à qual Freud recorre para caracterizar a parte bloqueada no processo não é verdrängte - aquela que “enfatiza” a ligação com o inconsciente -, mas sim unterdrückte.

Já no ponto B, Freud discute situações em que os investimentos regressivos típicos dos processos oníricos ocorrem durante a vigília, provocando fenômenos alucinatórios:

Minha explicação para as alucinações da histeria e da paranoia e para as visões nos sujeitos mentalmente normais é que elas de fato constituem regressões - isto é, pensamentos transformados em imagens -, mas os únicos pensamentos a sofrerem essa transformação são os que se ligam intimamente a lembranças que foram suprimidas [unterdrückten] ou permaneceram inconscientes. (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 574)

Na sequência, Freud traz um exemplo clínico, o caso de um jovem de 12 anos de idade que alucinava rostos verdes com olhos vermelhos, o que o impedia de dormir. Freud afirma que “a fonte desse fenômeno era a lembrança suprimida [unterdrückte], embora consciente em certa época, de um menino que ele via com frequência quatro anos antes” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud - edição standard brasileira (J. Salomão, trad., Vols. IV/V, pp. 29-700). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 574). O mesmo uso do termo “unterdrückten” ocorre ainda uma terceira vez na página seguinte.

Vê-se que nas duas passagens é à palavra Unterdrückung que Freud recorre a fim de analisar esse processo que, ao deformar lembranças infantis penosas, coaduna na formação de sintomas. Isso parece contrariar a perspectiva de Laplanche e Pontalis, entre outros, para os quais Unterdrückung remete apenas a um processo que ocorre entre as instâncias Cs. e Pcs., nunca transpondo as fronteiras do Ics.

Vejamos se essa ideia resiste a uma apreciação minuciosa do texto freudiano. Na primeira citação, Freud fala de lembranças que foram suprimidas ou que permaneceram inconscientes. Ora, até aqui poder-se-ia conceder crédito aos autores do Vocabulário de psicanálise ao considerar que o termo “inconsciente” aqui poderia estar sendo usado apenas no sentido descritivo, e não no sentido sistemático ou dinâmico. Assim, uma lembrança ser suprimida implicaria apenas ter retirada de si a qualidade de consciência, o que de forma alguma lançaria tal lembrança no sistema Ics. O mesmo poderia ser argumentado a partir da segunda citação: que a tal lembrança de quatro anos atrás do paciente de Freud permanecera por todo esse tempo na instância Pcs., portanto, pronta para acessar a instância Cs. sem necessidade de, para isso, vencer as barreiras da censura ou de transformar-se, distorcer-se e transfigurar-se com o auxílio dos processos primários.

O problema, cabe não esquecer, é que estamos lidando com um processo cujo desfecho foi a formação de um sintoma psicopatológico, ou seja, um fenômeno que, em tese, implica a participação decisiva da instância inconsciente, com suas diversas estratégias primárias (deslocamentos, regressões, condensações etc.) para só então poder adentrar o palco da Cs. Ou seja, o fato de estarmos lidando com uma formação sintomática impõe a conclusão de que não estamos lidando com a passagem de conteúdos do sistema Pcs. para o sistema Cs.; se esse fosse o caso, tais lembranças do menino poderiam se impor à consciência sem distorções, sem toda a montagem alucinatória, o que não é o caso. Estamos, sim, diante de um processo que descreve o acesso ao sistema Cs. a partir da instância Ics. Logo, as lembranças suprimidas, unterdrückten, do exemplo não são de maneira nenhuma inconscientes apenas no sentido descritivo, mas sim nos sentidos sistemático e dinâmico, conclusão que enfraquece a argumentação de Laplanche e Pontalis, para os quais somente o termo Verdrängung seria usado para falar do que ocorre entre as instâncias Pcs./Cs. e Ics.

Pelo apresentado acima, no que se refere ao percurso pela Interpretação dos sonhos, resta ponderar que a discriminação clara entre Verdrängung e Unterdrückung se torna simplesmente insustentável ou no mínimo bastante questionável. Vejamos o que podemos apreender a partir da leitura do livro sobre os chistes.

O livro dos chistes

Em O chiste e sua relação com o inconsciente, predomina de modo incomum a palavra Unterdrückung em comparação a Verdrängung, que aparece no texto pela primeira vez passadas mais de cem páginas, já no capítulo III. Para ser mais exato, Verdrängung e seus derivados aparecem 17 vezes em todo o texto, enquanto Unterdrückung aparece 30. Ora, isso pode não significar absolutamente nada, já que o número de ocorrências de um vocábulo na pena de um autor não basta para esclarecer sua importância num texto ou numa obra. Porém, o exame do enredamento contextual no qual tais vocábulos aparecem sugere fortemente que seus usos são perfeitamente intercambiáveis.

Antes de ir aos trechos nos quais tal uso alternado se verifica, vale a pena comentar algumas passagens em que só há menção a Unterdrückung, porém remetendo a sentidos que alguns comentadores insistiram serem exclusivos de Verdrängung.

Logo no início do texto, há o famoso exemplo do chiste “R. me tratou como um semelhante, de modo bem familionário”, que poderia perder seu valor, dado seu caráter fictício9 9 O chiste é de Hirsch-Hyacinth, personagem criado por Heine, um dos escritores prediletos de Freud. , não fosse a importância das conclusões que Freud tirou a partir dele. Segundo Freud, para entendermos o sentido desse chiste, teríamos que imaginar primeiramente que duas linhas de pensamento estariam em jogo simultaneamente10 10 Primeira linha: “R. me tratou de modo bem familiar”; segunda linha: “isto é, até onde um milionário é capaz de fazê-lo”. , porém de forma conflitante:

Consideremos agora uma força de compressão [zusammendrängende Kraft] atuando sobre essas frases, e suponhamos que a segunda é, por alguma razão, a menos resistente. Esta é então forçada a desaparecer, e seu componente mais significativo, a palavra “milionário”, conseguindo resistir à pressão [Unterdrückung], é como que espremido na primeira frase”. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 31)

Na sequência, Freud (1905/2017)Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905). afirma que esse é um exemplo de chiste cuja técnica poderia ser denominada de “condensação com formação substitutiva” (p. 32) - condensação exatamente equiparável àquela já discutida na Interpretação dos sonhos, tributária, portanto, dos processos primários dominantes no sistema Ics. Tal como em outra condensação criada por Heine, Freud conclui que familionário “dá expressão a um pensamento acessório suprimido [unterdrückten]” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 33).

Diversas passagens subsequentes atestam essa proximidade entre Unterdrückung e o processo primário denominado condensação. Nelas, apesar de o termo Verdrängung não ser mencionado, as ideias que o próprio campo psicanalítico absorveu e tem propagado como relacionadas somente a ele se apresentam de forma muito clara, porém atreladas ao termo Unterdrückung e seus derivados.

Temos outro exemplo quando Freud afirma que as piadas de baixo calão - assim como os chistes obscenos - extraem seu prazer de rir das fontes sexuais infantis, mais precisamente o prazer de ver, de tocar, de desnudar-se, exibir-se etc. Freud aí afirma: “quando o germe dessa inclinação [ao autodesnudamento] não teve o habitual destino do soterramento [Überlagerung] e supressão [Unterdrückung], ela se torna em homens adultos a perversão conhecida como impulso ao exibicionismo” (1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 141).

O que seria tal supressão senão o que em geral se convencionou denominar de recalque, aquilo que faz das neuroses o negativo das perversões? Cabe informar que, no parágrafo anterior, Freud já indicara ao leitor que sua base para tais afirmações pode ser encontrada em outro texto, cuja publicação é contemporânea ao que trata dos chistes - a saber, os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade -, em que o mesmíssimo processo é discutido diversas vezes, porém em geral ancorado no vocábulo Verdrängung11 11 O que não impede que também nos Três ensaios sejam encontradas passagens como: “A psiconeurose também se acompanha frequentemente da inversão manifesta; nesse caso, a corrente heterossexual sucumbiu à plena repressão [Unterdrückung]” (Freud, 1905/2018, p. 64); ou, ainda, e de forma mais explícita ao discutir o polêmico tema da gênese da homossexualidade: “Trata-se de raízes inatas, constitucionais, do instinto sexual, que numa série de casos se desenvolvem até se tornarem os autênticos veículos da atividade sexual (perversões), e outras vezes sofrem uma supressão (repressão) insuficiente [eine ungenügende Unterdrückung (Verdrängung)]” (Freud, 1905/2018, pp. 71-72). Como bem observaram os tradutores, “os dois termos são, aqui, explicitamente usados como sinônimos” (Freud, 1905/2018, p. 72). .

Ainda no que tange às piadas de baixo calão ou aos chistes obscenos, Freud aponta que a barreira social erguida, especialmente perante as mulheres, em assuntos sexuais seria o grande obstáculo a ser contornado pelas técnicas dos chistes:

Ao poder que dificulta ou impossibilita à mulher, e em menor medida também ao homem, fruir a franca obscenidade, chamamos “repressão” [Verdrängung], e reconhecemos nele o mesmo processo psíquico que, em doenças graves, mantém distantes da consciência complexos emocionais inteiros e seus derivados, e que se revelou como um fator principal de causação nas chamadas neuroses psíquicas. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 145)

Percebe-se que a argumentação freudiana deixa pouca margem para duvidar que o “poder” referido no início da citação consiste numa força censora cuja origem não é outra senão a esfera dos costumes, a ordem moral vigente numa dada época, num dado lugar. A despeito disso, contrariando a tendência dos comentadores citados na introdução acima de reservar o termo Unterdrückung para referir-se a essa dimensão mais externa, Freud utiliza aqui Verdrängung. E prossegue:

Atribuímos à cultura refinada e à elevada educação uma grande influência no desenvolvimento da repressão [Verdrängung] . . . . O trabalho de repressão da cultura [Verdrängungsarbeit der Kultur] faz com que se percam possibilidades primárias de prazer, agora repudiadas [verworfene] em nós pela censura. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., pp. 145-146)

Fica difícil, diante de citações com essa, defender que haja uma relação mais íntima entre, por um lado, Unterdrückung e coerção externa e, por outro, Verdrängung e coerção intrapsíquica. Em vez disso, os textos freudianos dão sinais explícitos de que tanto Unterdrückung pode servir para indicar processos intrapsíquicos quanto Verdrängung pode perfeitamente servir para tratar de tensões entre o sujeito e seu ambiente social12 12 O que se afina com a posição de Boag (2010). Não bastasse isso, há ainda o acréscimo de um terceiro termo, verworfene, aqui nitidamente tratado como pertencendo à mesma “trama enfática” (Hanns, 1999, 2004) que Verdrängung, mas que, cabe lembrar, tem sido consagrado especialmente na tradição lacaniana como algo radicalmente diverso dela. .

Cabe reconhecer que a suposta relação mais íntima entre Unterdrückung e a pressão social aparece, sim, em alguns pontos da obra, como quando Freud se põe a tratar dos chistes cínicos, cujo alvo privilegiado seria a instituição do casamento, aquela “rigorosamente protegida pelos preceitos morais, e ao mesmo tempo tão convidativa ao ataque” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 159). Freud parece encontrar uma razão para tamanha inclinação a troçar sobre ela: “nenhuma exigência é mais pessoal que a da liberdade sexual, e em nenhuma área a cultura exerceu repressão [Unterdrückung] maior que no âmbito da sexualidade” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 159). Vê-se que, tanto nessa quanto na citação acima, Freud trata exatamente da mesma coisa - a saber, do peso que a pressão externa, oriunda dos costumes, exerce sobre nossa psique -, porém recorrendo primeiro a Verdrängung, depois a Unterdrückung.

Na parte II do livro, Freud (1905/2017)Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905). discute duas diferentes condições responsáveis pelo prazer nos chistes tendenciosos: a saber, os que visam driblar obstáculos externos e os casos mais complexos nos quais se faz necessário vencer barreiras internas, “quando uma força interior [ênfase adicionada] se contrapõe à tendência” (p. 169). Examinando a segunda situação, Freud afirma:

Com isso torna-se possível, como no caso do obstáculo externo, a satisfação da tendência, evita-se uma repressão [Unterdrückung] e o ‘represamento psíquico’ ligado a esta; o mecanismo de desenvolvimento do prazer seria, nessa medida, o mesmo nos dois casos. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 169)

Ora, está claro que Freud está aqui tratando de um mecanismo de defesa intrapsíquico ao qual se atribuía, desde a época dos Estudos sobre histeria, a culpa pelo estrangulamento dos afetos - ou, como aqui consta, o “represamento psíquico” -, para os quais se apostava no método catártico como fonte de alívio.

Chegando à metade do livro, Freud tece uma interessante discussão sobre o peso que a educação lógico-formal exerce sobre o prazer com o absurdo típico da infância. Os jogos de palavras, fontes de tanto prazer, são forçados a ceder espaço ao pensamento sério, cuja amarração lógica reforçada pelas instituições escolares é sentida como desprazer. Isso se acentua progressivamente ao longo de toda a educação formal. Nesse ponto, Freud (1905/2017)Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905). faz uma referência especial ao estudante universitário, com sua peculiar tendência às bravatas e a todas as formas de rebelião contra a “coerção do pensamento e da realidade, cujo domínio sobre ele é experimentado como cada vez mais intolerante e irrestrito” (p. 180).

Somam-se a isso comentários sobre o discurso bêbado [Bierschwefels] e o “jornal de boteco” [Kneipezeitung] - algo próximo da nossa famosa happy hour -, que comumente ocorrem após as demasiadamente sérias conferências acadêmicas. Segundo Freud,

Bierschwefel e Kneipezeitung13 13 Em alemão, na tradução aqui utilizada. são palavras a testemunhar que a crítica, que reprimiu [Verdrängt] o prazer com o absurdo, se tornou tão forte que já não pode ser deixada momentaneamente de lado sem algum auxílio tóxico.... O ânimo eufórico, seja endógeno ou toxicamente produzido, diminui as forças inibidoras [hemmenden Kräfte] - a crítica entre elas - e torna novamente acessíveis fontes de prazer sobre as quais pesava a repressão [Unterdrückung]. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 181)

Apesar de os tradutores terem usado aqui a mesma palavra, repressão, na segunda e na última linha, cabe notar que Freud utiliza primeiro Verdrängt e depois Unterdrückung para falar, no entanto, da mesmíssima coisa. Mas os tradutores parecem não ter cometido aqui nenhum “crime”; ao contrário: a verdade é que estamos diante de uma bela demonstração do uso indiscriminado dos dois termos num mesmo parágrafo. Teríamos aqui, além disso, mais um plus para fortalecer a trama enfática (Hanns, 1999Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., 2004Hanns, L. A. (2004). Os critérios de tradução adotados. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 1, pp. 15-60). Rio de Janeiro, RJ: Imago.)14 14 Segundo Hanns (2004), tramas enfáticas são utilizadas “quando se pretende reforçar um ponto de vista . . . repetindo certas palavras mas também convocando outras que circunscrevem uma mesma ideia. Utilizam-se então termos que em determinado contexto se equivalem”; já as tramas de articulação ou processuais “articulam os termos entre si pelas diferenças de sentido (portanto, inversamente às tramas enfáticas organizadas pela semelhança)” (pp. 17-18). com a inclusão das “forças inibidoras”, hemmenden Kräfte, outra expressão que Freud encontra para falar do mesmo peso da “crítica”.

No capítulo IV, há outro trecho que, a princípio, soaria favorável aos que advogam a favor da clara diferenciação entre Unterdrückung e Verdrängung. A partir dele, poder-se-ia apontar que Verdrängung seria um tipo específico - “o de maior alcance” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 191) - de Unterdrückung. Assim, tal passagem poderia ser usada para respaldar a posição de Laplanche e Pontalis (2000Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2000). Vocabulário de psicanálise (P. Tamen, trad., 3a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.), para os quais refoulement seria uma modalidade especial de répression15 15 Lembrando que para Laplanche e Pontalis refoulement designa Verdrängung e répression designa Unterdrückung. .

No entanto, na continuidade do mesmo parágrafo, verifica-se que o termo Verdrängung volta a ser substituído fluidamente por Hemmung e, novamente, Unterdrückung. Vale a pena citar na íntegra a passagem:

Entre os tipos de inibição interna [innerlichen Hemmung] ou supressão [Unterdrückung], um será particularmente interessante para nós, pois é o de maior alcance; ele é designado pelo nome “repressão” [“Verdrängung”] e reconhecido por sua função de impedir que cheguem à consciência as emoções a ele submetidas e também os derivados delas. Veremos que o próprio chiste tendencioso consegue liberar prazer dessas fontes submetidas à repressão [Verdrängung]. Se a superação de obstáculos externos pode ser referida às inibições e repressões internas [innerer Hemmungen und Verdrängungen] do modo como indicamos acima, pode-se dizer que o chiste tendencioso exibe da maneira mais clara, entre todos os estágios de desenvolvimento do chiste, a principal característica do trabalho do chiste: liberar prazer pela eliminação de inibições [Hemmungen]. Ele fortalece as tendências a serviço das quais se coloca, proporcionando-lhes o auxílio de impulsos que eram mantidos suprimidos [unterdrückt] ou simplesmente se colocando a serviço de tendências suprimidas [unterdrückter]”. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., pp. 191-192)

Mais uma vez temos aqui um ótimo exemplo de uma trama enfática (Hanns, 1999Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., 2004Hanns, L. A. (2004). Os critérios de tradução adotados. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 1, pp. 15-60). Rio de Janeiro, RJ: Imago.). É curioso que mesmo após dar um destaque à palavra Verdrängung, colocando-a entre aspas e num patamar especial, nos parágrafos imediatamente subsequentes o que encontramos estendendo a discussão é quase predominantemente Unterdrückung:

Há uma emoção ou impulso que gostaria de liberar prazer de uma determinada fonte . . .; além disso, há um outro impulso que se contrapõe a essa emergência de prazer, inibindo-a ou reprimindo-a [sie also hemmt oder unterdrückt]. Como mostra o resultado, a força repressiva [unterdrückende Strömung] tem de ser em certo grau mais forte que a reprimida [unterdrückte], que com isso, todavia, não é removida. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., pp. 193-194)

Suponhamos agora que entre em cena um segundo impulso . . . que opera no mesmo sentido que o reprimido [unterdrückten]. . . . Suponhamos a possibilidade . . . de liberar prazer de outras fontes que não sejam bloqueadas pela mesma repressão [Unterdrückung]. . . . Nossa experiência com os chistes tendenciosos mostra que, em tais circunstâncias, a tendência reprimida [unterdrückte Tendenz] pode, com a ajuda do prazer chistoso, receber a força para superar a inibição [Hemmung] que, de outro modo, é mais forte que ela. . . . Mas a gratificação obtida não é apenas aquela que o chiste proporciona; é incomparavelmente maior, é tão maior que o prazer do chiste que nos leva a supor que a tendência antes reprimida [unterdrückten] conseguiu emergir, talvez sem nenhuma perda. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., pp. 194-195)

Talvez possamos, pela investigação das condições do riso, formar uma ideia mais viva de como o chiste coopera para romper a repressão [Unterdrückung]. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 195)

Podemos enunciar agora a fórmula do funcionamento do chiste tendencioso: usando o prazer prévio que é proporcionado pelo prazer do chiste, ele se coloca a serviço de tendências, a fim de, eliminado supressões e repressões [durch die Aufhebung von Unterdrückungen und Verdrängungen], produzir um novo prazer. (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 195)

Cabe aqui um pedido de desculpas ao leitor pelo conjunto de citações demasiado longo e recortado, o qual, aliás, ainda poderia ser esticado por mais uma página, se incluíssemos o fim do parágrafo que aqui abandonamos, bem como a nota de rodapé n° 47, na qual o assunto prossegue exatamente na mesma direção. Entendemos que, rigorosamente falando, tal estratégia de exposição chega mesmo a prejudicar o sentido da argumentação de Freud a respeito do papel dos chistes na economia psíquica. Para apreender tal sentido, não há outro caminho senão ir direto ao texto freudiano. Porém, cabe lembrar que nossa meta consiste apenas em indicar aqui a presença marcante da palavra Unterdrückung - bem como da Hemmung, em menor medida - em meio a uma discussão que, por um momento, procurou - não se pode perder isso de vista - colocar em destaque o termo Verdrängung.

Como sustentar que Unterdrückung concerne apenas a processos que ocorrem entre os sistemas Cs. e Pcs. quando tantas passagens evidenciam exaustivamente a participação fundamental da palavra na formação, por exemplo, dos chistes - que, como diz o próprio título do livro de Freud, tem íntimas relações com o sistema Ics. e seus processos primários? A verdade é que tudo se passa como se o estabelecimento de uma distinção clara entre Verdrängung e Unterdrückung fosse a última das preocupações de Freud. Caberia perguntar: alguém estranharia se em todos os colchetes destacados nas citações acima constasse Verdrängung e seus derivados? Cremos que não.

Prosseguindo na leitura, no capítulo VII, Freud ensaia uma aproximação entre o humor, o chiste e o cômico. Afirma que “o humor é, afinal, um meio de adquirir prazer apesar dos afetos dolorosos que o dificultam” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 323). Para que tal prazer seja alcançado, há que se dar um destino aos afetos dolorosos misturados à situação. Mais detalhadamente, Freud pensa aqui em situações nas quais “por força de nossos hábitos, somos tentados a liberar um afeto doloroso, mas outras motivações agem então sobre nós, reprimindo [unterdrücken] esse afeto in statu nascendi” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., pp. 323-324).

Aqui ter-se-ia uma diferença não só econômica, mas fundamentalmente dinâmica entre humor e comicidade, pois “a pessoa atingida pelo dano, pela dor etc. adquire prazer humorístico, ao passo que a não envolvida ri de prazer cômico” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 324). A dimensão conflitiva estaria presente, então, apenas em quem vivencia o humor, não em quem ri às gargalhadas e não precisa se ocupar em combater os afetos desprazerosos. Concluindo, Freud diz que “o prazer do humor surge então - não podemos dizer outra coisa - à custa dessa liberação reprimida de um afeto [unterbliebenen Affektentbindung]; ele brota de um gasto afetivo economizado” (Freud, 1905/2017Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 324)16 16 Grifo do tradutor; no original esse trecho não está em destaque. .

Duas coisas chamam a atenção nessa passagem: a primeira e mais evidente é a inclusão de outra expressão, unterbliebenen, à qual Freud recorre para transmitir suas ideias quanto à dinâmica intrapsíquica em jogo na produção do humor. Seria mais uma expressão, certamente menos utilizada, a compor a trama enfática (Hanns, 1999Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., 2004Hanns, L. A. (2004). Os critérios de tradução adotados. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 1, pp. 15-60). Rio de Janeiro, RJ: Imago.) referente ao processo defensivo tradicionalmente referenciado por Verdrängung. A segunda observação diz respeito exatamente a essa impressão de que não há forma de avaliar todo o fenômeno aqui discutido por Freud sem destacar justamente a dimensão intrapsíquica. Afinal, é o próprio sujeito, forçado pelos próprios hábitos, por tudo aquilo que constitui sua realidade psíquica e que regula sua descarga motora, que precisa lutar contra as próprias dores e, assim, alcançar algum prazer possível mesmo nas situações mais difíceis.

Isso mostra o quanto o termo Unterdrückung pode, sim, vez ou outra - melhor dizendo, inúmeras vezes -, ser encontrado como perfeito equivalente de Verdrängung.

Considerações finais

Uma última provocação antes de encerrarmos: o próprio Lacan contribuiu significativamente para o debate que aqui nos ocupou; em O seminário, livro 5, ao comentar o exemplo freudiano do esquecimento do nome Signorelli, referindo-se à:

nuance que podemos estabelecer entre o unterdrückt, de um lado, e o verdrängt, de outro. Enquanto o unterdrückt só precisa se dar de uma vez por todas . . . é de outra coisa que se trata quando o Signor é mantido no circuito sem poder entrar nele por algum tempo. Convém realmente admitirmos o que Freud admite, ou seja, a existência de uma força especial que o mantém assim, isto é, uma efetiva Verdrangung. (Lacan, 1957-1958/1999Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5 - as formações do inconsciente (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958)., p. 45)

Do que se poderia concluir tratar-se, então, de uma trama de articulação ou processual (Hanns, 1999Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., 2004Hanns, L. A. (2004). Os critérios de tradução adotados. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 1, pp. 15-60). Rio de Janeiro, RJ: Imago.) envolvendo os dois termos, o que pode ter colaborado para se amplificar na posteridade os esforços no sentido de manter ampla distância entre eles. Porém, duas páginas antes, Lacan afirma haver:

duas palavras com que Freud joga de maneira ambígua. A primeira é esse unterdrückt, que já lhes traduzi por caído nas profundezas. A segunda é verdrängt.... O Herr [ênfase adicionada] foi de fato pronunciado, num momento particularmente significativo... como representante da morte que, nessa ocasião, está unterdrückt [ênfase adicionada]. (Lacan, 1957-1958/1999Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5 - as formações do inconsciente (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958)., p. 43)

Vê-se aqui que Lacan faz uma enriquecedora discussão sobre os diferentes planos em que se encontram Herr e Signor no exemplo freudiano, reservando ao primeiro o destino de Unterdrückung e ao segundo o de Verdrängung, sem, no entanto, desconhecer que o uso de ambos os termos por Freud não deixa de ser ambíguo.

Esse acréscimo de Lacan certamente possibilitou ao campo psicanalítico dar outro alcance ao próprio texto freudiano e às próprias ideias de Freud, o que não nos autoriza a afirmar que tal entendimento é evidente no texto de Freud. Em vez disso, entendemos que tais acréscimos, a exemplo do que discrimina os termos Verdrängung e Unterdrückung, tão somente revelam o gênio criativo de Lacan, que, tal como muitos outros autores pós-freudianos, soube tirar proveito da psicanálise, reinventando-a ao seu próprio modo, enriquecendo-a progressivamente.

Não é o mesmo espírito que parece mover boa parte do campo psicanalítico, mais ocupada com disputas identitárias/institucionais - para não mencionar o “narcisismo das pequenas diferenças” (Freud, 1917/2013Freud, S. (2013). O tabu da virgindade. In Obras completas: observações sobre um caso de neurose obsessiva (“o homem dos ratos”), uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-1910) (P. C. Souza, trad., Vol. 9, pp. 364-387). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)., p. 374), aquele que não raro transborda nos diálogos acadêmicos.

Dados os limites deste artigo, optou-se aqui pelo aprofundamento em poucas obras em vez do sobrevoo superficial por várias. Porém, no decorrer da escrita, diversas leituras paralelas corroboraram a ideia aqui defendida quanto à predominante intercambialidade entre Verdrängung e Unterdrückung na obra de Freud, que está presente em vários textos de diferentes épocas. Isso nos sugere que boa parte do debate sobre suas traduções poderia simplesmente não existir! Afinal, tal discussão estaria fundamentada numa separação radical, porém equivocada, entre os dois termos.

O estudo aqui apresentado sugere que o sentido do que se lê em Freud deve pautar-se mais no fluxo textual do que nas definições supostamente bem demarcadas dos termos. Com o que se desenvolveu até aqui, resta repetir a conclusão de Souza: “a oposição Verdrängung-Unterdrückung não se acha tão claramente demarcada por Freud” (1999Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática., p. 113). Ou, mais extensamente:

Não quero afirmar que a distinção não seria útil; apenas procuro demonstrar que o uso freudiano não é tão coerente como desejariam muitos dos seus estudiosos e talvez essa ânsia de coerência implique um wishful thinking, um raciocínio influenciado pelo desejo de que tudo seja inequívoco, de que os fragmentos se encaixem como num quebra-cabeça. É possível que haja um ganho teórico em se fazer tal distinção, mas ela não aparece nítida nos textos de Freud. (Souza, 1999Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática., pp. 113-114)

Considerando que, segundo Hanns (1999Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), na obra de Freud um mesmo conjunto de termos pode compor ora tramas enfáticas - “momentos em que o texto freudiano se refere a tendências gerais . . . onde predomina uma ideia-força” - ora tramas de articulação ou processuais - “momentos em que o autor detalha processos específicos . . . onde predominam descrições de mecanismos” (p. 25), entendemos que Verdrängung e Unterdrückung compõem muito mais tramas enfáticas do que de articulação. Mesmo os pontos em que Freud parece articulá-los em tramas processuais - como quando sugere, no livro dos sonhos, haver maior relação entre Verdrängung e Ics., ou quando, no livro dos chistes, afirma ser Verdrängung um caso especial de Unterdrückung - não parecem suficientes para ofuscar as evidências em sentido contrário. Ainda segundo Hanns (1999)Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., “haveria uma suposta diferenciação freudiana entre ‘repressão’ (Verdrängung) e ‘supressão’ (Unterdrückung), entretanto, se esta em certos momentos é feita por Freud em outros trechos da obra é deixada de lado [ênfase adicionada]” (p. 203). É o que procuramos demonstrar neste estudo.

Referências

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  • Freud, S. (2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. In Obras completas: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905) (F. C. Mattos & P. C. Souza, trads., Vol. 7, pp. 13-334). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905).
  • Freud, S. (2018). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905) (P. C. Souza, trad., Vol. 6, pp. 13-172) São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905).
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  • Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2000). Vocabulário de psicanálise (P. Tamen, trad., 3a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática.
  • 1
    “‘Repressão’ alude à exclusão para o inconsciente, enquanto ‘Supressão’ indica o ato de manter algo no pré-consciente” (Mezan, 1987 citado por Souza, 1999Souza, P. C. (1999). As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, SP: Ática., p. 110).
  • 2
    Há aqui um problema: se recalque equivale a Verdrängung e supressão, a Unterdrückung, qual termo alemão equivaleria à palavra repressão?
  • 3
    Os termos em alemão presentes nas citações, indicados entre colchetes, referem-se às expressões originais localizadas nas obras de Freud (1948Freud, S. (1948). Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussen. In Gesammelte Werke, chronologisch geordnet (Vol. VI, pp. 1-269). London: Imago Publishing. (Trabalho original publicado em 1905)., 1961Freud, S. (1961). Die Traumdeutung. In Gesammelte Werke, chronologisch geordnet - die Traumdeutung, Über den Traum (Vols. II/III, pp. 513-626). Frankfurt: S. Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1900)., 1968Freud, S. (1968). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke, chronologisch geordnet - Werke aus den Jahren 1904-1905 (Vol. V, pp. 27-145) Frankfurt: S. Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1905).).
  • 4
    A tradução mais exata aqui seria “tais desejos suprimidos”, e não simplesmente “impulsos”.
  • 5
    Incomum esta opção da edição standard brasileira de traduzir Unterdrückter por recalcado. Seja lá qual for a razão (desatenção fisiológica? lapso de escrita? má-fé?), é a segunda supressão (!) de Unterdrückung no mesmo parágrafo.
  • 6
    Tal aproximação se fortalece ainda mais em todo o parágrafo seguinte, que só não é aqui transcrito por razões de espaço. Apenas para dar uma ideia: nele, Verdrängung e seus correlatos aparecem três vezes, o mesmo ocorrendo com Unterdrückung.
  • 7
    Afinal, sua frase foi “omiti declarar se atribuo”, e não “que atribuo sentidos diferentes”.
  • 8
    Por representações-meta deve-se entender aquelas representações que norteiam o fluxo associativo, dando a ele uma direção ora mais, ora menos, porém sempre determinada.
  • 9
    O chiste é de Hirsch-Hyacinth, personagem criado por Heine, um dos escritores prediletos de Freud.
  • 10
    Primeira linha: “R. me tratou de modo bem familiar”; segunda linha: “isto é, até onde um milionário é capaz de fazê-lo”.
  • 11
    O que não impede que também nos Três ensaios sejam encontradas passagens como: “A psiconeurose também se acompanha frequentemente da inversão manifesta; nesse caso, a corrente heterossexual sucumbiu à plena repressão [Unterdrückung]” (Freud, 1905/2018Freud, S. (2018). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905) (P. C. Souza, trad., Vol. 6, pp. 13-172) São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 64); ou, ainda, e de forma mais explícita ao discutir o polêmico tema da gênese da homossexualidade: “Trata-se de raízes inatas, constitucionais, do instinto sexual, que numa série de casos se desenvolvem até se tornarem os autênticos veículos da atividade sexual (perversões), e outras vezes sofrem uma supressão (repressão) insuficiente [eine ungenügende Unterdrückung (Verdrängung)]” (Freud, 1905/2018Freud, S. (2018). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905) (P. C. Souza, trad., Vol. 6, pp. 13-172) São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., pp. 71-72). Como bem observaram os tradutores, “os dois termos são, aqui, explicitamente usados como sinônimos” (Freud, 1905/2018Freud, S. (2018). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905) (P. C. Souza, trad., Vol. 6, pp. 13-172) São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 72).
  • 12
    O que se afina com a posição de Boag (2010Boag, S. (2010). Repression, supression and conscious awareness. Psychoanalytic Psychology, 27(2), 164-181. doi: 10.1037/a0019416
    https://doi.org/10.1037/a0019416...
    ). Não bastasse isso, há ainda o acréscimo de um terceiro termo, verworfene, aqui nitidamente tratado como pertencendo à mesma “trama enfática” (Hanns, 1999Hanns, L. A. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., 2004Hanns, L. A. (2004). Os critérios de tradução adotados. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 1, pp. 15-60). Rio de Janeiro, RJ: Imago.) que Verdrängung, mas que, cabe lembrar, tem sido consagrado especialmente na tradição lacaniana como algo radicalmente diverso dela.
  • 13
    Em alemão, na tradução aqui utilizada.
  • 14
    Segundo Hanns (2004Hanns, L. A. (2004). Os critérios de tradução adotados. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 1, pp. 15-60). Rio de Janeiro, RJ: Imago.), tramas enfáticas são utilizadas “quando se pretende reforçar um ponto de vista . . . repetindo certas palavras mas também convocando outras que circunscrevem uma mesma ideia. Utilizam-se então termos que em determinado contexto se equivalem”; já as tramas de articulação ou processuais “articulam os termos entre si pelas diferenças de sentido (portanto, inversamente às tramas enfáticas organizadas pela semelhança)” (pp. 17-18).
  • 15
    Lembrando que para Laplanche e Pontalis refoulement designa Verdrängung e répression designa Unterdrückung.
  • 16
    Grifo do tradutor; no original esse trecho não está em destaque.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2020
  • Revisado
    21 Mar 2022
  • Aceito
    30 Mar 2023
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