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Notas para uma contribuição à historiografia psicanalítica

Notes for a contribution to psychoanalytic historiography

Notes pour une contribution à l’historiographie psychanalytique

Notas para una contribución a una historiografía psicoanalítica

Resumo

Este artigo propõe uma contribuição à historiografia psicanalítica. Para isso, retomamos o texto que consideramos fundador desse campo de debates, A história do movimento psicanalítico, publicado por Freud em 1914, para nele encontrarmos as primeiras pistas de como operar na interface entre psicanálise e história. A partir desse texto inaugural, dedicamo-nos aos estudos de alguns psicanalistas e historiadores que pensaram o enlace entre psicanálise e história, a fim de encontrarmos convergências e divergências sobre o fazer do psicanalista historiador. Por fim, propomos três eixos para uma historiografia psicanalítica, articulados em torno dos conceitos só depois, das Ding e verdade histórica. A partir dessa reflexão de cunho historiográfico, esperamos ser possível pensar de outros modos a história do movimento psicanalítico.

Palavras-chave:
psicanálise; história; só depois; das Ding; verdade histórica

Abstract

This article proposes a contribution to psychoanalytic historiography by revisiting Freud’s founding texts, The history of the psychoanalytic movement, published in 1914, searching in it for the first clues on how to operate at the interface between psychoanalysis and history. From this inaugural text, the paper examines some psychoanalysts and historians who investigated the link between psychoanalysis and history, to find convergences and divergences on the practice of the psychoanalytic historian. Lastly, it proposes three axis for a psychoanalytic historiography, articulated around the concepts of afterwardsness, das Ding and historical truth. This historiographic reflection seeks to show different ways of thinking the history of the psychoanalytic movement.

Keywords:
psychoanalysis; history; afterwardsness; das Ding; historical truth

Résumé

Cet article propose une contribution à l’historiographie psychanalytique en revisitant le text fondateur de Freud, L’histoire du mouvement psychanalytique, publié en 1914, en y cherchant les premiers indices sur la manière de travailler dans l’interface entre psychanalyse et histoire. À partir de ce texte inaugural, l’article examine quelques psychanalystes et historiens qui ont investigué le lien entre psychanalyse et histoire, pour trouver des convergences et des divergences sur la pratique de l’historien psychanalyste. Enfin, il propose trois axes pour une historiographie psychanalytique, articulés autour des concepts d’après-coup, de das Ding et de vérité historique. Cette reflexión historiographique cherche à montrer différentes manières de penser l’histoire du mouvement psychanalytique.

Mots-clés :
psychanalyse; histoire; après-coup; das Ding; vérité historique

Resumen

Este artículo propone una contribución a una historiografía psicoanalítica. Para ello, consideramos como fundador de ese campo de debate el texto Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico, de Freud publicado en 1914, y lo utilizamos para encontrar las primeras pistas de cómo operar la interfaz entre psicoanálisis e historia. A partir de ese texto inaugural, nos dedicamos a los estudios de algunos psicoanalistas e historiadores que pensaron el enlace entre psicoanálisis e historia para analizar las convergencias y divergencias sobre el hacer del psicoanalista historiador. Por último, proponemos tres ejes para una historiografía psicoanalítica articulados en torno a los conceptos efecto retardado, das Ding y verdad histórica. Con esta reflexión historiográfica, esperamos poder pensar la historia del movimiento psicoanalítico de otra forma.

Palabras clave:
psicoanálisis; historia; efecto retardado; das Ding; verdad histórica

Introdução

Na literatura psicanalítica, há diversas obras que se dedicam ao estudo da história da psicanálise, com o intuito de delimitar aquilo que lemos na teoria. Evidentemente, todas elas são tributárias do texto fundador desse debate.

Em A história do movimento psicanalítico, Freud (1914/1996)Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 15-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914), ao comentar os acontecimentos que levaram às dissidências de Adler e Jung, aponta para a importância de uma retomada histórica na psicanálise. Logo na primeira frase, o autor pontua: “não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me proponho a trazer à história do movimento psicanalítico ...” (p. 18). O lugar de Freud como fundador dessa perspectiva serve como bússola para o caminho que nos propomos a trilhar: uma historiografia psicanalítica é estampada de um caráter subjetivo, isto é, vai além de uma suposta objetividade dos fatos.

No texto, fica clara a intenção freudiana de que a psicanálise ultrapassasse a perspectiva neurológica, podendo despontar - conforme ocorreu - como uma teoria do subjetivo, tanto no que concerne a seu objeto - o inconsciente - quanto a seu sujeito, movido por desejos que desconhece. Freud reconhece que a tese da etiologia sexual da histeria, que tomou como original por um determinado período, foi escutada por ele de três pessoas diferentes: Breuer (médico e fisiologista), Charcot (médico e cientista) e Chrobak (ginecologista), ficando adormecida em sua memória para que, só depois, retornasse como uma ideia original - e a originalidade estava em elevar essa ideia a um estatuto de teoria.

Freud (1914/1996)Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 15-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914) conta como se deu a passagem da teoria da sedução para a teoria da fantasia, ao se decantarem os resíduos das histórias narradas pelas pacientes histéricas. É nesse momento que o fundador da psicanálise afirma que “... os investigadores geralmente encontram mais do que procuram” (p. 29). Este mais seria aquilo que se encontra para além do objetivamente narrado? Concerne ao desejo do pesquisador, à medida que inconsciente? Nesse trabalho, escrito com o intuito de delinear os primórdios da história da psicanálise, Freud aponta para a origem mítica do movimento: “seja como for, não tem grande importância que a história da psicanálise seja considerada como tendo início com o método catártico ou com a modificação que nele introduzi ...” (Freud, 1914/1996Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 15-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914), p. 19). Os primórdios dessa abordagem são interminavelmente impossíveis de serem delimitados.

Neste artigo, A história do movimento psicanalítico é compreendida como instauradora de discursividade (Foucault, 1969/2001Foucault, M. (2001). O que é um autor? In M. Foucault, Estética: Literatura e pintura, música e cinema (M. B. Motta, org., I. Barbosa, Trad., pp. 264-298). Rio de Janeiro, RJ: Forense . (Trabalho original publicado em 1969)) no domínio de uma historiografia psicanalítica. Isso implica pensar o retorno a Freud como possibilidade de disparar novas leituras, no que concerne à história da psicanálise. Dito de outro modo, interessam-nos algumas pistas historiográficas deixadas pelo texto freudiano (a incontornável marca, nas pesquisas, de uma subjetividade singular, uma temporalidade retroativa, a ideia de um saber inconsciente do pesquisador, o conceito de que as origens são sempre míticas etc.) e não a adesão dogmática a suas proposições.

Por exemplo, o postulado de que Breuer não aceitava a etiologia sexual das neuroses é contestado, dentre outros, por Roudinesco e Plon (1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise (V. Ribeiro & L. Magalhães, trads.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .): “sem desconhecer os progressos de Freud e sem negar principalmente a importância do papel da sexualidade na gênese da neurose, não compartilhava sua posição sobre a sedução e não separava a psicologia da fisiologia” (p. 94). Em A história do movimento psicanalítico, Freud, ao mesmo tempo que, retroativamente, insere Breuer na mesma série que Adler e Jung, atribui também a ele o fato de ter sido colocado no caminho da etiologia sexual da histeria. Uma contradição dessas é um prato cheio para psicanalistas e historiadores.

A fim de pensar uma modalidade de pesquisa histórica orientada pela psicanálise, com o intuito de inspirar outras leituras da história do movimento psicanalítico, buscamos a historiografia como uma alteridade ao nosso discurso. Por historiografia, entendemos um campo de debates acerca dos distintos paradigmas teórico-metodológicos da pesquisa histórica. Nascida, em sua versão moderna - isto é, articulada a uma pretensão de cientificidade -, com o Iluminismo, ao longo do século XIX consolida-se uma matriz historiográfica cujos ecos escutam-se ainda hoje: a positivista (Barros, 2011Barros, J. (2011). Considerações sobre o paradigma positivista em história. Historiar, 4(4), 1-20.; Barros, 2014Barros, C. (2014). Oficio de historiador, ¿nuevo paradigma o positivismo? De raíz diversa: Revista especializada en estudios lationoamericanos, 1(2), 17-48. doi: 10.22201/ppela.24487988e.2014.2.58251
https://doi.org/10.22201/ppela.24487988e...
). Esquematicamente, essa matriz organiza-se em torno das seguintes premissas: “(1) a crença na possibilidade de encontrar leis naturais e invariantes para as sociedades humanas, (2) a neutralidade do cientista social, e (3) a identidade de métodos entre as ciências humanas e as ciências naturais” (Barros, 2011Barros, J. (2011). Considerações sobre o paradigma positivista em história. Historiar, 4(4), 1-20., p. 17, grifos do autor). Seu postulado fundamental afirma que “... o historiador apenas precisa esperar de suas fontes que estas deixem falar os fatos por si mesmos” (Barros, 2011Barros, J. (2011). Considerações sobre o paradigma positivista em história. Historiar, 4(4), 1-20., p. 17).

O advento do materialismo histórico, na segunda metade do século XIX, e da Escola dos Annales, na primeira metade do século XX, abre outras possibilidades de pesquisa historiográfica, nas quais a relação entre o pesquisador e suas fontes é mediada por constructos teóricos e por uma linguagem irredutível à descrição. É nesse cenário, parece-nos, que uma historiografia de inspiração psicanalítica se torna possível.

Com o objetivo de propor uma contribuição a uma possível historiografia psicanalítica, este artigo não apenas retoma o clássico freudiano de 1914, mas também procura interlocutores nos campos da psicanálise e/ou da história, isto é, textos de psicanalistas e historiadores - escolhidos a partir de nossa familiaridade com eles - que entrelaçam os dois campos. Dessas leituras, destaca-se a pluralidade de formas de operar na interface desses domínios, todas elas situadas no espectro não positivista da historiografia. Nossa contribuição a uma historiografia psicanalítica pretende se inserir nessa tradição.

Psicanálise e história: o que dizem alguns autores?

Os trabalhos posteriores ao texto freudiano mencionado acima e que articulam história e psicanálise são muitos e contam com uma grande lista de autores conceituados, desde Ernest Jones, com sua biografia de Freud, passando por Peter Gay, Emílio Rodrigué, Carlo Ginzburg, Michel de Certeau, Elisabeth Roudinesco, Paul Roazen, Renato Mezan etc. Destes autores, selecionamos como interlocutores os psicanalistas Gay, Mezan e Roudinesco, que propõem uma reflexão sobre o fazer do psicanalista historiador. A eles, acrescentamos Michel de Certeau e Carlo Ginzburg, historiadores que pensam seu ofício em diálogo com a psicanálise.

Peter Gay, historiador que se tornou psicanalista, em seu livro Freud para historiadores, afirma que os mundos dos psicanalistas e dos historiadores se mantêm separados, distanciados. O autor sugere que a intersecção entre eles se dá nas situações e nos vocabulários que os contemporâneos compartilham:

As pessoas tornam-se neuróticas, ou loucas, em uma situação específica. Nunca são assaltadas por alguma neurose geral ou fobia indefinida mas tecem seus sintomas a partir de histórias ouvidas, incidentes vistos, ansiedades sentidas, todas expressas através de um vocabulário pictórico e verbal que partilham com os seus contemporâneos mais afortunados. E tanto a situação como o vocabulário são o ingresso do historiador para entrar no mundo psicanalítico. (Gay, 1989Gay, P. (1989). Freud para historiadores (O. F. Gabbi Jr., Trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 110)

Ao longo do livro, Gay realça a importância do conhecimento psicanalítico sobre os processos inconscientes para uma produção de saber histórico: “... sua contribuição para o historiador que visa a objetividade é a de auxiliá-lo a detectar e desarmar os seus preconceitos, não de fornecê-los” (Gay, 1989Gay, P. (1989). Freud para historiadores (O. F. Gabbi Jr., Trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 119). Nesse contexto, o autor sugere que a psicanálise pode ser uma ciência auxiliar da história. Não é difícil entender como Gay articula psicanálise e história. Na perspectiva do autor, a história é uma ciência com pretensão de objetividade; do psicanalista, espera-se que aponte os limites dessa objetividade, não que aplique seus conceitos aos problemas historiográficos.

Mezan (2014Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos: Estudos de história da psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras .) dedica-se ao estudo das escolas psicanalíticas existentes, apresentando como justificativa que “[…] a psicanálise contemporânea só podia ser compreendida por meio de uma abordagem que entrelaçasse as circunstâncias factuais, o movimento das ideias e a análise epistemológica” (Mezan, 2014Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos: Estudos de história da psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras ., p. 12). O autor postula que, para um entendimento de como se organizaram as escolas psicanalíticas, se construíram seus conceitos metapsicológicos fundamentais e de como isso resultou na prática clínica atual, é preciso partir de um entrelaçamento entre metapsicologia, clínica e história:

Em suma, levar a sério a ideia de uma história, não enquanto sequência de percalços externos e mais ou menos causais, referentes apenas ao movimento psicanalítico (cisões, divergências, emigrações por motivos políticos, etc.), mas enquanto algo intrínseco ao desenvolvimento teórico da disciplina fundada por Freud. (Mezan, 2014Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos: Estudos de história da psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras ., p. 24, grifo do autor)

Roudinesco (2006Roudinesco, E. (2006). A análise e o arquivo (A. Telles, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), por sua vez, parte de uma perspectiva diferente. A autora acredita que, para que o trabalho do psicanalista historiador seja de criação, é necessária a existência de descrições e, ao mesmo tempo, a existência de lacunas:

Se tudo está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber absoluto, espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu, ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma. (Roudinesco, 2006Roudinesco, E. (2006). A análise e o arquivo (A. Telles, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 9)

Nessa perspectiva, o psicanalista historiador encontra-se em uma posição que impõe um limite ao saber absoluto. Ao mesmo tempo em que se faz necessária a existência objetiva de fatos históricos, testemunhada por meio de documentos, a história também é feita na ausência (parcial) de vestígios. Nesse sentido, o excesso de arquivo teria a função de censura, pois colocaria um ponto final em uma produção que pretende ir além do descrito. Em contrapartida, a ausência (total) de vestígios também implica um saber absoluto. Para exemplificar, Roudinesco conta como funcionam os direitos autorais dos arquivos Sigmund Freud.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o grupo britânico de psicanalistas obteve a posse dos textos de Freud e os depositou na Library of Congress, em Washington, D. C., sob a responsabilidade de Kurt Eissler. Este dividiu os arquivos de A a Z e, inicialmente, determinou que seu acesso seria restrito à International Psychoanalytical Association (IPA). Com o passar dos anos, esses arquivos se tornaram públicos, mas somente com o estabelecimento de algumas regras que impedem sua publicação imediata. Assim, os arquivos encontrados na categoria Z serão publicados até 2100. Isso se daria por serem de cunho pessoal da família Freud ou de seus pacientes, no entanto, segundo Roudinesco, nenhuma grande revelação está contida nesses documentos. A autora argumenta que, ao mesmo tempo em que o excesso de arquivo leva à censura, a não publicação de materiais existentes - ou seja, o apagamento do arquivo - leva à criação de segredos que acabam funcionando como dogmas.

Pensar a história em moldes positivistas não é mais a perspectiva de muitos historiadores. É nesse referencial que encontramos Certeau e Ginzburg. Para Michel de Certeau (1982Certeau, M. (1982). A escrita da história (M. Menezes, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense.), a palavra história pode ser entendida tanto como aquela que é contada como aquela que é feita. É nesse caminho que o historiador trabalha: ao narrar a história, ele faz história.

Nos pedaços que o imaginário de sua sociedade organiza antecipadamente ele opera deslocamentos, acrescenta outras peças, estabelece distâncias e comparações entre elas, discerne nestes indícios o vestígio de outra coisa, remete assim a uma construção desaparecida. Em suma, cria ausências. (Certeau, 1982Certeau, M. (1982). A escrita da história (M. Menezes, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense., p. 281)

A partir da análise que Freud (1923/1996)Freud, S. (1996). Uma neurose demoníaca do século XVII. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 91-133) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1923) faz em Uma neurose demoníaca do século XVII, Certeau entende que a posição do fundador da psicanálise não era a de estar diante de um documento do passado: “os documentos que lê pertencem à sua paisagem. Fazem parte do seu presente, que é um presente não analisado” (Certeau, 1982Certeau, M. (1982). A escrita da história (M. Menezes, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense., p. 259). É essa posição de Freud que confere ao manuscrito o estatuto de um documento histórico.

O autor ressalta que, para Freud, o sujeito e o social são inseparáveis, atestando a importância da pesquisa historiográfica para o fundador da psicanálise. De acordo com Certeau, a forma como a psicanálise lida com a história não é através de fatos, mas de fabricações. Movimento próximo ao do trabalho do historiador: quando este encontra explicações ou quando escreve a história, ao mesmo tempo em que a revela, a oculta, pela possibilidade de abertura de outras interpretações.

De um só golpe dá à ciência um outro objeto: o significado (o “conteúdo”) que se perde quando se elucida; o objeto, que não cessa de se perder pelo fato de ser analisado; finalmente a relação entre esta perda e as explicações (Certeau, 1982Certeau, M. (1982). A escrita da história (M. Menezes, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense., p. 265).

Nessa perspectiva, a história encontra seu sentido não nas explicações da pesquisa historiográfica, mas no próprio ato elucidativo. Escrever a história é, assim, um recomeço da própria história.

A partir da leitura do Moisés de Michelangelo, em que Freud (1914/1996)Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 15-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914) comenta o método do crítico de arte Giovanni Morelli, o historiador Carlo Ginzburg propõe o que denomina paradigma indiciário. Entre 1874 e 1876, Morelli escreve uma série de artigos com o pseudônimo de Ivan Lermolieff. Neles, propõe que, na análise de obras de grandes autores, é preciso não se basear somente nas suas características mais visíveis e marcantes - como os sorrisos de da Vinci, por exemplo - mas, sobretudo, nos detalhes, como as unhas e os lóbulos das orelhas. Este método foi muito criticado, por ser entendido como excessivamente positivista, com pitadas de Sherlock Holmes. Porém, como mostra Ginzburg (2007)Ginzburg, C. (2007). Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história (F. Carotti, Trad., pp. 143-180). São Paulo, SP: Companhia das Letras., o efeito em Freud foi outro e talvez tenha antecipado a psicanálise: era a “proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais ...” (Ginzburg, 2007Ginzburg, C. (2007). Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história (F. Carotti, Trad., pp. 143-180). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 149). E mais, com a proposta de Morelli, algo que já vinha se delineando como questão para diversas formas de investigação, da medicina às ciências humanas, torna-se evidente: a exigência de uma pesquisa que abarcasse o sujeito em sua singularidade.

Por meio de um longo caminho histórico, que vai desde as formas de adivinhação dos egípcios da antiguidade até a inclusão das digitais nas investigações criminais, Ginzburg mostra como a psicanálise faz parte de um paradigma que inclui os resíduos e as singularidades:

Uma disciplina como a psicanálise constitui-se, como vimos, em torno da hipótese de que pormenores aparentemente negligenciáveis pudessem revelar fenômenos profundos de notável alcance. A decadência do pensamento sistemático veio acompanhada pelo destino do pensamento aforismático - de Nietszche a Adorno. (Ginzburg, 2007Ginzburg, C. (2007). Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história (F. Carotti, Trad., pp. 143-180). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 178)

O autor questiona como as pesquisas que operam no registro do paradigma indiciário conseguiriam manter um rigor científico. Parece ser algo inatingível, à medida que elas abordam as singularidades daquilo que estudam - em vez de suas regularidades, objeto da ciência -, e também indesejável, uma vez que se ocupam de experiências nas quais aquilo que empresta um caráter único ao estudado é o que determina sua existência.

Seguindo esses autores, encontramos diferentes formas de articular psicanálise e história. Gay entende a psicanálise como uma disciplina auxiliar de uma história com pretensão científica; o método analítico indicaria os limites de objetividade da disciplina fundada por Heródoto. Mezan postula que uma abordagem histórica que realce as lógicas subjacentes ao registro factual pode auxiliar a psicanálise a compreender seus processos de organização de teorias e escolas. Roudinesco sugere que a pesquisa histórica faz parte dos processos de produção de conhecimento, não só na psicanálise; a partir das lacunas do arquivo, é possível a reescrita da história. Certeau e Ginzburg, nossos autores historiadores, parecem se aproximar em suas elaborações. Certeau propõe que, nos deslocamentos operados pelo historiador no imaginário de uma cultura, é possível um recomeço da história, mas não sem que se produza, simultaneamente, uma perda de sentido. Ginzburg, por sua vez, sustenta que a possibilidade de uma aproximação às singularidades se dá nos pequenos detalhes desse imaginário cultural. Através do paradigma indiciário, o sujeito singular irrompe na história. É nessa vertente plural de pesquisas que se insere nossa contribuição a uma historiografia psicanalítica.

Três eixos para pensar uma contribuição a uma historiografia psicanalítica

Entendemos que o objeto de uma pesquisa psicanalítica é sempre fugidio, inalcançável. Sendo assim, o trabalho de escrita gira em torno da tentativa de criar bordas para esse objeto, com o cuidado de nunca o encerrarmos em uma definição, impedindo a produção de diferenças. Nesse sentido, pensamos que uma contribuição a uma historiografia psicanalítica pode partir de três eixos, que giram em torno de três conceitos: só depois, das Ding e verdade histórica. Nesta seção, nos dedicaremos a explorá-los.

Pensar na interface entre psicanálise e história exige que nos questionemos acerca de como a psicanálise trabalha a temporalidade, tema que é pensado por Freud, com profundidade, desde a Carta 52, carta trocada com seu então fiel interlocutor Fliess, em 1896. Nela, Freud, ainda com uma linguagem neurológica, tenta articular algumas novas noções sobre o aparelho psíquico. Fica claro, aqui, como este aparelho tem todo o seu funcionamento baseado na maneira como armazena as situações vividas, ou seja, na memória. Freud postula a existência de, pelo menos, quatro tipos de neurônios distintos que teriam diferentes funções: (a) os neurônios W (Wahrnehmungen), que seriam responsáveis pela consciência e pela percepção, mas não carregariam em si nenhum traço mnêmico; (b) os neurônios Wz (Wahrnehmungszeichen), que seriam os primeiros registros da percepção, produzidos através de associações por simultaneidade e destituídos de acesso à consciência; (c) os neurônios Ub (Unbewusstsein), segundo registro mnêmico, que, inconscientes, seriam responsáveis pelas lembranças conceituais e (d) os neurônios Vb (Vorbewusstein), consistindo no terceiro registro de memória, que formariam a pré-consciência, estando ligados às representações verbais e podendo tornar-se conscientes.

Esses traços de memória, que são registrados de maneiras diferentes em sistemas distintos, estão continuamente sujeitos a processos de retranscrição, na passagem de um registro a outro. A cada nova exigência direcionada ao psiquismo, este é levado a um rearranjo: “... na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico” (Freud, 1896/1996Freud, S. (1996). Carta 52. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 281-287). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1896), p. 283). Porém, podem ocorrer falhas nessas traduções. Nesse caso, alguns traços não seriam inscritos nos três registros, permanecendo fixados no aparelho psíquico e sendo relembrados com a intensidade de um evento atual. É nesse contexto que se esboça uma teoria do trauma, intimamente articulada à temporalidade que o conceito retranscrição implica, a saber, a do só depois.

A partir do caso Emma, Freud (1895/1996)Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 335-399). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1895) postula a ideia de um trauma em dois tempos: uma vivência é ressignificada em um segundo momento, no qual a marca inicial ganha uma nova dimensão, isto é, traumática. Fóbica a lojas, primeiramente Emma recorda uma cena vivenciada por ela aos doze anos: em uma loja, dois homens riem ao fundo. Em um momento posterior da análise, Emma lembra de uma cena anterior a esta, a qual a confere sentido: aos oito anos, foi tocada por um vendedor em uma loja. Só depois da puberdade Emma pôde atribuir significado sexual ao ocorrido.

Em O projeto para uma psicologia científica, Freud (1895/1996)Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 335-399). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1895) adota o conceito Nachträglich, traduzido para o português, por Milan (2009Milan, B. (2009). Notas do tradutor. In J. Lacan, Escritos (pp. 379-382). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), como só depois. A tradutora justifica:

O termo Nachträglich, frequentemente empregado por Freud, está ligado à sua concepção da temporalidade e da causalidade psíquica. Trata-se aí do remanejamento, em função de experiências novas, de certas experiências, impressões e traços mnêmicos, os quais só por efeito retroativo ganham um sentido novo que lhes confere eficácia psíquica ... Daí o só depois, tradução que nos foi proposta por M. D. Magno. (Milan, 2009Milan, B. (2009). Notas do tradutor. In J. Lacan, Escritos (pp. 379-382). Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 380)

Adotamos essa tradução, mas também lançamos mão de outras possibilidades de nomear Nachträglich, dentre elas, a latina a posteriori, bastante utilizada em algumas instituições psicanalíticas não lacanianas.

Embora a teoria da sexualidade infantil turve esse modelo, o conceito de temporalidade nele implícito resiste. Por um lado, é no momento de sua retranscrição - em outras palavras, retrospectivamente - que a marca primordial devém traumática. Por outro, é mediante a atualização da marca originária que um sujeito pode narrar uma história:

trata-se ... de um tempo livre da duração, que se afirma pela presença de dois acontecimentos separados, embora sobrepostos. É no momento em que se manifesta essa presença que o passado ganha a possibilidade de ser historicizado, subjetivado. (Rezende & Weinmann, 2014Rezende, T., & Weinmann, A. (2014). O(s) tempo(s) na psicanálise e no cinema: O sentido baseado no só depois. Trivium: Estudos interdisciplinares, 6(1), 68-81., p. 76)

Nesse ponto, interrogamos: todo acontecimento histórico, para se configurar como tal, deve possuir uma dimensão traumática? Gondar (2012Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cadernos de psicanálise, 34(27), 193-210.), estudiosa da obra de Ferenczi, comenta que o trauma, para o psicanalista húngaro, se define pela posição do sujeito diante de um evento. É seu desmentido que torna uma vivência traumática: “por desmentido entenda-se o não reconhecimento e a não-validação perceptiva e afetiva da violência sofrida” (Gondar, 2012Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cadernos de psicanálise, 34(27), 193-210., p. 196). O trauma decorreria, portanto - para falarmos nos termos propostos na Carta 52 -, da impossibilidade de retranscrição de uma vivência; ecos de sofrimentos coletivos aos quais a história recusa inscrição. Em contrapartida, o reconhecimento retrospectivo de uma violência - e da condição de vulnerabilidade a ela associada - permitiria dar bordas ao traumático. Nessa perspectiva, “... escrever a história é escrever o trauma” (Gondar, 2012Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cadernos de psicanálise, 34(27), 193-210., p. 194). O trauma está na base do conceito só depois e articula-se com a concepção de uma história não cronológica.

Alguns historiadores procuram a temporalidade psicanalítica, com o intuito de repensar o tempo como unidade do discurso histórico. Em Psicanálise e história, Certeau (2012Certeau, M. (2012). Psicanálise e história. In M. Certeau, História e psicanálise: Entre ciência e ficção (G. Teixeira, Trad., 2a ed., pp. 71-89). Belo Horizonte, MG: Autêntica.) propõe que o tempo, em psicanálise, organiza-se em torno do conceito retorno do recalcado. Nessa perspectiva, o passado irromperia, sub-repticiamente, no presente. Como em uma formação do inconsciente, esse processo, ao mesmo tempo que vela o fragmento de passado em questão, o revela. Por esse motivo, Certeau propõe que, em psicanálise, o passado aloja-se no presente.

Em história, a relação entre passado e presente seria de outra ordem. Em um tempo posterior, mediado pela instituição historiográfica, o historiador se debruçaria sobre arquivos (depósitos do passado), movido por algumas questões cruciais de sua atualidade. No movimento de ir ao passado e de retornar ao presente, ele fabricaria a história. Nesse sentido, a historiografia impõe um corte entre o passado e o presente; embora adjacentes, um muro os separa: enquanto o presente é o tempo do pesquisador, o passado é seu objeto, e o que é reativado (e, reiteradamente, perdido) pela pesquisa história, é precisamente o outro de sua contemporaneidade, isto é, o que a assombra.

É intrigante que Certeau, ao expor sua leitura da temporalidade psicanalítica, não mencione o conceito Nachträglich. Não seria só depois de atravessado por algumas questões cruciais de seu tempo que o historiador se voltaria ao sistema de arquivos que lhe é contemporâneo - delimitando-o de acordo com o recorte que essas problematizações requerem -, com o intuito de rearranjar as peças do imaginário de uma época? Nesse sentido, parece-nos que, se Certeau não insere o conceito Nachträglich em sua exposição da temporalidade psicanalítica, é porque já o incorporou ao discurso historiográfico.

Scott (2012Scott, J. W. (2012). The incommensurability of psychoanalysis and history. History and theory, 51(1), 63-83. doi: 10.1111/j.1468-2303.2012.00612.x
https://doi.org/10.1111/j.1468-2303.2012...
) postula, em oposição à psico-história, que as diferenças entre psicanálise e história são incontornáveis. Apesar disso, o diálogo entre esses domínios pode ser produtivo. Especificamente no que concerne ao tema da temporalidade, a historiadora observa:

Se os historiadores assumem que as narrativas lineares que eles criam capturam a relação do passado com o presente (e, em alguns casos, do presente com o passado), os psicanalistas trazem a transferência para operar em mais de um registro de tempo. Há o tempo da análise e o tempo recordado em análise, e eles não se sobrepõem em uma única cronologia. (Scott, 2012Scott, J. W. (2012). The incommensurability of psychoanalysis and history. History and theory, 51(1), 63-83. doi: 10.1111/j.1468-2303.2012.00612.x
https://doi.org/10.1111/j.1468-2303.2012...
, p. 67, tradução nossa)

Dito de outro modo, a temporalidade psicanalítica seria “... complexa, uma construção subjetiva, não um dado cronológico” (Scott, 2012Scott, J. W. (2012). The incommensurability of psychoanalysis and history. History and theory, 51(1), 63-83. doi: 10.1111/j.1468-2303.2012.00612.x
https://doi.org/10.1111/j.1468-2303.2012...
, p. 67). Nela, a possibilidade de reescrita do passado, a posteriori, é uma premissa. Para a historiadora, não se trata de a historiografia importar tal conceito, mas de, a partir do confronto com essa diferença e com os recursos de seu próprio campo, tensionar o modo como elabora o tempo.

A partir da psicanálise, a escrita da história retroage sobre seu objeto, mas este resiste à sua apropriação pelo saber histórico. Nas palavras de Lacan (1953/1998Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953), p. 262): “... a história já se faz no palco em que será encenada depois de escrita”. É só depois de escrito, nesse a posteriori, que o objeto do discurso histórico é encenado, mas não sem antes se esquivar pelo fundo do palco. Ora, o esquivar-se pelo fundo do palco se dá pela impossibilidade de captura do objeto do discurso histórico; nele, sempre resta algo de não inscrito, o que nos leva a das Ding.

Assim, como comenta Célio Garcia (1988Garcia, C. (1988). História e psicanálise. In J. Birman (Org.), Percursos na história da psicanálise (pp. 42-58). Rio de Janeiro, RJ: Tauros.), psicanalista e historiador dedicam-se não só ao que é lembrado, mas também ao que é esquecido, a uma “perda de saber” (p. 45) - ao objeto perdido, podemos acrescentar, sendo essa a origem do próprio pensamento psicanalítico. Sabemos, desde Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1996Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 335-399). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1895)), que é no processo de busca desse objeto que se organiza o circuito pulsional, dando início ao psiquismo. Porém, há uma parte nunca assimilável desse objeto, “constante e incompreendida” (Freud, 1895/1996Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 335-399). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1895), p. 439), a qual Freud chama de a coisa - em uma possível referência à coisa em si kantiana -, que nunca será reencontrada: o objeto, em si, está para sempre perdido; dele, restam marcas que orientam o desejo. Logo, a busca se dá constantemente, mantendo o aparelho psíquico vivo e produtivo.

Como Freud (1915/1996)Freud, S. (1996). O inconsciente. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 165-223). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1915) sustenta em O inconsciente, a fala consiste na busca de um objeto perdido, que nunca será encontrado e, por isso, sempre retorna naquilo que há de inalcançável, das Ding. A perda de saber, aquilo que é esquecido pela história, também se encontra nesse lugar de objeto perdido: as narrativas e interpretações, da psicanálise e da história, são tentativas de contornar esse objeto irrecuperável. E é isso o que torna a interpretação interminável. Essa ideia é retomada por Foucault (1967/2000)Foucault, M. (2000). Nietzsche, Freud, Marx. In M. Foucault, Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento (M. B. Motta, org., E. Monteiro, Trad., pp. 40-55). Rio de Janeiro, RJ: Forense . (Trabalho original publicado em 1967), em Nietzsche, Freud, Marx, trabalho no qual o filósofo aponta que esses três autores introduzem a ideia de um interminável da interpretação na tradição ocidental, que seria responsável por um rasgo em uma ciência positivista, a qual busca por um entendimento unívoco do objeto.

Neste momento do artigo, não podemos nos furtar de comentar outro autor responsável por um rasgo em uma ideia de história única: Walter Benjamin (1940/2012)Benjamin, W. (2012). Sobre o conceito da história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad., 7a ed., pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940), no trabalho Sobre o conceito da história, propõe uma torção na forma linear de entendimento histórico. A partir de uma história dos vencedores, impõe-se uma versão oficial que impede a produção de retranscrições - ou, em termos ferenczianos, desmente o potencial traumático de um acontecimento. Em virtude disso, as vozes que não foram escutadas e os escritos que não foram lidos exercem uma força que nos faz voltar para o passado, com o intuito de produzir uma narrativa: “... não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram? ... Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa” (Benjamin, 1940/2012Benjamin, W. (2012). Sobre o conceito da história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad., 7a ed., pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940), p. 242).

As vivências traumáticas que foram apagadas também exercem sua força. Nesse sentido, a história não é uma experiência única, mas um conjunto de experiências que podem ser narradas de diferentes formas - uma dispersão, portanto. Como aponta Benjamin (1940/2012)Benjamin, W. (2012). Sobre o conceito da história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad., 7a ed., pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940), o passado nunca é passível de ser capturado, mas podemos ter acesso a pequenos fragmentos discursivos que podem suscitar novas associações e rearranjos: “... a história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de ‘tempo de agora’ (Jetztzeit)” (Benjamin, 1940/2012Benjamin, W. (2012). Sobre o conceito da história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad., 7a ed., pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940), p. 249). É pelo passado nunca ser passível de captura - o que nos leva de volta a das Ding -, que a interpretação é interminável; há sempre algo que resta, algo que escapa pelos vãos dos dedos. Este é o ponto em que história e psicanálise se encontram, na sua origem sempre mítica, no seu desencontro.

Aquilo que constitui o tecido das memórias de uma cultura sempre é passível de narrativa. No entanto, a história não é feita somente do que é lembrado, ela também é feita daquilo que é esquecido. O recalcado de uma cultura também está sujeito a um efeito de a posteriori e, só depois, poderá adquirir estatuto de memória, de lembrança narrada. Como sustenta Lacan (1953/1998)Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953), trata-se “de história, fazendo assentar unicamente sobre a navalha das certezas da data a balança em que as conjecturas sobre o passado fazem oscilar as promessas do futuro” (p. 257). É por a origem ser sempre mítica, ser esta coisa, das Ding, inapreensível, que o efeito de só depois se impõe, pelo eterno retorno do que escapa.

Ao falarmos em origem, inevitavelmente associamos a Moisés e o monoteísmo, escrito a partir de 1934, mas publicado como livro somente em 1939. É nesse texto que Freud (1939/1996)Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939) argumenta a favor de sua hipótese de que Moisés teria uma origem egípcia, e não hebraica, de que teriam existido dois Moisés - existência apontada por diferentes características designadas a Moisés na leitura bíblica - e, last but not least, de que os judeus teriam assassinado o fundador de sua religião. O que nos interessa, nesse denso trabalho, é o conceito verdade histórica. Ao longo do texto, nos deparamos com certa ambiguidade em Freud; ao mesmo tempo que diz estar em busca de uma verdade e que, para tanto, seriam necessários fatos que corroborassem suas ideias, “... contra a crítica de que elas não passam de um produto da imaginação” (Freud, 1939/1996Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939), p. 27), ele aponta para a impossibilidade de certeza: “... se certeza maior do que essa não podia ser alcançada, por que, poder-se-á perguntar, trouxe eu essa investigação a público?” (Freud, 1939/1996Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939), p. 27). De que verdades e certezas fala Freud? Algumas páginas depois, temos um primeiro indício: “... mesmo que todas as partes de um problema pareçam ajustar-se como peças de um quebra-cabeça, há que refletir que aquilo que é provável não é necessariamente a verdade, e que a verdade nem sempre é provável” (Freud, 1939/1996Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939), p. 29). Com suas proposições sobre Moisés, Freud confronta a pesquisa histórica positivista - cuja pretensão de cientificidade requer do historiador que não ultrapasse o domínio do observável -, que era a historiografia hegemônica no contexto da escrita de Moisés e o monoteísmo.

Desde meados do segundo ensaio, seção quatro, Freud (1939/1996)Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939) utiliza o conceito verdade histórica, ao referir-se a algo de residual nas histórias contadas na Bíblia, próximo à verdade contida nos delírios psicóticos. Seriam traços da realidade - e ainda não está claro de que realidade se trata -, que fariam parte da tradição judaica (escrita e oral) e que são fontes da pesquisa freudiana. Nesse momento, o fundador da psicanálise afirma: “... os fatos e as ideias que foram intencionalmente repudiados pelos que podem ser chamados de historiadores oficiais, nunca se perderam realmente” (Freud, 1939/1996Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939), p. 83). Esta observação de Freud aproxima-se do que Benjamin (1940/2012)Benjamin, W. (2012). Sobre o conceito da história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad., 7a ed., pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940) pensa sobre a história dos vencedores: o que não é reconhecido como verdade permanece vivo.

Nesse sentido, a verdade histórica seria aquela que perpassa gerações e produz efeitos na cultura, mas não necessariamente se torna consciente ou, em outras palavras, tem o reconhecimento oficial. Diferentemente da verdade material, que é composta de fatos arquivados, a verdade histórica é composta a partir das lacunas dos textos oficiais. Os registros dessa verdade histórica podem ser encontrados nas entrelinhas das tradições orais e escritas, mas não constam na história dos vencedores. Freud (1939/1996)Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: Três ensaios. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1939) afirma que uma ideia assim possui um caráter compulsivo, isto é, repete-se, mas a lembrança não se torna consciente: “... na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada de verdade” (p. 144, grifo do autor). A cada geração, essa herança arcaica passa por uma retranscrição, mediante sua transmissão simbólica. Aqui, articula-se a noção de trauma como aquilo que se repete, na busca por inscrição, e que só depois pode ganhar sentido. Uma verdade histórica recobriria, portanto, uma força traumática.

Como vimos anteriormente, é a posteriori que uma vivência encontrará sentido, e é somente nessa repetição que ela ganha estatuto de trauma. Não podemos esquecer que o trabalho sobre Moisés foi publicado em dois momentos: primeiro e segundo ensaio, em Viena, e terceiro, devido à chegada dos nazistas à capital austríaca, em Londres; é também um trabalho feito em dois tempos. Freud descreve dois tipos de efeitos do trauma, os positivos e os negativos. Nos positivos, existiria uma força, chamada de compulsão à repetição, que impeliria o sujeito a repetir a situação traumática, na busca pela inscrição dessa vivência. Já as negativas vão no sentido oposto, isto é, de não inscrição mnêmica do evento traumático. Da tensão entre essas duas forças, surgem as produções da cultura que encenam o traumático de uma sociedade. Isso se aproxima do que Seligmann-Silva (2008Seligmann-Silva, M. (2008). Narrar o trauma: A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia clínica, 20(1), 65-82. doi: 10.1590/s0103-56652008000100005
https://doi.org/10.1590/s0103-5665200800...
) trabalha sobre trauma e história.

Seligmann-Silva (2008Seligmann-Silva, M. (2008). Narrar o trauma: A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia clínica, 20(1), 65-82. doi: 10.1590/s0103-56652008000100005
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, p. 69) afirma que “... o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa”. Nesse sentido, é nessa atualidade do trauma que se faz necessária a possibilidade do testemunho, não no sentido de entender como de fato as situações ocorreram - afinal, o evento traumático é, por definição, irrepresentável -, mas com o intuito de retirar esse trauma de uma posição de encapsulamento, de refazer essa cena encriptada. Com o testemunho, há uma possibilidade de retemporalização do trauma. No entanto, parte desse testemunho só pode vir de uma imaginação que assume a possibilidade de simbolização, mesmo que parcial: “... a imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma” (Seligmann-Silva, 2008Seligmann-Silva, M. (2008). Narrar o trauma: A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia clínica, 20(1), 65-82. doi: 10.1590/s0103-56652008000100005
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, p. 70). Essa ideia da imaginação ser um dos operadores do testemunho vai em direção oposta à de uma história positivista, que acredita na possibilidade de descrição de fatos da forma como eles ocorreram.

Em Freud y el problema de la historia, o historiador argentino Omar Acha (2007Acha, O. (2007). Freud y el problema de la historia. Buenos Aires, AR: Prometeo.) discute o conceito freudiano verdade histórica por meio de um correlato, a saber, a herança arcaica. Tal conceito evocaria o evolucionismo lamarckiano, que defende a transmissão hereditária de caracteres adquiridos, mas aplicado ao registro da cultura. Porém, o procedimento freudiano instiga esse pesquisador. Tal herança se referiria a um evento que parece imprimir uma marca constitutiva em uma cultura, mas que não tem registro no arquivo historiográfico. A partir de vestígios marginais, opera-se sua construção imaginativa.

Acha (2007Acha, O. (2007). Freud y el problema de la historia. Buenos Aires, AR: Prometeo.) nomeia conjectural a epistemologia freudiana (e imaterial à sua herança arcaica), em contraponto ao empirismo historiográfico. Se a crítica do documento, no sentido do reconhecimento de sua fidelidade aos fatos, consiste em um procedimento crucial do fazer historiográfico, a contrapartida disso seria a necessidade de assumir os limites do arquivo: ele não diz tudo. Implicitamente, o conceito das Ding comparece no texto de Acha. Há algo que escapa, permanentemente, ao arquivo e que, a despeito disso - ou, quem sabe, precisamente por isso -, possui eficácia histórica. Para o historiador argentino, a incorporação de uma epistemologia conjectural ao saber historiográfico talvez tornasse sua escrita mais artesanal do que científica.

O que nos interessa, neste artigo, é como Freud articula os conceitos da psicanálise para se aproximar do campo da história. Para chegar ao conceito de verdade histórica, Freud parte da crença de que a existência de um deus único se impôs na história por fazer parte de uma verdade, para a qual não se poderia fechar os olhos. A hipótese freudiana é de que essa verdade é uma verdade histórica, não material. Isso significa que houve, em algum tempo, um homem grandioso, isto é, que foi entendido assim pela cultura da época. E esse homem grandioso foi assassinado pelo povo que libertou e ao qual transmitiu uma espiritualidade superior, como insistem em lembrar os profetas. Esta é uma cena originária, fruto de uma construção. Em Moisés e o monoteísmo, atualiza-se o mito de Totem e tabu (Freud, 1913/1996Freud, S. (1996). Totem e tabu. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 21-162). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1913)). O povo judeu constitui-se em torno da culpa pela morte do estrangeiro que o elegeu para transmitir uma religião abstrata e ética, em vez de sensorial e supersticiosa.

Essa ideia leva, inevitavelmente, ao conceito de construção. Ainda que seja possível sustentar que a cena parricida, relatada em Totem e tabu, é efeito de uma construção - e também consiste em uma verdade histórica -, é em Moisés e o monoteísmo que a transposição dessa técnica da clínica para a análise da cultura recebe sua elaboração mais refletida. Construções em análise (Freud, 1937/1996Freud, S. (1996). Construções em análise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 275-287). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1937)) foi publicado durante o tempo de produção de Moisés e o monoteísmo, mas já temos alusões a esse tipo de intervenção psicanalítica nos casos do Homem dos Ratos (1909/1996Freud, S. (1996). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad. Vol. 10, pp. 139- 274). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1909)) e do Homem dos Lobos (1918/1996Freud, S. (1996). História de uma neurose infantil. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 19-132). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1918)). Nesse trabalho, Freud (1937/1996)Freud, S. (1996). Construções em análise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 275-287). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1937) sugere que é função do analista “completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo” (p. 276, grifo do autor). Nesse ponto, o autor relaciona a função analítica com a escavação de um arqueólogo. A diferença entre esses dois ofícios estaria no material em que acontece a intervenção psicanalítica: ele se mantém vivo, atual. O psicanalista constrói uma cena originária, a partir de vestígios do trauma.

Pensando no método a partir do qual delírios são formados, Freud (1937/1996)Freud, S. (1996). Construções em análise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 275-287). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1937) tensiona não aquilo que escapa à realidade, mas o “fragmento de verdade histórica” (p. 285, grifo do autor) do delírio. O trabalho analítico, através da construção, leva esse fragmento de verdade para o passado, para que seus efeitos não sejam atuais. Freud termina esse texto com um parágrafo que se articula diretamente com o trabalho sobre Moisés:

Se considerarmos a humanidade como um todo e substituirmos o indivíduo humano isolado por ela, descobriremos que também ela desenvolveu delírios que são inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, apesar disso, esses delírios são capazes de exercer um poder extraordinário sobre os homens, a investigação nos conduz à mesma explicação que no caso do indivíduo isolado. Eles devem seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram à tona a partir da repressão do passado esquecido e primevo. (Freud, 1937/1996Freud, S. (1996). Construções em análise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 275-287). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1937), p. 287)

Considerações finais

Em A história do movimento psicanalítico, Freud (1914/1996)Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 15-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914) lança mão da história para pensar, retrospectivamente, a psicanálise. Nesse processo, inaugura os diálogos entre esses campos, conferindo-lhes suas coordenadas simbólicas. Por um lado, o desejo - no sentido psicanalítico, isto é, inconsciente - é o que move essas pesquisas, concedendo a cada uma sua marca singular. Por outro, a origem de seu objeto - lugar suposto de sua verdade irredutível - é mítica, razão pela qual a interpretação consiste não em uma revelação, mas em uma interminável elaboração de sentido. Neste artigo, retomamos alguns trabalhos produzidos na interface entre psicanálise e história, a fim de propor uma possível contribuição a uma historiografia psicanalítica. E isso porque as possibilidades de articulação entre história e psicanálise são múltiplas, como nos mostram os textos estudados.

Para Peter Gay, a história é uma ciência objetiva e a psicanálise pode consistir em uma ciência auxiliar para ela, à medida que aponta os limites de sua objetividade. Para Renato Mezan, a psicanálise contemporânea - suas teorias, abordagens clínicas e organizações institucionais - só pode ser compreendida mediante o estudo histórico, entendido para além da descrição das circunstâncias factuais, isto é, no sentido da construção e transmissão de distintas lógicas que têm como suporte o texto freudiano, em suas diversas possibilidades de leitura. Para Elisabeth Roudinesco, a pesquisa histórica, realizada a partir da psicanálise, debruça-se sobre um arquivo - compreendido como um conjunto de discursos -, supondo que, por um lado, ele diz algo, mas, por outro, ele não diz tudo. Nessa perspectiva, o trabalho do psicanalista historiador consiste em uma criação de sentidos, a partir do rearranjo dos fragmentos textuais do arquivo. Assim, ele resiste à pretensão de produzir um saber absoluto, implicado no excesso ou no apagamento do arquivo.

No entanto, não apenas psicanalistas voltam-se para o campo da história, com o objetivo de historicizar a psicanálise e o sujeito que lhe concerne. Historiadores também se aproximam da psicanálise, com o intuito de pensar os limites de seu domínio de estudos. Nessa perspectiva, Michel de Certeau argumenta que o historiador, mesmo quando pesquisa documentos de outras épocas, ocupa-se do que há de não analisado em sua atualidade. Ao narrar a história, ele desloca o presente, isto é, remonta o imaginário de uma sociedade. E, ao abrir outras possibilidades de sentido, ele - assim como um psicanalista quando interpreta - relança a pesquisa, em busca do sentido perdido. Já Carlo Ginzburg realça a atenção aos detalhes aparentemente irrelevantes, que caracterizam o que denomina paradigma indiciário. Esse enfoque, tão caro à psicanálise, torna possível a pesquisa das singularidades, em um campo - o da ciência - inteiramente dedicado às regularidades.

Neste artigo, propomos uma contribuição a uma historiografia psicanalítica, por meio da articulação de três conceitos: só depois, das Ding e verdade histórica. Se o tempo é uma importante unidade do discurso histórico, que temporalidade decorre do discurso analítico? A partir do Projeto para uma psicologia científica, é a posteriori, retrospectivamente, só depois, que uma marca recebe sentido traumático. Na Carta 52, uma falha na retranscrição de um registro mnêmico mantém atual um acontecimento, que não é recoberto de sentido. Tempo e trauma são indissociáveis em psicanálise, e o tempo do trauma é sempre o do a posteriori. O que nos conduz a uma reflexão sobre trauma e história. O acontecimento histórico é traumático? A escrita da história é a escrita do trauma? Nesse caso, a escrita sempre deixa um resto: das Ding.

Tal referência à coisa coloca um problema acerca do objeto do discurso histórico - fato histórico, acontecimento. Ele é tangível? Ele pertence ao mundo empírico? Ele é passível de observação e descrição objetivas? Tal é o horizonte epistemológico da historiografia positivista. Em contrapartida, para a psicanálise há sempre algo de irredutível em um acontecimento - algo se perde, inapelavelmente -, e um sem sentido perturbador relança, interminavelmente, a pesquisa. Tal concepção parece entrar em ressonância com o conceito benjaminiano de história dos vencedores. A vitória em questão, aqui, é a de um sentido que subjuga os demais. A história oficial não permite a retranscrição de uma cena, a partir de distintas perspectivas, e denega - no sentido ferencziano - seu potencial traumático. No entanto, vozes insistem e sua eventual inscrição nunca parece ser o bastante, dado o tom traumático desses ecos.

Por fim, o que dizer da história como pesquisa das origens? Talvez, que as origens se encontram irremediavelmente perdidas: das Ding. Sua natureza é mítica; no tempo do só depois, elas recobrem o trauma. Sob a forma de uma herança arcaica, o traumático de uma cultura insiste, faz uma exigência de trabalho ao aparelho psíquico. Mediante sua transmissão simbólica, tal herança é passível de retranscrições. E isso que se transmite - os restos de uma cena originária - pode ser escutado nas brechas dos muros discursivos, nas entrelinhas da história oficial; ecos de vozes emudecidas pelo trauma. Essa cena, efeito de uma construção em análise, não consiste em uma verdade factual; os fatos, como Freud cedo descobriu, são da ordem da ficção. Trata-se de uma verdade histórica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2019
  • Revisado
    31 Mar 2021
  • Aceito
    11 Jun 2022
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