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Sobre alucinação e realidade: a psicose na CID-10, DSM-IV-TR e DSM-V e o contraponto psicanalítico1 1 Informações sobre financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

À propos de l’hallucination et la réalité: la psychose dans la CID-10, DSM-IV-TR et DSM-V et la et le contrepoint psychanalytique

Acerca de la alucinación y la realidad: la psicosis en la CID-10, DSM-IV-TR y DSM-V y el contrapunto psicoanalítico

Resumo

A psicose é um dos poucos termos da psicopatologia clássica e da psicanálise que permanece nos sistemas classificatórios atuais, como o DSM (Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Internacional de Doenças), o que nos dá condições para investigarmos as diversas maneiras de pensar o sofrimento psíquico. Desse modo, analisamos criticamente como o DSM-IV-TR, a sua atual edição (DSM-V) e a CID-10 definem e utilizam o termo “psicose”. A apropriação desse conceito ampara-se em definição meramente descritiva como estratégia de recusa ao debate etiológico. A alucinação, um dos critérios para a classificação dos “transtornos psicóticos”, é definida partindo-se de realismo ingênuo em que a realidade é tomada objetivamente como um dado. Assim, apresentamos o contraponto psicanalítico para essa apropriação: a psicanálise aponta para a relevância da estruturação simbólica dos fenômenos perceptivos e para a realidade como construção subjetiva.

Palavras-chave:
psicanálise; psicose; alucinação; realidade; DSM

Résumé

La psychose est l’un des rares termes de psychopathologie et de la psychanalyse classique qui restent dans les systèmes de classification actuels, tels que le Manuel diagnostique et statistique des troubles mentaux (DSM) et la Classification internationale des maladies (CID), qui nous donne les conditions pour enquêter sur les différents façons de penser la détresse psychologique. Ainsi, nous verrons comment le DSM-IV-TR, son numéro actuel (DSM-V) et la CID-10 définissent et utilisent le terme psychose. L’appropriation de ce concept se prend comme une définition purement descriptive de refus de stratégie de débat étiologique. L’hallucination, l’un des critères pour la classification des «troubles psychotiques» est définie à partir d’un réalisme naïf où la réalité est prise comme une donnée objective. Ainsi, nous présentons le contrepoint psychanalytique de cette appropriation: les points psychanalyse à la pertinence de la structuration symbolique des phénomènes de perception et la réalité comme une construction subjective.

Mots-clés:
psychanalyse; psychose; hallucination; realite; DSM

Resumen

La psicosis es uno de los pocos términos de la psicopatología clásica y el psicoanálisis que permanecen en los sistemas de clasificación actuales, tales como el Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos Mentales (DSM) y la Clasificación Internacional de Enfermedades (CID), que nos da las condiciones para investigar las distintas formas de pensar sobre la angustia psicológica. Por lo tanto, se discute cómo el DSM-IV-TR, su edición actual (DSM-V) y el CID-10 definen y utilizan el término psicosis. La apropiación de este concepto mantiene a sí misma como una definición puramente descriptiva de la negativa a la estrategia de debate etiológico. La alucinación, uno de los criterios para la clasificación de los “trastornos psicóticos” se define empezando con un realismo ingenuo donde la realidad se toma como un hecho objetivamente. Por lo tanto, presentamos el contrapunto psicoanalítica a esa apropiación: puntos psicoanálisis a la relevancia de la estructuración simbólica de los fenómenos de percepción y la realidad como una construcción subjetiva.

Palabras clave:
psicoanálisis; psicosis; alucinación; realidad; DSM

Abstract

Psychosis is one of the few terms in classical psychopathology and psychoanalysis that remain in the current classification systems, such as the DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) and the ICD (International Classification of Diseases), which allows to investigate the various ways of thinking about psychological distress. We discuss how the DSM-IV-TR, its current edition (DSM-V), and the ICD-10 define and use the term psychosis. The appropriation of this concept is based on a merely descriptive definition, as a refusal strategy towards etiological discussion. Hallucination, one of the criteria for the classification of “psychotic disorders”, is defined with a naive realism in which reality is taken as an objective construction. We present the psychoanalytic counterpoint to such appropriation: psychoanalysis points to the relevance of the symbolic structuring of perceptual phenomena and reality as a subjective construction.

Keywords:
psychoanalysis; psychosis; hallucination; reality; DSM

Introdução

O Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Internacional de Doenças (CID) são as diretrizes diagnósticas - ou sua lógica, ao menos - utilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para realizar estudos epidemiológicos e estabelecer o financiamento para a rede de saúde mental. Analisá-los, então, não deixa de ter importância epistêmica e política. A redução diagnóstica a descrição de sinais e sintomas operada por esses manuais deixa de lado o método clínico e incorre em erros diagnósticos, prejudicando sobremaneira a organização dos tratamentos da rede de saúde mental.

Além de psicóticos constituírem a clientela majoritária atendida pela rede de saúde mental do país (Teixeira, 2007Teixeira, A. (2007). Tecendo a rede: a psicanálise na saúde mental. CliniCAPS, 1(2). Recuperado de: http://www.clinicaps.com.br/clinicaps_pdf/Rev_01/Revista01_art2_Antonio.pdf
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), “psicose” é um dos poucos termos da psicopatologia clássica e da psicanálise que permanece nesses manuais; desse modo, ele permite estabelecer melhor a rede de comparações entre essas diversas maneiras de pensar o sofrimento psíquico.

Amparados nessas proposições, realizamos análise crítica do termo “psicose” no DSMIV-TR, no DSMV e na CID10, subsidiados pelo referencial teórico da psicanálise. A apropriação desse conceito ampara-se em definição meramente descritiva como estratégia de recusa ao debate etiológico. Sendo o critério para o diagnóstico de transtorno psicótico a presença de alucinações e delírios, esses últimos são definidos a partir de um conceito de realidade que a toma como evidência. A alucinação é definida como erro de percepção, e o delírio como falsa crença da realidade. Ambos apresentam o critério de comprometimento na sociabilidade, determinada em relação à realidade prejudicada.

Ademais, tomamos a alucinação como nosso fio condutor de análise por ela ainda se constituir como paradoxo de definição na história psicopatológica: todo o problema das alucinações parece estar ligado ao fato de serem definidas, quase unicamente, como percepções sem objeto (Álvarez, 2008Álvarez, J. (2008). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.). A uniformidade com que se tem definido a alucinação - desde Esquirol, em seu Tratado completo de las enajenaciones mentales consideradas bajo su aspecto médico, higienico y medico-legal, de 1838, até o Tratado das alucinações, de Henri Ey, publicado em 1937 - é analisada criticamente por (Álvarez, 2008Álvarez, J. (2008). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.): tornou-se citação clássica o primeiro parágrafo que Esquirol dedica às alucinações, definição que continua a repercutir em nossos dias: “un hombre que tiene la convicción íntima de una sensación actualmente percibida, aun cuando ningún objeto hiera sus sentidos, se encuentra en un estado de alucinación; es un visionario” (Esquirol apud Álvarez, 2008Álvarez, J. (2008). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama., p. 131).

(Colina, 2001Colina, F. (2001). El saber delirante. Madrid, España: Síntesis.) ressalta que não se trata exatamente de percepção sem objeto, como pressupõe a definição convencional, mas sim de “percepção sem sujeito”: sem sujeito da palavra que seja capaz de canalizar a percepção a sua capacidade e expressão naturais. Se os manuais classificatórios de transtornos mentais definem tanto a alucinação quanto o delírio a partir de definição objetivante e pressuposta dessa realidade, é justamente nesse ponto que propomos tensionar o conceito de realidade amparada por essas definições e a elucidação psicanalítica a respeito dessa problemática. Ora, a psicanálise sempre teve de lidar com a questão da realidade. (Estevão, 2009Estevão, I. (2009). A realidade, entre Freud e Lacan (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-09122009-085019/pt-br.php
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) nos lembra da importância que esse conceito teve para Freud desde o início de sua obra, justamente porque não lhe pareceu como simplesmente pressuposto. Alguns textos freudianos fundamentais para concepção desse conceito são A interpretação das afasias, Projeto para uma psicologia científica, Formulações sobre os dois princípios fundamentais do funcionamento psíquico, A negação, Neurose e psicose, e A perda da realidade na neurose e na psicose (Estevão, 2009Estevão, I. (2009). A realidade, entre Freud e Lacan (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-09122009-085019/pt-br.php
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). Assim, em Freud já observamos que a realidade se dá por meio da atribuição de sentido em contraposição à realidade dada objetivamente.

Lacan, partindo da premissa freudiana, enfatiza a importância da relação do sujeito com o Outro e a organização significante nessa construção subjetiva da realidade. É a partir dessas coordenadas que a alucinação é pensada pela via do simbólico, assentando que a “estabilidade e a boa ordem da relação perceptiva com a realidade não são tão naturais quanto se poderia imaginar, e sim uma função dos fenômenos significantes” (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1937), p. 14).

À concepção de univocidade da realidade anteriormente pressuposta, explicitamente amparada pela caracterização da alucinação como critério para definição de um transtorno psicótico nos DSM, a psicanálise acentua questionamento precedente e que propomos desenvolver aqui: a relação do sujeito no campo da percepção é ordenada pela articulação do próprio sujeito com a linguagem e as relações significantes.

A CID-10 e o estatuto descritivo da psicose

Diferentemente de “neurose”, que sofreu processo de expurgo do DSM, o termo “psicose” sofreu fragmentação, reduzindo-se à categoria dentro de um agrupamento de transtornos denominado “esquizofrenia e outros transtornos psicóticos”. O DSM-IV (revisado em 2000, portanto DSM-IV-TR) foi elaborado com o capítulo sobre transtornos mentais da CID-10 em trabalho colaborativo entre a Associação Americana de Psiquiatria (APA) e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Pelo fato de essas revisões terem sido feitas em paralelo, a definição de psicose nesses dois manuais é bem similar.

O capítulo V da CID-10 refere-se à classificação de transtornos mentais e de comportamento, cuja versão “descrições clínicas e diretrizes diagnósticas” (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) é destinada para uso clínico, educacional e assistencial em geral. As descrições clínicas de cada transtorno são fornecidas a partir de descrição de sinais e sintomas considerados “principais” e de outros “aspectos associados menos importantes”; as diretrizes diagnósticas são descritas indicando o número de sintomas necessário para que possa ser feito o diagnóstico confiável.

Segundo os revisores dessa versão, as descrições clínicas comportam certo grau de flexibilidade que permite que um diagnóstico provisório seja feito quando um quadro clínico não está inteiramente claro. No entanto, é inegável a existência de implicações clínicas, especificamente no que tange à orientação do tratamento, em se estabelecer diagnóstico precoce ou apoiado em traços clínicos insuficientes. Freud, em seu texto “Psicanálise silvestre” (1910/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)), já demonstrava a cautela que se deve ter quanto ao diagnóstico.

Nesse texto, é feita crítica a diagnósticos equivocados baseados em padronização da teoria - nesse caso, das concepções psicanalíticas. É apresentado o caso de uma senhora que se queixava de estados ansiosos no momento do divórcio do marido e que, diagnosticada por um jovem médico inspirado por leitura trivial da psicanálise, ouviu dele que sua ansiedade se devia à falta de satisfação sexual; o tratamento foi então imposto: ela deveria escolher entre voltar para o marido, ter um amante ou recorrer à masturbação. O caso é analisado por Freud em dupla perspectiva: em relação à noção de sexualidade do clínico, reduzida ao ato sexual e à genitalidade, e em relação ao estabelecimento do diagnóstico e ao tratamento que dependerá dele.

Freud alega que o clínico provavelmente supôs diagnóstico de neurose de angústia por causa da queixa de ansiedade da senhora e, portanto, o tratamento comportaria certa alteração da atividade sexual somática da paciente. Entretanto,

uma pessoa padecendo de ansiedade não está por essa razão necessariamente sofrendo de neurose de angústia; semelhante diagnóstico não se pode fundamentar sobre a designação [do sintoma]; tem-se de saber que sinais constituem uma neurose de angústia e ser capaz de distingui-la de outros estados patológicos que também se manifestam por ansiedade. (Freud, 1910/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924), p. 139)

Essa advertência faz-se tão pertinente quanto atual: não há correlação direta entre sintoma e diagnóstico. Para Freud, a senhora sofria de histeria de angústia, o que implicaria etiologia e tratamento diferentes. A consequência de um diagnóstico amparado apenas no aspecto fenomênico da patologia é a condução de tratamento não pertinente para o sofrimento do sujeito. Essa é, ou deveria ser, a implicação mais deficitária para a clínica.

Posta essa implicação clínica, não seria ainda mais prejudicial - para o sujeito - a elaboração de diagnóstico quando o quadro clínico ainda não permite a compreensão clara da articulação dos sinais e sintomas, como propõem as diretrizes clínicas da CID-10? Como nos lembra (Dor, 1991Dor, J. (1991). Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Taurus Timbre.), “o analista deve estar apto a se apoiar em certos elementos estáveis, tanto na elaboração do diagnóstico quanto na escolha da condução da cura, que daí depende” (p. 15).

Na parte introdutória dessa versão, os redatores alertam previamente sobre “os problemas duradouros e notoriamente difíceis associados com a descrição e classificação” (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 1) dos transtornos psicóticos agudos e transitórios. Não obstante, afirmam que as descrições e diretrizes propostas não contêm implicações teóricas. Para isso, retomam termos psicopatológicos, enfatizando apenas seu aspecto descritivo. A psicose foi mantida por ser termo “simples e familiar” (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 99) e reduzida, por conveniência, ao seu aspecto semiológico:

Psicótico foi mantido como um termo descritivo conveniente ... . Seu uso não envolve pressupostos acerca de mecanismos psicodinâmicos, porém simplesmente indica a presença de alucinações, delírios ou de um número limitado de várias anormalidades de comportamentos. (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 3)

O capítulo V da CID-10 fornece a separação entre o que foi nomeado como “transtornos psicóticos agudos e transitórios” e a esquizofrenia, afirmando que a esquizofrenia não é a mesma que as “psicoses muito agudas que têm início abrupto, um curso breve de poucas semanas ou mesmo dias e uma evolução favorável” (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 10). Essa separação, porém, não é inteligível e parece estar obscura para os próprios revisores: “os critérios propostos para sua diferenciação (esquizofrenia) ressaltam os problemas de definição dos limites mútuos desse grupo inteiro de transtornos (transtornos psicóticos agudos e transitórios) em termos práticos” (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 12).

O diagnóstico de esquizofrenia é estabelecido quando há delírios, alucinações e outros sintomas típicos por no mínimo um mês. Entretanto, quando esses mesmos sintomas não satisfazem a duração mínima de tempo, deve ser feito diagnóstico em primeira instância na categoria de transtornos psicóticos agudos e transitórios ou, mais especificamente, diagnóstico do transtorno psicótico esquizofreniforme agudo. Por fim, se os sintomas persistirem por tempo mais longo, recomenda-se a reclassificação para o diagnóstico de esquizofrenia.

Ao mesmo tempo que a CID-10 propõe o critério de no mínimo um mês para a duração dos sintomas para o diagnóstico de esquizofrenia, indica que em algumas classificações nacionais adota-se o critério de seis meses para o mesmo diagnóstico. Porém, como justificado pelos revisores, “no atual estado de ignorância, parece não haver vantagens em restringir o diagnóstico de esquizofrenia desse modo” (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 11). E, mais uma vez, eles recorrem ao pretenso ateorismo e ao princípio descritivista para evitar pronunciar-se sobre a etiologia:

Parece, portanto, melhor para os propósitos da CID-10 evitar qualquer suposição sobre cronicidade necessária para esquizofrenia e considerar o termo como descritivo de uma síndrome com uma variedade de causas (muitas das quais são ainda desconhecidas) e uma variedade de evoluções dependendo do equilíbrio de influências genéticas, físicas, sociais e culturais. (OMS, 1993Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação internacional de doenças: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 11)

Diante desse projeto de classificação que tem como base o ateorismo, o termo “doença mental” apresenta-se como impossibilidade para sua realização. Sabemos que a classificação em doença mental implica, necessariamente, em obedecer a critérios do método anatomopatológico: partindo-se dos sinais e sintomas observados, busca-se por lesões e/ou disfunções cerebrais correspondentes. Desse modo, de acordo com (Aguiar, 2004Aguiar, A. (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.), a especificidade de um marcador biológico permitirá então a explicação etiológica da doença.

Porém, a etiologia ainda é continente obscuro para os promotores de sistemas de classificação - não só da CID-10, como também do DSM. O termo “transtorno” é usado por toda a classificação, de forma a evitar problemas ainda maiores, inerentes ao uso de termos como “doença” ou “enfermidade”. Está claro que “os problemas inerentes” a esses termos referem-se aos aspectos etiológicos envolvidos. A recusa ao debate etiológico das doenças é reforçada pela busca de termo imune às implicações teóricas e também etiológicas. Transtornos mentais são frequentemente associados a sofrimento e incapacidade, que geram comprometimento na sociabilidade do indivíduo (American Psychiatric Association [APA], 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.).

Diante da ausência desse marcador biológico que possibilita afirmar sobre a etiologia, a saída encontrada foi a ignorância - seria mais fácil ignorar os mecanismos etiológicos das doenças do que reavivar o debate histórico no campo da psicopatologia entre os chamados organicistas e os psiquistas. O abandono estratégico da expressão “doença mental” e a adoção do termo “transtorno” (disorder) é o ponto principal para a fundamentação de sistema de classificação que almeja garantir o status de científico e, por sua vez, assegurar a pretensa universalidade.

Percebe-se que alguns transtornos são de caráter provisório e transitório, ou seja, têm validade premeditada, e que, dependendo da duração dos sintomas, são reclassificados em outros transtornos. Em muitos casos, o tempo de duração dos sinais e sintomas é o limiar para o estabelecimento de dois diagnósticos diferentes.

Nessa perspectiva, a noção de comorbidade torna-se ponto questionável. Comorbidade é a ocorrência simultânea de dois ou mais transtornos psiquiátricos, podendo ter os mais variáveis diagnósticos para um mesmo caso e reunindo muitas vezes categorias de sintomas contraditórios. O DSM III, publicado em 1980, baseou-se numa hierarquização dos diagnósticos a partir da identificação de apenas uma patologia para englobar todos os sintomas que constituem o estado de um paciente. Entretanto, com o advento do DSM-III-R, em 1987, essa hierarquização de eixos diagnósticos foi substituída, em detrimento do conceito de comorbidade (Kyrillos Neto, Silva, Pederzoli, & Hernandes, 2011Kyrillos Neto, F., Silva, C., Pederzoli, A., & Hernandes, M. (2011). DSM e psicanálise: uma discussão diagnóstica. Revista da SPAGESP, 12(2), 44-55. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702011000200006
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).

Como resultado, tem-se a prevalência de duas ou mais categorias diagnósticas de eixos distintos no estabelecimento de um diagnóstico, ou seja, dois ou mais diagnósticos para o mesmo sujeito. O conceito de comorbidade continuou presente na revisão da quarta edição do manual (DSM-IV-TR) e é amplamente utilizado no DSM-V (Matos, E., Matos, T., & Matos, G., 2005Matos, E. G., Matos, T. M. G., & Matos, G. M. G. (2005). A importância e as limitações do uso do DSM-IV na prática clínica. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 27(3), 312-318.). Para os revisores do DSM-V, a comorbidade, em casos de transtornos psiquiátricos, é regra, e não exceção.

DSM-IV-TR e DSM-V: um realismo ingênuo na definição dos critérios da psicose

Tomemos agora a definição de psicose no DSM-IV-TR, sistema diagnóstico multiaxial e categorial, o que significa que ele trabalha com cinco eixos, cada um abrangendo um domínio de informações. O Eixo I compreende os transtornos clínicos e outras condições que podem ser foco de atenção clínica; fazem parte desse eixo a esquizofrenia e outros transtornos psicóticos. O Eixo II abrange os transtornos da personalidade e o retardo mental. O Eixo III diz respeito às condições médicas gerais relevantes para diagnóstico e tratamento. O Eixo IV refere-se aos problemas psicossociais e ambientais que podem afetar igualmente o diagnóstico e o tratamento do transtorno verificado no Eixo I. Por último, o Eixo V apresenta a Avaliação Global de Funcionamento.

Assim como em sua penúltima edição, o DSM-V deixa de ter uso exclusivamente clínico. Essencialmente, (Laurent, 2013Laurent, E. (2013). L’abandon du DSM-V. La lettre mensuelle, (320), 21-23.) aponta que poucas coisas mudaram entre o DSM-IV-TR e o DSM-V, uma vez que “o DSM continua fundado em um ‘consenso sobre os reagrupamentos de sintomas clínicos’, e não sobre uma medida ‘objetiva’ do que quer que seja” (p. 21). O modelo de diagnóstico categorial adotado nas últimas edições foi substituído pelo modelo longitudinal, proporcionando caráter preditivo aos diagnósticos. Os revisores do DSM-V assim justificam a mudança na estrutura do manual:

Os resultados de numerosos estudos sobre comorbidade indicavam que os limites entre várias “categorias” de transtornos são mais fluidos ao longo do curso de vida ... e vários sintomas atribuídos a um único transtorno podem ocorrer, em diferentes níveis de gravidade, em vários outros transtornos. Esses achados indicam que o DSM ... deve buscar maneiras de introduzir abordagens dimensionais a transtornos mentais. (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 5)

Contudo, há de se destacar um movimento que tem sido denominado de “um choque de titãs em saúde mental” (APA, 2013American Psychiatric Association. (2013). NIMH funding to shift away from DSM categories. Recuperado de http://www.apa.org/monitor/2013/07-08/nimh.aspx
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) a respeito do advento do DSM-V. (Laurent, 2013Laurent, E. (2013). L’abandon du DSM-V. La lettre mensuelle, (320), 21-23.) chama a atenção para o fato de que, semanas antes do lançamento da quinta edição do DSM, o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) dos Estados Unidos, ao propor novo projeto de pesquisa diagnóstica dos transtornos mentais, o Research Domain Criteria (RDoC), revelou que se absterá do financiamento de pesquisas baseadas nas categorias diagnósticas do DSM. (Fajnwaks, 2013Fajnwaks, F. (2013). L’avenir de la psychiatrie = La neuroscience clinique. La lettre mensuelle, (320), 23-25.) pontua que a criação de nova classificação a partir do RDoC, fundamentada em abordagem biogenética e na utilização de neuroimagens, representa sentença de morte do projeto classificatório para o diagnóstico de doença mental nos moldes do DSM. Segundo (Laurent, 2013Laurent, E. (2013). L’abandon du DSM-V. La lettre mensuelle, (320), 21-23., p. 21),

trata-se de agrupar, em um projeto intitulado Research Domain Criteria (RDoC), tudo o que foi isolado pela ciência como sendo sinais objetivos no campo da psicopatologia: neuroimagem, marcadores genéticos prováveis, alteração das funções cognitivas e de seus circuitos objetiváveis, nos três domínios essenciais: cognição, emoção e condutas. O RDoC tem como objetivo estabelecer a cartografia (mapping) do conjunto desses aspectos através do continuum do campo, passando por cima das diferentes etiquetas e sub-grupos do DSM que se dividem infinitamente. (Laurent, 2013Laurent, E. (2013). L’abandon du DSM-V. La lettre mensuelle, (320), 21-23., p. 21, tradução nossa)

O DSM, responsável pela precipitação de clínica de inspiração lógicopositivista e que tem sido a ferramenta principal para diagnóstico e classificação de transtornos mentais, poderá sofrer modificação nesse status com o novo projeto RDoC do NIMH, que incorpora evidências comportamentais e da neurociência.

(Fajnwaks, 2013Fajnwaks, F. (2013). L’avenir de la psychiatrie = La neuroscience clinique. La lettre mensuelle, (320), 23-25.) observa que esse movimento resume a atual mudança do paradigma que orienta a questão dos diagnósticos psiquiátricos. A julgar pelas reações que precederam e acompanharam a recente publicação do DSM-V, é possível concluirmos que estamos testemunhando o fim de uma era: o fim da era de classificações inconsistentes presentes no DSM.

Essa mudança de paradigmas no que diz respeito ao diagnóstico é orientada pelo que se denomina de autoridade no campo da neuropsiquiatria: os resultados de biologia molecular (neurociência e genética). O uso da neurociência para o diagnóstico é defendido pelos promotores do RDoC como meio seguro, materialista e científico diante da inconsistência das classificações do DSM e da hiperinflação de diagnósticos, consequente à criação desse manual. Em contrapartida, haveria o estabelecimento de uma “neurociência clínica” no campo do sofrimento psíquico, especificamente na construção diagnóstica.

Retomemos. Na parte introdutória, em relação aos usos e conceitos do DSM-IV-TR, encontra-se a afirmação: “os conjuntos de critérios foram simplificados e esclarecidos, quando isso podia ser justificado por dados empíricos” (APA, 2004American Psychiatric Association. (2004). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV-TR. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 14). A estratégia utilizada para evitar recorrer aos sistemas explicativos - o que garantiria o ateorismo e a cientificidade do manual - é amparada, como veremos a seguir com a definição do termo “psicótico”, na tentativa de não estender as margens das definições, apelando para descrição e pura visibilidade do fenômeno.

O DSM-IV-TR justifica que o termo “psicótico” nunca teve definição amplamente aceita e, para fins desse manual, foi “conceitualmente definido como uma perda dos limites do ego ou um amplo prejuízo do teste de realidade” (APA, 2004American Psychiatric Association. (2004). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV-TR. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 303), em contraposição à definição usada em classificações anteriores, que eram demasiado abrangentes. No DSM-IV-TR, “psicótico” é reduzido à presença de certos sintomas, que variam em certo grau entre as categorias diagnósticas.

O termo “psicótico” delimitou-se a partir de três acepções que vão de plano mais restrito a plano mais amplo. Em definição mais restrita, ele especificaria a presença de delírios e alucinações sem o insight de sua natureza patológica. Em definição intermediária, a psicose seria caracterizada pela presença de alucinações, mas o sujeito as perceberia como experiências patológicas. Por fim, em perspectiva mais ampla, são considerados, além de delírios e alucinações, os sintomas positivos da esquizofrenia, como o discurso desorganizado e a catatonia. No primeiro caso, teríamos o transtorno psicótico em razão da condição médica geral, e o transtorno psicótico induzido por uso de substâncias; no segundo caso, teríamos os transtornos delirantes e os transtornos psicóticos induzidos, e “psicose” seria quase sinônimo de “delírio”; no terceiro caso, a esquizofrenia, os transtornos esquizofreniforme, os transtornos esquizoafetivos e os transtornos psicóticos breves (APA, 2004American Psychiatric Association. (2004). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV-TR. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.). De forma argumentativa, o manual justifica que o agrupamento feito em termos mais restritos e mais amplos é um facilitador do diagnóstico diferencial dos transtornos que incluem sintomas psicóticos como aspecto proeminente de sua apresentação, afirmando que a diferença entre eles está na frequência e que não há etiologia comum entre eles (Calazans & Bastos, 2013Calazans, R., & Bastos, T. (2013). O manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais e a psicose. Perspectivas en psicología, 10(4), 26-32. Recuperado de http://www.seadpsi.com.ar/revistas/index.php/pep/article/view/64/pdf
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).

Se a presença ou a ausência de delírios e alucinações é o critério para a categorização de transtorno psicótico, devemos então nos atentar em como o DSM-IV-TR os define. Alucinação é definida como “uma percepção sensorial que apresenta a sensação de realidade de uma verdadeira percepção, mas que ocorre sem a estimulação externa do órgão sensorial relevante” (APA, 2004American Psychiatric Association. (2004). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV-TR. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 766). O delírio é, por sua vez, tomado como

falsa crença baseada em uma inferência incorreta acerca da realidade externa, firmemente mantida, apesar do que quase todas as outras pessoas acreditam e apesar de provas ou evidências incontestes em contrário. A crença não é habitualmente aceita por outros membros da cultura ou sub-cultura. (APA, 2004American Psychiatric Association. (2004). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV-TR. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 767)

Essas definições permaneceram com a atual edição do manual. No DSM-V (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) os delírios são definidos como “crenças fixas, não passíveis de mudança à luz de evidências conflitantes” (p. 87). O grau de convicção com que a crença é defendida, “apesar de evidências contraditórias claras ou razoáveis acerca de sua veracidade” (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 87), é o elemento que distinguiria o delírio de uma ideia firmemente defendida. Já a condição de que as alucinações devem ocorrer no contexto de um “sensório sem alterações” permanece como definidor das alucinações: “são experiências semelhantes à percepção que ocorrem sem um estímulo externo. São vívidas e claras, com toda a força e o impacto das percepções normais, não estando sob controle voluntário” (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 88).

Ora, essas definições têm o inconveniente de se ater a descrições fenomênicas a partir do que (Chalmers, 1993Chalmers, A. (1993). O que é ciência afinal? São Paulo, SP: Brasiliense.) denomina “realismo ingênuo”. A realidade tomada como evidência, como fato que se impõe por si mesmo, promove, nas palavras de (Kyrillos Neto e Calazans, 2012Kyrillos Neto, F., & Calazans, R. (2012). DSM: nova versão, velhas questões, antigas pretensões. In F. Kyrillos Neto & R. Calazans, Psicopatologia em debate: controvérsias sobre os DSMs (pp. 9-17). Barbacena, MG: EdUEMG.), “uma nova fé jurada na existência de fatos indeléveis independente de um discurso” (p. 12). Ao privilegiar a dimensão do observável e empiricamente acessível dos transtornos psíquicos, temos como consequência a desconsideração da dimensão estruturante do olhar (Kyrillos Neto & Calazans, 2012Kyrillos Neto, F., & Calazans, R. (2012). DSM: nova versão, velhas questões, antigas pretensões. In F. Kyrillos Neto & R. Calazans, Psicopatologia em debate: controvérsias sobre os DSMs (pp. 9-17). Barbacena, MG: EdUEMG.). Nesse sentido,

qualquer perspectiva clínica que considere ter acesso a uma realidade objetivante que seja capaz de servir de critério de demarcação entre realidade e fantasia não passa de uma doutrina positivista com consequências políticas devastadoras com respeito à subjetividade. A realidade empírica não poderia ser o esteio do sentido, uma vez que o lugar do objeto para a psicanálise é vazio. Não há realidade extralinguística capaz de dar suporte ao significante. (Cardoso & Lustoza, 2012Cardoso, M., & Lustoza, R. (2012). A reflexão lacaniana acerca do nome-próprio como fundamento da lógica diagnóstica em psicanálise. In F. Kyrillos Neto & R. Calazans (Orgs.), Psicopatologia em debate: controvérsias sobre os DSMs (pp. 115-145). Barbacena, MG: EdUEMG., p. 119)

(Almeida, 2008Almeida, J. (2008). Algumas considerações filosóficas sobre delírio e alucinação no DSM-IV. In: S. Aires, C. Ribeiro (Orgs.), Ensaios de filosofia e psicanálise (pp. 1-24). Campinas, SP: Mercado de Letras. Recuperado de http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/textos/dsm_iv.pdf
http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/...
) argumenta que a orientação filosófica do DSM não é estudada, apenas incorporada. Teríamos, ali, empirismo de vulgata. E, como a pretensão do empirismo, em geral, é a de ter acesso à realidade com o mínimo de carga metafísica possível, o efeito mais imediato do empirismo e da assepsia metafísica é a correlação necessária que o DSM estende entre as definições de delírio e de alucinação e o chamado “teste de realidade”.

O uso exacerbado de definições fenomênicas, como proposto pelo DSM-IV e também pela CID-10, impossibilita diferenciar uma psicose do que ela não é, ou seja, o estabelecimento de um diagnóstico diferencial - pois, com essas definições e com esses critérios, como poderíamos considerar, por exemplo, conversões histéricas, pensamentos e atos compulsivos como comportamentos fóbicos? Eles não prejudicam o convívio social? Se levarmos a sério a questão de que na esquizofrenia temos discurso desorganizado, também não poderemos encontrar em alguns transtornos que não são psicóticos a mesma desorganização discursiva? Por outro lado, não temos paranoicos com montagem discursiva sem desorganização? As ideias fóbicas não são inaceitáveis para o convívio social e não poderiam ser consideradas como “falsas crenças”? Consideraremos então como delirante - e, consequentemente, como psicótico - todo fóbico? A percepção da anoréxica que diz estar gorda não poderia ser considerada verdadeira e sem “estimulação externa do órgão sensorial relevante”? Essas são algumas questões tributárias da definição meramente descritiva e amparada em julgamento objetivo da realidade - realidade essa que se impõe ao sujeito em detrimento de sua orientação na relação com o Outro e com seus modos de gozo.

A psicose e a construção subjetiva da realidade em psicanálise

A ideia de realidade meramente dada, imposta objetivamente ao sujeito, é criticada pela psicanálise. Articulando percepção e representação, (Freud, 1891/1979Freud, S. (1979). A interpretação das afasias (A. P. Ribeiro, trad.). Lisboa, Portugal: Ed. 70. (Trabalho original publicado em 1891)) conceitua a realidade a partir de atribuição de sentido. Ou seja, a atribuição de sentido medeia a relação sujeito-percepção, que constitui a realidade.

A realidade foi trabalhada por Freud de forma indireta: a impossibilidade de definir substrato anatomofisiológico para a histeria colocou em xeque, segundo (Estevão, 2009Estevão, I. (2009). A realidade, entre Freud e Lacan (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-09122009-085019/pt-br.php
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), a acepção de realidade que Freud formara como médico. Especificamente com relação à psicose, “A perda de realidade na neurose e na psicose” (1924/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)) é um texto de grande importância.

(Freud, 1924/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)) demarca a distinção entre neurose e psicose na relação com a perda da realidade, assinalando algumas semelhanças e diferenças desse afastamento da realidade. Na neurose, o eu obedece às exigências da realidade e recalca as reivindicações pulsionais. Na psicose, o eu está sob o domínio do isso e se afasta da realidade. Para Freud, o afastamento da realidade nas psicoses ocorre em primeira etapa, no momento em que o eu rejeita a realidade externa, e, em segunda etapa, à medida que o eu tenta substituir a realidade externa pela realidade delirante: “também na psicose duas etapas pudessem ser discernidas, das quais a primeira arrastaria o eu para longe, dessa vez para longe da realidade, enquanto a segunda tentaria reparar o dano causado e restabelecer as relações do indivíduo com a realidade” (Freud, 1924/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924), p. 230).

O delírio seria a tentativa de reconstrução de nova realidade. “O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da realidade” a partir da “criação de uma nova realidade” (Freud, 1924/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924), p. 230). Enquanto a neurose apenas ignora a realidade, a psicose a repudia e tenta substituí-la. É importante destacar que essa relação com a realidade não é de forma alguma estática, unilateral e “objetiva”:

a transformação da realidade é executada sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com ela - isto é, sobre os traços de memória, as idéias e os julgamentos anteriormente derivados da realidade e através dos quais a realidade foi representada na mente. Essa relação, porém, jamais foi uma relação fechada; era continuamente enriquecida e alterada por novas percepções (Freud, 1924/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 229-234). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924), p. 231).

O modo como o DSM-IV-TR e a atual edição do manual (DSM-V) definem a alucinação tem como base a ideia de erro de percepção, mais especificamente, correlacionando a idéia da adequação da percepção à realidade, o que se daria por meio dos órgãos dos sentidos. (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1937)) diz que os fenômenos perceptivos demandam esforço de trabalho minucioso, uma vez que daí se estabelecem formulações daquilo que é chamado de objetividade.

A questão da percepção foi introduzida na psicanálise a partir da experiência de Freud sobre a neurose e sobre suas relações com a realidade, especificamente a partir da neurose sob transferência: “o próprio sujeito do inconsciente, na medida em que ele entra em jogo na transferência, que introduz o problema da percepção na psicanálise” (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1937), p. 25). Nessa perspectiva, (Nasio, 1997Nasio, J.-D. (1997). A alucinação e outros estudos lacanianos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) aponta que só há alucinação no seio da relação com o outro, inscrevendo a questão da alucinação no âmbito prático e teórico da relação transferencial.

Partindo dos pressupostos freudianos, a realidade em Lacan está quase sempre marcada pelo simbólico como subjetivação da dimensão significante (Vieira, 2003Vieira, M. (2003). Da realidade ao real: Jacques Lacan e a realidade psíquica. Pulsional, 16(174), 56-60. Recuperado de http://litura.com.br/artigo_repositorio/realidade_psiquica_pdf_1.pdf
http://litura.com.br/artigo_repositorio/...
). (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)) realizou crítica relevante à determinação da alucinação como perturbação da realidade, reeditada e propalada pelos manuais classificatórios. Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)), a pretensa unidade de percipiens é questionada.

Nesse texto, são sistematizadas as formulações que acompanharão todo o ensino lacaniano em relação à psicose (salvo a reformulação de conceitospilares, que se depreendeu da chamada “segunda clínica”): a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, o fracasso da metáfora paterna e a ausência da significação fálica. Lacan realiza análise semântica dos fenômenos da psicose, tendo como base a relação do sujeito com o significante.

A crítica empreendida sobre a noção de sujeito da percepção (percipiens) e de objeto percebido (perceptum) e sua articulação na proposição clássica defendida pela maioria das posições teóricas a respeito dos fenômenos perceptivos é a de que a alucinação seria perceptum sem objeto:

Ousamos, com efeito, pôr no mesmo saco, digamos assim, todas as posições nessa matéria, quer sejam mecanicistas ou dinâmicas, quer a gênese seja do organismo ou do psiquismo, e a estrutura, da desintegração ou do conflito, sim, todas elas, por mais engenhosas que se mostrem, na medida em que, em nome do fato manifesto de que uma alucinação é um perceptum sem objeto, essas posições contentam-se em pedir ao percipiens justificativa desse perceptum, sem que ninguém dê conta de que, nesse pedido, um tempo é saltado: o de interrogar se o perceptum em si deixa um sentido unívoco no percipiens aqui requisitado a explicá-lo. (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 538)

Lacan reúne todas essas teorias em função da mesma incapacidade de explicar a alucinação. A consequência dessa proposição compartilhada de que a alucinação é o perceptum sem objeto é pedir ao sujeito da percepção uma justificativa desse perceptum, sem que se interrogue se esse perceptum produz sentido nesse sujeito.

Para pensar o fenômeno da alucinação, como explica (Quinet, 2004Quinet, A. (2004). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), Lacan retoma a orientação da fenomenologia segundo a qual não há fenômeno sem o sujeito da percepção: “o percipiens, longe de ser exterior, participa do perceptum, o sujeito da percepção estando incluído no percebido” (p. 36). Husserl postula que o sujeito da percepção não está fora do mundo, do fenômeno. O autor introduz o sujeito e sua imanência no próprio fenômeno: “toda posição de um ‘ser não imanente’, de um ser não contido no fenômeno ... fica colocada fora do circuito, ou seja, suspensa (Husserl apud Quinet, 2004Quinet, A. (2004). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 36).

Apesar de compartilhar da enunciação de Husserl a respeito de o próprio sujeito da percepção fazer parte do fenômeno, Lacan trata de um sujeito dividido e determinado pela linguagem, em contrapasso ao fato de que a “fenomenologia da percepção está organizada a partir da concepção de um sujeito unificado (o sujeito que percebe) e de uma unidade antepredicativa do objeto” (Sanábio, 2010Sanábio, V. (2010). A (não) extração do objeto a na psicose: algumas notas sobre o Homem dos Lobos. Revista Estudos Lacanianos, 3(4). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-07692010000100010&lng=es&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, para.29). Desse modo, em psicanálise, o fenômeno deve ser antes analisado como estruturado pelas relações significantes: “o perceptum tem uma estrutura de linguagem, pois está na dependência do percipiens que habita um universo de discurso estruturador de sua realidade e percepções” (Quinet, 2004Quinet, A. (2004). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 38).

Devido à estrutura de linguagem que determina tanto o sujeito da percepção quanto o percebido, o percipiens é dividido e o perceptum é equívoco. Assim, o percebido também é estruturado pelo simbólico e organizado pelos significantes, aqueles que se prestam à atribuição de sentido para a nomeação dos dados da percepção. Essas proposições reforçam a tese de que a realidade, longe de ser dado objetivo e tomada como evidência nos moldes das definições nos DSMs, é antes mediada pelo simbólico, o que significa assinalar que a organização da realidade perceptiva é da ordem do significante:

É próprio do significante a dubiedade ... . Se o significante organiza o perceptum não se pode pensar em unidade, pelo contrário, o objeto pode se inscrever em diversos sentidos. Além disso, o que está em jogo na mediação entre o percipiens e o perceptum é a relação com o Outro, que Lacan descreve no esquema L. (Estevão, 2009Estevão, I. (2009). A realidade, entre Freud e Lacan (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-09122009-085019/pt-br.php
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, p. 148)

O esquema L representa a relação alienante, atravessada pelo imaginário, entre o sujeito e o Outro, e o muro da linguagem. Evidenciando três significantes a partir do complexo de Édipo (a mãe, a criança e o falo), Lacan constrói triângulo imaginário que será sobreposto ao esquema L, formalizando, assim, o esquema R e o campo da realidade. Nesse esquema, “podemos apreender como o aprisionamento homológico da significação do sujeito S sob o significante do falo pode repercutir na sustentação do campo da realidade” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 559). A partir do esquema R, Lacan se pergunta se seria possível situar os pontos geométricos desse esquema num esquema da estrutura do sujeito ao término do processo psicótico, articulando, assim, o Esquema I:

Figura 1
Esquema I

Tomando como referência Schreber e sua “solução elegante”, o Esquema I é a topologia utilizada por Lacan relacionada à constituição da realidade na psicose, representada por dupla ausência em relação ao esquema anteriormente formulado: o Nome-do-Pai no simbólico e o falo no imaginário. Reunidos nesse esquema, “destacam-se as relações pelas quais os efeitos de indução do significante, recaindo no imaginário, determinam esse transtorno do sujeito que a clínica designa sob as feições de crepúsculo do mundo, exigindo, para responder a ele, novos efeitos de significantes” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 579). Ao Esquema I, Lacan inscreve a importância da “função da realidade nesse processo, tanto em sua causa quanto em seus efeitos” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 580), sintetizando a relação do sujeito ao Outro na estrutura psicótica e revelando o efeito da foraclusão do Nome-do-Pai.

Nesse sentido, não há nada na alucinação na psicose que estaria fora da estrutura simbólica da linguagem. Essa afirmação é ilustrada por Lacan com análises do caso Schreber que permitem pensar a psicose em termos de significantes:

Dessa estrutura, o sujeito nos fornece os seguintes exemplos [Memórias..., p. 176]): (1) Nun will ich mich... (agora eu vou me...); (2) Sie sollen nämlich (Você deve de fato...); (3) Das will ich mir... (Nisso eu quero...), para nos atermos a estes, aos quais ele tem que retrucar com seu suplemento significativo, que não lhe traz dúvidas, a saber: (1) render-me ao fato de que sou idiota; (2) quanto a você ser expulso (palavra da língua fundamental) como renegador de Deus e afeito a uma libertinagem voluptuosa, sem falar o resto; (3) pensar bem. (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 546)

Nesse trecho, Lacan exemplifica, a partir das memórias de Schreber, os fenômenos de mensagem e código presentes na psicose como efeito de alterações na estruturação significante e resultado da “predominância da função do significante nessas duas ordens de fenômenos” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 546). Os fenômenos de código referem-se às locuções neológicas em que o “próprio significante é o objeto da comunicação” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958), p. 544), o que demonstra a separação radical entre significante e significado. Os fenômenos de mensagem dizem respeito ao momento em que a frase é interrompida justamente no ponto em que surgiria a significação, revelando a quebra da cadeia significante. Às frases “Agora eu vou me...”, “Você deve de fato...”, e “Nisso eu quero...”, Schreber responde na tentativa de darlhes sentido: (1) “render-me ao fato de que sou idiota”, (2) “ser exposto como renegador de Deus”, e (3) “pensar bem”. Assim, Lacan busca, nos fenômenos da psicose, especificamente nas duas ordens de fenômenos de código e mensagem, “representar as conexões internas do significante na medida em que estruturam o sujeito” (Lacan, 1958/1998, p. 547) e sua realidade.

Considerações finais

Nos manuais classificatórios analisados neste trabalho, a psicose é referida a estatuto descritivo convencional como estratégia de recusa ao debate etiológico. Ao privilegiar o que se procura compreender como sinais de objetividade incontestável, o DSM se esforça em contornar qualquer reflexão teórica (Álvarez, Esteban, & Sauvagnat, 2004Álvarez, J., Esteban, R., & Sauvagnat, F. (2004). Fundamentos de psicopatologia psicoanalítica. Madrid, España: Sintesis.).

A “sensação de realidade de uma verdadeira percepção, mas sem a estimulação externa do órgão sensorial relevante” (APA, 2004American Psychiatric Association. (2004). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV-TR. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 766), é a definição da alucinação arquitetada pelo DSM como um dos critérios para a classificação de transtorno psicótico. Essa definição é mais uma reedição de uma descrição conveniente que tem sido propagada ao longo da história da psicopatologia: a alucinação é percepção sem objeto. A nosso ver, outro questionamento se impõe nessa problemática: qual o estatuto da realidade utilizada pelo manual ao definir a alucinação como erro de percepção? Ela não poderia ser senão realidade pressuposta, tomada como evidência e, principalmente, que se impõe como dado objetivo ao sujeito?

Sendo a organização da realidade perceptiva mediada pelo simbólico e estruturada pela ambiguidade significante, somos compelidos a assegurar que a relação da percepção com a realidade não é tão ingênua como a definição proposta pelo DSM.

Ao formalizar a dependência da ordem simbólica tanto na estruturação do sujeito (que não é um percipiens unificador) quanto no campo da percepção, Lacan inova não só por refutar a definição clássica da alucinação como perceptum sem objeto, mas também por creditar o lugar da linguagem nessa articulação:

A tese, portanto, é esta: o campo da percepção é um campo ordenado, mas ordenado em função das relações do sujeito com a linguagem, e não ordenado pelo aparelho cognitivo, não ordenado pela mirada perceptiva. A tese é radical. Implica que a linguagem não é um instrumento do sujeito, mas um operador, no sentido de que produz o próprio sujeito. Ela é também totalmente nova e extrema, porque Lacan visa todo o campo da percepção, e não apenas o da percepção da linguagem e da fala. (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1937), p. 34)

Concordamos com (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1937)) ao acentuar que não podemos nos esquecer de que a relação com a realidade, em geral, especificamente a percepção, não deixa de estar sob a incidência do inconsciente. É a descoberta freudiana de outra realidade, a realidade psíquica, que para Lacan não é antepredicativa e não está aquém da linguagem.

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  • 1
    Informações sobre financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Funding information: National Council for Scientific and Technological Development.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2014
  • Revisado
    11 Ago 2015
  • Aceito
    29 Dez 2015
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