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Vidas secretadas: notas sobre a perversão no Programa de Proteção a Testemunhas

Vies sécrétées: notes sur la perversion dans le Programme de Protection de Témoins

Vidas ocultas: apuntes sobre la perversión en el Programa de Protección a Testigos

Resumo

Este artigo aborda a perversão no campo social e na clínica, compreendendo a clínica como uma área de investigação através da qual se pode ter acesso aos fenômenos sociais e aos discursos dominantes. Trabalha-se com a pesquisa em psicanálise, optando-se por dialogar fundamentalmente com leituras de dois autores - Contardo Calligaris e Edilene Queiroz - que partem de suas experiências na clínica psicanalítica para tecer análises sobre o social. Tomando um texto de Calligaris, intitulado “A sedução totalitária” (1991), juntamente com o livro A clínica da perversão (2004) de Queiroz, procura-se entrelaçá-los, tendo como fio condutor uma experiência profissional no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita). Alguns conceitos psicanalíticos utilizados neste estudo são: a estrutura, o discurso e a montagem perversa, como pontos nodais da análise clínica e social. A experiência de trabalho com testemunhas inseridas no Provita possibilitou algumas associações com aspectos concernentes ao campo da perversão.

Palavras-chave:
perversão; clínica; social; programa de proteção a testemunhas

Résumé

Cet article adresse la perversion dans le champ social et dans la clinique, y compris la clinique comme étant une zone d’investigation à travers duquel il est possible d’avoir accès aux phénomènes sociaux et aux discours dominants. On travaille avec la recherche dans la psychanalyse, avec l’option de dialoguer principalement avec deux auteurs - Contardo Calligaris et Edilene Queiroz - qui partagent ses expériences dans la clinique psychanalytique afin de créer des analyses sur le social. En utilisant un texte de Calligaris, intitulé « La seduction totalitaire » (1991), et le titre « La clinique de la perversion (2004) de Queiroz, on cherche les combiner, ayant comme fil conducteur l’expérience professionnel dans le Programme de Protection de la Victime et Témoins Menacés. Quelques concepts psychanalytiques utilisés dans cette étude sont : la structure, le discours et le montage pervers, comme étant des points modaux de l’analyse critique et sociale. L’expérience de travail avec les témoins insérés dans le Provita a permis l’association avec des aspects concernant le champ de la perversion.

Mots-clés:
perversion; clinique; social; Programme de Protection à la Temoin

Resumen

El presente plantea la perversión en el campo social y en la clínica, comprendiendo la clínica como un área de investigación a través de la cual se puede acceder a los fenómenos sociales y a los discursos dominantes. Se trabaja con la investigación en psicoanálisis, optando por dialogar fundamentalmente con lecturas de dos autores - Contardo Calligaris y Edilene Queiroz - quienes parten de sus experiencias en la clínica psicoanalítica para tejer análisis sobre el social. Considerando el texto de Calligaris, titulado La seducción totalitaria (1991), junto con el libro La clínica de la perversión (2004) de Queiroz, se intenta entrelazarles, con el hilo conductor de la experiencia profesional en el Programa de Protección de Víctimas y Testigos amenazado. Algunos conceptos psicoanalíticos utilizados en este estudio son: la estructura, el discurso y el montaje perverso como los nudos del análisis clínico y social. La experiencia de trabajar con testigos insertados en el Provita hizo posible asociaciones con aspectos relativos al campo de la perversión.

Palabras clave:
perversión; clínica; social; Programa de Protección a Testigos

Abstract

This article addresses perversion in the clinical and social field, comprehending the clinic as a field of investigation through which it is possible to access the current social phenomena and dominant discourses. We worked with research in psychoanalysis, choosing to dialogue mainly with readings of two authors - Contardo Calligaris and Edilene Queiroz - who use their experience in the psychoanalytical clinic to build an analysis concerning the social field. Taking a text by Calligaris (1991) entitled A Sedução Totalitária (1991), along with the book A Clínica da Perversão (2004), by Queiroz, we intended to merge them, having as common thread a professional experience working in the Witness Protection Program (Provita). Some of the psychoanalytical concepts that are used in this study are the perverse structure, discourse and assembly, as nodal points of the clinical and social analysis. The working experience with the witnesses in the Program enabled some associations with aspects concerning the field of perversion.

Keywords:
perversion; clinic; social; Witness Protection Program

Considerações preliminares

Este trabalho tece considerações acerca da perversão na clínica psicanalítica e no âmbito social. Através do atendimento clínico ou institucional a pacientes, é possível identificar alguns fenômenos sociais e discursos que circulam em nossa época. Para este estudo, trabalhamos com a leitura de textos de dois importantes autores da psicanálise e, mais particularmente, do campo da perversão: Contardo Calligaris e Edilene Queiroz. Partimos do pressuposto de que uma leitura sempre nos remete a outras leituras e outras associações, como se infere a partir de uma expressão de Roland Barthes sobre “ler levantando a cabeça” (Barthes, 1988Barthes, R. (1988). O rumor da língua. Rio de Janeiro, RJ: Brasiliense., p. 40). Ao longo da leitura dos referidos textos, associamos a perversão a alguns aspectos verificados no trabalho com testemunhas inseridas no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita).

A pertinência da realização de um estudo sobre a perversão se justifica levando em consideração o que (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.) salienta ao afirmar que, durante os cem anos da psicanálise, muito se produziu sobre a neurose e a psicose, enquanto a perversão ficou numa espécie de limbo, tendo surgido pouca literatura sobre sua clínica. No entanto, nas últimas décadas percebe-se uma mudança nesse cenário, de modo que o tema da perversão tem sido objeto de discussões em pesquisas acadêmicas (teses, dissertações e artigos científicos), assim como em congressos e encontros. Segundo a autora, o interesse atual marca mudanças no campo social contemporâneo, assim como marca a “emergência de novas formas de sintomas relacionados a esse quadro clínico, ao mesmo tempo em que revela um esforço em organizar um saber sobre a especificidade da perversão e de sua clínica” (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta., p. 15).

Clínica fenomenológica versus clínica estrutural

Contardo Calligaris escreveu sua tese de doutorado sobre a perversão como patologia social. Em uma conferência realizada na Bahia, ainda em 1986, ele discorreu sobre a perversão de um ponto de vista social. Nesta, a pergunta que norteia a sua apresentação é: a perversão poderia ser uma forma de laço social? Para responder a essa indagação, ele inicia dizendo que habitualmente falamos da perversão a partir de uma fenomenologia considerada por ele como inaceitável: a fenomenologia da conduta sexual dita desviante. Ele explica, então, por que essa fenomenologia seria inaceitável elencando duas ordens de razões.

A primeira razão seria epistemológica, porque o catálogo das perversões ditas sexuais (sadismo, masoquismo, voyeurismo etc.) foi estabelecido pelo direito canônico, tendo sido uma herança deste para a medicina no início do século XIX, ou seja, quando o direito moderno, ou direito napoleônico, deixou de se interessar pela vida privada das pessoas. Assim, uma clínica não pode justificar um conjunto de fenômenos que são reunidos por uma desaprovação de ordem moral (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.).

Em seguida, ele aborda a segunda ordem de razões, que seria mais propriamente psicanalítica. Sendo a clínica psicanalítica uma clínica estrutural e fundada na transferência, esta não parte de fenômenos objetivados e sim diretamente da estrutura. Assim, não se fazem diagnósticos a partir de fenômenos elementares, mas a partir da maneira como uma transferência se amarra. Segundo ele, não podemos estabelecer um diagnóstico de perversão a partir de uma conduta sexual (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.).

(Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.) passa, então, a descrever como se apresenta o perverso na transferência, sendo sempre de duas maneiras: a primeira é no registro da cumplicidade, do lugar do instrumento e do saber - ele fala com o analista como se este fosse o outro lugar, como se estivesse com ele no mesmo fantasma. A segunda maneira é o desafio - neste caso ele fala como se o analista fosse o Outro, mas no desafio, pois se o analista é o Outro, é ele (o paciente) quem sabe como fazê-lo gozar.

Edilene Queiroz dedicou-se a uma pesquisa clínica extensiva sobre o discurso perverso, o que resultou no livro A clínica da perversão (2004). Nesse livro, a autora aborda a perversão também a partir da transferência na clínica, de um ponto de vista da relação analista-analisante, focando nas características do discurso do paciente. Sabemos que a transferência permite que apareça na clínica, de modo intensificado, aquilo que ocorre de modo difuso no campo social. A transferência é entendida como a reedição de certos modelos de relação. (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.) se reporta ao discurso perverso - e não exclusivamente ao discurso do perverso - e toma como referência “um tipo de discurso produzido por sujeitos que apresentam traços ‘perversiformes’” (p. 18). Ao falar sobre as características desse discurso, ela aborda alguns pontos convergentes com os expostos por Calligaris.

Queiroz, ao discorrer sobre um de seus pacientes, diz que este se queixava, permanentemente, da relação analista-analisante, definida por ele como autoritária e desigual, fazendo com que algumas vezes ele tentasse inverter os lugares, gerando certos impasses. “Para se sustentar na relação com o outro, quase sempre o perverso requer o estabelecimento de pactos e de cumplicidades” (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta., p. 66, grifos nossos).

Assim, tanto para Calligaris, quanto para Queiroz, o diagnóstico de perversão, numa clínica fundada na transferência, coloca-se a partir do discurso, do modo como alguém se dirige ao analista e do lugar em que o coloca quando fala com ele. O discurso, em psicanálise, refere-se ao lugar de onde o sujeito analisante fala e ao jogo que ele faz. Nesse sentido, (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.) pontua que o diagnóstico de perversão pode se dar quando esse lugar é o da cumplicidade ou do desafio, quando esse lugar específico é a maneira de falar decisiva para o sujeito.

Muitos autores elegem o desafio como um aspecto característico do discurso perverso. O que Calligaris e Queiroz trazem em comum em suas formulações é a presença de um movimento duplo no endereçamento do perverso ao analista: a tentativa de desafiá-lo e, ao mesmo tempo, de formar um pacto com ele. Joël Dor, ao falar sobre o perverso, diz que a atribuição fálica do pai que lhe confere a autoridade de Pai Simbólico (representante da Lei) nunca será reconhecida na estrutura perversa, exceto para ser incansavelmente contestada. Daí o exercício, incapaz de ser superado, de dois estereótipos estruturais que atuam regularmente nas perversões: o desafio e a transgressão (Dor, 1991Dor, J. (1991). O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Até o momento ainda estamos falando da perversão como estrutura e como traço de discurso. No entanto, Calligaris traz ainda outra possibilidade de abordar a questão. No texto de sua conferência de 1986, ele passa a falar que o que mais lhe interessa na questão das perversões não é tanto a estrutura perversa, que é pouco comum, mas a facilidade com a qual o neurótico é tomado por formações perversas. Para Calligaris, a formação perversa é o núcleo da nossa vida social, da vida social do neurótico. Esse autor complementa dizendo que todo neurótico sonha em ser perverso. Sonha em ser perverso porque a posição neurótica é muito insatisfatória, e ele (o neurótico) está pronto a aceitar quase tudo para aderir à montagem perversa, para chegar a uma modalidade mais tranquila de gozo.

Cinco anos mais tarde, na mesma linha das formulações apresentadas na conferência, Calligaris publicou um ensaio intitulado “A sedução totalitária” (1991) no livro Clínica do Social. Esse livro é uma publicação de O Sexto Lobo e consiste em uma reunião de ensaios de diferentes autores que versam sobre aspectos da clínica no social. Sobre o objetivo desse projeto, Calligaris diz que é o de “criar as condições de um diálogo pluridisciplinar para quem tenta, hoje, intervir discursivamente no sintoma social segundo uma ética compatível com a ética da psicanálise” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 12).

Saída da neurose pela perversão

Em “A sedução totalitária” temos logo no primeiro parágrafo a posição de Calligaris. Ele pretende tratar da perversão como uma patologia social e não sexual. Como vimos, ele abordava essa mesma questão na conferência baiana de 1986, porém nesse novo texto ele pretende ir adiante. Em relação a esse avanço que Calligaris antecipa, percebemos que ele tomou um ponto específico já mencionado na conferência e desenvolveu-o mais detalhadamente, o que resultou num texto bastante interessante, denso, porém muito claro, em relação às suas teses sobre a “paixão de ser instrumento” e a “saída perversa da neurose” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., pp. 111-112).

Para ilustrar suas ideias, ele utiliza o exemplo do funcionário Albert Speer, primeiro arquiteto de Hitler e ministro dos armamentos do Reich, que dirigiu, nos últimos anos da Segunda Grande Guerra, o esforço bélico e industrial alemão. Durante os anos que passou preso, Speer escreveu uma espécie de autobiografia política, na tentativa de uma autodefesa nos Julgamentos de Nuremberg (1945-1946). Nesses escritos ele tenta elucidar como e por que o nazismo prosperou e encontrou nele um adepto e cúmplice.

Albert Speer revelou um cuidado particular e uma preocupação com o futuro da Alemanha, como povo e nação, ao tomar a posição de que a responsabilidade do nazismo e da guerra era uma responsabilidade coletiva dos dirigentes do partido nazista dentre os quais ele se incluía, não sendo de modo algum responsabilidade coletiva do povo alemão. Embora afirmando que “não sabia” (o que Calligaris considera como uma forma exitosa de repressão), Speer, ainda assim, reivindica a própria responsabilidade até para o horror que ele afirma não ter sabido.

Quando tentou explicar o ocorrido, Speer defendeu que o que aconteceu teria sido um efeito do desenvolvimento da técnica moderna, ou seja, “a guerra era inevitável porque havia os meios técnicos para fazê-la” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 109). Sobre essa questão, Calligaris diz que não acha suficiente pensar que o desenvolvimento técnico enquanto tal seja alienante e que não seria coerente pensar que, se existem os meios técnicos para fazer a guerra, esta é inevitável. Para explicar o que aconteceu seria necessário “introduzir algo a mais na concepção de uma forma específica de alienação do sujeito” (p. 109, grifo do autor).

Para fundamentar essa ideia, Calligaris argumenta que não dá para pensar que a adesão de Speer ao nazismo se justificaria por uma preocupação de carreira ou, por outro lado, que ele tivesse sido um grande sádico que encontrou uma forma específica de gozo na ideia de que estava produzindo instrumentos para matar. Ao contrário, “ele era um excelente pai de família, um homem culto, sensível, teria sido para nós todos um ótimo amigo” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 110).

De acordo com esse raciocínio e com a hipótese do autor, quando Speer defende a ideia de que o que aconteceu foi consequência do desenvolvimento da técnica, poderse-ia inferir que o que ele chama de triunfo da técnica e da instrumentalidade, só é triunfo na medida em que os homens funcionem como parte integrante dessa técnica, ou seja, funcionem como instrumentos. A técnica, em si, não causaria nada. Assim, não seria o efeito da técnica, mas o “efeito do interesse e da paixão humana em sair do sofrimento neurótico banal alienando a própria subjetividade, ou melhor, reduzindo a própria subjetividade a uma instrumentalidade” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 110). Daí surge a possibilidade de falar em uma “paixão de ser instrumento”, que poderíamos ler como a paixão de fazer parte de uma engrenagem, o que seria uma tendência inercial de qualquer neurótico.

Então, para Calligaris, a anuência do sujeito neurótico em se transformar em instrumento do saber estabelecido seria uma espécie de saída da neurose na vertente do que chama de perversão. Isso não teria preço para o neurótico, seria uma tentação irresistível. E continua:

Que, para funcionar numa montagem desse tipo, um sujeito se transforme em instrumento de um saber que o manda eventualmente matar milhares de pessoas, jogar crianças contra uma parede, queimar uma casa cheia de gente, este é um preço que talvez a maioria dos neuróticos esteja disposta a pagar para encontrar o alívio que a montagem promete. (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 114)

Sobre esse alívio de se fazer instrumento de um saber, Calligaris toma como exemplo Rudolf Hoess, comandante do campo de Auschwitz que, em suas memórias, escreveu como justificativa e defesa em relação aos seus atos: “Eu era um funcionário exemplar”. Para o psicanalista, essa não é uma desculpa fácil ou uma tentativa de descarregar a sua responsabilidade, ele estaria respondendo mesmo à pergunta, pois estaria dizendo: “A pergunta de vocês está mal formulada, pois o meu gozo não era matar pessoas, o meu gozo era ser um funcionário exemplar, e, eventualmente, para ser um funcionário exemplar, eu estava disposto a matar pessoas” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 114).

Na conferência de 1986, Calligaris abordava esse mesmo ponto ao dizer que “a questão não é a do sadismo do torturador, senão nunca poderíamos sair disso (não podemos conceber que metade da Alemanha tenha sido presa num fantasma sádico desse tipo)” (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan., p. 10). Então, seria muito mais fácil para o neurótico entrar numa montagem perversa desse tipo do que permanecer no conflito neurótico.

Eis aí o que Calligaris considera inaceitável: que, para conseguir uma saída do sofrimento neurótico banal através de um semblante perverso, o neurótico possa considerar que qualquer preço é bom; ou seja, que para conseguir o alívio oferecido pela obediência do funcionário exemplar, ele esteja disposto a servir a qualquer ordem. Nesse sentido, voltando à preocupação de Albert Speer, a questão da responsabilidade deveria ser colocada bem diferente de como ele queria, pois a responsabilidade não pode ser considerada como sendo só dos dirigentes, mas sim de todos que gozaram do funcionamento da Alemanha Nazista.

Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica, escreveu sua primeira obra, Origens do Totalitarismo, no fim dos anos 1940, a qual foi publicada pela primeira vez em 1951. A obra é dividida em três partes - antissemitismo, imperialismo e totalitarismo - e, nesta última, Arendt propõe que tanto o nazismo quanto o socialismo são ideologias totalitárias. Dentre suas teorizações, ela fala sobre a banalização do terror e a participação das massas na consolidação do nazismo, na mesma linha do que aponta Calligaris.

Alguns anos mais tarde, em 1963, Arendt escreveu Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, a partir da cobertura jornalística que fez do julgamento de Adolf Eichmann para o jornal The New Yorker. Nesse livro ela relata que o grande exterminador dos judeus não era um demônio ou um poço de maldade (como acreditavam os ativistas judeus), mas alguém horrivelmente normal. Um típico burocrata que se limitara a cumprir ordens com zelo.

Em Origens do Totalitarismo, (Arendt, 1951/1998Arendt, H. (1998). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1951)) afirma que seria “um erro esquecer que os regimes totalitários, enquanto no poder, e os líderes totalitários, enquanto vivos, sempre comandam e baseiam-se no apoio das massas” (p. 356). Em seguida, ela complementa afirmando que o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é a devoção dos seus adeptos ou, nos termos de Calligaris, a facilidade em pagar qualquer preço para “sair do sofrimento neurótico banal alienando a própria subjetividade” (Calligaris, 1991Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta., p. 110).

Para Arendt é compreensível que as convicções de um nazista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento, mas o fato espantoso é que ele (o sujeito tomado na montagem) não vacila nem mesmo quando “o monstro começa a devorar os próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados” (Arendt, 1951/1998Arendt, H. (1998). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1951), p. 357). Ou seja, há uma completa alienação da própria subjetividade.

Então, através dos exemplos expostos por Calligaris, podemos perceber que a perversão encontra sua fenomenologia no campo do social, no mais cotidiano. A perversão seria outra coisa, algo distinto de um desvio sexual. Inclusive, não seria nem mesmo algo da ordem de um desvio. No âmbito social, seria uma espécie de “escolha”. Colocamos a palavra escolha entre aspas porque, muitas vezes, não se trata de uma escolha consciente, trata-se de aceitar outra saída, outro caminho. Para Calligaris, a grande maioria das pessoas que entra num sistema totalitário é tomada em uma montagem perversa, e uma grande parte de neuróticos, quando tomados numa montagem perversa “considera que os benefícios que tiram disso não têm preço. Parece que estão prontos para qualquer sujeira para permanecerem nessa montagem. Mas isto não é somente verdadeiro para o nazismo” (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan., p. 12).

A perversão no Programa de Proteção a Testemunhas

Descontextualizando alguns pontos abordados por Calligaris, é possível pensá-los em outros contextos. Quando o autor fala que essa questão sobre a montagem perversa não é somente verdadeira para o nazismo, imediatamente a associamos a uma experiência profissional como membros de uma equipe técnica que acompanha testemunhas inseridas no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas - o Provita. Ao trabalharmos durante, aproximadamente, três anos atendendo diretamente essas testemunhas, foi possível percebermos determinados aspectos do que Queiroz e Calligaris apontam sobre a perversão. Calligaris escreveu sobre estar preso a uma montagem perversa que, aparentemente, oferece muitos benefícios a quem faz parte dela. Utilizaremos, em alguns momentos, a palavra Programa, assim grafada, para nos referirmos ao Provita.

Uma breve contextualização acerca do Programa é preliminarmente necessária. O Provita surgiu em 1996 através da experiência do GAJOP1 1 As informações acerca do histórico do Provita foram encontradas no site: <http://www.gajop.org.br>. Acesso em: 10 out. 2014. - Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares - que buscava contribuir com a redução dos elevados índices de impunidade em Pernambuco. Três anos mais tarde, o Programa de Proteção foi instituído pela Lei Federal nº 9.807/1999 e regulamentado pelo Decreto nº 3.518/2000, com o objetivo de garantir proteção e assistência a pessoas que estivessem coagidas ou expostas à grave ameaça em razão de terem colaborado com investigação ou processo criminal. O Programa de Proteção surgiu como uma resposta à necessidade de preservação das testemunhas de homicídios cometidos por policiais, grupos de extermínio ou crime organizado; hoje colabora com a apuração de diversos outros crimes que envolvem tortura, trabalho escravo, tráfico de armas e seres humanos, narcotráfico, corrupção e crimes eleitorais.

Segundo (Silveira, 2010Silveira, J. B. (2010). A proteção à testemunha & o crime organizado no Brasil (2a ed.). Curitiba, PR: Juruá.), o Provita é uma política pública das mais importantes, encontrando-se estruturado em um Sistema Nacional, composto de um Programa Federal de Assistência à Vítima e à Testemunha, e mais 19 Programas Estaduais. Entendemos que a existência de um Programa desse caráter ajuda a reduzir os índices de impunidade, combatendo a chamada “Lei do Silêncio” e permeando no imaginário social como uma possibilidade de proteção efetiva àqueles que decidem, por motivos diversos, colaborar com a Justiça. De acordo com (Silva, 2008Silva, I. (Coord.). (2008). Provita São Paulo: história de uma política pública de combate à impunidade, defesa dos direitos humanos e construção de cidadania (1a ed.). São Paulo, SP: CDHEPCL.), o medo de denunciar ou testemunhar a ocorrência de um delito é, sem dúvida, um fator de distanciamento das pessoas em relação às autoridades competentes para a apuração dos fatos, principalmente pelo desconhecimento dos mecanismos de proteção existentes.

Transpondo essas considerações para os termos que Calligaris propõe - acerca de uma montagem perversa - a dificuldade de testemunhar é também, em muitos casos, a dificuldade de abrir mão da participação em uma engrenagem, uma montagem que oferece certeza e, consequentemente, certo conforto. As pessoas atendidas pelo Programa são vítimas e/ou testemunhas de diversos tipos de crimes e organizações criminosas, sendo grande parte (talvez a maior parte) delas pessoas que, de algum modo, faziam parte da própria organização criminosa e que, por diferentes motivos, decidiram denunciá-la. Poucas são as testemunhas que simplesmente estavam “no lugar errado, na hora errada”, e viram o que “não deviam”. Ao serem inseridas no Programa, essas testemunhas são transferidas para outra cidade ou estado, que não é escolhido por elas, mas pelas equipes do Programa, através de um mapeamento de risco.

No atendimento a essas testemunhas surgiram questionamentos acerca de serem ou não sujeitos perversos, considerando-se que muitos, de fato, cometeram crimes, participaram de atrocidades e tinham uma relação peculiar com a Lei. No entanto, o que se constata com frequência é que, enquanto estavam envolvidos no “esquema” (na montagem), tudo corria bem: eles tinham uma função na engrenagem, executavam-na com competência (ou seja, eram funcionários exemplares), tiravam alguma vantagem disso (seja financeira, social, de status etc.), e proporcionavam vantagens a outros, muitas vezes se destacando e sendo elogiados pelo seu bom trabalho.

É necessário frisar que os que chegam ao Programa dificilmente são os líderes da engrenagem, se é que estas chegam a ter um “líder”. Ao contrário, são os funcionários. São funcionários exemplares que, por diversos motivos, sentiram-se excluídos ou viram-se obrigados a sair da montagem. São os sujeitos horrivelmente normais e banais que Hannah Arendt detectou. É importante termos isto em mente, pois poucos decidiram sair do esquema por conta própria. Quando (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.) fala que é “muito mais fácil para o neurótico entrar numa montagem perversa desse tipo do que permanecer no conflito neurótico” (p. 11), ou seja, que é muito mais fácil aderir a um esquema do que ficar oscilando em conflitos de consciência, isso parece muito claro nesses casos. No que pudesse depender exclusivamente de algumas dessas testemunhas do Programa, elas teriam permanecido na montagem. A maioria não permaneceu somente porque algo deu errado no meio do caminho, mas a posição que ocupavam até então parecia ser bastante confortável.

Gerald Shur, fundador do Programa de Proteção a Testemunhas nos Estados Unidos, o WITSEC, escreveu um livro juntamente com Pete Earley - jornalista investigativo - no qual conta sua experiência de fundação do Programa e de acompanhamento de testemunhas, muitas delas ex-integrantes da máfia. Ele nos traz dados e informações suficientes para nos convencer do quão difícil é sair de uma montagem perversa, de modo que essas testemunhas somente saíram por motivos extremos ou quando se viram sem outras escolhas. “Eu não tinha ilusões sobre o porquê de elas estarem ajudando o governo. Alguns sentiam que tinham feito um bom negócio. A maioria sabia que era a única chance de ficarem vivos. Outras queriam se vingar de seus antigos companheiros” (Earley & Shur, 2002Earley, P. & Shur, G. (2002). WITSEC - Inside the Federal Witness Protection Program. New York, NY: Bantam Dell., p. 420).

Um dos casos que a equipe técnica interdisciplinar (psicólogo, assistente social e advogado) acompanhou no Provita em que trabalhamos se assemelha muito a alguns aspectos do que Calligaris descreveu sobre o nazismo. Ao ler o material sobre o caso pela primeira vez, a equipe se chocou com a quantidade de crimes que essa testemunha ajudou a cometer, nunca diretamente, mas funcionando como peça-chave para que tudo funcionasse como deveria. Por exemplo: esta testemunha dirigia carros para fugas, carregava corpos para “desová-los”, guardava segredos sobre esquemas políticos etc.

Quando conhecemos esta testemunha pessoalmente, todos na equipe nos sentimos desconcertados. Exatamente: este não era um sujeito sádico, ele não gozava em participar dos crimes, mas a engrenagem simplesmente funcionava muito bem, e ele era parte dela. A partir da convivência com este sujeito e sua família, pudemos perceber que este era um pai e marido dedicado, e um vizinho muito querido na comunidade com a qual passou a conviver.

John Partington é um dos primeiros agentes federais (U.S. Marshals) nos Estados Unidos a trabalhar no WITSEC. Em 2010, juntamente com Arlene Violet (advogada do Governo Federal), Partington publicou um livro em que relata suas experiências de trabalho protegendo testemunhas do WITSEC, sendo que muitas delas faziam parte da máfia. Em um trecho do livro, ele relata experiências semelhantes às quais vivenciamos:

Quando eu comecei a fazer parte das vidas de membros da máfia, percebi que esses homens tinham um código de honra. Eles não eram cem por cento maus .... Raymond Patriarca tinha um lado bom. Por exemplo, quando um garoto na vizinhança perdeu um olho, Patriarca se certificou que ele tivesse os melhores médicos do país e pagou os custos de todos os cuidados necessários. (Partington & Violet, 2010Partington, J. & Violet, A. (2010). The mob and me: wiseguys and the witness protection program. New York, NY: Gallry Books., p. 8)

Um pouco adiante ele relata, em detalhes, como acompanhou Joe Barboza (conhecido como “O Animal”), a testemunha que estava denunciando diretamente Raymond Patriarca, o chefe da Máfia. Ele diz: “Nós conversamos sobre como nossas vidas poderiam ter sido se tivéssemos feito escolhas diferentes. Ele foi tão frio como eles normalmente são, me mataria num piscar de olhos, mas, por outro lado, ele escrevia poesia e adorava a filha” (Partington & Violet, 2010Partington, J. & Violet, A. (2010). The mob and me: wiseguys and the witness protection program. New York, NY: Gallry Books., p. 28).

Shur relata algo parecido ao falar das testemunhas que acompanhou:

Eu me lembro de chegar a uma unidade prisional, na qual mantínhamos os criminosos do Programa mais difíceis, e encontrar muitos deles sentados no chão fazendo cartazes com personagens de desenho animado para crianças de hospitais. A maioria destes homens eram assassinos e, ainda assim, eles se orgulhavam de seu trabalho para as crianças. (Earley & Shur, 2002Earley, P. & Shur, G. (2002). WITSEC - Inside the Federal Witness Protection Program. New York, NY: Bantam Dell., p. 420)

Em suma, muitas destas testemunhas eram sujeitos comuns, talvez mesmo neuróticos que “optaram” por uma saída perversa, sendo esta tão sedutora. Hannah Arendt, em seus termos, escreve sobre o que entendemos como sedução da saída da neurose pela perversão: “A atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade da ralé não é novidade. Para a ralé, os atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza” (Arendt, 1951/1998Arendt, H. (1998). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1951), p. 356). Arendt, à sua época, usa a palavra “ralé” no sentido das massas, das pessoas comuns, banais.

Para encaminharmos melhor as nossas questões procuramos pensar no Programa como uma espécie de dispositivo que poderia tornar possível a saída dos neuróticos da montagem perversa na qual se encontram enviscados. Alguns, de fato, nunca saem: os chefes e os líderes, por exemplo. Talvez esses sejam os perversos de estrutura, os que nunca sairiam da engrenagem, os astutos, aqueles se supõem ao abrigo de qualquer perigo.

Nos atendimentos realizados às testemunhas do Provita eram perceptíveis aspectos semelhantes aos que (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.) e (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.) apontavam acerca da posição do analista ao escutar um sujeito, um paciente com um discurso que apresenta traços perversos. O lugar da Psicologia no Programa (enquanto instituição) não possibilitava uma existência, simultânea, com o lugar da Psicologia junto às testemunhas. Assim, era necessário encaminhá-las para outros psicólogos e psicanalistas fora do Programa, quando havia a demanda de algum tipo de apoio ou de acompanhamento psicológico, psicoterápico ou psicanalítico. No entanto, o contato dos psicólogos do Programa era muito frequente e direto com as testemunhas e seus familiares, o que, inevitavelmente, configurava-se em longas horas de conversa durante todo o período de proteção.

Nessas conversas era perceptível um tipo de discurso particular, endereçado à equipe do Programa; discurso que se assemelha ao relatado por Queiroz. Frisamos que esta semelhança, obviamente, não era em relação ao conteúdo discursivo, mas “ao modo de relatar, ou seja, à fenomenologia discursiva, fato difícil de registrar” (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta., p. 60, grifo nosso).

Quanto a este modo de relatar, (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.) evoca um discurso imagético, cujo propósito seria o de ver e mostrar por meio das palavras. Ela salienta que “a linguagem parece ser meramente denotativa, carregada de descrições hiperbólicas que dão à narrativa uma textura singular” (p. 30). Assim, tendo-se em mente algumas destas semelhanças que percebemos entre os discursos, podemos destacar: o desafio (ao analista e, de modo análogo, à equipe do Programa); o discurso denotativo e imagético (em relação às situações que ensejaram a necessidade de proteção, situações estas, muitas vezes, de conteúdo “pesado”); e a posição de superioridade em relação ao saber.

A característica denotativa e imagética do discurso dá um tom mais empobrecido a ele, pois acaba se restringindo à descrição dos fatos, geralmente de um modo detalhadíssimo, mas sem representação. Frequentemente, os inúmeros detalhes “pesados” têm a intenção de chocar o interlocutor (no caso, o analista ou a equipe técnica). (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.) escreveu que, neste contexto, o significante fica comprometido na função de representar. Ao falar sobre um paciente específico, a autora diz que qualquer intervenção em direção à busca de sentido parecia não fazer eco, os relatos das experiências repetiam-se como mera descrição de fatos.

O mesmo verificamos nos discursos de algumas testemunhas inseridas no Programa. O que elas falavam se aproximava mais à descrição de fatos e, muitas vezes, não se buscava dar um sentido àquela experiência. Isto se torna inteligível se pensarmos, por um lado, que a própria condição de “testemunha” se resume a narrar fatos. Dar testemunho é algo completamente distinto de fazer uma narrativa ou de fazer uma confissão. Quando uma testemunha está perante um juiz, o que importa é o que ela viu, ouviu, os detalhes. Ou seja, algo que passa mais pelo campo do sensório-perceptivo e cognitivo (o que ele viu ou ouviu) do que pela subjetividade. Obviamente, o juiz não está interessado, não faz parte do protocolo perguntar como a testemunha se sentiu, qual era sua posição em relação aos fatos, de que lugar ela falava etc.

(Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.) aponta que um de seus pacientes queixava-se permanentemente da relação analista-analisante, definida por ele como autoritária e assimétrica, mantendo um propósito de inverter os lugares, o que gerava certos impasses. Posteriormente, ao falar sobre esse duplo movimento, ela diz que o analisante acreditava que devia submeter-se ao saber da analista, “entregando-se em oferenda, ao mesmo tempo em que se irritava, profundamente, e buscava modos de inverter a situação.” (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta., p. 68).

No Programa percebemos, também, esse duplo movimento. A testemunha, ao mesmo tempo em que se entrega ao Outro (nesse caso ao Estado, à Lei, ao Programa) tenta a todo o momento desafiá-lo e transgredi-lo, questionando sua posição desigual, vista como desvantagem para ele. Depois se coloca na posição de quem detém o poder e o saber, com frases do tipo: “a Justiça precisa do meu testemunho”; “é só por minha causa que você tem o seu emprego”; e “o Programa precisa ter testemunhas para existir”. Enquanto isso, ao mesmo tempo, sabe que está na posição vulnerável de precisar de proteção especial por não ter conseguido se proteger por conta própria e porque o Programa tornou-se o último arrimo, o último recurso.

De fato, a posição é desigual, assimétrica. Assim como o é na análise. No Programa adotam-se codinomes e nomes fictícios, tanto para as testemunhas como para as pessoas da equipe responsáveis pela proteção. A diferença é que a equipe sabe o nome verdadeiro da testemunha, enquanto esta não sabe a verdadeira identidade da equipe. Para além do nome, a equipe sabe de muitos detalhes da história de vida da testemunha, enquanto esta quase nada sabe da equipe, nem mesmo onde a sede do Programa funciona. De modo análogo, o analista sabe detalhes da vida, dos sentimentos e desejos do paciente, em geral os mais íntimos, aqueles que ninguém mais sabe, enquanto o paciente tem acesso restrito à vida pessoal do analista.

Embora o propósito do Programa seja o de proteger as testemunhas, afastando-as do crime e dos parceiros, a própria entrada no Programa está sob a ameaça de outro tipo de montagem perversa. Esta diz respeito, em primeiro lugar, ao anonimato, tomando-o como uma forma de não se responsabilizar pelo que se diz ou se faz. Sabe-se que a questão do anonimato é uma característica marcante do funcionamento perverso e, ao entrar no Programa, para sua própria proteção, a testemunha precisa se manter anônima. Isto exige que a testemunha evite a realização de qualquer tipo de cadastro/registro de alcance nacional no local de proteção, em virtude do risco de rastreamento pelos algozes. A testemunha é colocada em uma posição quase exterior ao simbólico, quase foracluída, e o seu acesso ao simbólico é mediado por um nome fictício e por uma equipe. Além disso, as testemunhas precisam criar uma história de cobertura acerca dos detalhes de sua vida, sua cidade de origem, os motivos da mudança de cidade e sua vida pregressa. Elas precisam inventar uma ficção. Por terem revelado um segredo (informações sobre o crime e seus responsáveis), elas precisaram ser secretadas de seu local de origem, precisaram ser segregadas. E, assim, necessitam viver, em segredo, em outro lugar.

Para as testemunhas inseridas no Programa, o sigilo é condição imprescindível para a permanência sob proteção. Ao ingressar, elas assinam um Termo de Compromisso, através do qual se comprometem a manter sigilo absoluto acerca de tudo o que diga respeito ao Programa, às informações sobre sua vida pregressa e ao que possa comprometer sua segurança.

Estas conduções facultam ao sujeito a entrada em uma nova montagem perversa, pois sabemos que o anonimato, embora seja angustiante para muitas pessoas, é também uma forma de não se responsabilizar por atos e palavras. É uma forma de realizar desejos sem precisar pagar o preço por isso. Inclusive existem casos de testemunhas que entraram no Programa pleiteando uma mudança de nome legal (o que raramente acontece no Brasil), para que pudessem continuar cometendo crimes com uma nova identidade, apagando sua história anterior. Assim, os novos crimes poderiam ser cometidos por uma espécie de alter ego, um ego alternativo, outro Eu.

Mario Fleig, em seu livro O desejo perverso, fala sobre algumas características marcantes do funcionamento perverso e, dentre elas, está o anonimato.

Não é por nada que se diz de um certo número de tendências perversas, que elas são “de um desejo que não ousa dizer seu nome” (Lacan).... É o registro do anonimato, a sustentação do lugar de clandestinidade, da ação que não chega a efetivar a passagem pela autenticação no Outro. (Fleig, 2008Fleig, M. (2008). O desejo perverso. Porto Alegre, RS: CMC Editora., p. 71, grifos do autor)

Gerald Shur relatava esta dificuldade com a questão do anonimato, acerca da nova identidade das testemunhas. Nos Estados Unidos a mudança de identidade legal sempre acontece. “Em sua primeira década de funcionamento, testemunhas do WITSEC cometeram doze assassinatos depois que foram realocadas em outras cidades. Outras usaram suas novas identidades para evitar credores e furtar milhões de dólares através de novas fraudes e esquemas” (Earley & Shur, 2002Earley, P. & Shur, G. (2002). WITSEC - Inside the Federal Witness Protection Program. New York, NY: Bantam Dell., p. 8).

Muitas dessas testemunhas parecem sempre, seja qual for a situação, colocar-se (ou acabar ficando) em posição de instrumento. Nas duas situações - antes e depois de entrar no Programa - elas são objetos, peças na engrenagem. Antes de entrar, são a peça-chave na montagem perversa e, depois de entrar no Programa, elas passam a ser a peça-chave no desmantelamento do esquema.

Na conferência de 1986, Calligaris foi questionado se a tendência a pertencer a um grupo, a uma instituição, a ser por ela reconhecido, não seria de certa forma uma atitude perversa. Ele responde que sim, e que a vida talvez não seja possível sem a montagem perversa. Ele dá como exemplos as instituições psicanalíticas e as associações de pescadores, nas quais esta montagem seria bastante inocente: “O problema é que as montagens perversas vão muito mais longe” (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan., p. 12).

No caso das testemunhas com as quais trabalhamos - as que faziam parte do grupo denunciado - existe um pacto perverso, como o que se chama em inglês de uma win-win situation, ou seja, uma situação em que ambas as partes ganham. É como se a Justiça dissesse para a testemunha algo do tipo: “Pela Lei, você deveria estar preso. E pela sua lei, você não deveria denunciar seus parceiros. Mas, através do nosso pacto, você me ajuda e eu te ajudo. Eu te deixo livre (ou reduzo a sua pena) e te dou proteção e, em troca, você me conta o que vocês faziam, como faziam e quem participava”. Foi com este tipo de pacto que muitas famílias da máfia começaram a quebrar seus pactos de silêncio, ou omertà. Como (Partington e Violet, 2010Partington, J. & Violet, A. (2010). The mob and me: wiseguys and the witness protection program. New York, NY: Gallry Books.) contam em seu livro: “Nós estamos protegendo os caras maus, para podermos pegar os caras piores” (p. 27).

Retomando a questão acerca das características do discurso perverso, (Queiroz, 2004Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.), ao falar sobre a repetição de falas como mera descrição dos fatos, diz que “toda análise começa quando se esgota a necessidade de contar” (p. 54). Podemos perceber algo semelhante, em alguns casos, nas testemunhas do Programa. Às vezes, após algum tempo sendo protegidas em outra cidade, longe do local do crime, elas pareciam superar a fase das “descrições”, mesmo porque elas já chegam ao Programa após terem repetido inúmeras vezes os fatos que ensejaram seu pedido de inclusão, o crime em si etc.

Em certos casos vemos que, após algum tempo, as testemunhas passam - pela primeira vez - a se questionar, a questionar seu papel, sua posição em toda a história e, às vezes, até a demonstrar interesse em viver de outra forma ou aprender a viver com incertezas e limites. Enquanto estavam tomadas na montagem perversa, muitas destas testemunhas viviam numa organização como se não houvesse limites, nada que as barrasse. Por outro lado, ao entrar no Programa, tudo o que elas vivenciam são incertezas e limitações. Existem incertezas de vários tipos: elas não sabem de antemão onde irão morar; em qual cidade; como é a casa ou apartamento; quem irão conhecer; que rumo o processo vai tomar; se os algozes serão presos ou não; se algum dia voltarão a se sentir seguras; ou se serão ameaçadas novamente. Não há garantias, de nenhuma forma.

(Silva, 2008Silva, I. (Coord.). (2008). Provita São Paulo: história de uma política pública de combate à impunidade, defesa dos direitos humanos e construção de cidadania (1a ed.). São Paulo, SP: CDHEPCL.) dá uma explicação acerca do que se almeja em relação às testemunhas protegidas pelo Programa. Para ele, espera-se que esses sujeitos possam construir novas relações em um novo território, com o intento de que, por meio delas, possam criar raízes e construir um novo projeto de vida que lhes permita aprimorar a própria autonomia, fortalecendo vínculos, de forma tal que não mais retornem ao local dos fatos ou a outras áreas de risco.

Considerações finais

Acreditamos que um dos principais - e também mais difíceis - trabalhos da equipe técnica do Provita, o qual lida diretamente com as testemunhas, passa pela tentativa de ajudá-las a conviver e a enfrentar as incertezas e faltas, anteriormente preenchidas pelas montagens, pelos líderes, ou por situações fora da lei, marginalizadas.

Neste sentido, concordamos com (Elia, 2010Elia, L. (2010). O sujeito da psicanálise e a ordem social. In S. Altoé (Org.), Sujeito do direito, sujeito do desejo: direito e psicanálise (3a ed. rev., pp. 135-144). Rio de Janeiro, RJ: Revinter.) que, em suas elaborações sobre o trabalho com a psicanálise em instituições, remarca que esta abre possibilidades importantes com sujeitos inseridos nesses ambientes. Segundo ele: “Nessas instituições, pode ser trilhado o eixo de um trabalho analítico, desde que este seja orientado pela escuta daquilo que, nele, precisamente o faz advir como sujeito, sem desconsiderar todos os fatores sociais presentes na realidade concreta desses sujeitos” (Elia, 2010Elia, L. (2010). O sujeito da psicanálise e a ordem social. In S. Altoé (Org.), Sujeito do direito, sujeito do desejo: direito e psicanálise (3a ed. rev., pp. 135-144). Rio de Janeiro, RJ: Revinter., p. 144). Assim, pensamos que além de ajudar a testemunha a se reinserir socialmente numa nova cidade, o trabalho da equipe pode se dar também no sentido de ajudar o sujeito a lidar com a falta e a incerteza. Talvez possa dar-se um trabalho que permita a passagem, a recondução do sujeito neurótico, que estava preso a uma montagem perversa, para fora destas montagens e para outras possibilidades de laço social.

Ao final da conferência de 1986, há ainda uma pergunta direta a Calligaris que redimensiona o conceito de perversão: “Então a perversão é um laço social? Sim ou não?”. A resposta dele é que sim, e que ela seria um laço social no sentido corriqueiro de laço social - ou seja, o que faz as pessoas se associarem. E é, de fato, muito perceptível que a perversão (ou a montagem perversa) motive tudo isso. A vida cotidiana é recheada de atos e de pactos perversos. Esses pactos em que dois ganham, à custa de um terceiro, nos quais para um ganhar o outro tem que perder etc. Novamente, não estamos falando de perversão enquanto estrutura, mas enquanto formações perversas, formações que permitem a constituição de laços sociais. Assim, para (Calligaris, 1986Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.), o nosso laço social cotidiano é uma montagem perversa, mesmo que não houvesse perversos de estrutura. Para ele, bastam dois neuróticos para que seja possível uma montagem perversa.

Os autores nos quais fundamentamos o nosso trabalho - Calligaris e Queiroz - ajudaram-nos a considerar a perversão como parte da condição humana e a afastá-la tanto de seu sentido estritamente sexual quanto da conotação moral. Calligaris relativiza alguns aspectos perversos, apontando uma saída da neurose pela perversão, enfatizando a facilidade com que, muitas vezes, neuróticos se veem presos em montagens perversas. Queiroz ajuda-nos a reconsiderar a ideia amplamente difundida de que o perverso não procura ou não permanece em análise.

Calligaris e Queiroz, unindo as análises social e do discurso perverso na clínica, ajudam a desconstruir uma noção de que a perversão seria algo excepcional, muito fora da norma, anormal ou desviante, como a própria etimologia do termo perversão indica. O diálogo com estes textos também nos despertou para a realização de outra leitura do trabalho realizado com o Provita. Esta leitura que aqui pretendemos ter realizado pode ser útil tanto ao clínico e ao analista social e institucional quanto aos profissionais que trabalham com as testemunhas do Programa, no sentido de ajudar-nos a percebê-las como sujeitos que podem ter sido tomados por montagens perversas, podendo, por isso mesmo, sair delas a partir da ajuda do Programa, enquanto dispositivo capaz de principiar esta nova possibilidade.

Referências

  • Arendt, H. (1998). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1951)
  • Barthes, R. (1988). O rumor da língua. Rio de Janeiro, RJ: Brasiliense.
  • Calligaris, C. (1986). Perversão - um laço social? Introdução a uma clínica psicanalítica (Conferência, A. Dreyer, D. Lima, S. Mattos e U. Cardoso, tradução, transcrição e revisão). Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.
  • Calligaris, C. (1991). A sedução totalitária. In L. T. de Aragão, C. Calligaris, J. F. Costa, & O. Souza, Clínica do social: ensaios. São Paulo, SP: Escuta.
  • Dor, J. (1991). O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Earley, P. & Shur, G. (2002). WITSEC - Inside the Federal Witness Protection Program. New York, NY: Bantam Dell.
  • Elia, L. (2010). O sujeito da psicanálise e a ordem social. In S. Altoé (Org.), Sujeito do direito, sujeito do desejo: direito e psicanálise (3a ed. rev., pp. 135-144). Rio de Janeiro, RJ: Revinter.
  • Fleig, M. (2008). O desejo perverso. Porto Alegre, RS: CMC Editora.
  • Partington, J. & Violet, A. (2010). The mob and me: wiseguys and the witness protection program. New York, NY: Gallry Books.
  • Queiroz, E. (2004). A clínica da perversão. São Paulo, SP: Escuta.
  • Silva, I. (Coord.). (2008). Provita São Paulo: história de uma política pública de combate à impunidade, defesa dos direitos humanos e construção de cidadania (1a ed.). São Paulo, SP: CDHEPCL.
  • Silveira, J. B. (2010). A proteção à testemunha & o crime organizado no Brasil (2a ed.). Curitiba, PR: Juruá.
  • 1
    As informações acerca do histórico do Provita foram encontradas no site: <http://www.gajop.org.br>. Acesso em: 10 out. 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2014
  • Revisado
    23 Ago 2015
  • Aceito
    05 Fev 2016
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