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Ser ou não ser pescadora artesanal? Trabalho feminino, reconhecimento e representação social entre marisqueiras da Bacia de Campos, RJ

To be or not to be an artisanal fisherwoman? Female work, recognition and social representation among shellfish collectors in the Campos Basin, RJ

Resumo

O presente texto descreve e analisa, a partir de uma perspectiva de gênero, as relações de trabalho das mulheres na pesca artesanal de Campos dos Goytacazes, RJ, tendo como foco o processo de participação e representação feminina no Grupo Gestor da Pesca Artesanal. A partir de pesquisa qualitativa e entrevistas narrativas, analisamos a recusa e interdição ao uso da identidade laboral de pescadora por meio do agenciamento das categorias nativas marisqueira(s), fundo(s) de quintal(is) e dona(s) de fundo de quintal. Esses dados descritivos foram cotejados e tensionados à teoria de divisão sexual do trabalho e à categoria analítica de gênero para compreender possíveis desigualdades e formas de (in)visibilização do trabalho feminino na pesca artesanal local. Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo Projeto de Educação Ambiental (PEA) Pescarte, que é uma medida de mitigação exigida pelo Licenciamento Ambiental Federal, conduzido pelo IBAMA.

Palavras-chave:
Pesca artesanal; Divisão sexual do trabalho; Gênero; Identidade; Educação ambiental

Abstract

This text describes and analyzes, from a gender perspective, how the working relationships of women in artisanal fishing in Campos dos Goytacazes, RJ, focusing on the process of participation and female representation in the Artisanal Fisheries Management Group. Based on qualitative research and narrative interviews, we analyzed the refusal and ban on the use of fishermen’s labor identity through the agency’s native categories of shellfish catcher(s), backyard fishery(ies) and backyard fishery owner(s). These descriptive data were cited and stressed on the theory of sexual division of labor and the analytical category of gender to understand possible inequalities and forms of (in) visibility of female labor in local artisanal fishing. This article is the result of research financed by the Pescarte Environmental Education Project (PEA) which is a mitigation measure required by the Federal Environmental Licensing, conducted by IBAMA.

Keywords:
Artisanal fishing; Sexual division of labor; Genre; Identity; Environmental education

INTRODUÇÃO

O presente texto analisa, a partir de uma perspectiva de gênero, as relações de trabalho das mulheres na pesca artesanal em Campos dos Goytacazes, RJ. O trabalho se baseia em pesquisa qualitativa realizada nesse município com mulheres trabalhadoras da pesca artesanal da praia de Farol de São Thomé, as quais foram eleitas gestoras no Grupo Gestor da Pesca Artesanal (GG) do Projeto de Educação Ambiental (PEA) Pescarte1 1 A Bacia Petrolífera de Campos é responsável por mais de 80% da produção de petróleo e gás do Brasil e tem sido alvo, durante anos, dos grandes empreendimentos geradores de mudanças socioambientais que acabaram impactando a vida e o trabalho dos pescadores e pescadoras artesanais da região. Como forma de diminuir ou compensar tais impactos, as empresas petrolíferas, instaladas na região foram obrigadas, a partir de 1990, a passar por processo de licenciamento ambiental de acordo com o IBAMA, conforme expresso na Lei 6.938/81, nas Resoluções CONAMA nº 001/86 e nº 237/97 e na Lei Complementar nº 140/2011. Tal legislação discorre sobre a competência Estadual e Federal para o licenciamento ambiental, tendo como fundamento a localização do empreendimento. O licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente e possui como uma de suas mais expressivas características a participação social na tomada de decisão, por meio da obrigatoriedade da realização de audiências públicas como parte do processo. (Petrobras/IBAMA/UENF2 2 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), cuja sede está localizada em Campos dos Goytacazes, RJ. As atividades desse PEA são promovidas por professores e técnicos do Centro de Ciências do Homem - CCH, sob coordenação geral do prof. Dr. Geraldo Marcio Timoteo e em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). ), inscrito no âmbito do Programa de Educação Ambiental da Bacia de Campos (PEA-BC). O PEA Pescarte segue parâmetros e condicionantes da Nota Técnica CGPEG/DILC/IBAMA nº 01/20103 3 Resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997. “Art. 1º I - Licenciamento Ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso”. analítica aqui apresentada pode também vir a ser relevante para a configuração de processos cole(a)tivos de (r)existência, inspirando, mais amplamente, ações con-juntas que visem a evitar a (re)produção da norma hegemônica. A versão final deste artigo deve, muito, às trocas com Marilia M. Pisani, Álvaro Okura, Nayana Fernández e Mariana Ribeiro. , Linha A e do Diagnóstico Participativo do PEA-BC (2012), e tem como objetivo a construção e articulação de uma rede social regional formada por pescadores/as artesanais e seus familiares, promovendo processos formativos pautados na educação ambiental crítica (Quintas, 2006QUINTAS, José Silva. 2006. Introdução à gestão ambiental pública. 2.ed. Brasília, Ed. IBAMA.) para fortalecer e valorizar a organização comunitária. Para tanto, o PEA Pescarte parte da promoção de mobilização social e estímulo à participação nos processos educativos voltados ao envolvimento de pescadores/as e familiares na construção e implementação participativa e democrática de Projetos de Geração de Trabalho e Renda (GTR) articulados aos saberes e fazeres da pesca artesanal e orientados pela economia solidária.

A escolha do grupo social de pescadores e pescadoras artesanais é feita no sentido de incorporar grupos viventes na região da Bacia de Campos e que mantêm maior dependência em relação aos recursos naturais disponíveis, estando mais vulneráveis aos impactos da indústria do petróleo e gás natural instalados na região. Dos 14 municípios que integram a Bacia de Campos e que possuem atividades da indústria de petróleo e gás, somente sete foram contemplados pelo PEA Pescarte nas 1.º e 2.º Fases de atividades. São eles: Arraial do Cabo, Cabo Frio, Macaé, Quissamã, Campos dos Goytacazes, São João da Barra e São Francisco de Itabapoana.

No âmbito do PEA Pescarte foi construído o Grupo Gestor (GG)4 4 Sua criação obedeceu a uma adequação às exigências da Coordenação Geral de Petróleo e Gás, da Diretoria de Licenciamento Ambiental do IBAMA (CGPEG/DILIC/IBAMA) como condicionantes das unidades do Termo de Aprovação de Conduta (TAC) da Petrobras na Bacia de Campos. Disponível em: https://www.petros.com.br/cs/groups/public/documents/documento/x2nv/bv9u/~edisp/2017_05_24_tac_petros_com_nota.pdf, acesso em: 20 de fevereiro de 2018. , órgão de deliberação colegiado, instituído pelo processo IBAMA nº 02022.000466/2015-77, de caráter deliberativo, regulador, democrático e consultivo do projeto de GTR a ser construído pelo próprio PEA Pescarte (Timóteo, 2016TIMÓTEO, Geraldo Marcio. 2016. “Apresentação”. In: TIMÓTEO, G.M (Org). Educação Ambiental com participação popular: avançando na gestão democrática do ambiente. Campos dos Goytacazes, FUNDENOR, pp. 4-11.). O GG é formado a partir de um processo democrático realizado por meio de votação secreta nas comunidades em que o PEA Pescarte atua, sendo elegíveis homens e mulheres atuantes na cadeia da pesca artesanal e seus familiares. Qualquer pessoa da comunidade pesqueira pôde se candidatar ao GG e cada eleitor teve direito a quatro votos, sendo que os/as vinte mais votados foram eleitos/as para compor esse órgão deliberativo e consultivo do PEA Pescarte, cujo período de atuação foi de dois anos, concomitante a 2.a Fase de Atividades desse PEA. Cada município integrante do projeto possui um GG com representantes das comunidades pesqueiras da sua localidade. O GG tem como principal finalidade a articulação do PEA Pescarte junto às comunidades tradicionais5 5 Para efeito das ações do PEA Pescarte, são basilares o cumprimento dos dispositivos legais estabelecidos pela Lei 6.040/2007, que assegura o reconhecimento dos Povos e Comunidades Tradicionais, dos Territórios Tradicionais, tendo como prerrogativa o Desenvolvimento Sustentável. de pescadores/as artesanais, como forma de se alcançar o objetivo principal de promoção do fortalecimento da organização comunitária por meio dos princípios da educação ambiental e da construção participativa de Projetos de GTR. Ações e/ou atividades educativas têm regularidade mensal, contam com orientação e execução realizadas por técnicos, professores e pesquisadores do CCH/UENF e são fiscalizados pelo IBAMA.

A pesquisa qualitativa, realizada pelas pesquisadoras durante os anos de 2016-20196 6 Esse texto produzido a quatro mãos articula resultados do mestrado em Políticas Sociais defendido por Rafaella Theis, com financiamento CAPES, sob orientação de Lilian Sagio Cezar, e a pesquisa antropológica e assessoria científica desenvolvidas para a Linha 1 PEA Pescarte, entre junho de 2017 e julho de 2019, sob coordenação dessa mesma pesquisadora, por meio de financiamento administrado e repassado pela Fundação Instituto de Administração (FIA), condicionado pelo IBAMA. Agradecemos os recursos destinados ao financiamento de ambas as pesquisas. , desenvolveu-se a partir da observação participante das atividades do GG de Campos dos Goytacazes7 7 Entre 2016-17 o PEA Pescarte passou por processo de interrupção de financiamento, o que não implicou encerramento de suas atividades devido às ações voluntárias dos técnicos e professores que continuaram promovendo mensalmente as reuniões dos GGs até o estabelecimento de novo contrato FIA/Petrobras/UENF, em julho de 2017. e da realização de entrevistas narrativas (Jovchelovitch & Bauer, 2002 JOVCHELOVITCH, Sandra e BAUER, Martin W. 2002. “Entrevista Narrativa”. In: BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis. Ed. Vozes.) com três mulheres moradoras do Farol de São Thomé, eleitas pelos/as pescadores/as artesanais e familiares para a composição do próprio GG (PEA Pescarte) de Campos dos Goytacazes.

Com a criação, em 2003, da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), vinculada à Presidência da República, ações interministeriais de criação de políticas sociais focalizadas na construção de mecanismos de promoção de igualdade de gênero passaram a ser articuladas, dentre elas a Lei nº 11.959 de 29 de junho de 2009, regulamentada pelo Decreto nº 8.425, de 31 de março de 2015, que amplia a definição jurídica da categorização da pesca artesanal, garantindo que as atividades de pesca fossem reconhecidas, ou seja, explotação, exploração, cultivo, conservação, processamento, transporte, comercialização, pesquisa dos recursos pesqueiros, trabalhos de confecção e reparos de artes e apetrechos de pesca, reparos de embarcações de pequeno porte e processamento do produto da pesca artesanal. Assim, as mulheres trabalhadoras da cadeia de atividades da pesca artesanal pela primeira vez passaram a ser reconhecidas como pescadoras artesanais, sendo garantido a elas o acesso ao Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP). Essa definição jurídica reconhece e dá amparo legal e acesso à política pública às mulheres que trabalham com atividades relacionadas ao cotidiano da pesca, como pescadoras artesanais. Entretanto, podemos afirmar que historicamente foram construídas estruturas de dominação masculina que ajudaram a invisibilizar e retirar autonomia da mulher trabalhadora da pesca artesanal.

Segundo Huguenin e Hellebrandt (2018HUGUENIN, Fernanda Pacheco da Silva e HELLEBRANDT, Luceni Medeiros. 2018. “Mulheres na Cadeia da Pesca: legislação e (des)regulamentação de direitos em comunidades pesqueiras do litoral fluminense”. In: Anais 31ª Reunião Brasileira de Antropologia (09 a 12/12/2018). Brasília/DF.), o Seguro Defeso, criado em 1990 e atualizado em 2003 por meio da lei nº 10.779, cuja regulamentação acontece apenas em 2015, no decreto nº 8.424, é um benefício concedido ao pescador profissional artesanal inscrito no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP). Contudo, para as autoras, existe uma contradição quando comparamos essa legislação com o decreto 8.425/15, que dispõe sobre os critérios para inscrição no RGP. Enquanto o Decreto 8.425/15 permite que os trabalhadores de apoio à pesca tenham o RGP, o Decreto sobre o Seguro Defeso - nº 8.424/15 - não estende o benefício a eles. Ou seja, mesmo tendo acesso ao RGP, os trabalhadores de apoio à pesca artesanal e os componentes do grupo familiar do pescador profissional artesanal não são beneficiados pelo Seguro Defeso.

É necessário, no entanto, compreender que existe uma duplicidade de ação legislativa ligada ao setor da pesca artesanal que, também por meio da ação da colônia de pescadores e de órgãos municipais de Campos dos Goytacazes, vem, desde 2007, conferindo reconhecimento às mulheres trabalhadoras da pesca artesanal e acesso a um tipo de seguro defeso municipal. Trata-se de um programa que garante a transferência direta de um salário mínimo a trabalhadores/as da pesca de água salgada do município. Para receber o seguro defeso, o beneficiário deve atender a uma série de critérios. Essa política tem como característica a instabilidade de ação pela dificuldade de acesso às verbas da Prefeitura Municipal, o que leva anualmente as mulheres do Farol de São Thomé a organizarem protestos visando a obtenção do defeso: fazem passeatas e fecham, com faixas e pneus queimados, o acesso à estrada que liga esse distrito ao centro de Campos e demais estradas que por ali passam. Apesar do repasse direto de recursos, não há vinculação desse seguro com Seguridade Social e Previdência no nível federal, o que implica a não obtenção do seguro maternidade e da aposentadoria especial.

Em Campos dos Goytacazes, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social, através da Resolução nº 001/2017, de 02 de maio de 2017, torna pública a listagem dos pescadores e pescadoras artesanais e trabalhadores de apoio à pesca considerados aptos ao recebimento do Seguro Defeso Municipal de água salgada.

A lista de beneficiários do seguro defeso municipal divulgada em Diário Oficial do município em 2017 demonstra que esse grupo é composto majoritariamente por mulheres: do total de 430 pessoas beneficiadas pela lei municipal, apenas 31 são homens. Examinando a lei do município, notamos que não está explícito o uso do termo “marisqueira” enquanto nomenclatura identitária, ainda que essa seja utilizada regionalmente para nomear as mulheres que trabalham com o beneficiamento do peixe e do camarão.

Em 2009, o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) passou a ser o ente federal responsável pela regularização e reconhecimento do exercício das atividades da pesca artesanal, sendo que o processo inicial de reconhecimento e acesso aos trâmites burocráticos para confecção do RGP ficou sob responsabilidade das colônias de pescadores. Ainda assim, as mulheres da comunidade do Farol de São Thomé, bem como em outras localidades (Melo, Lima, Stadtler, 2016MELO, Maria de Fatima Massena de; LIMA, Daisyvângela E. da S. e STADTLER, Hulda Helena Coraciara. 2009. “O Trabalho das pescadoras artesanais: “Coisa de mulher”. In: Congresso Brasileiro de Economia Doméstica, XX, 2009, Fortaleza - CE. Anais Grupo de Trabalhos GT 01 - Desenvolvimento humano, família e relações de gênero, Fortaleza - CE, , p. 1-11. Disponível em: http://www.xxcbed.ufc.br/arqs/gt1/gt1_36.pdf.
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), sofrem com a falta de acesso a reconhecimento e a documentação que assegure a identidade laboral na pesca artesanal, sendo esse o principal mecanismo de desigualdade perante a categoria.

Existem também relatos de marisqueiras que iniciaram o processo de emissão do RGP há mais de dois anos e nunca obtiveram nenhuma resposta, do MPA e da colônia. Mesmo nos casos em que há o reconhecimento legal das mulheres enquanto pescadoras, percebemos que os discursos e falas de pescadores e representantes da colônia publicamente questionam e desqualificam o uso legal e jurídico do termo pescadora para caracterizar o trabalho manual do beneficiamento do camarão e do pescado, a filetagem e comercialização final do produto.

Concomitantemente verificamos nos discursos das gestoras do GG de Campos uma certa recusa ao uso da identidade laboral de pescadora e o agenciamento de diferentes categorias nativas, que se referem tanto ao trabalho feminino associado à pesca artesanal, quanto às mulheres que desenvolvem tais atividades no Farol de São Thomé. Buscamos analisar, a partir do ponto de vista de nossas interlocutoras, a específica construção das categorias nativas de marisqueira enquanto marcador social de diferença capaz de delinear semanticamente a identidade das mulheres trabalhadoras da pesca artesanal, bem como descrevemos as categorias de fundo(s) de quintal(is) e por conseguinte, seu termo de posse por uma mulher localmente designada enquanto dona de fundo de quintal. As descrições da construção dessas categorias nativas são tensionadas e, assim, analisadas a partir das teorias da divisão sexual do trabalho e da perspectiva analítica de gênero. Vale ressaltar que, historicamente, a conquista de reconhecimento jurídico das pescadoras artesanais constitui resultado de intensa mobilização política dos movimentos sociais da pesca artesanal e movimentos feministas, visando a ampliar e garantir acesso aos benefícios da seguridade social federal (seguro defeso, seguro maternidade, aposentadoria em regime especial) para as mulheres trabalhadoras da pesca artesanal.

Enquanto os homens pescadores têm seu papel social reconhecido pelo trabalho da captura e matança do pescado, as mulheres são geralmente encaradas como ajudantes, o que gera situações de subordinação financeira, jurídica, política, social, etc., dessas aos homens da comunidade, principalmente, àqueles que pertencem a sua própria família (pai, irmão, marido, filho). É nesse ínterim que buscamos questionar as desigualdades hierárquicas, os constrangimentos estruturais e as formas de não reconhecimento e (in)visibilização do trabalho feminino no âmbito da pesca artesanal. Para tanto, partiremos da análise das narrativas das mulheres e da observação direta da atuação e fala de nossas interlocutoras junto às reuniões do GG PEA Pescarte, compreendendo as nuances das relações ali instituídas e questionando as formas de reconhecimento identitário, bem como a participação por elas agenciadas em seus discursos.

TRABALHO FEMININO NA PESCA ARTESANAL NA PRAIA DO FAROL DE SÃO THOMÉ

A praia de Farol de São Thomé está geograficamente localizada no distrito de Santo Amaro, município de Campos dos Goytacazes, RJ. Essa localidade é majoritariamente habitada por pescadores artesanais e seus familiares e está espalhada pela orla marítima que se estende por 28 km, desde o limite com o Parque Estadual Lagoa do Açu, pertencente ao município de São João da Barra (ao norte) até o Canal da Flechas, divisa sul que demarca o limite entre Campos e o município de Quissamã. Por estar a aproximadamente 50 km do centro de Campos dos Goytacazes, a praia do Farol de São Thomé recebe, durante a temporada de férias, as famílias abastadas dessa cidade, que historicamente construíram casas de veraneio nas cercanias do centenário farol de 45 metros de altura, projetado por Gustave Eiffel e inaugurado em 1882 em frente ao mar.

De acordo com Bulhões (et al., 2016)BULHOES, Eduardo Manuel Rosa et al. 2016 “Projeto de gestão integrada da orla marítima. A experiência do município de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil”. Sociedade & Natureza, Uberlândia. 28 (2), 285-300. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-451320160208. [PETROBRAS/IBAMA/UENF. 2016. Censo PEA-Pescarte. Projeto de Mitigação Ambiental, Campos dos Goytacazes, RJ.]
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, a principal atividade pesqueira da região é a pesca do camarão, espécie que é comercializada também para outros estados, utilizando embarcações do tipo traineira, com o porte ajustado para superar as ondas do mar forte do local. Em relação a isso, há de se destacar as dificuldades que os pescadores e pescadoras de Farol de São Thomé encaram para iniciar suas atividades pesqueiras diariamente: boa parte das operações de lançamento e atração das embarcações é feita por tratores que rebocam os barcos pela areia da praia até o mar (Bulhões, et al., 2016)BULHOES, Eduardo Manuel Rosa et al. 2016 “Projeto de gestão integrada da orla marítima. A experiência do município de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil”. Sociedade & Natureza, Uberlândia. 28 (2), 285-300. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-451320160208. [PETROBRAS/IBAMA/UENF. 2016. Censo PEA-Pescarte. Projeto de Mitigação Ambiental, Campos dos Goytacazes, RJ.]
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, existindo um momento certo para o lançamento, que são os espaços de calmaria entre sequências de ondas maiores. Existe também um pequeno terminal pesqueiro no final dessa localidade, junto ao Canal das Flechas, que é ponto de encontro e sociabilidade dos pescadores artesanais, uma vez que é esse o local onde acontece parte do desembarque do pescado, além de compra e abastecimento de gelo e óleo diesel para os barcos. Tanto o ponto de desembarque de pescado, denominado de Pedra8 8 Nome dado ao local de desembarque e comercialização em larga escala do produto da pesca artesanal na praia do Farol de São Thomé. , quanto o terminal pesqueiro são considerados pontos de sociabilidade marcadamente masculinos, uma vez que as atividades aí desenvolvidas estão relacionadas à saída e à entrada dos barcos no mar para o desenvolvimento da pescaria, que envolve busca, captura, matança, armazenamento e transporte do peixe e do camarão até os pontos de desembarque e comercialização do pescado. Esses processos são hierarquizados a partir de critérios econômicos e/ou saberes inerentes ao sucesso, eficácia e cuidado de si e de seus companheiros durante a pescaria, construindo redes de sociabilidade e ajuda mútua diante de adversidades múltiplas inerentes ao ofício da pesca artesanal.

O dono da embarcação, denominado também de dono de barco, é aquele que detém o poderio econômico dos meios de produção da pescaria; ocapitão éo detentor dos saberes e fazeres que garantem a sobrevivência dos tripulantes do barco em mar aberto, sabendo os locais de ponto de captura e matança do pescado, sendo também o responsável pelo comando dos pescadores no convés para que esses tomem o devido cuidado a fim de que a embarcação não sofra a ação de baleias, tubarões ou até mesmo do peso excessivo do pescado capturado na rede, que pode adernar o barco. Permanecer até 12 dias e noites em mar aberto abre vulnerabilidades em relação a outras embarcações, seja devido à diferença de tamanho (rota dos transatlânticos), ou devido a ameaças de roubo, pilhagem, tráfico; contingências ambientais e climáticas, como mudança bruscas de temperatura, ventos, tempestades, além de ondas gigantes, arrecifes, que são também ameaças presentes no ofício da pesca artesanal e, diante de cada uma delas, os saberes do capitão e sua capacidade de negociação, comando e condução da tripulação são cotidiana e continuamente testados quanto a sua procedência e eficácia, quando traduzidas em ações práticas.

Participam também da rede de sociabilidades masculina os mestres barqueiros, responsáveis pela construção e reparação dos barcos, os fazedores de rede, os tratoristas responsáveis pela tração dos barcos nas areias da praia do Farol de São Thomé, os vendedores locais de peixe, entre outros.

Uma vez desembarcado, o pescado e o camarão entram no circuito de comercialização do produto, que pode acontecer com ou sem o seu beneficiamento, ou seja, com ou sem a ação do trabalho de limpeza, acondicionamento, embalagem e resfriamento. Geralmente o processo de beneficiamento acontece nos frigoríficos ou nos fundos de quintal, pelas mãos das mulheres da localidade que se autoidentificam enquanto marisqueiras.

As mulheres que trabalham na limpeza do pescado e sua filetagem ou na limpeza do camarão, no Farol de São Thomé, são reconhecidas local e socialmente pela categoria nativa de marisqueiras. Essas mulheres geralmente pertencem a famílias de tradição pesqueira. Historicamente, tanto as esposas e filhas, como os próprios pescadores, encarregam-se da limpeza do peixe e do camarão pescados e trazidos do mar a fim de “ajudar” no sustento da família.

Mesmo com a implantação de frigoríficos na praia do Farol de São Thomé, que empregam (formal e informalmente) uma parte do contingente de trabalhadoras/es da pesca artesanal, em sua maioria mulheres, há relatos de participação masculina no trabalho de mariscagem, o que nos permite relativizar a divisão de papéis desempenhados e a consequente hierarquização social realizada. Em comum, essas mulheres relatam ter crescido vendo suas mães, irmãs, tias e avós na lida da casa, criação dos filhos e “ajuda” na limpeza do pescado do barco em que a família trabalhava.

Segundo os dados do Censo PEA-Pescarte (2016), autodeclaram-se pescadoras em Farol de São Thomé 221 mulheres, do total de 455 pessoas, demonstrando que quase 50% da mão de obra relativa aos processos da pesca é composta por mulheres. As atividades de descascar camarão, limpar e filetar peixe, constituem aquilo que localmente se convencionou denominar de mariscagem. Essas atividades são desenvolvidas na região em dois espaços distintos: o frigorífico e os espaços de beneficiamento denominados de fundos de quintal.

Os frigoríficos são unidades formais de beneficiamento do pescado estabelecidos na região que empregam parte das marisqueiras. Trabalhando nesses locais cotidianamente, nem sempre com registro em Carteira de Trabalho e acesso aos direitos sociais garantidos na Constituição de 1988, homens e mulheres que atuam nos frigoríficos se alternam em turnos de oito horas por dia, fazendo a limpeza do camarão e/ou limpeza e filetagem do pescado para, posteriormente, receber embalagem e seguir para estocagem e comercialização. Os frigoríficos de Campos possuem suas atividades e vendas registradas e formalizadas no mercado por meio de selo de inspeção sanitária de órgão municipal, o que se traduz em exigência de limpeza, assepsia, asseio, higiene em relação às ações desempenhadas em suas dependências.

Os trabalhos realizados nos fundos de quintal da região são responsáveis por absorver principalmente a mão de obra de mulheres. Nesses locais as mulheres trabalham de forma flexível, sem registro e dependentes de terceiros para obter a matéria prima a ser beneficiada (peixe ou camarão). Tais espaços recebem o nome de fundo de quintal pelo fato de geralmente ser um local de trabalho anexo à casa, seja o quintal ou um ponto nas imediações da residência (porta da casa, debaixo da sombra de alguma árvore, final de rua sem saída, etc.) de uma marisqueira principal, conhecida localmente como a dona do fundo de quintal ou dona de quintal, por ser aquela que oferece a estrutura de acesso a água tratada ou de poço para a limpeza do pescado, além de freezer, isopor e caixas de plástico para o acondicionamento do produto, bem como facas e amoladores para que ela e as outras mulheres possam trabalhar no filetamento de peixes e na limpeza de camarões.

O fundo de quintal é organizado de forma contígua à casa da dona de quintal. Apesar de receber esse nome, que no senso comum remete a um espaço de convívio, lazer e sociabilidade associado à própria casa, os fundos de quintal em Farol não constituem a ampliação do espaço doméstico. Segundo Kofes (2001KOFES, Maria Suely. 2001. Mulher, mulheres: Identidade, diferença e desigualdade na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas, Ed. UNICAMP.), o doméstico pode ser compreendido como um lugar relacionalmente associado ao sentido do feminino, sendo eminentemente marcado por constrangimentos estruturais que garantem a segurança para a reprodução da família, com a naturalização de funções e o desempenho de papéis sociais de homens e mulheres que marcam a distinção e, principalmente, a atribuição de caráter hierarquicamente subalterno ao trabalho manual associado ao desempenho de tarefas domésticas.

Certamente as marisqueiras, assim como as empregadas domésticas interlocutoras de Kofes (2001KOFES, Maria Suely. 2001. Mulher, mulheres: Identidade, diferença e desigualdade na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas, Ed. UNICAMP.), investem sua disponibilidade de tempo na execução de uma série de tarefas que lhes são designadas por outrem. Por seu turno, as donas de quintal, diferentemente das donas de casa/patroas, dividem igualitariamente o uso e os recursos (água, luz, material de limpeza, equipamentos), garantindo o mínimo de condições de uso daquele espaço enquanto unidade produtiva do beneficiamento do pescado. As ações desenvolvidas no fundo de quintal estão pautadas numa espécie de associativismo e ajuda mútua (principalmente no caso de necessidade de cuidado dos filhos) em que o tempo do trabalho não segue somente o tempo capitalista, mas está contingenciado também pela sazonalidade e alternância oscilante de atividades ligadas às respectivas famílias das marisqueiras e à própria especificidade da pesca artesanal.

A dicotomia entre espaço público e privado transcodificada pela ação da divisão sexual do trabalho está na base da classificação bipolar dos espaços sociais de domínio de cada gênero. Assim, socialmente mulheres são responsabilizadas pelo domínio do privado, o que lhes confere o reconhecimento de cuidadoras, e os homens, por agirem no espaço público, são tidos como provedores. No caso da pesca artesanal, segundo Woortmann (1992WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1992. “Da Complementaridade à Dependência: Espaço, Tempo e Gênero em Comunidades ‘Pesqueiras’”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18, 41-61.), o mar representa o domínio público

e é percebido como ambiente masculino; já a terra é compreendida como espaço privado, portanto percebido como ambiente feminino. Essa classificação acaba conferindo invisibilidade às atividades desenvolvidas por mulheres e, em consequência, sua desvalorização no meio social. As oposições lógicas mar/terra; homem/mulher não são simétricas e constroem a própria hierarquia e o ordenamento desse mundo social. Mais do que uma oposição lógica, é uma oposição ideológica, uma vez que a

(...) atividade do homem-pescador é completa porque ele ‘é’ a comunidade total, pois a identidade masculina constitui a identidade do grupo (...). Se a complementaridade era (no passado dos grupos estudados) equilibrada, era também hierárquica, e era, e ainda é, a atividade do homem (que é o pescador) que fazia a especificidade desses grupos (Woortmann, 1992WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1992. “Da Complementaridade à Dependência: Espaço, Tempo e Gênero em Comunidades ‘Pesqueiras’”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18, 41-61.: 58).

Interessante notar que essa mesma lógica está presente e ordena o mundo da pesca artesanal de Farol de São Thomé. Se é a identidade masculina de pescador aquela capaz de oferecer estabilidade nas relações sociais ao hierarquizar e ordenar o mundo vivido, a possibilidade de acionamento semântico dessa categoria identitária por parte das mulheres representa risco iminente e coloca em xeque o processo de construção dos marcadores sociais de pertencimento e hierarquia. Esse risco ameaça a estratificação social semanticamente construída e ordenada por meio dos discursos proferidos por homens, acostumados a agir na defesa de sua primazia social, diante de mulheres que passam a defender os ganhos sociais específicos de serem e estarem associadas exclusivamente a um seleto grupo de homens (por meio de parentesco como pai, irmão, marido, filho, cunhado, sobrinho) dessa comunidade.

A relação de invisibilidade do trabalho feminino historicamente está associada ao trabalho doméstico e cuidados da família, que segue a clássica divisão entre público e privado, restringindo a mulher da ocupação de espaços públicos, tornando-a reclusa no espaço privado e dependente economicamente dos homens de sua família, em geral pai ou marido. Para Faria (2009FARIA, Nalu. 2009. “Economia feminista e agenda de luta das mulheres no meio rural”. In. BUTTO, Andrea. (Org.). Estatísticas rurais e a economia feminista: um olhar sobre o trabalho das mulheres. Brasília, MDA, pp.11-28.), o capitalismo engendra duas esferas distintas, sendo a esfera pública destinada à produção e a esfera privada à reprodução de pessoas que reproduzem esse próprio sistema. Nesse sentido, ocorre a produção de discursos que naturalizam a restrição das mulheres ao espaço privado, vinculadas à maternidade, o que reforça a desvalorização do trabalho doméstico no âmbito econômico familiar. A economia feminista busca incluir as mulheres no paradigma econômico dominante, visando estender a relação de bem-estar no trabalho às atividades de reprodução, próprias da esfera privada. Enquanto parte integrante da própria economia, segundo Faria (2009FARIA, Nalu. 2009. “Economia feminista e agenda de luta das mulheres no meio rural”. In. BUTTO, Andrea. (Org.). Estatísticas rurais e a economia feminista: um olhar sobre o trabalho das mulheres. Brasília, MDA, pp.11-28., p. 17), a “(…) produção mercantil não é autônoma e depende do trabalho não-remunerado nos lares. Nesse sentido há uma falsa autonomia dos homens que utilizam os bens e serviços realizados pelas mulheres”.

Vale salientar que essa abordagem teórica que tematiza a divisão sexual do trabalho está vinculada à própria noção capitalista de trabalho, que o reduz ao que pode ser trocado no mercado. Isso é explicado graças à finalidade principal do capital, que é expandir seu valor de troca. Para Antunes (1999ANTUNES, Ricardo. 1999. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a aflrmação e a negação do trabalho. São Paulo, Ed. Boitempo.), a completa subordinação do trabalho humano ao processo de reprodução do capital tem sido o traço mais notável do capitalismo, “para converter a produção do capital em propósito da humanidade era preciso separar valor de uso e valor de troca, subordinando o primeiro ao segundo” (Antunes, 1999ANTUNES, Ricardo. 1999. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a aflrmação e a negação do trabalho. São Paulo, Ed. Boitempo., p. 12).

No caso analisado, o peixe produzido por meio das atividades desenvolvidas pelos homens não possui um valor de troca maior que o valor do peixe beneficiado pela ação das mulheres marisqueiras, ou seja, o trabalho realizado por elas agrega valor à mercadoria por eles produzida. Apesar disso, o trabalho dos homens na pesca, captura e matança do pescado é visto como mais importante nesse meio social, uma vez que, sem ele, o pescado, toda a cadeia da pesca artesanal é inviabilizada, sem que haja a concretização nem do valor de uso nem do de troca, muito menos da possibilidade de expansão desse último.

NARRATIVAS DAS MARISQUEIRAS: TRABALHO E IDENTIDADES

Ao longo da pesquisa de campo, além de realizar observação participante durante as reuniões mensais do Grupo Gestor de Campos dos Goytacazes, construímos interlocução privilegiada com três gestoras9 9 Os verdadeiros nomes das nossas interlocutoras foram substituídos a fim de proteger a identidade das mesmas. , todas moradoras do Farol de São Thomé. Eduarda não é casada, tem 41 anos e possui quatro filhos, dos quais somente os dois menores moram com ela. Possui somente o ensino fundamental e trabalhou em fundos de quintal e em frigoríficos, mas atualmente está desempregada. Aprendeu o ofício com outras mulheres da localidade. Não possui RGP, já recebeu o defeso municipal e se autodeclara tanto como marisqueira quanto como pescadora artesanal. Clara trabalha limpando peixe e camarão em frigorífico ou fundos de quintal desde os nove anos de idade. Possui ensino médio e tem 30 anos de idade. Não é casada e tem um filho. Não possui o RGP, mas recebe o seguro defeso municipal. Se autodeclara somente marisqueira.

Luiza relatou que sempre foi pescadora. Quando se casou, há mais de 40 anos, essa atividade passou a ser desenvolvida em regime de complementaridade ao trabalho do marido, que se responsabilizava pela captura e matança do pescado, enquanto ela passou a se encarregar do processo referente ao beneficiamento, sendo atualmente dona de fundo de quintal. Mãe de cinco filhos, possui o ensino fundamental, não declarou a idade e se autoidentifica tanto como marisqueira quanto como pescadora. Recebe o seguro defeso municipal e não possui o RGP.

De maneira geral as narrativas sobre trajetórias de vida de nossas entrevistadas estão marcadas, sobretudo, pela dedicação à família. Luiza conta com emoção as dificuldades superadas para criar os seus cinco filhos. Hoje, estando todos criados, trabalham no ramo da pesca artesanal, desenvolvendo diferentes atividades, como mestre barqueiro, pescador de águas marítimas, marisqueira. Sobre seu filho mestre barqueiro, Luiza comenta, com carinho e orgulho:

Quando passa por aqui eu chego a chorar, um barco enorme, muito bem feito. Nunca estudou para fazer barco, [...] e hoje meu filho faz cada barco, eu fico até emocionada quando eu vejo, e penso: meu filho nunca teve um estudo, como faz esses barcos tão lindo, tão bem feito?

(Entrevista realizada e filmada pelas pesquisadoras com a marisqueira Luiza na tarde do dia 23 de outubro de 2017. Todos os trechos da fala de Luiza aqui transcritos pertencem a essa entrevista).

Luiza ao falar sobre si, conta-nos com os olhos cheios de lágrimas que passou por muitas dificuldades, havendo dias sem ter o que colocar na mesa para comer. Desde muito cedo trabalhando com a pesca, vinda de uma família humilde, conta que teve que se casar muito nova, embora sequer pensasse nisso à época, pois as filhas eram impelidas a se casarem cedo para saírem de casa. Dedicou-se à família, à criação dos filhos e aos trabalhos domésticos, não sobrando muito tempo para atividades de lazer. Embora tenha idade para se aposentar, sua rotina continua a mesma: todos os dias ela acorda cedo para limpar e filetar o peixe, fazer comida, limpar a casa e cuidar dos netos, agora que os filhos já estão criados. Nos dizeres de Luiza:

[...] já fui cortadeira de cana, com meu pai, com a minha mãe, a gente tinha uma vida muito difícil, aí começamos a trabalhar em tudo. Naquela época não consegui estudar, meu pai e minha mãe não tinha condições, naquela época tudo era comprado. Hoje tem a ajuda do governo, Bolsa Família, tudo mais. Aí minha mãe mandou eu trabalhar. Já pesquei muito, cortava cana, de tudo eu já fiz um pouco.

De acordo com Gerber (2013)GERBER, Rose Mary. 2015. “Nos passos de Gioconda Mussolini, a construção de uma etnografia sobre invisibilidades e mulheres pescadoras” Rev. Antropol, São Paulo, 58(2), 99-116. https://doi. org/10.11606/2179-0892.ra.2015.108514.
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, é importante ressaltar que há variações no que diz respeito aos conhecimentos adquiridos na pesca artesanal em relação a homens e mulheres. Os conhecimentos e saberes transmitidos às mulheres são geralmente atrelados às atividades de produção realizadas em terra, ligadas à esfera privada, como, por exemplo, as atividades de beneficiamento do pescado, transformação do peixe, aproveitamento do pescado, etc. Essas são atividades que, a partir de uma lógica de divisão sexual do trabalho, são tidas como inferiores, quando comparadas às atividades desenvolvidas por homens, relativas ao embarque, captura, matança e transporte do pescado.

Nesse sentido, Luiza é a única a relatar que, no passado, chegou a embarcar, inicialmente com os pais e depois com o marido, para pescar, ainda que de canoa, e que o fato de ser mulher não a impedia de participar de alguns processos da pesca, embora não pudesse fazê-lo sozinha, sendo sempre acompanhada de algum familiar ou do marido, como explicitado na fala:

Eu sempre ia com meu marido, ia com os meus pais, depois fiquei muitos anos pescando né, a gente não entrava no mar mesmo, lá dentro, na época era de canoa, aqui na beira. Aí pegava, saía às vezes de madrugada, ele me chamava e dizia: olha vamos pescar que o tempo tá bom para pescar. Eles falam a quadra, né, a quadra tá boa, aí a gente ia pescar. Saía uma hora, às vezes meia-noite, pescando, aí amanhecia o dia, pegava tudo, aqueles camarão, botava à beira mar, na areia, né, mas muita quantidade, muita quantidade, pegava muito camarão, muito peixe. Aí depois ele pescava na beira, depois começou a pescar no barco em alto-mar. No alto-mar eu não ia não, só ia na beira.

É por meio dessa narrativa que conseguimos datar o processo de diminuição da quantidade do pescado abatido há no mínimo 40 anos, período em que os barcos passaram a ir para o alto-mar. Esse relato remonta um passado na pesca em que os recursos pesqueiros eram abundantes, havendo trabalho para todas as marisqueiras. Atualmente essa situação vem sendo degradada. Os recursos pesqueiros estão diminuindo na região, o processo de migração decorrente da industrialização regional por meio da indústria de exploração do petróleo tornou as alternativas de trabalho em Farol cada vez mais escassas, especialmente a partir da inauguração do Super Porto do Açu, que após o término de suas obras desempregou grande contingente de trabalhadores. Essa situação é evidenciada pela fala de Clara:

É difícil conseguir [trabalho/emprego] nos frigoríficos, porque estão muito cheios e já tem aquela turma, já certa, que estava trabalhando. E aí tem gente que trabalha lá faz muito tempo, e aí não tinha seleção, nem indicação, nada: você ia no frigorífico, que trabalhava. Só que aí, assim, com desemprego, tem muita gente e aí não tem mais vaga, e as pessoas que já têm suas mesas e seus locais certinho de trabalho, e aí não tem como colocar mais gente para trabalhar lá.

(Entrevista realizada e gravada em áudio pela pesquisadora Rafaella Theis com a marisqueira Clara na tarde do dia 26 de outubro de 2017. Todos os trechos da fala de Clara aqui transcritos pertencem a essa entrevista).

Para o trabalho nos frigoríficos e fundos de quintais nossas interlocutoras relataram ser necessário conhecer as diferentes técnicas de manejo que cada tipo de peixe exige, o tipo de ferramenta que elas devem utilizar para cada pescado. Uma delas diz: “se não souber fazer direito, desperdiça muita coisa boa do peixe”. As técnicas de cada peixe são aprendidas com as mães, irmãs, vizinhas, alguém que tenha o conhecimento da técnica e que lhe ensine. Com o passar do tempo, a repetição da mesma atividade lhes traz a impressão de já terem nascido sabendo aquele ofício. Esse cotidiano contribui para a falta de cuidado quanto aos riscos envolvidos no manuseio do pescado que, no caso dos fundos de quintal, acontece sem nenhuma proteção ou uso de equipamentos de segurança. Todas as entrevistadas já foram lesadas no processo de trabalho e, mesmo nos frigoríficos, onde se espera que haja fiscalização e controle, há relatos de que às vezes se trabalha sem a proteção adequada, conforme narra Clara:

Bom, eu acordo às 4h30, 5h, mudo de roupa e vou. Aí levo o meu uniforme, minha alimentação, minhas coisas de trabalho e tenho que tá 6 horas no salão. O limite mínimo de sair de lá é de 15 horas da tarde. A gente trabalha direto com peixe, camarão. Eu já corri o risco lá, já levei um corte profundo no dedo, quase perdi o dedo, tive que levar 5 pontos, foi complicado, mas [é] a única coisa que tem pra gente.

Em geral ela trabalha quando chega o pescado, e relata já ter ficado semanas sem ir ao frigorífico por falta de matéria prima. Nos finais de semana Clara monta uma barraca de venda de açaí em frente à sua casa para assim complementar sua renda, pois o trabalho no frigorífico não é suficiente para o sustento da família.

Segundo constatamos em diálogos estabelecidos com as marisqueiras, o acesso aos fundos de quintal é feito por meio de indicação, e não parece haver diferenciação entre a marisqueira que é dona do fundo de quintal e as demais trabalhadoras que ali trabalham. Eduarda nos contou que “elas [donas de fundo de quintal] ainda gastam a água para limpar a sujeira, e a casa fica cheirando a peixe”. Ainda segundo Eduarda, é nos fundos de quintal que as mulheres estabelecem maior relação de reciprocidade e ajuda mútua, sendo por vezes permitido a permanência dos filhos pequenos durante o expediente de trabalho em atendimento à demanda de trabalhadoras que não possuem acesso a creches para seus filhos pequenos. Assim, as crianças acabam participando do cotidiano da pesca e aprendendo desde muito cedo os meandros desse ofício.

A incidência do trabalho realizado pelas marisqueiras sobre o peixe capturado (pelos homens) possui a capacidade de agregar maior valor de troca ao produto final a ser vendido, o que é considerado importante naquele meio social. Ainda assim, como a filetagem e o beneficiamento do pescado são atividades manuais, decorrentes da pesca, e que exigem baixa especialização, sendo muitas vezes atividades desenvolvidas em condições precárias, que envolvem risco à saúde da trabalhadora, esse trabalho pouco oferece às marisqueiras oportunidades de ascensão e reconhecimento social.

As atividades desenvolvidas em fundos de quintais e frigoríficos se utilizam da mão de obra feminina para o manuseio de peixes e camarões. Essa divisão do trabalho pode estar relacionada aos papéis que histórica e costumeiramente são atribuídos às mulheres, justificada pelo senso comum a partir dos atributos que lhes seriam “inatos”, como sensibilidade, delicadeza, destreza das mãos, características necessárias para o treino no ofício e alcance da expertise em lidar manualmente com o produto variado que a pesca oferece. Para Perrot (2005PERROT, Michelle. 2005. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, Ed. EDUSC., p. 253), “qualificações reais fantasiadas como qualidades ‘naturais’, é resultado da relação entre os sexos, que denota à mulher as obrigações das atividades relativas a esfera doméstica, ‘geradoras de serviços, mais do que mercadorias, são valores de uso mais do que valores de troca’”. A lógica de exploração do trabalho e minimização do reconhecimento monetário incide de maneira acintosa sobre as marisqueiras dessa comunidade pesqueira, tanto que, quando trabalham em frigoríficos da região, não recebem por hora corrida, mas pelo volume de produção feito ao dia. Os trabalhadores de frigoríficos atuam com movimentos repetitivos, com um ritmo de produção elevada, que ocasionam uma série de fatores de risco à saúde relacionados com a repetitividade e a sobrecarga muscular. Atrelado a isso, são funções que requerem baixa qualificação, rendem pouca remuneração, exercidas em situação de monotonia, e em condições de extrema vulnerabilidade social.

Aconteceu várias coisas comigo, já caí, me machuquei e, faz tempo, eu tive problemas com várias coisas. Fiquei doente por causa de tanto trabalhar nisso, mas eu tô bem, graças a Deus. A gente não tem hora para nem começar, nem para terminar. Hoje temos, porque a gente pode trabalhar depois das 3 horas, a gente trabalha a hora que a gente quiser, o horário mínimo de sair é 3 horas, mas antigamente a gente trabalhava por hora trabalhada, então quanto mais horas você fizesse mais você ganhava. Eu já cheguei a gastar, assim, tipo três garrafas de café numa noite, num dia, para conseguir sustentar meu corpo. O café espanta o sono, né, então o meu corpo aguenta trabalhar. Já trabalhei das 7 horas da manhã até as 9 horas da manhã do outro dia. Tipo assim, a gente não ganha tanto para isso, quem vive disso sabe que a gente não ganha muito bem para isso, e na época, além da gente juntar mais um trocado por não ganhar muito bem, a gente não podia deixar a mercadoria estragar, porque camarão e peixe são mercadorias que estragam fácil, então quanto mais adiantado o serviço, seria melhor para a gente e para o patrão, e é onde a gente adiantava o trabalho (Clara, Marisqueira de Farol de São Thomé).

Constatamos também, a partir dos relatos das marisqueiras, que a situação dos fundos de quintais e frigoríficos estão sendo cada vez mais precarizadas, uma vez que o trabalho das marisqueiras está inserido em uma lógica de avanço neoliberal, que coloca a força de trabalho de homens e mulheres em situação de extrema vulnerabilidade social, crescente precarização, flexibilidade e tendência à informalidade.

Eduarda atualmente está desempregada. Ela nos conta que conseguir um emprego em frigorífico é muito difícil por ela ser separada e ter quatro filhos, sendo que os dois menores moram com ela e a falta de creche a impede de conseguir se adequar aos horários que os frigoríficos impõem sobre a rotina de trabalho.

Hirata (2002HIRATA, Helena. 2002. “Globalização e divisão sexual do trabalho”. Cad. Pagu, 17-18, 139-156. https://doi.org/10.1590/S0104-83332002000100006.
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) aponta a relação e os efeitos de políticas neoliberais sobre o mundo do trabalho com o aumento do número de mulheres no mercado de trabalho ligado à criação de postos de trabalhos mais precários e vulneráveis, evidenciando um dos paradoxos da globalização. Se por um lado temos a abertura do mundo do trabalho às mulheres, por outro, ela vem acompanhada de diversas concessões de direitos, atrelada sobretudo às desigualdades, tanto entre sexos como entre classes, raça e etnia. Hirata (2002)HIRATA, Helena. 2002. “Globalização e divisão sexual do trabalho”. Cad. Pagu, 17-18, 139-156. https://doi.org/10.1590/S0104-83332002000100006.
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reforça essa questão quando indica tanto a tendência à bipolarização do trabalho assalariado, atrelado à maior diversificação de tarefas “executivas” e “intelectuais” que parte da parcela feminina passa a ter acesso e, por outro, ao desenvolvimento e ampliação do setor de serviços, que sofre forte impacto da criação de novas profissões.

Diante do contexto de ataque neoliberal, “poderíamos simplesmente dobrar o arco da transformação eminente na direção da justiça e, não apenas no que diz respeito ao gênero” (Fraser, 2009FRASER, Nancy. 2009. “O Feminismo, o Capitalismo e a Astúcia da História”. Trad. Anselmo da Costa. Revista Mediações, Londrina, 14(2), 11-33. http://dx.doi.org/10.5433/2176-6665.2009v14n2p11.
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, p. 55). Assim, discutir a invisibilidade da mulher e as possibilidades de construção de reconhecimento e protagonismo feminino, ainda que no âmbito do PEA Pescarte, faz-se necessário, à medida em que esse poderá servir de espaço de qualificação e construção de consciência crítica, servido de exercício de participação e prerrogativa para a criação das políticas públicas no setor pesqueiro em esfera municipal e estadual, contribuindo também para a ampliação de possibilidades de combate às formas cotidianas de discriminação de gênero, raça e etnia. (Laval & Dardot, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. 2016. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Ed. Boitempo.)

Não menos importante é a construção de conhecimentos que permitam a análise de processos locais frente a alguns ataques. Ataque econômico e político ao Estado de direito social e à legislação trabalhista - que visam, em última instância, o seu desmantelamento - e ataques às comunidades de pesca artesanal, tanto frente à lógica normativa neoliberal, que legitima a competição generalizada dos indivíduos entre si e entre indivíduos e corporações industriais da pesca; quanto frente à desregulação das relações sociais segundo o modelo de mercado, justificando as desigualdades sociais e ambientais cada vez mais profundas.

Ao longo das atividades do GG que articulam e congregam os sete municípios atendidos pelo PEA Pescarte, chamou nossa atenção o fato das gestoras de Farol de São Thomé de Campos - assim como as dos municípios de Quissamã, São João da Barra e São Francisco de Itabapoana - se apresentarem a partir da categoria marisqueira. Também notamos que muitas delas faziam questão de se apresentar enquanto marisqueira e esposa pescador, possivelmente anunciando tal condição de parentesco enquanto marca distintiva e dignatária no meio regional da pesca artesanal, sabidamente machista e sexista. É como se a categoria de marisqueira não fosse suficientemente potente para conferir às mulheres trabalhadoras da pesca o pleno reconhecimento social junto aos seus pares, pertencentes aos GGs que congregam representantes de distintas comunidades de pescadores artesanais.

Em sua maioria, as trabalhadoras da pesca artesanal dessa localidade afirmam não se reconhecer nem serem reconhecidas como pescadoras. Assim, ainda segundo nossas entrevistadas, quem pesca é quem vai para o mar e trabalha na captura e matança daquilo que pescou. As atividades de limpeza do pescado e seu preparo para venda no Farol de São Thomé recebe o nome de mariscagem, o que confere a cada trabalhadora da pesca artesanal a identidade laboral de marisqueira. A palavra marisqueira é um substantivo feminino que designa um peixe de mar da família dos Cienídeos. É também uma designação derivada da usual atividade de mariscagem, enquanto coleta e limpeza de mariscos e moluscos comestíveis. Desde o início da pesquisa nos chamou a atenção o fato do emprego da categoria nativa marisqueira, em Farol de São Thomé, não estar associado ao que usualmente é reconhecido enquanto mariscagem.

Uma explicação possível para esse estado de coisas nos foi proporcionada ao final da entrevista que realizamos com Luiza, quando fomos convidadas para o café acompanhado de bolo, servidos na cozinha de sua casa. Foi somente nesse momento de descontração e comensalidade que a atividade da coleta de marisco apareceu na narrativa de nossa interlocutora, que prontamente foi buscar um vasilhame de cozinha cheio das lindas conchas triangulares de cor rosa, semiabertas, ainda contendo o molusco fresco em seu interior. Foi somente nesse ponto de nossa conversa, já no interior da casa, abrindo e compartilhando conosco aspectos do cotidiano doméstico, que Luiza disse ser uma cozinheira de mão cheia que gosta de receber nos finais de semana seus familiares e amigos para apreciar de suas receitas, dentre elas, seu famoso pastel de marisco, que seria preparado no dia seguinte, um sábado, para a visita dos filhos, noras e netos. Foi com grande satisfação que reencontramos Luiza, após um ano de seu afastamento das atividades do PEA Pescarte em decorrência de uma depressão. Na ocasião de seu retorno às atividades do PEA Pescarte, Luiza nos contou que ao longo desse período sentiu como se suas forças e vontade de viver fossem sugadas e sumissem, o que a deixou prostrada dentro de casa durante longos dias, acamada, sem vontade própria. O primeiro sinal de recuperação, ainda segundo nossa interlocutora, foi uma vontade imensa de andar pelas margens do Canal das Flechas, sentindo a água e a areia nos pés, para catar mariscos, como fazia quando era menina, acompanhada de seus familiares. Foi assim que Luiza saiu da prostração da depressão, para mariscar e preparar seus famosos pastéis! Daí em diante passamos a nos encontrar assiduamente nas reuniões do GG e demais atividades do PEA Pescarte, ela sempre com sorriso no rosto e brilho nos olhos.

Esse episódio nos fez questionar se a construção discursiva da categoria nativa marisqueira, em Farol de São Thomé, não constitui estratégia semântica de afirmação identitária, calcada na memória coletiva do cotidiano de atividades atribuídas ao feminino, em que a mariscagem representa a possibilidade de saída do espaço privado da casa (doméstico) rumo a um espaço coletivamente habitado, marcado pelo compartilhamento de experiências e saberes que garantem a possibilidade de acesso, coleta e captura daquilo que está disponível na natureza daquele ambiente para garantir a alimentação familiar. Dessa forma, a categoria nativa de marisqueira guarda um tipo

estrutural de paridade com a pesca e, concomitantemente, simula para si a possibilidade de habitar coletivamente espaços e temporalidades voltados para o desenvolvimento de atividades prazerosas, de pleno contato com a natureza local, distante daquilo que guarda qualquer semelhança com o doméstico. Mesmo não desempenhando comercialmente o papel de coleta/limpeza de moluscos e mariscos, a atividade de marisqueira em Farol de São Thomé e arredores constrói uma metáfora que atribui valor ao trabalho feminino na pesca artesanal. Se assim for, a delicadeza dessa categoria nativa permite ordenar o mundo vivido a partir da separação semântica entre a masculinidade desempenhada por meio da pesca enquanto captura e matança do pescado, e a feminilidade traduzida na própria possibilidade de habitar coletivamente com outras mulheres o espaço do fundo de quintal, local eminentemente marcado pelos saberes e fazeres que afirmam a feminilidade dessas mulheres em seu cotidiano de trabalho para garantir o sustento e alimentação da própria família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa de campo permitiu sistematizar os tipos de trabalho feminino desenvolvidos no Farol de São Tomé. A partir de pesquisa de campo e da realização e análise de entrevistas narrativas feitas com três marisqueiras integrantes do GG PEA Pescarte de Campos dos Goytacazes, abordamos as relações de trabalho desenvolvidas nos fundos de quintal e frigoríficos da região. Os frigoríficos empregam parte das marisqueiras, nesse local elas fazem a limpeza do pescado e o embalam para a comercialização. Os fundos de quintais são responsáveis por absorver a mão de obra das mulheres que não conseguem uma vaga de trabalho nos frigoríficos, elas trabalham de forma autônoma, embora dependam de terceiros para obter a matéria prima (peixe ou camarão).

Quando operamos a análise a partir da divisão do trabalho em relação à questão de gênero, compreendemos que as diferenciações de trabalho entre homens e mulheres são localmente percebidas a partir do fato dos homens não considerarem as atividades laborais desenvolvidas por mulheres como trabalho, mas como uma “ajuda”. Quando acontece o reconhecimento laboral, esse se expressa no uso cotidiano da identidade marisqueira, como uma espécie de interdição ao uso da categoria legal de pescadora. Por meio do acionamento da categoria nativa marisqueira, o reconhecimento laboral dessas mulheres não pressupõe simetria (semântica, econômica, política) das relações de gênero, não alterando a ordem patriarcal estabelecida pela própria divisão do trabalho social na localidade.

A pesquisa de campo nos permitiu descrever e analisar uma dupla invisibilidade sofrida pelas marisqueiras de Farol de São Thomé, primeiramente em relação à categoria de pesca artesanal, em posição de detrimento em relação à pesca industrial e, segundo, em relação às hierarquias de gênero dentro da comunidade de pescadores artesanais. Em Campos a pesca artesanal é uma atividade instável e sazonal. De acordo com os relatos

das entrevistadas, existem dias em que não há como trabalhar por falta da matéria-prima decorrente da escassez de peixe e camarão, causada pela exaustão dos tradicionais pontos de pesca e proibição de se pescar nas proximidades das plataformas de petróleo, que se tornaram novos pontos atrativos da fauna marinha. Os relatos também nos ajudam a compreender a forma como as relações de trabalho estão sendo precarizadas, a ponto do montante recebido pelo dia trabalhado ser insuficiente para a manutenção da trabalhadora e de sua família, estando, portanto, abaixo do necessário para a sua própria reprodução social, condição ainda agravada pela falta de acesso aos direitos trabalhistas.

A partir da análise das entrevistas narrativas, adentramos na representação da realidade social construída por essas mulheres que, historicamente, agenciam as categorias nativas de marisqueira e fundos de quintal enquanto espécie de escudo semântico de defesa diante das pressões e contingências que a sociedade envolvente lhes impõe quanto ao desenvolvimento de seu trabalho, assegurando para si um grau de autonomia e circulação, desde que atuando junto àquilo que está associado ao doméstico e a um tipo relativo de subordinação às atividades laborais masculinas da localidade.

A alteração legislativa e ampliação do conceito de pesca artesanal a partir da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, não resultou em imediata aderência, por parte de nossas interlocutoras, à identidade de ofício de pescadora artesanal, ainda que tenham direito a esse reconhecimento. Discutir a invisibilidade da mulher em projeto de educação ambiental se faz necessário enquanto prerrogativa para a criação de espaços alternativos de exercício político, como o GG, enquanto local em que homens e mulheres das comunidades de pescadores artesanais podem estabelecer relações sociais simétricas, pautadas pela colaboração mútua e participação em processos formativos que lhes permitam focar no reconhecimento e enfrentamento dos impactos negativos da indústria do petróleo e gás para o setor da pesca artesanal.

É importante destacar que as estratégias locais de proteção semântica da pesca artesanal tendem a ser ineficientes frente às pressões de concorrência mercadológica do cenário globalizado, regido pela tendência à livre concorrência e desregulamentação das leis trabalhista. É nesse sentido que o PEA Pescarte encara o desafio de promover o diálogo, a produção e a troca de conhecimentos a respeito das consequências da indústria petrolífera na região, permitindo aos próprios agentes locais intervir coletivamente na gestão do território pesqueiro, a partir de habilidades e conhecimentos técnico-científicos que estão sendo transmitidos aos representantes eleitos das comunidades pesqueiras integrantes dos GGs. Ao mesmo tempo, esforços estão sendo empreendidos para acompanhar e comunicar as diferentes modalidades de negociações envolvendo a construção e, infelizmente, a desconstrução10 10 A Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República (SEAP/PR) foi criada pela Medida Provisória nº 103 e regulamentada pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. A Lei nº 11.958/2009 transformou essa Secretaria em Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), responsável pela implantação de uma política nacional pesqueira e aquícola para viabilizar o desenvolvimento sustentável de 8,5 km de costa e 12% da água doce do planeta, transformando esta atividade econômica em uma fonte sustentável de trabalho, renda e riqueza. Esse ministério foi extinto pela reforma ministerial de outubro de 2015. Em 2019 as ações relativas à pesca estão centradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e centralizadas na Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP/MAPA). de políticas públicas focalizadas no setor da pesca artesanal em esferas municipal, estadual e nacional, tendo especial atenção para que as mulheres trabalhadoras da pesca artesanal aprendam a agir no reconhecimento, enfrentamento e superação das desigualdades de oportunidades, representação, ascensão econômica e social, ainda presentes na cadeia produtiva da pesca artesanal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1992. “Da Complementaridade à Dependência: Espaço, Tempo e Gênero em Comunidades ‘Pesqueiras’”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18, 41-61.
  • 1
    A Bacia Petrolífera de Campos é responsável por mais de 80% da produção de petróleo e gás do Brasil e tem sido alvo, durante anos, dos grandes empreendimentos geradores de mudanças socioambientais que acabaram impactando a vida e o trabalho dos pescadores e pescadoras artesanais da região. Como forma de diminuir ou compensar tais impactos, as empresas petrolíferas, instaladas na região foram obrigadas, a partir de 1990, a passar por processo de licenciamento ambiental de acordo com o IBAMA, conforme expresso na Lei 6.938/81, nas Resoluções CONAMA nº 001/86 e nº 237/97 e na Lei Complementar nº 140/2011. Tal legislação discorre sobre a competência Estadual e Federal para o licenciamento ambiental, tendo como fundamento a localização do empreendimento. O licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente e possui como uma de suas mais expressivas características a participação social na tomada de decisão, por meio da obrigatoriedade da realização de audiências públicas como parte do processo.
  • 2
    Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), cuja sede está localizada em Campos dos Goytacazes, RJ. As atividades desse PEA são promovidas por professores e técnicos do Centro de Ciências do Homem - CCH, sob coordenação geral do prof. Dr. Geraldo Marcio Timoteo e em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
  • 3
    Resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997. “Art. 1º I - Licenciamento Ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso”. analítica aqui apresentada pode também vir a ser relevante para a configuração de processos cole(a)tivos de (r)existência, inspirando, mais amplamente, ações con-juntas que visem a evitar a (re)produção da norma hegemônica. A versão final deste artigo deve, muito, às trocas com Marilia M. Pisani, Álvaro Okura, Nayana Fernández e Mariana Ribeiro.
  • 4
    Sua criação obedeceu a uma adequação às exigências da Coordenação Geral de Petróleo e Gás, da Diretoria de Licenciamento Ambiental do IBAMA (CGPEG/DILIC/IBAMA) como condicionantes das unidades do Termo de Aprovação de Conduta (TAC) da Petrobras na Bacia de Campos. Disponível em: https://www.petros.com.br/cs/groups/public/documents/documento/x2nv/bv9u/~edisp/2017_05_24_tac_petros_com_nota.pdf, acesso em: 20 de fevereiro de 2018.
  • 5
    Para efeito das ações do PEA Pescarte, são basilares o cumprimento dos dispositivos legais estabelecidos pela Lei 6.040/2007, que assegura o reconhecimento dos Povos e Comunidades Tradicionais, dos Territórios Tradicionais, tendo como prerrogativa o Desenvolvimento Sustentável.
  • 6
    Esse texto produzido a quatro mãos articula resultados do mestrado em Políticas Sociais defendido por Rafaella Theis, com financiamento CAPES, sob orientação de Lilian Sagio Cezar, e a pesquisa antropológica e assessoria científica desenvolvidas para a Linha 1 PEA Pescarte, entre junho de 2017 e julho de 2019, sob coordenação dessa mesma pesquisadora, por meio de financiamento administrado e repassado pela Fundação Instituto de Administração (FIA), condicionado pelo IBAMA. Agradecemos os recursos destinados ao financiamento de ambas as pesquisas.
  • 7
    Entre 2016-17 o PEA Pescarte passou por processo de interrupção de financiamento, o que não implicou encerramento de suas atividades devido às ações voluntárias dos técnicos e professores que continuaram promovendo mensalmente as reuniões dos GGs até o estabelecimento de novo contrato FIA/Petrobras/UENF, em julho de 2017.
  • 8
    Nome dado ao local de desembarque e comercialização em larga escala do produto da pesca artesanal na praia do Farol de São Thomé.
  • 9
    Os verdadeiros nomes das nossas interlocutoras foram substituídos a fim de proteger a identidade das mesmas.
  • 10
    A Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República (SEAP/PR) foi criada pela Medida Provisória nº 103 e regulamentada pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. A Lei nº 11.958/2009 transformou essa Secretaria em Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), responsável pela implantação de uma política nacional pesqueira e aquícola para viabilizar o desenvolvimento sustentável de 8,5 km de costa e 12% da água doce do planeta, transformando esta atividade econômica em uma fonte sustentável de trabalho, renda e riqueza. Esse ministério foi extinto pela reforma ministerial de outubro de 2015. Em 2019 as ações relativas à pesca estão centradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e centralizadas na Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP/MAPA).
  • Financiamento

    CAPES e IBAMA/ FIA/ Petrobras/ UENF/ PEA Pescarte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2019
  • Aceito
    31 Dez 2019
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