Acessibilidade / Reportar erro

Tradição, masculinidades e posições de sujeito: uma etnografia entre homens em Cabinda

Tradition, masculinities, and subject positions: an ethnography among men in Cabinda

RESUMO

Neste artigo reflito sobre o papel da masculinidade como posição de sujeito entre interlocutores de uma pesquisa etnográfica sobre a noção de tradição Cabinda, província do norte de Angola, África central. Trata-se, nesse sentido, de um desdobramento da análise dos resultados da pesquisa a partir de questionamentos provenientes dos estudos de gênero e feministas. Parto do entendimento de que o conjunto de relações de pesquisa que se estabelece com pessoas, lugares e ideias no processo de inserção em um determinado contexto sociocultural direciona a pesquisa a enxergar e problematizar determinadas questões, e outras não, a respeito daquele contexto. Partindo do pressuposto de que a situação etnográfica é construída mutuamente entre pesquisador e interlocutores, busco, com esta reflexão, identificar correlações entre alguns elementos da descrição etnográfica da pesquisa em Cabinda e diferentes modos de construção de masculinidades descritos pelo referencial antropológico e dos Estudos Africanos.

PALAVRAS-CHAVE:
Tradição; masculinidade; etnografia; posição de sujeito; Cabinda

ABSTRACT

In this article I focus on the role of masculinity as a subject position among interlocutors of an ethnographic research on the notion of tradition in Cabinda, northern province of Angola (Central Africa), as a follow-up question to the research results, based on gender and feminist studies. Considering that the way a research approaches the people, places, and ideas, in the process of getting into a certain sociocultural context directs it to see and make certain questions but not others, and that the ethnographic situation is mutually constructed between researcher and interlocutors, what I seek with this reflection is to mark out correlations between some aspects of the ethnographic description of the research in Cabinda and different social constructions of masculinity described by anthropological and African Studies references.

KEYWORDS:
Tradition; masculinity; ethnography; subject position; Cabinda

INTRODUÇÃO

Neste artigo busco analisar a posteriori a dimensão da masculinidade em dados etnográficos produzidos pela pesquisa que embasou minha tese de doutorado (Muller, 2015MULLER, Paulo. 2015. Historicidade, póscolonialidade e dinâmicas das tradições: etnografia e mediações do conhecimento em Cabinda, Angola. Porto Alegre, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) sobre a noção de tradição em Cabinda, província do norte de Angola situada no litoral atlântico da África central1 1 Por resolução do Tratado de Berlim (1884-1885), uma faixa de terra contígua à foz do rio Congo foi concedida ao então Congo Belga como via de acesso marítimo, separando o território de Cabinda do restante de Angola, o que o configura geopoliticamente como um “enclave”. . Não se trata, assim, de uma amostra ou síntese de resultados expostos na tese, mas de um desdobramento da análise destes resultados a partir de referências dos estudos de gênero e dos estudos feministas2 2 Agradeço especialmente a Denise Jardim, Claudia Fonseca e Nara Magalhães pelo estímulo a este exercício de reanálise em chave de gênero . Na tese busquei analisar o modo como a noção de tradição é agenciada por diferentes sujeitos conforme seus posicionamentos nas relações entre diferentes aldeias e grupos étnicos, entre as aldeias e o contexto urbano da província, e nas relações da população de Cabinda com o Estado e o mercado.

Ao longo do artigo abordo o conceito de tradição sobretudo como categoria êmica cujos sentidos são negociados no âmbito das interações cotidianas desses sujeitos. Como procuro argumentar, um dos sentidos atrelados à noção de tradição é o de uma certa masculinidade calcada em valores morais, tal como o da “respeitabilidade”, e no manejo de códigos de autoidentificação e reconhecimento interpessoal da posição dos sujeitos no campo da tradição, tais como o parentesco e a aldeia de origem. A partir de Henrietta Moore (2000MOORE, Henrietta. 2000. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência. Cadernos Pagu , vol. 14: 13-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635341 . Acesso em 04 set 2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
: 22-23) entendo que debates e negociações em torno de tais valores e códigos propiciam a indivíduos oportunidades de combinar diversas formas de se identificar e diferenciar uns dos outros, compondo, dessa forma, “posições de sujeito” singulares que passam a definir como se apresentam e como são interpelados.

Colhi os dados que subsidiaram a tese em trabalho de campo realizado em 2011 e 2014 e em pesquisa documental em arquivos portugueses e angolanos. Em Cabinda convivi sobretudo com uma rede de homens negros com idades variando entre vinte e cinco e quarenta e cinco anos, com formação superior ou cursando cursos universitários diversos, e com variados laços de parentesco e afinidade entre si, a maioria trabalhadores da indústria petrolífera e do setor de serviços na cidade de Cabinda, capital da província, mas também servidores públicos (professores, policiais, jornalistas) e pequenos empresários. A principal conclusão de minha tese foi a de que a noção de tradição designa práticas e espaços simbólicos pelos quais circulam valores e posições que disputam a definição da identidade cabinda na forma de narrativas de diferentes atores acerca do lugar da província na história da colonização da região e no ordenamento angolano pós-colonial.3 3 No século XVIII Cabinda foi um importante porto escravista relativamente autônomo em relação aos poderes coloniais concorrentes na região. Com a proibição do tráfico de pessoas escravizadas no final do século XIX, diferentes projetos extrativos, sobretudo de madeira, se instalaram na região. Entretanto, nos anos 1960 foram descobertos em seu offshore veios de petróleo, cuja exploração comercial ficou a cargo de empresas transnacionais e até hoje respondem pela maior parte da receita do Estado angolano. No mesmo período eclodiu a luta pela independência de Angola (1961-1974) e emergiram movimentos de reivindicação de um processo de descolonização à parte para Cabinda. Com a incorporação de Cabinda ao ordenamento angolano pelos Acordos de Alvor (1975) a disputa de reivindicações deu lugar a um conflito político e militar entre o Estado angolano e movimentos separatistas que perdura até hoje.

Ao dar atenção para os usos e a circulação de noções de tradição emergiram no horizonte da pesquisa uma série de questões sobre as relações de poder entre diferentes formações sociais às quais meus interlocutores expressavam pertencimento (determinados grupos étnicos, de origem regional, de parentesco, de afinidade, de interesses econômicos e políticos). Entre os dados e observações que analisei na tese, nenhum abordou a relação entre os pontos de vista de meus interlocutores e o fato de serem homens, ou seja, não levei em conta o gênero como fator da formação social daquele conjunto de interlocutores. Embora possa argumentar que a análise de relações de gênero não fazia parte dos objetivos da pesquisa, diferentes reflexões (Almeida et al. 2002ALMEIDA, Heloisa B.; COSTA, Rosely G.; RAMIREZ, Martha C. e SOUZA, Erica R. de. (orgs.). 2002. Gênero em Matizes. Bragança Paulista: EDUSF.; Bonneti e Fleischer, 2007; Oliveira e Sousa, 2020OLIVEIRA, Isabela V; SOUSA, Fernanda K M. 2020. “’Podem duas mulheres falar sobre masculinidades?’: entre saberes localizados e a reflexão sobre múltiplas masculinidades”. Periódicus, vol. 13, n. 1: 25-43. DOI 10.9771/peri.v1i13.35695
https://doi.org/10.9771/peri.v1i13.35695...
; Scheper-Hughes, 1983SCHEPER-HUGHES, Nancy. 1983. Introduction: the problem of bias in androcentric and feminist anthropology. Women's Studies: an inter-disciplinary journal, vol. 10, n. 2: 109-116. DOI 10.1080/00497878.1983.9978584
https://doi.org/10.1080/00497878.1983.99...
) mostram que as concepções de gênero dos sujeitos de pesquisa influenciam de modo significativo a definição do lugar de quem pesquisa na construção de uma intersubjetividade etnográfica e, portanto, direcionam e possibilitam a mulheres e homens acessar e observar diferentes aspectos dos grupos sociais em que se inserem como pesquisadora ou pesquisadores.

Como advertiu Gutmann, em sua revisão sobre a masculinidade como objeto de estudo antropológico, a “Antropologia sempre envolveu homens falando com homens sobre homens. Porém, até recentemente4 4 O artigo de Gutmann se refere à bibliografia antropológica até os anos 1990. Desde então o referencial e a discussão sobre masculinidades se ampliou significativamente, como procuro mostrar a seguir. a cidade sul-mineira. , foram poucos os que, dentro da disciplina do ‘estudo do homem’, examinaram o homem como homem” (1997: 385, tradução minha)”. Segundo o antropólogo, isso se deve em grande parte ao senso comum patriarcal que caracteriza o que significa “ser homem” como resultado de processos de socialização e aprendizado masculino, enquanto “ser mulher” seria inerente à própria natureza orgânica e psíquica feminina. Entretanto, tal concepção de “natureza feminina” tornou-se objeto de escrutínio da teoria feminista e da antropologia feminista de modo particular, ao passo que a “construção masculina” permaneceu um dado relativamente irrefletido sobre diferentes sociedades. Nesse sentido, à medida que a interlocução etnográfica com mulheres e grupos LGBTQIA+ deu forma a uma especialidade do conhecimento antropológico - os estudos de gênero e sexualidade -, a interlocução etnográfica com homens seguiu fundamentando etnografias com temas diversos e o conhecimento antropológico de modo geral.

A crítica feminista mostra que essa divisão do conhecimento resulta de um processo de universalização de classificações de gênero sexistas e coloniais que abordam preferencialmente homens como interlocutores sociais de relações tanto de troca e aliança quanto de disputa e conflito. Ou seja, enquanto mulheres representariam apenas universos sociais particularmente femininos, homens seriam representantes da sociedade como um todo, daí a masculinidade frequentemente não aparecer como um “marcador social de diferença” (Saggese et al., 2018SAGGESE, Gustavo S. R.; MARINI, Marisol; LORENZO, Rocio A.; SIMÕES, Júlio A.; CANCELA, Cristina D. (Orgs.). 2018. Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome/Editora Gramma.) ou como uma particularidade dos sujeitos. Por isso, ao refletir sobre o papel da masculinidade como dimensão geradora dos dados e interações etnográficas no contexto de minha pesquisa em Cabinda meu intuito também é “localizar” (Haraway, 1995HARAWAY, Donna. 1995. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu , vol. 5: 7-41. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 4 set 2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
) como tais, os saberes sobre tradições e identidade em Cabinda produzidos e compartilhados por homens negros cabindas com um homem branco brasileiro antropólogo que deram origem a uma tese de doutorado e outras formas de difusão do conhecimento.

Ao buscar nos dados etnográficos da pesquisa em Cabinda elementos que evidenciem processos de construção de masculinidade, proponho-me a realizar uma “rotação de perspectiva” (Fernandes, 1975FERNANDES, Florestan. 1975. “Tendências teóricas da moderna investigação etnológica no Brasil". In: A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, pp. 119-190.; Viveiros de Castro, 1999VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1999.“Etnologia brasileira”. In: MICELI, Sérgio. (org.) O que ler nas ciências sociais. Vol I: Antropologia. São Paulo: Sumaré, pp. 109-223.) que parte daquela construída “com” os interlocutores sobre as questões que pautaram a pesquisa de doutorado, para uma construída “a partir” dessas interlocuções sobre outras questões que vieram a interpelar a pesquisa posteriormente, no caso, sobre gênero e masculinidade. Realizar uma rotação de perspectiva em torno de dados etnográficos requer, assim, um esforço de desacomodação da perspectiva construída por ocasião da pesquisa que os produziu.

Conforme Viveiros de Castro (1999VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1999.“Etnologia brasileira”. In: MICELI, Sérgio. (org.) O que ler nas ciências sociais. Vol I: Antropologia. São Paulo: Sumaré, pp. 109-223.), “perspectiva” não é uma propriedade do olhar particular do pesquisador sobre os dados, mas sim do posicionamento social, teórico e metodológico a partir do qual diferentes agentes conseguem visualizar e problematizar as mesmas questões e fenômenos, ainda que de maneiras distintas. Nesse sentido, perspectivas antropológicas são resultado de conjuntos de conceitos compartilhados a partir dos quais pesquisadores enquadram determinadas situações e contextos sociais como instâncias eloquentes de preocupações e interesses por determinados temas e questões comuns. Para conseguir abordar os dados da pesquisa em Cabinda como instâncias que dizem algo sobre processos de construção de masculinidade, foi necessário apropriar-me de um referencial que me posicione em um ponto onde compartilhe da perspectiva antropológica sobre a masculinidade. Por essa razão, dedico a primeira seção do artigo à revisão do referencial bibliográfico que sustenta o exercício analítico exposto na seção subsequente.

REFERÊNCIAS SOBRE MASCULINIDADES NA ANTROPOLOGIA E NOS ESTUDOS AFRICANOS

O papel desempenhado pela etnografia na evidenciação de processos de construção de masculinidades é atestado por dois artigos que se propõem a descrever panoramas desse campo de estudos. Gutmann (1997GUTMANN, Matthew. 1997. “Trafficking in men: the anthropology of masculinity”. Annual Review of Anthropology, vol. 26, n. 1: 385-409. DOI 10.1146/annurev.anthro.26.1.385
https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.2...
) e Grossi (2004GROSSI, Miriam. 2004. Masculinidades: uma revisão teórica. Antropologia em primeira mão, vol. 75: 4-37. Disponível em: Disponível em: https://miriamgrossi.paginas.ufsc.br/files/2012/03/Visualizar3.pdf acesso em 4 set 2022
https://miriamgrossi.paginas.ufsc.br/fil...
) partem de compilações de estudos monográficos realizados nas mais diversas regiões do mundo que correlacionam determinadas formas de agir socialmente com perspectivas sobre o que constitui o masculino e o que o diferencia do feminino e de outras concepções de gênero. A partir dessas referências, também se entende que a profusão de estudos etnográficos, ou, em geral, baseados em casos empíricos bem delimitados, para abordar questões de gênero e sexualidade a partir dos anos 1960 deveu-se à necessidade de afastar explicações e interpretações baseadas em discursos deterministas. Assim, procurou-se dar ênfase à diversidade e à variação de formas de construção social das relações de gênero, prescindindo de definições universalistas que normalmente advém de extrapolações pseudocientíficas a partir de dados da biologia e da psicologia.

Os estudos antropológicos sobre masculinidade fundaram-se fortemente na interpretação de diferentes significados de “ser homem” como consequência de sua correlação com outras características dos diferentes contextos etnográficos onde estes estudos se desenvolveram. A questão genérica que pautou a antropologia da masculinidade nas duas últimas décadas do século XX foi, assim, o que é ser homem em determinado lugar (correlacionando nacionalidade, relações urbano-rural e centro-periferia etc.), com determinadas experiências de socialização (correlacionando religião, trabalho, status socioeconômico etc.) e cumprindo determinados papéis sociais (correlacionando hierarquias e concepções de, por exemplo, paternidade/ parentalidade, conjugalidade, amizade etc.). Configurou-se, assim, um movimento de pluralização e particularização das masculinidades por meio da evidenciação de variações nas concepções do que significa “ser homem” em diferentes contextos socioculturais (Gilmore, 1990GILMORE, David D. 1990. Manhood in the making: cultural concepts of masculinity. New Haven: Yale University Press.).

Se por um lado esse movimento de pluralização e particularização permitiu desmistificar determinismos universalistas, por outro criou um quadro de “tipos de homens” relativamente distintos uns dos outros, ancorados sobretudo nas áreas culturais ou regiões do mundo5 5 Esses “tipos” apareceram sobretudo sob designações regionais ou nacionais, tais como o homem “grego”, “mediterrâneo”, árabe”, “latino”, etc., acompanhados de termos relativos a valores morais, como “honra”, “prestígio”, e seus opostos. onde foram observados. Entretanto, o acúmulo de pesquisas sobre práticas e papéis sociais desempenhados por homens associado à emergência de perspectivas comparativas em escala global nas ciências sociais a partir dos anos 1990 permitiu uma relativa unificação deste campo de estudos em torno do conceito de “masculinidade hegemônica” (Connel, 2003; Demetriou, 2001DEMETRIOU, Demetrakis Z. 2001. Connell’s concept of hegemonic masculinity: a critique. Theory and Society, vol. 30, n. 3: 337-361. DOI 10.1023/A:1017596718715
https://doi.org/10.1023/A:1017596718715...
) para demonstrar que as variações regionais e sociais nos processos de construção de masculinidades são, para além de antíteses de concepções universalistas, deslocamentos do locus de poder social ocupado sistematicamente por homens em diferentes partes do mundo. Interrogar a masculinidade passou a implicar, nesse sentido, em olhar para como diferentes formas de ser homem se diferenciam entre si tanto quanto das formas de ser mulher, e nesse processo se colocam em posições mais ou menos hegemônicas de acordo com o quanto conseguem performar papéis de poder.

O corolário do conceito de “masculinidade hegemônica” para a reflexão sobre masculinidades advém de um deslocamento da abordagem sobre as particularidades do que significa “ser homem” em diferentes contextos socioculturais para uma perspectiva sobre o modo como as posições de poder são socialmente construídas em correspondência com essas particularidades. Trata-se, assim, de um programa de análise dos mecanismos de reprodução da dominação masculina diante das transformações da própria noção do que é “ser homem” em larga escala no mundo contemporâneo. A perspectiva engendrada pelo conceito de masculinidade hegemônica mostrou, assim, que as variações do que significa “ser homem” são formas de ajuste da heteronormatividade6 6 Utilizo, aqui, o termo heteronormatividade para me referir a conjuntos de normas de organização social estruturadas em torno da heterodivisão sexual dos corpos, e que postulam uma congruência absoluta entre identidades de gênero (homem/mulher), a configuração dos corpos classificada pelos órgãos sexuais e reprodutores (macho/ fêmea) e práticas e desejos sexuais (heterossexualidade/ homossexualidade). Para uma discussão sobre a historicidade dessas divisões a partir de reflexões sobre suas subversões, bem como sobre os desafios de se abordar conceitualmente a heteronormatividade, conferir Butler (2003) e Preciado (2014). a diferentes condições e ambientações socioculturais.

A partir da noção de masculinidade hegemônica, os estudos sobre masculinidade deixaram de atentar apenas às variações de modelos de divisão sexual de papéis sociais entre homens e mulheres e passaram a se dedicar à análise de comportamentos e práticas associados a posições de poder historicamente ocupados majoritariamente por homens. Mudanças políticas e comportamentais caudatárias das reivindicações dos movimentos feminista e LGBTQIA+ por direitos reprodutivos e sexuais a partir dos anos 1990 alteraram esse cenário, eventualmente reduzindo assimetrias nas relações entre homens e mulheres e entre pessoas cis-heterossexuais e LGBTQIA+. Essas mudanças suscitaram reflexões e reações que evidenciaram processos de “crise” ou de “deslocamento” das masculinidades (Cornwall e Lindisfarne, 1994CORNWALL, Andrea; LINDISFARNE, Nancy (eds.). 1994. Dislocating masculinity: comparative ethnographies. London/New York: Routledge.) diante da diversificação das concepções de homem e mulher, direcionando o foco das análises para os reposicionamentos e respostas de homens a novas situações e formas de se relacionar, e à apropriação e ressignificação das práticas de poder diante do protagonismo de mulheres.

A consolidação dessas perspectivas no campo das Ciências Sociais produziu uma forma de estratificação da concepção de homem, situando-o constantemente em “posições de sujeito” (Moore, 2000MOORE, Henrietta. 2000. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência. Cadernos Pagu , vol. 14: 13-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635341 . Acesso em 04 set 2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
) indicativas de como identidades de gênero se correlacionam com outras dimensões constitutivas de suas situações e experiências sociais, sobretudo a racial e a de classe social. A estes conjuntos de correlações identitárias os movimentos sociais e intelectuais feministas negras denominaram “interseccionalidade” (Crenshaw, 1991CRENSHAW, Kimberlé. 1991. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, vol. 43, n. 6: 1241-1299. DOI 10.2307/1229039
https://doi.org/10.2307/1229039...
; Collins, 2017COLLINS, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, vol. 5, n. 1: 6-17. Disponível em Disponível em https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/559 . Acesso em 4 set. 2022
https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/...
), demonstrando como hierarquias e desigualdades entre categorias de pertencimento social se articulam, afetando sujeitos diferencialmente em função de como diferentes conjuntos de caracteres visuais são realçados, classificando determinados corpos como típicos de determinadas identidades raciais, de gênero, classe, regionais etc. A partir desse referencial a masculinidade não deve ser abordada como um tema relativo ao que constitui os homens, mas como um processo de diferenciação em relação a outros sujeitos em diferentes âmbitos sociais, permitindo o agenciamento e a performance de conceitos de homem/masculino de acordo com as interlocuções, situações e relações de poder em que os sujeitos se inserem (Brah, 2006BRAH, Avtar. 2006. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, vol. 26: 329-365. DOI 10.1590/S0104-83332006000100014
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200600...
).

Ao refletir sobre o papel da masculinidade na construção da perspectiva etnográfica de minha pesquisa em Cabinda, busco também ponderar sobre o quanto as abordagens desse conceito explicitadas nesta revisão são mais ou menos apropriadas, considerando as particularidades do contexto de meus interlocutores. Trata-se, nesse sentido, de sondar correlações entre os conceitos de tradição e identidade, que estruturaram a pesquisa em primeiro lugar, e o quanto estes também são mobilizados por estudos sobre masculinidades e relações de gênero em contextos africanos.

Morrell (1998MORRELL, Robert. 1998. Of boys and men: masculinity and gender in Southern African studies. Journal of Southern African Studies, vol. 24, n. 4: 605-630. DOI 10.1080/03057079808708593
https://doi.org/10.1080/0305707980870859...
) situa a emergência dos estudos sobre masculinidades na África nos anos 1980 na África do Sul, momento em que o debate público e as Ciências Sociais no país voltavam-se para os fenômenos da violência urbana e da formação de gangues juvenis. Considerando o acirramento das tensões raciais e das disputas políticas que culminaram na dissolução do regime de apartheid, tais debates foram permeados por concepções essencialistas que atribuíam a violência e comportamentos criminosos ao caráter inato de homens sul-africanos negros. A essas concepções, os estudos de gênero, que já vinham se desenvolvendo no país com foco no estudo das mulheres, contrapuseram exemplos da diversidade de modos de agir masculinos de acordo com seus diferentes contextos e ambientes de convívio sociocultural.

Especialmente na África do Sul sob apartheid, as relações sociais no âmbito familiar e das comunidades e aldeias de origem da população negro-sul-africana se configuravam de acordo com princípios e normas consideradas tradicionais, enquanto nas áreas segregadas e nas periferias das cidades, onde havia intenso convívio interétnico, prevaleciam normas de conduta informadas pelo caráter formal das relações entre os sujeitos. Observações sobre as relações de gênero nesses diferentes contextos mostraram que homens atuavam de acordo com diferentes “regimes de gênero”, isto é, “uma estrutura de relacionamentos” (Connell, 2003CONNELL, Raewyn W. 2003. Masculinities, change, and conflict in global society: thinking about the future of men's studies. The Journal of Men's Studies, vol. 11, n. 3: 249-66. DOI 10.3149/jms.1103.249.
https://doi.org/10.3149/jms.1103.249...
: 256) que interconectavam masculinidades indígenas/tradicionais, masculinidades negras/trabalhadoras e masculinidades brancas/coloniais (Morrell, 1998MORRELL, Robert. 1998. Of boys and men: masculinity and gender in Southern African studies. Journal of Southern African Studies, vol. 24, n. 4: 605-630. DOI 10.1080/03057079808708593
https://doi.org/10.1080/0305707980870859...
).7 7 Morrell (1998) coloca especial ênfase no modo como as relações entre homens brancos e negros eram caracterizadas por uma hierarquia intransponível, representada pelo uso do termo boy pelos brancos para se referirem a empregados negros, independente de sua idade.

A análise das cisões entre “regimes de gênero” evidenciou a necessidade de se estudar seu assentamento em divisões e classificações produzidas pelo colonialismo. A partir de trabalhos pioneiros nesse sentido, como os de McClintock (1995MCCLINTOCK, Anne. 1995. Imperial leather: race, gender and sexuality in the colonial contest. London/New York: Routledge .) e Stoler (1995STOLER, Ann L. 1995. Race and the education of desire: Foucault’s History of Sexuality and the colonial order of things. Durham: Duke University Press.), gênero e sexualidade passam a figurar como categorias estruturantes de análises das relações e políticas coloniais e de seus prolongamentos pós-coloniais, justapostos a raça e etnicidade, por exemplo, que já faziam parte das preocupações acadêmicas e da própria linguagem colonial. Ao abordar práticas cotidianas e dimensões consideradas subjetivas - intimidade, práticas sexuais, desejos, erotismo, moralidades, estilos de vida - a partir de fontes não institucionais - como cartas, diários pessoais, coleções privadas -, tais estudos também ampliaram o escopo dos Estudos Africanos sobre o período colonial para além das análises sobre mecanismos de governo direto e indireto que prevaleciam até então. Análises das masculinidades em contextos coloniais/imperiais começaram a aparecer nesse mesmo momento.8 8 O dossiê onde foi publicado o artigo de Morrell (1998) é exemplo disso.

Também foi a partir do final da década de 1990 que os estudos sobre masculinidades se ampliaram e difundiram por diferentes regiões do continente, motivados sobretudo por observações a respeito de como homens vinham reagindo às políticas globais de promoção da igualdade de gênero e dos direitos reprodutivos das mulheres e LGBTQIA+ (Merry, 2006MERRY, Sally Engle. 2006. Human rights & gender violence: translating international law into local justice. Chicago: The University of Chicago Press.). Entre as décadas de 1990 e 2000, em diferentes países da África austral a dinâmica da masculinidade hegemônica manifestou-se, por exemplo, na forma de resistências a políticas públicas de enfrentamento e prevenção à aids, no recrudescimento de discursos sobre a naturalidade da divisão sexual desigual de papéis sociais e da heterossexualidade (Epprecht, 2008EPPRECHT, Marc. 2008. Heterosexual Africa? The history of an idea from the age of exploration to the age of AIDS. Ohio: Ohio University Press/KwaZulu-Natal: University of KwaZulu-Natal Press.), e no redirecionamento da violência e agressividade com conteúdo racial para as desigualdades socioeconômicas e de distinção de status social entre homens9 9 Refletindo uma tendência generalizada dos homens a inverter e se vingar do status de boy atribuído pela elite branca aos trabalhadores negros, como salientado em nota anterior. (Morrel, Jewkes e Lindegger, 2012; Ratele, 2008RATELE, Kopano. 2008. Analysing males in Africa: certain useful elements in considering ruling masculinities. African and Asian Studies, vol. 7: 515-536. DOI 10.1163/156921008X359641
https://doi.org/10.1163/156921008X359641...
).

Referências como Broqua e Doquet (2013BROQUA, Christophe; DOQUET, Anne. 2013. Penser les masculinités en Afrique et audelà. Cahiers d’études africaines, vol. 209-210: 9-41. DOI 10.4000/etudesafricaines.17229.
https://doi.org/10.4000/etudesafricaines...
), Ouzgane e Morrel (2005OUZGANE, Lahoucine; MORREL, Robert. (eds.). 2005. African masculinities: men in Africa from the late nineteenth century to the present. New York: Palgrave McMillan/KwaZuluNatal: University of KwaZulu-Natal Press.) e Uchendu (2008UCHENDU, Egodi. 2008. Masculinities in contemporary Africa. Dakar: Codesria.) reúnem diversas abordagens sobre masculinidades que explicitam a pluralidade de definições e de experiências de “ser homem” no continente africano. Tais abordagens buscam demonstrar interconexões históricas e sociológicas entre processos de crise e reformulação dos modelos de masculinidade motivados por mudanças nas dinâmicas afetivo-sexuais, familiais, políticas e socioeconômicas impulsionadas pela circulação e valorização de atitudes e políticas de promoção da igualdade de gênero. Por outro lado, outros estudos também têm encontrado exemplos relevantes de reprodução e ressignificação de discursos e estereótipos sexistas em escalas mais amplas associadas ao aprofundamento do ideário neoliberal relacionado com novos padrões de mobilidade e comunicação globais, propiciados pelas mídias e plataformas digitais, a partir dos quais sujeitos produzem modos personalizados de “ser homem” projetando atributos individuais e corporais como propaganda de si ao disputar espaços e recursos em arenas diversas, como o mercado de trabalho, a religião, o esporte, a política, a arte, entre outras (Besnier et al., 2018BESNIER, Niko; GUINNESS, Daniel; HANN, Mark; KOVAČ, Uroš. 2018. Rethinking Masculinity in the Neoliberal Order: Cameroonian Footballers, Fijian Rugby Players, and Senegalese Wrestlers. Comparative Studies in Society and History, vol. 60, n. 4: 839-872. DOI 10.1017/S0010417518000312
https://doi.org/10.1017/S001041751800031...
; Cornwall, Karioris e Lindisfarne, 2016CORNWALL, Andrea; KARIORIS, Frank; LINDISFARNE, Nancy (eds.). 2016. Masculinities under neoliberalism. London: Zed Books.; Griffin, Parpart e Zalewski, 2013GRIFFIN, Penny; PARPART, Jane L; ZALEWSKI, Marysia. 2013. Men, masculinity, and responsibility. Men and Masculinities , vol. 16, n. 1: 3-8. DOI 10.1177/1097184X12468103
https://doi.org/10.1177/1097184X12468103...
).

A historicidade das noções e sentidos da masculinidade trazidas pelo referencial construído a partir de diálogos e interlocuções com perspectivas feministas e LGBTQIA+ em África reitera a afirmação de Oyewumí (2011OYEWÙMÍ, Oyèrónke. 2011. Introduction: gendering. In: OYEWÙMÍ, Oyèrónke (org.) Gender epistemologies in Africa: gendering traditions, spaces, social institutions, and identities. New York: Palgrave McMillan, pp. 1-7.) de que “para se compreender as estruturas e relações de gênero em África, devemos começar pela África” (Oyewumí, 2011: 1-2, tradução minha). Isto quer dizer que mesmo de um ponto de vista que leve em conta a interseccionalidade, identidades de gênero não podem ser deduzidas de correlações entre categorias identitárias abstratas, mas sim apreendidas das experiências históricas das quais os sujeitos extraem os elementos sensíveis que conferem sentidos culturais e pessoais a essas categorias (Mfecane, 2018MFECANE, Sakhumzi. 2018. Towards Africa-centred theories of masculinity. Social Dynamics, vol. 44, n. 2: 291-305. DOI 10.1080/02533952.2018.1481683
https://doi.org/10.1080/02533952.2018.14...
). É com a intenção de exercitar esse modo de pensar que apresento, na seção seguinte, a situação cuja reanálise motivou esta reflexão sobre processos de construção de masculinidade em minha etnografia com homens cabindas.

TCHILADAS: BEBIDAS, DIÁLOGOS E CONFLITOS EM TORNO DE TRADIÇÕES E MASCULINIDADES EM CABINDA

Minha primeira incursão por Cabinda aconteceu em 2011 como parte de um trabalho de campo de três meses dedicado a reunir material sobre imigrantes e refugiados em diferentes localidades da fronteira norte de Angola. Cabinda era uma das sedes de uma organização não-governamental internacional que prestava assistência a refugiados nas fronteiras, motivo pelo qual conheci e convivi com um de seus funcionários, que se tornou meu principal interlocutor e anfitrião em minha segunda estadia em Cabinda em 2014.

Desde nosso primeiro contato, esse funcionário, e outras pessoas que conheci a partir dele, sempre me estimulou a dedicar minha tese ao estudo das tradições de Cabinda, seja porque percebia que essas tradições estavam desaparecendo, e seu estudo poderia “reavivá-las”, seja porque a partir de um conhecimento mais sistemático sobre as tradições cabindas seria possível formular e interpretar corretamente uma identidade própria e específica dos cabindas. Esse interesse e a disposição para colaborar com a pesquisa fizeram com que mantivéssemos contato via redes sociais digitais. A decisão por dedicar a segunda estadia em trabalho de campo e a tese de doutorado ao conhecimento sobre as tradições cabindas passou, assim, pelo compartilhamento de interesses, perspectivas e expectativas em relação à pesquisa com esses interlocutores.10 10 Na tese, abordei essa interlocução nos termos da construção de uma “mutualidade do conhecimento etnográfico”, concepção formulada por Pina Cabral (2013) para se referir ao modo como etnógrafos compartilham interesses e ajustam os objetivos de suas pesquisas conforme suas interlocuções em campo.

Os homens com quem convivi mais proximamente durante a segunda incursão em campo faziam parte das relações de parentesco e afinidade desse interlocutor-chave, e já sabiam de antemão que um antropólogo brasileiro iria a Cabinda e ficaria hospedado com ele para um estudo sobre as tradições, de modo que nossos diálogos quase sempre derivavam para esse tema. Para além de conversas, entrevistas individuais e visitas a aldeias distribuídas ao longo dos dias, todas as noites alguns de nós nos reuníamos em um bar para uma tchilada. Tchiladas são como happy hours, encontros em bares e restaurantes após o horário de trabalho em que se consome bebidas alcoólicas enquanto se conversa sobre os mais variados assuntos. As tchiladas foram momentos importantes da pesquisa, ocasiões para conhecer pessoas, iniciar ou continuar conversas sobre determinados assuntos e, quando a mesa estivesse cheia, para escutar diferentes histórias e relatos. A maioria das tchiladas aconteceu em bares no entorno do Largo da Paz, uma praça pública construída logo após o fim da Guerra Civil Angolana (2002) em uma região adjacente ao porto de Cabinda. A praça é ladeada pelo Centro Cultural Chiloango, um salão de eventos com cinema e teatro, e a Feira Popular, um complexo de bares e restaurantes mais frequentados por trabalhadores expatriados, políticos e empresários locais.

As tchiladas de que participei aconteceram no lado oposto ao da Feira Popular, em um bar onde era possível transitar entre o interior e a rua. Principalmente nos finaisdesemana, muitaspessoas, emsuagrandemaioriahomens, levavambebidasde casa, estacionavam os carros ao redor da praça e bebiam na rua, acedendo aos bares para comprar bebidas sobressalentes e porções de comida. Para além de conversas mais direcionadas para questões da pesquisa, nas tchiladas também presenciei e participei de conversas sobre, por exemplo, o quanto a homossexualidade não seria “natural”, pois “não haveria animais homossexuais”; a importância de se ter controle sobre as atividades diárias da esposa para poder sair de casa “sem preocupações”, referindo-se à possibilidade de a mulher trair; a instituição do “dia do homem”, que é como popularmente muitos em Angola referem-se à sexta-feira, quando idealmente os homens deveriam ter liberdade para sair de casa no turno pós-laboral e retornar somente no domingo, passando os finais de semana em festas e com outras mulheres. O contexto das tchiladas remete, assim, a uma instância específica de construção de masculinidades contemporâneas ressaltada pela literatura sobre gênero, que são os bares e a bebida. Seja por sua relação com a esfera do trabalho ou com o espaço público, beber socialmente se constitui histórica e sociologicamente como atividade social proeminentemente masculina e como um locus recorrente de análise do tema (Almeida, 1995ALMEIDA, Miguel Vale de. 1995. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Etnográfica Press. DOI 10.4000/books.etnograficapress.459
https://doi.org/10.4000/books.etnografic...
; Jardim, 1991JARDIM, Denise. 1991. De bar em bar: identidade masculina e auto-segregação entre homens de classes populares. Porto Alegre, Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.; Nascimento, 2016NASCIMENTO, Pedro. 2016. Beber como homem: dilemas e armadilhas em etnografias sobre gênero e masculinidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31, n. 90: 57-71. DOI 10.17666/319057-70/2016
https://doi.org/10.17666/319057-70/2016...
; Wilson, 2005WILSON, Thomas M. (ed.). 2005. Drinking cultures: alcohol and identity. Oxford/New York: Berg Publishing.).

Fora das tchiladas, bebidas alcoólicas fizeram parte de todos os diálogos sobre tradições que estabeleci com interlocutores chave, especialmente líderes de aldeias. Nesses diálogos aprendi o sentido do provérbio cabinda que diz que “para conversar, é preciso beber” (em ibinda, mbuko nkungo, mbuka m’lavo). Nesse sentido, beber faz parte de um conjunto de práticas prescritas pelas tradições e frequentemente suscita discussões e reflexões sobre as mesmas. A bebida não é, assim, apenas uma condição, mas também um estímulo para se dialogar sobre as tradições, entre outros assuntos. Por outro lado, o interesse pelas tradições não é algo particular do grupo no qual me inseri. Muitos assuntos e ocasiões podiam trazer à tona discussões sobre as tradições: casamentos e velórios a que atendi eram avaliados, in loco e posteriormente, por sua maior ou menor fidelidade às tradições; o maior ou menor domínio do ibinda, língua vernacular da região de Cabinda, ou mesmo de outras línguas da região, era indicativo de o quanto as pessoas seguiam ou preservavam as tradições; conflitos e disputas familiares envolviam debates sobre o que prescrevem as tradições etc. Tradição operava, dessa forma, como um termo em aberto cuja definição era negociada e disputada pelos sujeitos a partir de seus posicionamentos e interesses em situações específicas.

Nas tchiladas a relação entre beber e falar sobre tradições apareceu na medida em que mais pessoas passaram a participar em cada ocasião, gerando debates mais acalorados. Nos primeiros dias éramos em torno de quatro ou cinco homens à mesa, todos amigos ou parentes de meu anfitrião11 11 RMinha chegada em Cabinda coincidiu com o período em que muitos dos homens que faziam parte da rede de meus anfitriões estavam trabalhando nas plataformas petrolíferas em alto-mar. Seus turnos de trabalho eram de aproximadamente vinte dias embarcados para dez a quinze dias de folga em terra. Os homens que conheci que trabalhavam dessa forma, atuavam com scaffolding, que consiste na montagem e manutenção de andaimes.. . Nesses encontros com participação mais restrita, o diálogo sobre tradições tinha um caráter mais informativo, composto sobretudo de descrições de normas para a realização de casamentos, velórios, rituais de iniciação, etc. Na medida em que outros foram se juntando ao grupo e as conversas ficando mais informais, variações dessas narrativas apareceram à mesa. Ao mesmo tempo introduziu-se no grupo o consumo de buko12 12 A introdução do buko também coincidia com a proximidade do fim do mês e, com isso, da diminuição de dinheiro do salário disponível para se gastar nas tchiladas. Enquanto cada garrafa long neck (com aproximadamente 300 ml) para consumo individual de uma cerveja nacional ou importada custava entre 150 e 300 kwanzas, o buco era consumido com uma garrafa de cachaça de 900 ml que custava cerca de 500 kwanzas e era compartilhada por todos. Coloca-se o buko em um copo e depois se acrescenta uma dose de cachaça, deixando a mistura macerar enquanto se bebe pequenos goles ao longo de algumas horas. , que é como meus interlocutores chamavam um conjunto de raízes e castanhas nativas da região que se pode mascar ou deixar macerar em aguardente. Comprávamos o buko de zungueiros13 13 Em Angola zungar é a atividade de caminhar equilibrando uma bacia ou cesto na cabeça, com mercadorias para vender. Usualmente são mulheres que zungam, apenas nesse contexto específico observei homens o fazendo. que circulavam pelo entorno do Largo da Paz, que provavelmente os traziam de matos das aldeias mais próximas da cidade. O consumo de buko também era visto, assim, como uma prática tradicional pois estabelecia uma relação com a terra - pelas raízes - e com o contexto social de origem - as aldeias - de meus interlocutores.

Em uma dessas tchiladas com mais pessoas, entre oito e dez homens, um destes, da etnia basolongo, após várias doses de cachaça com buko levantou-se para explicar em voz alta para todos à mesa os significados de algumas palavras em kisolongo que ele havia aprendido com seus avós na aldeia onde nasceu, na província do Zaire. À mesa ao lado duas mulheres ouviram a explanação, e em determinado momento uma delas interveio, corrigindo a pronúncia de uma das palavras. O homem retrucou em defesa de sua interpretação, entabulando uma discussão onde cada uma das partes reiterava sua própria pronúncia como correta. Enquanto isso, um segundo homem de nosso grupo se levantou e aproximou-se da mulher para explicar, sem a exaltação do amigo, que a palavra à qual se referiam era em kisolongo, e não em ibinda, o que fez com que ela assentisse à pronúncia do primeiro, pois não falava kisolongo. Para quebrar a tensão deixada pela discussão, o segundo homem começou uma imitação jocosa dos trejeitos expansivos do amigo, em seguida desculpando-se com a mulher, dizendo que ele era “assim mesmo”.

Entretanto, enquanto conversava com a mulher, o segundo homem, em determinado momento tocou-a no ombro, ao que ela reagiu imediatamente dizendo-lhe para que não a tocasse pois “era falta de respeito”. Ele respondeu que o toque havia sido casual e que a atitude dela era “esnobe”, acrescentando: “eu nasci no Chinga e fui criado no Chiazi, e lá há respeito”. Ela retrucou dizendo que também havia nascido no Chinga, e que mesmo assim não gostava de ser tocada por estranhos. Diante disso, ele perguntou qual era sua família, mas ela explicou que havia nascido no Chinga durante uma visita de seus pais à família do pai. Na ocasião a mãe entrou em trabalho de parto e teve que dar à luz lá mesmo. Depois desse diálogo se despediram e o homem retornou para nossa mesa rindo e dirigindo-se a mim dizendo que ela havia nascido no Chinga “por acidente”, pois o pai dela era de lá. Isso significava que eles podiam ter uma origem comum, mas que “não era a mesma coisa”. Outros dois convivas de nossa mesa, que haviam assistido tudo aos risos, comentaram que não importava quem era do Chinga, pois eles eram do Malembo, “a capital das aldeias”.14 14 Chinga, Chiazi e Malembo são as maiores aldeias localizadas no eixo rodoviário que interliga a capital, Cabinda, no Sul, ao município do Cacongo, a noroeste da província, na fronteira com o Congo-Brazzaville. Fazem parte, assim, de um circuito de pessoas, bens e serviços com o centro urbano da capital. Cabinda é composta por outros dois municípios, Belize e Buco Zau, no interior da floresta do Mayombe.

Essa tchilada, especificamente, foi reveladora de um modo de agenciamento das aldeias de origem como um tipo de capital simbólico regulador das relações sociais no contexto urbano. Hierarquias entre posições no contexto urbano, indicados sobretudo pelo tipo de emprego e local de residência, eram frequentemente mediadas pelas relações familiares, de parentesco e de afinidade. Era comum, nesse sentido, que alguém tivesse uma refeição ou algumas cervejas pagas por uma pessoa que estava em outra mesa, que fazia parte de outro universo de relações sociais no contexto urbano, mas que o reconhecia como membro de uma determinada família ou de uma determinada aldeia. O manejo dessa economia das relações entre famílias e aldeias implicava em uma apropriação das regras de organização social prescritas pela tradição. Ou seja, definia quais eram as dinâmicas familiares consideradas naturais naquele contexto por, supostamente, serem repetidas e reafirmadas ao longo de diferentes gerações. Na discussão entre meu interlocutor e a mulher na tchilada veio à tona um princípio de matrilocalidade como critério para se definir o pertencimento e/ou a origem correta de alguém no contexto das aldeias e o significado disso nos termos da “respeitabilidade” dos sujeitos.

Esse episódio aponta para outra instância recorrente de construção de masculinidades hegemônicas indicada pelos estudos de gênero, qual seja, a da evocação de valores morais, tais quais “respeito”, “honra” e “integridade”, como categorias descritivas da posição do homem em suas relações familiares, ainda que não necessariamente colocadas em prática ou reconhecidas nas relações interpessoais (Fonseca, 2000FONSECA, Claudia L. W. 2000. Família, Fofoca e Honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. UFRGS. ). Nas relações familiares em diferentes contextos africanos, mudanças no sentido de uma maior simetria na distribuição de competências e prerrogativas entre homens e mulheres incidem pouco e lentamente sobre as hierarquias de poder e autoridade baseadas em divisões de gênero. A própria problematização desses papéis e demonstrações das transformações nos modelos de família são frequentemente interpretadas como afrontas à masculinidade, gerando resistências e reações violentas a reivindicações de direitos das mulheres e pessoas LGBTQIA+. Embora se reconheça em alguma medida a diversidade de tipos de dinâmicas familiares, ainda é predominante socialmente um discurso sobre família baseado em um código heteronormativo e patriarcal (Duncanson, 2015DUNCANSON, Claire. 2015. Hegemonic masculinity and the possibility of change in gender relations. Men and Masculinities, vol. 18, n. 2: 231-248. DOI 10.1177/1097184X15584912
https://doi.org/10.1177/1097184X15584912...
; Ratele, 2016RATELE, Kopano. 2016. Liberating masculinities. Cape Town: HSRC Press.).

A predominância do código em relação às práticas não reproduz somente as desigualdades formais, mas o próprio domínio do código pelos homens. Como demonstrou Miguel Vale de Almeida (1996), o controle dos códigos de honra e respeito e dos modelos de masculinidade e de organização familiar é também uma forma de controle sobre as moralidades e as condutas individuais, demarcando os comportamentos considerados “desviantes” e socialmente recrimináveis. No senso comum, a noção de tradição tem, nesses contextos, um papel justificador da manutenção do status quo, muito embora empiricamente as realidades projetadas pelos modelos sejam sempre parciais. Discursos de “perda” e “resgate” das tradições remetem, assim, ao passado como origem de determinados costumes e práticas para sustentar visões de como as relações devem ser no presente, visões normativas e prescritivas, portanto.

Agenciamentos da noção de tradição para justificar a reprodução da dominação masculina não se configuram apenas como retórica para lidar pontualmente com mudanças ou para impor modelos normativos de divisão de papéis de gênero em seus relacionamentos cotidianos, mas também como construções coloniais de equivalências entre os universos simbólicos que envolvem práticas tradicionais coletivas africanas, sobretudo ritos de passagem, e moralidades e religiosidades eurocêntricas (Dulley, 2010DULLEY, Iracema. Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial. São Paulo: Annablume, 2010.). Análises das situações em que tais agenciamentos ocorrem evidenciam diferentes estratégias de associação e cisão entre masculinidades hegemônicas baseadas em ideologias patriarcalistas e heteronormativas universalistas, que remetem à ideia de uma natureza fundamental das relações de gênero, e “masculinidades tradicionais” a partir das quais homens se diferenciam de homens de outras coletividades (étnicas, linguísticas, religiosas, regionais), enquanto reiteram e/ou ressignificam padrões heteronormativos e ideologias patriarcais como prescrições de seus próprios sistemas culturais (Everitt-Penhale e Ratele, 2015EVERITT-PENHALE, Brittany; RATELE, Kopano. 2015. Rethinking ‘traditional masculinity’ as constructed, multiple, and ≠ hegemonic masculinity. South African Review of Sociology, vol. 46, n. 2: 4-22. DOI 10.1080/21528586.2015.1025826
https://doi.org/10.1080/21528586.2015.10...
; Vincent, 2008VINCENT, Louise. 2008. Cutting tradition: the political regulation of traditional circumcision rites in South Africa's liberal democratic order. Journal of Southern African Studies , vol. 34, n. 1: 77-91. DOI 10.1080/03057070701832890
https://doi.org/10.1080/0305707070183289...
).

No âmbito das relações de gênero, o agenciamento da noção de tradição opera, assim, como um “investimento” em uma posição de sujeito (Moore, 2000MOORE, Henrietta. 2000. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência. Cadernos Pagu , vol. 14: 13-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635341 . Acesso em 04 set 2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
) que permite aos indivíduos recorrer a diferentes códigos e valores para se situarem em interações sociais cotidianas. Ao remeter a mulher que o interpelou ao contexto das tradições - tendo como referente sua aldeia de origem - meu interlocutor buscou também reaver uma dimensão - a respeitabilidade - de sua identidade “como homem” que havia sido questionada por ela. Nesse sentido, da perspectiva de meus interlocutores, assim como o faz com as tradições, o contexto urbano, associado à modernidade e ao desenvolvimento econômico, suscita “crises” de masculinidade, pois engendra interações em que são vistos como homens, mas não como membros de determinadas coletividades, aldeias, famílias etc. Para de certa forma reaver a masculinidade questionada o procedimento neste caso foi o de fazer-se conhecido como “pessoa”, isto é, situado em relações de parentesco e em uma aldeia de origem. E diante da afirmação que considerou uma forma de descaracterização das tradições - a afirmação de que ela pertencia a uma aldeia, quando na verdade só havia nascido lá por acaso - reiterou a regra da matrilocalidade, prescrevendo para a mulher como ela deveria se identificar. O “resgate” da tradição, nesse caso, operou simultaneamente como “resgate” de um modelo de masculinidade em crise.

A descrição da discussão entre os homens de meu grupo de interlocutores e as mulheres da mesa ao lado na tchilada trouxe elementos que permitem, assim, entrever no “interesse pela tradição” também a construção de uma concepção de “masculinidade tradicional”. Na visão de meus interlocutores, ao interpelar o homem que falava palavras em kisolongo e protestar contra a falta de respeito do outro por tocar-lhe, a mulher colocou em questão sua capacidade de articularem o código das tradições. A reação do segundo consistiu em explicitar suas conexões com aldeias, demandando, ao mesmo tempo, que a mulher fizesse o mesmo. A resposta dela desconsiderou a origem aldeã como critério de respeitabilidade, enfatizando a relação entre eles naquele momento específico, em que se viam como meros desconhecidos. Ao “corrigi-la” no que tange à matrilocalidade como critério de pertencimento às aldeias, ele buscou restaurar seu domínio do código das tradições e, por meio dele, estabelecer quais comportamentos eram aceitáveis naquela situação.

TRADIÇÕES MASCULINAS, MASCULINIDADES TRADICIONAIS?

A fundação de posições de autoridade no domínio de códigos tradicionais remete à caracterização que Mamdani (1996MAMDANI, Mahmood. 1996. Citizen and subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton: Princeton University Press.) faz dos Estados e sociedades africanas pós-coloniais como prolongamentos de justaposições coloniais entre sociedades tradicionais rurais, nas quais as relações sociais são reguladas por códigos consuetudinários, e sociedades modernas urbanas, nas quais as relações sociais são reguladas por códigos jurídicos formais. O interesse pela tradição e a reafirmação desses códigos no contexto urbano é indicativo dessa cisão, pois se baseia na ideia de que as tradições estariam em “crise” ou perdendo espaço para valores da sociedade “moderna”. A tradição opera, assim, como um princípio de diferenciação social em contextos em que os sujeitos se percebem descaracterizados por categorias coletivas e buscam, dessa forma, reaver seu estatuto de “pessoas” (Mfecane, 2018MFECANE, Sakhumzi. 2018. Towards Africa-centred theories of masculinity. Social Dynamics, vol. 44, n. 2: 291-305. DOI 10.1080/02533952.2018.1481683
https://doi.org/10.1080/02533952.2018.14...
; Passador, 2009PASSADOR, Luiz Henrique. 2009. “Tradition”, person, gender, and STD/HIV/ AIDS in southern Mozambique. Cadernos de Saúde Pública, vol. 25, n. 3: 687-693. DOI 10.1590/S0102-311X2009000300024
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200900...
). Diferenças de gênero e concepções de masculinidade são agenciadas, nesse sentido, não apenas como distinção entre corpos e seus papéis sociais, mas também como formadoras de relações por meio das quais é possível afirmar ou reafirmar a preponderância das prescrições tradicionais sobre os comportamentos individuais (Moolman, 2017MOOLMAN, Benita. 2017. Negotiating masculinities and authority through intersecting discourses of tradition and modernity in South Africa. NORMA: International Journal for Masculinity Studies, vol. 12, n. 1: 38-47. DOI 10.1080/18902138.2017.1293398
https://doi.org/10.1080/18902138.2017.12...
; Passador, 2010PASSADOR, Luiz Henrique. 2010. “As mulheres são más”: pessoa, gênero e doença no sul de Moçambique. Cadernos Pagu , vol. 35: 177-210. DOI 10.1590/S0104-83332010000200007
https://doi.org/10.1590/S0104-8333201000...
).15 15 Assim como diferenças etárias e geracionais, por exemplo, que colocam determinados sujeitos sob o controle de outros.

Os intercâmbios entre posições de sujeito fundadas no contexto aldeão/tradicional e no contexto urbano/moderno refletem uma dinâmica similar à descrita pelo conceito de “regimes de gênero”. Um indício disso está no discurso articulado por meus interlocutores sobre o desaparecimento das tradições que, no contexto das tchiladas, mostrou estar relacionado com a mobilidade dos sujeitos entre categorias uniformizadoras de identidades que caracterizam o contexto urbano, como “trabalhadores” ou “cidadãos”, por oposição a contextos rurais/tradicionais, em que o pertencimento dos sujeitos é definido pela particularidade de sua relação com a aldeia e a família, constituindo-o como pessoa (Geschiere e Nyamnjoh, 2000GESCHIERE, Peter; NYAMNJOH, Francis. 2000. Capitalism and autochthony: the seesaw of mobility and belonging. Public Culture, vol. 12, n. 2: 423-452. DOI 10.1215/08992363-12-2-423
https://doi.org/10.1215/08992363-12-2-42...
). Ao investirem no que entendiam como uma forma de “resgate das tradições” e na afirmação de masculinidades ligadas ao universo da tradição mesmo no contexto urbano, meus interlocutores também procuravam demonstrar uma relação de pertencimento endógeno a Cabinda, naturalizando seu modo de “ser homem” como expressão do próprio “ser cabinda”.

A história da luta anticolonial e da independência de Angola (1961-1975) mostra que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) construiu sua hegemonia a partir de um discurso de superação das diferenças “tribais” e da fundação do “homem novo” angolano como sujeito universal (Araújo, 2005ARAÚJO, Kelly C. O. 2005. Um só povo, uma só nação: o discurso do Estado na construção do homem novo em Angola (1975-1979). São Paulo, Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.). Um fator que contribuiu para a eficácia desse discurso no pós-independência foi a composição da direção do MPLA por uma “elite crioula” (Birmingham, 2015BIRMINGHAM, David. 2015. A short history of modern Angola. Oxford: Oxford University Press.; Pereira, 2008PEREIRA, Luena N. N. 2008. Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda. São Paulo: Serviço de Comunicação Social FFLCH/USP.), formada sobretudo por homens angolanos negros nascidos no contexto urbano colonial e com conexões familiares, intelectuais e políticas com Portugal e outros países europeus. O ideal de “homem novo” ou de cidadão nacional assentou-se, assim, em uma noção de sujeito cosmopolita cujos vínculos com o país se estabeleceriam prioritariamente por meio da sociedade civil e das instituições políticas, relegando às identidades étnicas e tradicionais, frequentemente sob o rótulo do “tribalismo”, o estatuto de atrasadas ou retrógradas.

Como mostram Auerbach (2021AUERBACH, Jess. 2021. Da água ao vinho: tornando-se classe média em Angola. São Carlos: Áporo Editorial; Brasília: ABA Publicações.) e Schubert (2017SCHUBERT, Jon. 2017. Working the system: a political ethnography of the new Angola. Ithaca e Londres: Cornell University Press.), as relações cotidianas em Angola contemporânea fundamentam-se largamente em formas de agenciamento de posicionalidades de raça e classe16 16 LNo cotidiano angolano categorias de raça definem diferentes concepções de mestiçagem que posicionam os sujeitos em determinadas origens etnolinguísticas e regionais, mas também de classe social. Termos como “mestiço” e “mulato” podem indicar pessoas que, pela cor da pele, se acredita serem descendentes de relações entre negros e brancos. O termo “crioulo”, por outro lado, referese não somente a pessoas com a coloração da pele mais clara ou mestiços, mas também ao pertencimento ao meio urbano da capital Luanda e ao não pertencimento ou afastamento de suas origens étnicas. Por sua vez, termos referentes a identidades étnicas como bakongo, tchokwe, nganguela, ovimbundo, etc., situam os sujeitos nessas identidades, mas também em determinadas regiões e províncias do país. No caso, respectivamente, no Norte (Zaire, Uíge e Cabinda), Nordeste (Lunda Norte, Lunda Sul e Moxico), no Sudeste (Cuando Cubango) e no planalto central (Bié, Benguela e Huambo). que situam os sujeitos mais próximos ou mais distantes das estruturas de poder político e econômico. Categorias de identificação étnica e local (aldeias, bairros) interpelam as noções de posição ou status social atuando como parâmetros de pertencimento ou autoctonia que podem validar ou invalidar moralmente as trajetórias de ascensão social de determinados sujeitos, questionando desde a consistência de seus vínculos com suas origens sociais até sua própria “angolanidade”17 17 Schubert (2017) menciona especificamente os rumores de que o ex-presidente de Angola (1979-2017), José Eduardo dos Santos, seria originário de Cabo Verde, mas reivindica ter nascido no bairro do Sambizanga, onde também nasceu o principal líder do MPLA e primeiro presidente de Angola (1975-1979), Agostinho Neto. . A intersecção entre status social individual e pertencimento étnico/local constitui, assim, um regime ao mesmo tempo de identificação e distinção entre sujeitos, atravessando e interligando suas experiências em contextos convencionalmente classificados como modernos ou tradicionais.

A análise do processo de construção de masculinidades entre veteranos de guerra do MPLA mostra como esses sujeitos se veem preteridos por valores e comportamentos que consideram moralmente reprováveis, sobretudo relativos à exacerbação da importância do dinheiro, porém supostamente muito cultivados pelas novas gerações. Enquanto os veteranos de guerra indicam a origem de sua crise de masculinidade nos processos de desmobilização de combatentes no pós-guerra que os destituiu da autoridade moral associada à hierarquia militar em tempos de guerra, homens mais novos teriam construído novas posições de autoridade a partir dos bens econômicos e de consumo que são capazes de obter (Spall, 2014SPALL, John. 2014. “Money has more weight than the man”: masculinities in the marriages of Angolan war veterans. IDS Bulletin, 45: 11-19. DOI 10.1111/1759-5436.12063
https://doi.org/10.1111/1759-5436.12063...
; Spall e Abranches, 2021SPALL, John; ABRANCHES, Maria. 2021. Materiality, morality and masculinities in the social transformations of war in Angola. Men and masculinities, ahead of print: 1-18. DOI 10.1177/1097184X20986836
https://doi.org/10.1177/1097184X20986836...
). Tal dinâmica aparece, de modo geral, em reflexões etnográficas sobre contextos pós-guerra que mostram o quanto o “tempo de guerra” incide sobre a construção de identidades de gênero e as sexualidades contemporâneas, embasando movimentos de “resgate” de valores considerados perdidos com as transformações sociais e políticas protagonizadas pelas gerações mais jovens (Duncanson, 2015DUNCANSON, Claire. 2015. Hegemonic masculinity and the possibility of change in gender relations. Men and Masculinities, vol. 18, n. 2: 231-248. DOI 10.1177/1097184X15584912
https://doi.org/10.1177/1097184X15584912...
).

A dimensão da guerra como fonte de elementos que compõem as concepções de masculinidades na África subsaariana também agrega proposições aos estudos de outros dois tropos de construção de masculinidades, normalmente abordadas de uma perspectiva comparativa transcultural, ou seja, como um tema recorrente que estrutura relações e fenômenos classificados sob uma mesma denominação em diferentes contextos. Refiro-me aos estudos sobre o consumo social de bebidas alcoólicas e sobre as noções de honra e respeito, cujas ocorrências na literatura antropológica estão normalmente fundamentadas em observações sobre práticas sociais de homens, mesmo que nem sempre conjugadas com análises de processos de construção de masculinidades. Em Cabinda, essas instâncias, representadas pelas tchiladas, mostraram-se profícuas não apenas como temas de pesquisa, mas como situações estratégicas para o desenvolvimento do trabalho de campo, motivo pelo qual retornei aos dados produzidos dessa forma para refletir sobre a dimensão da masculinidade também como condição para o estabelecimento das relações de produção da pesquisa etnográfica.

Por fim, é importante salientar a relevância para a antropologia do conceito de masculinidades hegemônicas na medida em que permite visualizar articulações entre concepções de homem mais difusas que conformam um amplo senso comum e noções etnograficamente situadas do que isso pode significar. As instâncias de construção de masculinidades que analisei no caso de meus interlocutores cabindas são recorrentes em diferentes contextos, como salientei acima, e essa recorrência, por vezes, pode ser tomada como universalidade, alimentando percepções de que o consumo de bebidas alcoólicas e o respeito dos parentes, por exemplo, seriam naturais para corpos masculinos. O conceito de masculinidade hegemônica permite enxergar que tais instâncias são construídas de modos ao mesmo tempo similares e distintos entre si, pois respondem a uma mesma demanda, colocada pela colonialidade das formas de organização social contemporâneas, que é justamente a de estabelecer diferenças e identidades de gênero de modo que os sujeitos situados em posições hegemônicas nas relações de poder mais amplas de um determinado contexto se identifiquem e articulem as dimensões socioculturalmente atribuídas à masculinidade, independentementedequaissejam. Paraquesepossafazeradevida crítica desse processo é necessário continuamente contextualizar o que os sujeitos estão definindo como ser “africano”, “angolano”, “cabinda”, “homem”, “mulher”, etc., a partir de símbolos e referências socioculturais significativas em suas experiências, evitando, com isso, essencializações e naturalizações de representações reificadoras dessas noções em escalas amplas e genéricas demais para se notar a agência dos sujeitos.

REFERÊNCAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMEIDA, Heloisa B.; COSTA, Rosely G.; RAMIREZ, Martha C. e SOUZA, Erica R. de. (orgs.). 2002. Gênero em Matizes. Bragança Paulista: EDUSF.
  • ALMEIDA, Miguel Vale de. 1995. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Etnográfica Press. DOI 10.4000/books.etnograficapress.459
    » https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.459
  • ARAÚJO, Kelly C. O. 2005. Um só povo, uma só nação: o discurso do Estado na construção do homem novo em Angola (1975-1979). São Paulo, Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.
  • AUERBACH, Jess. 2021. Da água ao vinho: tornando-se classe média em Angola. São Carlos: Áporo Editorial; Brasília: ABA Publicações.
  • BESNIER, Niko; GUINNESS, Daniel; HANN, Mark; KOVAČ, Uroš. 2018. Rethinking Masculinity in the Neoliberal Order: Cameroonian Footballers, Fijian Rugby Players, and Senegalese Wrestlers. Comparative Studies in Society and History, vol. 60, n. 4: 839-872. DOI 10.1017/S0010417518000312
    » https://doi.org/10.1017/S0010417518000312
  • BIRMINGHAM, David. 1995. The decolonization of Africa. London: UCL Press.
  • BIRMINGHAM, David. 2015. A short history of modern Angola. Oxford: Oxford University Press.
  • BONETTI, Alinne; FLEISCHER, Soraya. 2007. Entre saias justas e jogos de cintura. Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/EDUNISC.
  • BRAH, Avtar. 2006. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, vol. 26: 329-365. DOI 10.1590/S0104-83332006000100014
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332006000100014
  • BROQUA, Christophe; DOQUET, Anne. 2013. Penser les masculinités en Afrique et audelà. Cahiers d’études africaines, vol. 209-210: 9-41. DOI 10.4000/etudesafricaines.17229.
    » https://doi.org/10.4000/etudesafricaines.17229
  • BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • COLLINS, Patricia Hill. 2017. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, vol. 5, n. 1: 6-17. Disponível em Disponível em https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/559 Acesso em 4 set. 2022
    » https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/559
  • CONNELL, Raewyn W. 2003. Masculinities, change, and conflict in global society: thinking about the future of men's studies. The Journal of Men's Studies, vol. 11, n. 3: 249-66. DOI 10.3149/jms.1103.249.
    » https://doi.org/10.3149/jms.1103.249
  • CORNWALL, Andrea; LINDISFARNE, Nancy (eds.). 1994. Dislocating masculinity: comparative ethnographies. London/New York: Routledge.
  • CORNWALL, Andrea; KARIORIS, Frank; LINDISFARNE, Nancy (eds.). 2016. Masculinities under neoliberalism. London: Zed Books.
  • CRENSHAW, Kimberlé. 1991. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, vol. 43, n. 6: 1241-1299. DOI 10.2307/1229039
    » https://doi.org/10.2307/1229039
  • DEMETRIOU, Demetrakis Z. 2001. Connell’s concept of hegemonic masculinity: a critique. Theory and Society, vol. 30, n. 3: 337-361. DOI 10.1023/A:1017596718715
    » https://doi.org/10.1023/A:1017596718715
  • DULLEY, Iracema. Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial. São Paulo: Annablume, 2010.
  • DUNCANSON, Claire. 2015. Hegemonic masculinity and the possibility of change in gender relations. Men and Masculinities, vol. 18, n. 2: 231-248. DOI 10.1177/1097184X15584912
    » https://doi.org/10.1177/1097184X15584912
  • EPPRECHT, Marc. 2008. Heterosexual Africa? The history of an idea from the age of exploration to the age of AIDS. Ohio: Ohio University Press/KwaZulu-Natal: University of KwaZulu-Natal Press.
  • EVERITT-PENHALE, Brittany; RATELE, Kopano. 2015. Rethinking ‘traditional masculinity’ as constructed, multiple, and ≠ hegemonic masculinity. South African Review of Sociology, vol. 46, n. 2: 4-22. DOI 10.1080/21528586.2015.1025826
    » https://doi.org/10.1080/21528586.2015.1025826
  • FERNANDES, Florestan. 1975. “Tendências teóricas da moderna investigação etnológica no Brasil". In: A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, pp. 119-190.
  • FONSECA, Claudia L. W. 2000. Família, Fofoca e Honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. UFRGS.
  • GESCHIERE, Peter; NYAMNJOH, Francis. 2000. Capitalism and autochthony: the seesaw of mobility and belonging. Public Culture, vol. 12, n. 2: 423-452. DOI 10.1215/08992363-12-2-423
    » https://doi.org/10.1215/08992363-12-2-423
  • GILMORE, David D. 1990. Manhood in the making: cultural concepts of masculinity. New Haven: Yale University Press.
  • GRIFFIN, Penny; PARPART, Jane L; ZALEWSKI, Marysia. 2013. Men, masculinity, and responsibility. Men and Masculinities , vol. 16, n. 1: 3-8. DOI 10.1177/1097184X12468103
    » https://doi.org/10.1177/1097184X12468103
  • GROSSI, Miriam. 2004. Masculinidades: uma revisão teórica. Antropologia em primeira mão, vol. 75: 4-37. Disponível em: Disponível em: https://miriamgrossi.paginas.ufsc.br/files/2012/03/Visualizar3.pdf acesso em 4 set 2022
    » https://miriamgrossi.paginas.ufsc.br/files/2012/03/Visualizar3.pdf
  • GUTMANN, Matthew. 1997. “Trafficking in men: the anthropology of masculinity”. Annual Review of Anthropology, vol. 26, n. 1: 385-409. DOI 10.1146/annurev.anthro.26.1.385
    » https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.26.1.385
  • HARAWAY, Donna. 1995. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu , vol. 5: 7-41. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 Acesso em 4 set 2022.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
  • JARDIM, Denise. 1991. De bar em bar: identidade masculina e auto-segregação entre homens de classes populares. Porto Alegre, Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • MAMDANI, Mahmood. 1996. Citizen and subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton: Princeton University Press.
  • MCCLINTOCK, Anne. 1995. Imperial leather: race, gender and sexuality in the colonial contest. London/New York: Routledge .
  • MERRY, Sally Engle. 2006. Human rights & gender violence: translating international law into local justice. Chicago: The University of Chicago Press.
  • MFECANE, Sakhumzi. 2018. Towards Africa-centred theories of masculinity. Social Dynamics, vol. 44, n. 2: 291-305. DOI 10.1080/02533952.2018.1481683
    » https://doi.org/10.1080/02533952.2018.1481683
  • MORRELL, Robert. 1998. Of boys and men: masculinity and gender in Southern African studies. Journal of Southern African Studies, vol. 24, n. 4: 605-630. DOI 10.1080/03057079808708593
    » https://doi.org/10.1080/03057079808708593
  • MORRELL, Robert; JEWKES, Rachel; LINDEGGER, Graham. 2012. Hegemonic masculinity/masculinities in South Africa: culture, power, and gender politics. Men and Masculinities , vol. 15, n. 1: 11-30. DOI 10.1177/1097184X12438001
    » https://doi.org/10.1177/1097184X12438001
  • MOOLMAN, Benita. 2017. Negotiating masculinities and authority through intersecting discourses of tradition and modernity in South Africa. NORMA: International Journal for Masculinity Studies, vol. 12, n. 1: 38-47. DOI 10.1080/18902138.2017.1293398
    » https://doi.org/10.1080/18902138.2017.1293398
  • MOORE, Henrietta. 2000. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência. Cadernos Pagu , vol. 14: 13-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635341 Acesso em 04 set 2022.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635341
  • MULLER, Paulo. 2015. Historicidade, póscolonialidade e dinâmicas das tradições: etnografia e mediações do conhecimento em Cabinda, Angola. Porto Alegre, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • NASCIMENTO, Pedro. 2016. Beber como homem: dilemas e armadilhas em etnografias sobre gênero e masculinidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31, n. 90: 57-71. DOI 10.17666/319057-70/2016
    » https://doi.org/10.17666/319057-70/2016
  • OLIVEIRA, Isabela V; SOUSA, Fernanda K M. 2020. “’Podem duas mulheres falar sobre masculinidades?’: entre saberes localizados e a reflexão sobre múltiplas masculinidades”. Periódicus, vol. 13, n. 1: 25-43. DOI 10.9771/peri.v1i13.35695
    » https://doi.org/10.9771/peri.v1i13.35695
  • OUZGANE, Lahoucine; MORREL, Robert. (eds.). 2005. African masculinities: men in Africa from the late nineteenth century to the present. New York: Palgrave McMillan/KwaZuluNatal: University of KwaZulu-Natal Press.
  • OYEWÙMÍ, Oyèrónke. 2011. Introduction: gendering. In: OYEWÙMÍ, Oyèrónke (org.) Gender epistemologies in Africa: gendering traditions, spaces, social institutions, and identities. New York: Palgrave McMillan, pp. 1-7.
  • PASSADOR, Luiz Henrique. 2009. “Tradition”, person, gender, and STD/HIV/ AIDS in southern Mozambique. Cadernos de Saúde Pública, vol. 25, n. 3: 687-693. DOI 10.1590/S0102-311X2009000300024
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2009000300024
  • PASSADOR, Luiz Henrique. 2010. “As mulheres são más”: pessoa, gênero e doença no sul de Moçambique. Cadernos Pagu , vol. 35: 177-210. DOI 10.1590/S0104-83332010000200007
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332010000200007
  • PEREIRA, Luena N. N. 2008. Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda. São Paulo: Serviço de Comunicação Social FFLCH/USP.
  • PINA-CABRAL, João. 2013. The two faces of mutuality: contemporary themes in anthropology”. Anthropological Quarterly, vol. 86, n. 1: 257-275. DOI 10.1353/anq.2013.0010.
    » https://doi.org/10.1353/anq.2013.0010
  • PRECIADO, Paul (Beatriz). 2014. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições.
  • RATELE, Kopano. 2008. Analysing males in Africa: certain useful elements in considering ruling masculinities. African and Asian Studies, vol. 7: 515-536. DOI 10.1163/156921008X359641
    » https://doi.org/10.1163/156921008X359641
  • RATELE, Kopano. 2016. Liberating masculinities. Cape Town: HSRC Press.
  • SAGGESE, Gustavo S. R.; MARINI, Marisol; LORENZO, Rocio A.; SIMÕES, Júlio A.; CANCELA, Cristina D. (Orgs.). 2018. Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome/Editora Gramma.
  • SCHEPER-HUGHES, Nancy. 1983. Introduction: the problem of bias in androcentric and feminist anthropology. Women's Studies: an inter-disciplinary journal, vol. 10, n. 2: 109-116. DOI 10.1080/00497878.1983.9978584
    » https://doi.org/10.1080/00497878.1983.9978584
  • SCHUBERT, Jon. 2017. Working the system: a political ethnography of the new Angola. Ithaca e Londres: Cornell University Press.
  • SPALL, John. 2014. “Money has more weight than the man”: masculinities in the marriages of Angolan war veterans. IDS Bulletin, 45: 11-19. DOI 10.1111/1759-5436.12063
    » https://doi.org/10.1111/1759-5436.12063
  • SPALL, John; ABRANCHES, Maria. 2021. Materiality, morality and masculinities in the social transformations of war in Angola. Men and masculinities, ahead of print: 1-18. DOI 10.1177/1097184X20986836
    » https://doi.org/10.1177/1097184X20986836
  • STOLER, Ann L. 1995. Race and the education of desire: Foucault’s History of Sexuality and the colonial order of things. Durham: Duke University Press.
  • UCHENDU, Egodi. 2008. Masculinities in contemporary Africa. Dakar: Codesria.
  • VINCENT, Louise. 2008. Cutting tradition: the political regulation of traditional circumcision rites in South Africa's liberal democratic order. Journal of Southern African Studies , vol. 34, n. 1: 77-91. DOI 10.1080/03057070701832890
    » https://doi.org/10.1080/03057070701832890
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1999.“Etnologia brasileira”. In: MICELI, Sérgio. (org.) O que ler nas ciências sociais. Vol I: Antropologia. São Paulo: Sumaré, pp. 109-223.
  • WILSON, Thomas M. (ed.). 2005. Drinking cultures: alcohol and identity. Oxford/New York: Berg Publishing.
  • 1
    Por resolução do Tratado de Berlim (1884-1885), uma faixa de terra contígua à foz do rio Congo foi concedida ao então Congo Belga como via de acesso marítimo, separando o território de Cabinda do restante de Angola, o que o configura geopoliticamente como um “enclave”.
  • 2
    Agradeço especialmente a Denise Jardim, Claudia Fonseca e Nara Magalhães pelo estímulo a este exercício de reanálise em chave de gênero
  • 3
    No século XVIII Cabinda foi um importante porto escravista relativamente autônomo em relação aos poderes coloniais concorrentes na região. Com a proibição do tráfico de pessoas escravizadas no final do século XIX, diferentes projetos extrativos, sobretudo de madeira, se instalaram na região. Entretanto, nos anos 1960 foram descobertos em seu offshore veios de petróleo, cuja exploração comercial ficou a cargo de empresas transnacionais e até hoje respondem pela maior parte da receita do Estado angolano. No mesmo período eclodiu a luta pela independência de Angola (1961-1974) e emergiram movimentos de reivindicação de um processo de descolonização à parte para Cabinda. Com a incorporação de Cabinda ao ordenamento angolano pelos Acordos de Alvor (1975) a disputa de reivindicações deu lugar a um conflito político e militar entre o Estado angolano e movimentos separatistas que perdura até hoje.
  • 4
    O artigo de Gutmann se refere à bibliografia antropológica até os anos 1990. Desde então o referencial e a discussão sobre masculinidades se ampliou significativamente, como procuro mostrar a seguir. a cidade sul-mineira.
  • 5
    Esses “tipos” apareceram sobretudo sob designações regionais ou nacionais, tais como o homem “grego”, “mediterrâneo”, árabe”, “latino”, etc., acompanhados de termos relativos a valores morais, como “honra”, “prestígio”, e seus opostos.
  • 6
    Utilizo, aqui, o termo heteronormatividade para me referir a conjuntos de normas de organização social estruturadas em torno da heterodivisão sexual dos corpos, e que postulam uma congruência absoluta entre identidades de gênero (homem/mulher), a configuração dos corpos classificada pelos órgãos sexuais e reprodutores (macho/ fêmea) e práticas e desejos sexuais (heterossexualidade/ homossexualidade). Para uma discussão sobre a historicidade dessas divisões a partir de reflexões sobre suas subversões, bem como sobre os desafios de se abordar conceitualmente a heteronormatividade, conferir Butler (2003BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e Preciado (2014PRECIADO, Paul (Beatriz). 2014. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições.).
  • 7
    Morrell (1998MORRELL, Robert. 1998. Of boys and men: masculinity and gender in Southern African studies. Journal of Southern African Studies, vol. 24, n. 4: 605-630. DOI 10.1080/03057079808708593
    https://doi.org/10.1080/0305707980870859...
    ) coloca especial ênfase no modo como as relações entre homens brancos e negros eram caracterizadas por uma hierarquia intransponível, representada pelo uso do termo boy pelos brancos para se referirem a empregados negros, independente de sua idade.
  • 8
    O dossiê onde foi publicado o artigo de Morrell (1998MORRELL, Robert. 1998. Of boys and men: masculinity and gender in Southern African studies. Journal of Southern African Studies, vol. 24, n. 4: 605-630. DOI 10.1080/03057079808708593
    https://doi.org/10.1080/0305707980870859...
    ) é exemplo disso.
  • 9
    Refletindo uma tendência generalizada dos homens a inverter e se vingar do status de boy atribuído pela elite branca aos trabalhadores negros, como salientado em nota anterior.
  • 10
    Na tese, abordei essa interlocução nos termos da construção de uma “mutualidade do conhecimento etnográfico”, concepção formulada por Pina Cabral (2013PINA-CABRAL, João. 2013. The two faces of mutuality: contemporary themes in anthropology”. Anthropological Quarterly, vol. 86, n. 1: 257-275. DOI 10.1353/anq.2013.0010.
    https://doi.org/10.1353/anq.2013.0010...
    ) para se referir ao modo como etnógrafos compartilham interesses e ajustam os objetivos de suas pesquisas conforme suas interlocuções em campo.
  • 11
    RMinha chegada em Cabinda coincidiu com o período em que muitos dos homens que faziam parte da rede de meus anfitriões estavam trabalhando nas plataformas petrolíferas em alto-mar. Seus turnos de trabalho eram de aproximadamente vinte dias embarcados para dez a quinze dias de folga em terra. Os homens que conheci que trabalhavam dessa forma, atuavam com scaffolding, que consiste na montagem e manutenção de andaimes..
  • 12
    A introdução do buko também coincidia com a proximidade do fim do mês e, com isso, da diminuição de dinheiro do salário disponível para se gastar nas tchiladas. Enquanto cada garrafa long neck (com aproximadamente 300 ml) para consumo individual de uma cerveja nacional ou importada custava entre 150 e 300 kwanzas, o buco era consumido com uma garrafa de cachaça de 900 ml que custava cerca de 500 kwanzas e era compartilhada por todos. Coloca-se o buko em um copo e depois se acrescenta uma dose de cachaça, deixando a mistura macerar enquanto se bebe pequenos goles ao longo de algumas horas.
  • 13
    Em Angola zungar é a atividade de caminhar equilibrando uma bacia ou cesto na cabeça, com mercadorias para vender. Usualmente são mulheres que zungam, apenas nesse contexto específico observei homens o fazendo.
  • 14
    Chinga, Chiazi e Malembo são as maiores aldeias localizadas no eixo rodoviário que interliga a capital, Cabinda, no Sul, ao município do Cacongo, a noroeste da província, na fronteira com o Congo-Brazzaville. Fazem parte, assim, de um circuito de pessoas, bens e serviços com o centro urbano da capital. Cabinda é composta por outros dois municípios, Belize e Buco Zau, no interior da floresta do Mayombe.
  • 15
    Assim como diferenças etárias e geracionais, por exemplo, que colocam determinados sujeitos sob o controle de outros.
  • 16
    LNo cotidiano angolano categorias de raça definem diferentes concepções de mestiçagem que posicionam os sujeitos em determinadas origens etnolinguísticas e regionais, mas também de classe social. Termos como “mestiço” e “mulato” podem indicar pessoas que, pela cor da pele, se acredita serem descendentes de relações entre negros e brancos. O termo “crioulo”, por outro lado, referese não somente a pessoas com a coloração da pele mais clara ou mestiços, mas também ao pertencimento ao meio urbano da capital Luanda e ao não pertencimento ou afastamento de suas origens étnicas. Por sua vez, termos referentes a identidades étnicas como bakongo, tchokwe, nganguela, ovimbundo, etc., situam os sujeitos nessas identidades, mas também em determinadas regiões e províncias do país. No caso, respectivamente, no Norte (Zaire, Uíge e Cabinda), Nordeste (Lunda Norte, Lunda Sul e Moxico), no Sudeste (Cuando Cubango) e no planalto central (Bié, Benguela e Huambo).
  • 17
    Schubert (2017SCHUBERT, Jon. 2017. Working the system: a political ethnography of the new Angola. Ithaca e Londres: Cornell University Press.) menciona especificamente os rumores de que o ex-presidente de Angola (1979-2017), José Eduardo dos Santos, seria originário de Cabo Verde, mas reivindica ter nascido no bairro do Sambizanga, onde também nasceu o principal líder do MPLA e primeiro presidente de Angola (1975-1979), Agostinho Neto.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    A pesquisa que gerou os dados aqui analisados foi subsidiada por auxílios e bolsas do Policy Development and Evaluation Service do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (PDES/UNHCR) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2021
  • Aceito
    01 Abr 2022
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com