Acessibilidade / Reportar erro

Viver sem guerra? Poderes locais e relações de gênero no cotidiano popular1 1 Agradecemos a leitura e comentários valiosos de Márcia Pereira Leite, dos membros do grupo de pesquisa “Distúrbio: dispositivos, tramas urbanas, ordens e resistências”, dos membros grupo de trabalho coordenado por Gabriel Feltran, dos membros do Programa Internacional de Pós-Doutorado do CEBRAP e, por fim, agradecemos os pareceristas deste texto. Agradecemos também apoio do CNPq, da FAPERJ no âmbito do projeto: “A gestão da pobreza e seus gêneros: políticas públicas, emaranhados e apropriações no Rio de Janeiro”, e da FAPESP (processo: 2018/15928-2), projeto intitulado: “Interstícios: entre a violência masculina do estado, do tráfico de drogas e da família, um corpo de mulher”.

Living without war? Local powers and gender relations in popular daily life

RESUMO

Neste texto, analisamos os efeitos de gênero que a guerra movida pelo Estado contra o Tráfico de Drogas produz na vida cotidiana das famílias que habitam as periferias do Rio de Janeiro. Ao privilegiar narrativas de mulheres, consideramos que as relações de gênero são “feitas” ao mesmo tempo em que fazem o fazer da guerra. Ao acompanhar situações que envolveram maus-tratos físicos e morais, ameaças e assassinatos enfrentados por mulheres, discutimos como crime, território e violência se embebem nas relações de família e de vizinhança. A temporalidade da guerra que já dura quase quarenta anos é lida como um passado tecido na intimidade das relações e como um presente sempre atualizado na experiência das relações de gênero posicionadas pela guerra contínua.

PALAVRAS-CHAVE:
Estado; tráfico de drogas; família; relações de gênero; maus-tratos; mortes; guerra às drogas

ABSTRACT

In this paper, we analyze the effects that the war promoted by the State against the Drug Traffic produces in terms of gender in the daily life of families inhabiting the peripheries of Rio de Janeiro. By emphasizing the narratives of women, we consider that the gender relations are ‘made’ at the same time as they make the war making. By accompanying situations involving physical and moral ill treatment, threats and murders faced by women, we argue how crime, territory and violence are embedded in family and neighborhood relations. The temporality of war, lasting already 40 years, is read as a past woven in the intimacy of the relations and as a present always updated in the experiences of gender relations framed by the constant war.

KEYWORDS:
State; drug trafficking; family; gender relations; mistreatment; deaths; war on drugs

Sueli, Cristina e Mariana, mulheres decididas e com uma longa história em várias periferias, hoje como há alguns anos, moram em uma vila popular na cidade do Rio de Janeiro. O texto baseia-se nas histórias que elas nos contaram e nas muitas situações cotidianas, nos “momentos2 2 Os termos em itálico são aqueles utilizados com frequência por nossos interlocutores ou falas específicas das pessoas com quem mantivemos contato durante a pesquisa; os termos entre aspas são aqueles utilizados nos documentos oficiais e também problematizações ou ainda citações de textos e conceitos, estes acompanhados da referência bibliográfica. ” e “eventos críticos” (Das, 1995DAS, Veena. 1995. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. Oxford, Oxford University Press., 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and The Descent Into The Ordinary. Los Angeles, University of California Press.; Han, 2012HAN, Clara. 2012. Life in Debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press.) nos quais participamos com os moradores dessa pequena comunidade (Fernandes, 2013FERNANDES, Adriana. 2013. Escuta Ocupação: arte do contornamento, viração e precariedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Birman, Fernandes, Pierobon, 2014BIRMAN, Patrícia; FERNANDES, Adriana; PIEROBON, Camila. 2014. “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares. Mana - estudos de Antropologia Social , v. 20 , n. 3: 430-461. https://doi.org/10.1590/S0104-93132014000300001
https://doi.org/10.1590/S0104-9313201400...
; Birman, 2015BIRMAN, Patrícia. 2015. “Ocupações: territórios em disputa, gêneros e a construção de espaços comuns”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE; Márcia P.; MACHADO, Carly; SÁ CARNEIRO, Sandra de. (org.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV, pp. 163-187.; Pierobon, 2018PIEROBON, Camila. 2018. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Cristina e sua ética de combate. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.).

A violência cotidiana faz parte de uma experiência compartilhada entre os moradores das favelas e periferias da cidade, amplamente estudada pelas ciências sociais. O nosso intuito é seguir os caminhos abertos pelas pesquisas que enfocam as relações de gênero nas situações de guerra e seus efeitos no cotidiano e nas modalidades de ação sobretudo das mulheres3 3 Márcia Pereira Leite (2004) fez uma discussão pioneira no Brasil sobre o tema da “violência urbana”, quando ela trouxe para o primeiro plano a figura das mães que lutam por “justiça” pelo filho que foi assassinado. Para a autora, a “mãe” e seu sofrimento em busca de justiça se relaciona com a tradição cristã em referência à Maria, mãe de Jesus, que ofereceu seu filho em sacrifício. Na esteira do trabalho de Leite, várias pesquisas têm trazido as experiências das mulheres que buscam justiça pelos filhos assassinados (Vianna, 2015; Vianna e Farias, 2011; Araújo, 2014; Lacerda, 2015; Farias, 2015). Destacamos os trabalhos de Adriana Vianna (Vianna, 2015; Vianna e Farias, 2011; Vianna e Lowenkron, 2017) quando a autora discute como as gramáticas de gênero que se corporificam na díade “mãe-filho”. Para a autora, as “mães” se contrapõem - como sujeito político, moral e afetivo - ao “Estado que mata”, em uma batalha que é atravessada por representações e relações de gênero. Ao mesmo tempo, essa figura “mãe-filho” oblitera outras conexões familiares e não-familiares que estão presentes nessas relações, algo que valorizamos neste texto. Destacamos também a resenha crítica de Shaylih Muehmann (2018) sobre relações de gênero na guerra às drogas. . Discutiremos algumas situações que envolveram ameaças, agressões físicas e mortes enfrentadas por essas mulheres no período em que a Vila que habitavam esteve submetida ao domínio do tráfico de drogas e ameaças de remoção. Ouvir as mulheres ao longo dos anos em que acompanhamos a vida diária no interior desta Vila consolidou para nós o viés que viemos a desenvolver no texto, a saber, a produção das relações de gênero relacionada à produção da guerra4 4 Para o emprego da noção de guerra em relação à violência no Rio de Janeiro ver, em primeiro lugar, o trabalho de Márcia Leite sobre a “metáfora da guerra” (2012). Destacamos duas coletâneas, fundamentais para o entendimento do problema da violência urbana no Rio de Janeiro. A primeira, “Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro” organizada por Luiz Antônio Machado da Silva (2008). A segunda, organizada por Márcia Leite, Lia Rocha, Juliana Farias e Monique Carvalho (2018), “Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção”. .

A rotinização da guerra no Rio de Janeiro nos faz conviver diariamente por meio da mídia com situações em que homens, “bandidos” versus “bandidos” ou “policiais” versus “bandidos” trocam tiros, jogam bombas, metralham ruas e casas e provocam a morte ininterruptamente. Apresentados como tipos ideais, encarnam um dualismo jamais abandonado entre o Bem e o Mal, entre a cidade e a periferia, entre o Estado e a Sociedade e que aqui chamamos de Grande Clivagem5 5 Quando utilizamos o termo “Estado” em letra maiúscula, estaremos nos referindo à ideia de Abrams (2006) que difere o “Estado ideia” do “Estado prática”. O “Estado ideia” trata dos processos de abstração, na qual o Estado aparece como unidade coesa de sentido. Por outro lado, “Estado prática” nos permite olhar para as agências do estado na vida social. Em um sentido que dialoga ao proposto por Abrams, temos Das e Poole (2004), na qual o “estado” é grafado com letras minúsculas exatamente para que as análises consigam mostrar as formas com que o Estado aparece como abstração e como o estado aparece em suas práticas. Assim, quando escrevemos a palavra Estado em maiúsculo, nos referimos às abstrações e quando grafada em minúsculo, o que está em jogo são as práticas cotidianas que fazem o estado funcionar. Seguimos o mesmo raciocínio quando utilizamos o termo Tráfico, em maiúscula, e tráfico, em minúscula. No Brasil, muitos autores têm aprofundado nas discussões sobre estado. Sobre o tema, ver os trabalhos de Antônio Carlos de Souza Lima, dentre os quais destacamos o texto em que ele discute a relação entre Antropologia e Estado no Brasil: Souza Lima; Dias, 2020. . Ao mencionar os regimes de poder e o uso da força que são empregados para o controle dos territórios periféricos bem como o circuito econômico e político envolvidos nessa guerra mortífera queremos principalmente analisar como as relações de gênero participam do engendramento da guerra e das construções possíveis e aceitáveis das mulheres nesse longo processo de devastação6 6 As estatísticas que tratam dos assassinatos no Rio de Janeiro, sobretudo de jovens negros e pobres, revelam números assustadores. Nos últimos trinta anos, cerca de 84 mil pessoas foram assassinadas apenas na cidade do Rio de Janeiro (ISP, 2020), majoritariamente nas periferias e sem julgamento. Os números são um gesto com vista à enormidade do problema no qual “os homens, jovens e negros são as principais vítimas dos assassinatos e as mulheres mães/esposas/irmãs, negras, são aquelas que acabam tendo que habitar o mundo pós-morte e lidar com o cotidiano do sofrimento” (Pierobon, 2018: 34-35). Esses assassinatos indicam também o caráter interseccional das relações em que raça, gênero e território são inseparáveis (ver: Efrem-Filho, 2017; Fernandes, 2017). .

MEMÓRIAS E RELAÇÕES

Em 2010, cerca de 30 famílias ganharam na justiça o direito de permanecer no barracão em que residiam, indo na contramão das crescentes remoções e despejos que ocorriam na localidade7 7 Inúmeros trabalhos fizeram um balanço das remoções e despejos no Rio de Janeiro. Sobre o tema, ver: Fernandes, 2013; Magalhães, 2013; Gutterres, 2014; Faulhaber e Azevedo, 2015; e Lobo, 2015. . Naquele momento, o “Estado” aparecia como o “adversário” a ser vencido pelos moradores para obterem a regularização fundiária: a prefeitura e o governo do estado que planejavam as remoções, o juiz com quem estava o processo, a Caixa Econômica Federal cujas burocracias impediam a reforma das casas. Na sua face minúscula, o estado também aparecia como um “aliado” no processo de regularização fundiária por meio de defensores públicos e professores universitários específicos que apoiavam esta pequena comunidade. Ocorre que, nove meses após a regularização dos imóveis, em março de 2011, membros de uma facção de tráfico de drogas invadiram a Vila e instalaram um ponto de vendas de drogas em sua entrada.

Definiu-se nesse momento um novo regime político local. A Vila passou a ter dono fazendo com que os moradores passassem a entender que seu pequeno bairro havia se transformado em uma favela. Durante onze anos o regime vigente na Vila se diferenciava das demais moradias no bairro pelo seu caráter político/coletivo de autogestão. De um momento a outro, passaram a um regime de obediência estrita aos membros do tráfico que se instalaram no local, como nas demais favelas dos arredores.

Se a Vila possui sua especificidade, as antigas relações com “donos” fazem parte da memória de experiências vividas pela quase totalidade de seus moradores. Histórias sobre “donos” conhecidos no passado que morreram de modo violento, que ajudaram a comunidade local, que protegiam alguém, que maltratavam e matavam são narrativas compartilhadas, ancoradas em experiências acumuladas ao longo do tempo que envolveram familiares, vizinhos e conhecidos. Com o novo regime instaurado, as violações passadas e presentes se integravam em linguagem e práticas complexas nas quais todos reconheciam a potencialidade dos perigos que poderiam vir (Das, 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and The Descent Into The Ordinary. Los Angeles, University of California Press.). As múltiplas experiências de violações que historicamente constituíram as periferias da cidade do Rio de Janeiro se distinguem de outras pela existência de um “dono” que controla o território e sua população, o que não ocorre, segundo Daniel Hirata e Carolina Grillo (2017HIRATA, Daniel; GRILLO, Carolina. 2017. “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: Perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social. V. 29, n. 2: 75-98. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.125494
https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
), em São Paulo8 8 Além do trabalho de Hirata e Grillo (2017), Birman e Leite (2018) comparam as diferenças nas políticas públicas direcionadas à “guerra às drogas” e seus efeitos nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ver também o Dossiê: “Crimes, territórios e sociabilidades: comparações entre Rio de Janeiro e São Paulo” organizado por Vera Telles (2019). . “Donos” de favelas, loteamentos, condomínios populares, ocupações e invasões fazem parte de uma configuração específica das relações de poder que se estabeleceu nas áreas populares do Rio de Janeiro. Figuras bem conhecidas que dominam certos territórios na cidade e exercem o controle sobre as relações locais tendo como limite ameaças de morte, agressões físicas e também assassinatos.

Como analisaram Hirata e Grillo (2017HIRATA, Daniel; GRILLO, Carolina. 2017. “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: Perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social. V. 29, n. 2: 75-98. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.125494
https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
), os territórios populares do Rio de Janeiro possuem “donos”. O “valente” Zé da Barra, descrito em 1924 pelo jornalista Benjamin Costallat como “chefe incontestável da favela”, foi um dos primeiros personagens a aparecerem na literatura sobre o Rio de Janeiro como o “dono do morro”. Segundo o historiador Romulo Mattos (2014MATTOS, Rômulo. 2014. “A ocupação policial do morro da Favela no contexto do 1° Centenário da Independência e o discurso sobre José da Barra (o ‘chefe de polícia’ da localidade)”. In: ANAIS, XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas. http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400295307_ARQUIVO_RomuloMattos2014.pdf
http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/res...
), Zé da Barra e Annibal Ferreira “eram os ‘chefes de polícia’ do Morro da Favela na década de 1920, cada qual com sua zona de influência” (2014: 7). Em 1922 houve uma mudança nas políticas de segurança destinadas à Favela que consistiu em “uma forte repressão aos ‘criminosos’ do morro, que foi sucedida por uma política de aliança entre a polícia e as principais lideranças locais” (idem: 1). Esta aliança consistia em “de um lado, [que] os policiais não interviriam ostensivamente no morro; de outro, [que] as lideranças da localidade ficariam com a obrigação de manter o seu cotidiano sob controle” (idem: 5). Nos anos 20, defende Mattos, inaugurou-se uma forma de poder no controle sobre a Favela delegada pelo próprio aparato coercitivo do estado. Histórica e enraizada, essa forma de exercício do poder no controle de certos espaços da cidade antecede a existência do tráfico de drogas e ajudou-o a se configurar. Não nos basta mencionar, com já se convencionou, as teias de relações que envolvem o tráfico de drogas com os vários segmentos estatais. Retomando Hirata e Grillo, os donos do morro enfatizam a “relação de posse sobre o território das favelas” (2017: 81, grifos dos autores) que antecedeu o tráfico de drogas e que assim estabeleceu as condições sociais e políticas para o exercício dessa atividade comercial no Rio de Janeiro. A experiência de se conviver com um “dono” local é amplamente compartilhada entre homens e mulheres que vivem nas periferias do Rio de Janeiro e produz consequências na vida diária de seus habitantes.

Um forte entrelaçamento entre memórias de eventos passados e experiências do presente constituíram o que João Pacheco de Oliveira (2000PACHECO DE OLIVEIRA, João. 2000. “Sobre índios, macacos e peixes: narrativas e memórias da intolerância na Amazônia contemporânea”. Etnográfica, vol. IV, n. 2: 285-310. http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_285-310.pdf
http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vo...
) nos sugere ao analisar as narrativas de um massacre vivido pelos indígenas Ticuna na Amazônia: que as ameaças, agressões corporais e mortes que discutiremos abaixo “fazem parte de um conjunto de conhecimentos e de uma forma de consenso partilhado” entre os moradores das periferias do Rio de Janeiro “que os reúne dentro de uma mesma ‘comunidade de comunicação’” (Oliveira, 2000: 295). Lembremos que o trabalho da memória associa várias temporalidades relacionadas às experiências vividas (Das, 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and The Descent Into The Ordinary. Los Angeles, University of California Press.; Carsten, 2007CARSTEN, Janet. 2007. Ghosts of Memories: Essays on Remembrance And Relatedness. Malden, Blackwell Publishing .; Cho, 2008CHO, Grace. 2008. Haunting the Korean Diaspora: Shame, Secrecy and The Forgotten War. Minneapolis/London, University of Minnesota Press.; Han, 2012HAN, Clara. 2012. Life in Debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press.).

BREVE HISTÓRIA VELADA DA VILA

A história da Vila Carolina Maria de Jesus teve início no ano 2000. O horizonte difundido por seus idealizadores se afirmava por um comprometimento com o não pagamento de aluguel e outras taxas e com a não submissão dos moradores ao tráfico, à milícia ou a qualquer outro dono. Uma moradia popular que se propunha igualitária e democrática, cujo modelo de “autogestão” derivaria das decisões coletivas ocorridas em assembleias. Esse horizonte se fazia em oposição à realidade das periferias da cidade onde a convivência com grupos armados é emaranhada à vida cotidiana (Fernandes, 2013FERNANDES, Adriana. 2013. Escuta Ocupação: arte do contornamento, viração e precariedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Araujo, 2014ARAÚJO, Fábio. 2014. Das ‘técnicas’ de fazer desaparecer corpos. Rio de Janeiro, Lamparina.; Lobo, 2015LOBO, Heloísa. 2015. Processos de remoções e seus desdobramentos: tramas e percursos em busca de uma casa. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Menezes, 2016MENEZES, Palloma. 2016. Entre o ‘fogo cruzado’ e o ‘campo minado’: uma etnografia do processo de ‘pacificação’ de favelas cariocas. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Fernandes, 2017FERNANDES, Camila. 2017. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Araujo, 2017ARAUJO, Marcella. 2017. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos, no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Pierobon, 2018PIEROBON, Camila. 2018. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Cristina e sua ética de combate. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Coutinho, 2018COUTINHO, Bruno. 2018. Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”: uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.).

No processo de transformar um barracão abandonado em uma moradia popular a diversidade de experiências dos moradores foi em grande parte invisibilizada em prol de uma narrativa pública e coesa do movimento social que a coordenava. A divisão de tarefas relativas ao funcionamento do espaço coletivo e a obediência ao regulamento eram pilares para o engajamento na experiência igualitária de moradia, por mais que críticas e acusações à forma como este regime ocorria na prática constituíssem as relações. Apesar do horizonte comum, as dinâmicas do cotidiano colocavam os moradores em constantes enfrentamentos e acusações. Problemas concretos como ligar e desligar a bomba que distribuía água no barracão, o recolhimento do dinheiro para pagar a conta de água, os frequentes curtos-circuitos diante os usos de energia elétrica geravam sucessivos conflitos e desgastavam o convívio entre os moradores. Ano após ano, as acusações a respeito de uma aplicação enviesada das regras e dos princípios morais desrespeitados resultavam em uma desqualificação do regime igualitário como princípio vigente, aproximando-o do regime de autoridade conhecido, imposto por “donos” nos territórios da periferia. Em suma, os problemas que percorrem a vida diária em uma vila popular destacavam as dinâmicas familiares e as cargas sociais e morais que as revestiam, indicando o desejo ambivalente de que alguém pudesse exercer certa autoridade e resolver os problemas tão difíceis de serem solucionados em decisões diretas.

Desde o início da Vila o Tráfico era uma referência compartilhada. Muitos provinham de lugares em que essa era uma experiência constitutiva de suas vidas. As memórias das situações vividas faziam com que qualquer sinal de aproximação entre um morador da Vila e uma pessoa ligada ao Tráfico gerasse rumores, desconfianças e reconfigurasse a sociabilidade local. Alguns jovens trabalhadores do tráfico, ainda no período de autogestão da Vila, invadiram e se apoderaram de uma das casas. Os moradores, depois de muitas hesitações e conversas, decidiram entrar em contato com um militante que conhecia uma “mãe vítima de violência policial” que, por sua vez, poderia acionar a mãe da gerente do morro ao qual pertenciam os garotos e, finalmente, a própria gerente. Essas mediações femininas sucessivas permitiram que uma carta escrita pelos moradores chegasse à alta hierarquia do tráfico sem que a polícia, sempre à espreita, agisse contra a Vila, acusando-os de coniventes com o crime e assim inviabilizando o processo de regularização fundiária.

O medo da intervenção policial e também de outros atores do estado reforçavam os jovens traficantes como figuras de poder, capazes de destruir inteiramente o projeto que os moradores cultivavam e que faziam par com as muitas faces do estado envolvidas nesse empreendimento: a polícia, a prefeitura, o juiz, a secretária de assuntos fundiários, que se ancoram nas experiências com o estado no passado: remoções forçadas, assassinatos sem julgamentos ou absolvição de policiais assassinos. Naquele momento, a gerente aceitou retirar os garotos, livrando os moradores dos perigos tanto relativos à tomada da casa pelo Tráfico quanto às possíveis denúncias ao Estado. Havia uma gerente geral do tráfico na região que, ao ser contatada no interior de uma rede familiar e feminina, decidiu favorecer os moradores e retirou os jovens garotos de dentro do barracão.

Os conflitos internos à Vila, contudo, não impediram a continuidade da luta política pela regularização fundiária, apesar dos muitos percalços. Aconteceu que a regularização coincidiu com a invasão e o domínio pelo tráfico de drogas (2010 e 2011 respectivamente). A partir daquele momento duas ordens paralelas e entrecruzadas passaram a vigorar, e a relação entre as duas, na visão dos moradores, aumentavam o sentimento de risco e de insegurança. Em primeiro lugar, poderiam perder o direito a permanecer no barracão pois, no “contrato de cessão de uso” do barracão, estava descrito que o governo do estado do Rio de Janeiro poderia “suspender a regularização fundiária” caso houvesse “atividades ilegais e criminosas no local”. Em segundo lugar, os moradores viam-se atingidos gravemente pelas ameaças que dificultavam as condições de habitar esse espaço, agora controlado por um grupo masculino armado. A regularização passou a ser ameaçada pela situação de ilegalidade, fortemente associada à criminalidade o que os submetia a ameaças de morte e exigências de submissão. Esse período na Vila atingiu fortemente os moradores, levando-os a situações de desespero e também de busca por saídas improváveis, alimentadas pela angústia e pelo medo. A reconfiguração das relações de poder mudou a sociabilidade local. Um silêncio se impunha frente as ameaças dos novos donos caso as situações que ocorriam ali chegassem à imprensa ou a diferentes atores na hierarquia da polícia. As retaliações que aventavam caso fossem denunciados não seriam esquecidas. Ao contrário, se conjugavam com a raiva, com as humilhações e os desejos de escaparem dali e dos enredamentos que as situações de cada família propiciavam. Se enfrentar o tráfico individualmente era algo difícil e perigoso, tentou-se fazer denúncias que fizessem vir, do exterior, uma solução que liberasse o barracão sem dar margem para uma retaliação dos donos sobre os moradores, ou uma represália promovida pela polícia, além da perda das casas se fossem acusados de cumplicidade com o tráfico. As ameaças provenientes desse campo de forças indicam o processo de instauração do tráfico de drogas como uma guerra no Rio de Janeiro nos últimos quarenta anos que criou uma dinâmica particular na cidade e suas periferias, analisadas por Luiz Antônio Machado e Marcia Leite (2008LEITE, Márcia Pereira. 2008. “Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: percepções e formas de ação de moradores de favelas cariocas”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, pp. 115-143.), além de vários outros autores. Como sugere Leite (2008LEITE, Márcia Pereira. 2008. “Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: percepções e formas de ação de moradores de favelas cariocas”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, pp. 115-143.:119)

É no interior desta configuração que as favelas cariocas se constituem como espaços que, por diferentes meios e relações, se encontram vinculados à violência. Constituídas na percepção social como território da violência na cidade, as favelas são habitadas por uma população que precisa levar em conta em seu cotidiano, de um lado, esta designação que os abrange e que essencializa uma diferença em relação ao restante da população carioca e do território urbano, demarcando seu lugar na cidade e suas possibilidades de acesso aos bens de cidadania e às instituições e serviços públicos. De outro precisa considerar as diferentes modalidades de presença e atuação do crime violento e da polícia em seus locais de moradia. Ambas as dimensões constroem e reconstroem as fronteiras entre “asfalto” e favela no Rio de Janeiro como distintos territórios físicos e morais da cidade.

Como se houvesse na descrição desse campo de guerra que ordena a cidade um personagem que é percebido como “figura” ao mesmo tempo se minimiza ou se torna invisível a outra, seu contraponto, o “fundo”. Ora o Tráfico ora o Estado nessa reificação se apresentam como potências autorreferidas e autônomas. Esta ideologia do Estado e também a já antiga construção do Tráfico como o Inimigo da Sociedade, combatido pelo Estado, dominante na mídia e valorizada no plano político de intervenção na cidade, quer sempre apagar e silenciar as falas que denunciam o quanto cada uma dessas figuras, aparentemente unas, são produzidas de modo relacional. Vale dizer: encerram, de fato, uma multiplicidade de aspectos ainda que sejam vistas por intermédio de uma de suas faces momentaneamente mais visíveis em contextos particulares.

Talal Asad (2018ASAD, Talal. 2018. Secular Translations: Nation State, Modern Self, And Calculative Reason. New York, Columbia University Press.) nos sugeriu uma chave de leitura interessante sobre o exercício da vigilância e controle no espaço público. Ao invés de figura e fundo como sugerimos, para Asad, a noção de máscara se opõe à noção de self, conforme a herança de Marcel Mauss. A oposição entre máscara e self, diz Asad, foi fundamental para as ciências humanas e sociais instituírem saberes e tecnologias que permitiriam desvendar as máscaras para alcançar a verdadeira natureza do self, bem como pensar as diferenças entre os espaços públicos e privados. Máscaras e selfs seriam inseparáveis nos saberes e práticas relativos aos espaços sociais e seus modelos normativos. O exercício da vigilância e dos poderes securitários do Estado exige que se conheça as faces ocultas de cada um, donde a coerção do self, moldado em seus comportamentos públicos é a contraface da sua autenticidade fadada a ser vigiada: “o pensamento aqui é que a convenção coage um self real a se comportar inautenticamente.” (2018:102, tradução nossa). No entanto, a oposição entre máscara e self ou entre figura e fundo, como sugerimos, ainda é insuficiente na medida em que o seu emprego supõe duas faces contrapostas: face e contraface. Não seria mais adequado pensar em faces e contrafaces múltiplas que se alimentam reciprocamente? Não seriam as pessoas um composto de relações, cujas apresentações e desvelamentos ao mesmo tempo visíveis e invisíveis potencializam certas posições e formas de circulação de poder, por mais instáveis que sejam? Estamos sugerindo que tanto a figura do Estado, e seu par o Tráfico, podem se apresentar encarnadas por meio de um aspecto, deixando à sombra o que as fazem múltiplas e relacionadas em muitos níveis entre si.

Observemos, pois, que essa imagem de figura e fundo remete também à percepção de personagens múltiplos em um composto heterogêneo. Figuras múltiplas do Estado, que se encarnam em pessoas que trazem aspectos também variados como “fundo”, da mesma forma que os personagens do Tráfico são tão mais potentes quanto mais encerram neles mesmos vários “outros” que os compõem em suas performances variadas. Potências que se constroem e são constituídas por muitas forças “outras”, interligadas em um jogo contínuo de apagamento e desvelamento como práticas corriqueiras daqueles envolvidos nessas relações de poder.

SUELI E A RESISTÊNCIA COLETIVA

Sueli e seu ex-companheiro Douglas eram os moradores que tinham maiores vínculos com membros de movimentos sociais. Juntos, eles mobilizaram suas redes de confiança no esforço de construir algumas estratégias de denúncia para expulsar os “donos” do barracão. Foram semanas de encontros e discussões, algumas delas em que pudemos participar. Decidiu-se pela redação de uma carta-denúncia que seria enviada por e-mail de forma anônima. Vale mencionar as precauções que foram tomadas: Sueli, que permaneceu na Vila, escreveu a carta se fazendo passar por uma comerciante local. Um membro de um movimento social reconhecido forneceu a lista de endereços eletrônicos com os nomes de políticos, jornalistas, defensores públicos, policiais civis e federais que poderiam se aliar à causa da vila popular. Nós ficamos responsáveis por encontrar um computador público, criar uma conta de e-mail, enviar o texto redigido e destruir a lista de endereços eletrônicos na sequência. Trechos da carta enviada deixam claro os objetivos que queriam atingir:

Sou moradora e comerciante da região (suprimido) do Rio de Janeiro, nasci no subúrbio e aos 15 anos vim morar aqui em (suprimido) com meus pais que herdaram de meu avô um comércio e uma casinha na rua (suprimido) e desde essa época aqui vivo. Hoje tenho 54 anos e moro com um filho e neto. O que venho relatar aqui é o que foi feito dessa região nos últimos anos. Tenho saudade da época que podia andar pelas ruas, mesmo sujas, a qualquer hora, sem ver o que vejo agora. O que vejo agora são farrapos humanos e meninos comprando e vendendo drogas. Esses mesmos meninos traficantes são extremamente violentos, mas essa violência ultrapassa os limites e chega aos comerciantes locais, trabalhadores e moradores. Com a chegada da UPP tudo piorou muito, pois a polícia, que deveria defender a gente, defende os traficantes. Toda a região sabe que eles pegam o “arrego” com os meninos para deixarem eles trabalharem no asfalto. A cracolândia do bairro é uma feira a céu aberto. Eles gritam chamando o freguês para comprar as mercadorias (...). Como cidadã, acho impossível que as autoridades não saibam o que está acontecendo aqui. De um lado o Comando Militar, mais adiante a Sub Secretaria de Segurança, o Batalhão da Polícia Militar e ainda a UPP. Como eles não veem o que está ocorrendo? (...) O que vejo é quase um beco sem saída. Será que eu, meus amigos e vizinhos vamos acabar nossos dias acuados em casa, com medo de sair e morrer ou ser surrado e ultrajado pelos bandidos? Os comerciantes locais, os moradores e trabalhadores estão desorientados, mas uma coisa é certa, de alguma forma vamos fazer com que nos ouçam e nos vejam. O povo brasileiro já demonstrou que não é bobo. Nós que vivemos e ganhamos nosso pão aqui, construímos esse bairro e não vamos deixar acabarem com ele.

Rio de Janeiro, 25 de junho de 2013.

A indignação da personagem comerciante visava produzir um efeito de solidariedade sobre o Estado, os “homens de bem”, com ressonância sobre os outros destinatários possíveis. Não foi à toa que se construiu como emissor uma personagem, cuja cor implícita é branca, de classe média, membra de uma família tradicional de comerciantes, que estaria horrorizada com a cena dos “pequenos farrapos humanos vendendo e consumindo drogas” e também com “os bandidos” que ultrajavam a sociedade do “asfalto”. Foi uma tentativa cuja finalidade seria a de mobilizar a faixa social que compartilha a violência do Estado direcionada aos “bandidos”, acionando a Grande Clivagem essencializada entre Tráfico e Estado que tanto estigmatiza, eles, os moradores do barracão. Apesar do esforço de inversão identitária, não houve reação dos destinatários. A carta buscou jogar o jogo tal como ele supostamente estaria sendo jogado: a favor dos “homens e mulheres de bem”, incomodados pelos “sujos e perigosos”. Apelam para os poderes de polícia que servem aos “grandes”, contra “os pequenos farrapos humanos” que os perturbam. Em suma, apostaram que o Estado, como categoria unitária e de ação homogênea, defende a boa sociedade dos seus inimigos, consubstanciado no Tráfico, e tiveram a esperança - não chegaram a ter a convicção - que teriam alguma chance de serem atendidos desde que não mostrassem quem eram, aqueles aos quais o Estado não atenderia jamais, antes, acusaria como perniciosos inimigos pertencentes ao Tráfico.

Assim, o par que ordena a percepção e a gestão social e política dos habitantes das periferias, o Tráfico e o Estado, não facilita a compreensão das tramas relacionais no cotidiano que ocorriam de modo nada abstrato nem homogêneo, tampouco totalizante no interior/exterior da Vila. No primeiro caso em que recorreram à gerente, fizeram um caminho com muitas veredas, pelas sombras, acionando familiares e amigos de pessoas ligadas ao tráfico que poderiam lhes fazer chegar à dona sem que fossem denunciados e punidos por parte dos atores do estado que respondiam pelo processo de regularização fundiária. No segundo caso, inventaram uma identidade conservadora de classe média modesta para serem ouvidos pelo Estado sem serem punidos pelos donos do tráfico local. Participamos da construção dessa imagem da comerciante “de bem” que o Estado protegeria do Tráfico e da elaboração da denúncia. O emprego de subterfúgios para fazer chegar a carta aos seus destinatários sem que se descobrisse seus verdadeiros emissores indica, na sua forma ardilosa de proceder, o desejo que o Estado agisse como a figura que ostenta em suas performances públicas: prendesse os “bandidos” sujos e perturbadores que atentavam contra a paz dos “homens de bem”. Assim, desconsideramos o quanto justamente duvidávamos da homogeneidade e coerência desse par ideal. Afinal, os ardis empregados indicaram o quanto as experiências dos moradores os levavam a criar astúcias e manobras para obrigar o “lado” do Estado agir como alega que age como “inimigo” do Tráfico. Ficou muito claro para todos a indiferença da hierarquia policial e política em interferir para acalmar uma população na margem da pobreza, ainda que exterior às favelas.

POSIÇÕES VOLÁTEIS

As posições internas à Vila Clementina Maria de Jesus nunca se constituíram como se os moradores tivessem convencidos, mesmo depois da assinatura do termo que autorizaria o “usufruto do imóvel” por 99 anos, que esta conquista fosse estável. Nós, muito mais do que eles, acreditamos nisso. Faltou considerar que viver em um cotidiano precário, cercado de ameaças diversas, não permite conferir certezas ao mundo que os cerca, tampouco um solo firme para a estabilidade conforme os parâmetros que fixaram na história moderna o respeito à propriedade e seu caráter sagrado. Não seria razoável se verem como se fossem “proprietários” em um bairro de classe média.

Antes, as benesses alcançadas são sempre provisórias, já que a ordem vigente para as populações pobres tem como baliza o par Tráfico e Estado. Ameaças contínuas, tais como aquelas de perderem a casa, a confiança dos vizinhos, a relativa neutralidade do tráfico, a indiferença da polícia, a integridade corporal e a vida de si próprio e/ou dos familiares agem no cotidiano. Tráfico e Estado conformam as memórias e o fazer dos seus habitantes no presente, reiterando os limites do possível.

Vamos agora analisar o que compôs essa precariedade, particularmente por intermédio da posição de Cristina, Sueli e Mariana, das narrativas que nos chegaram de forma fragmentada e de situações nas quais participamos.

A RESPEITABILIDADE MORAL COMO CONSTITUTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E DE GUERRA

Cristina mudou-se para a Vila logo no seu início e três dos seus quatro filhos cresceram ali. Hoje, com mais de sessenta anos, ela mora com sua mãe doente e dedica o seu tempo basicamente aos cuidados que esta exige. Cristina carrega no presente as situações de conflito provocadas no momento em que os filhos adolescentes se vincularam ao tráfico local. Dois de seus filhos que trabalhavam para o tráfico de drogas foram ameaçados, presos e torturados ora pelo tráfico ora pela polícia. Um terceiro morreu pouco antes dela se mudar para o barracão. Ela descreve a sua morte como um assassinato cometido pelo seu próprio irmão. Cristina qualifica as suas relações de família como conflitivas, destrutivas e mesmo mortíferas. Quando Camila a conheceu, passou a apoiá-la ajudando-a em várias situações difíceis que incluíram o acompanhamento do cotidiano de cuidados de Cristina com sua mãe, os problemas causados pela relação de seus filhos com o tráfico e a polícia e os problemas vividos com seus vizinhos na Vila. Cristina descreve a si própria como uma mulher sozinha, batendo-se dia e noite contra as adversidades.

Sueli, mãe de quatro filhos, moradora da Vila desde os seus primórdios, também teve seus filhos envolvidos com o tráfico de drogas durante algum tempo. Eles fizeram parte do grupo de adolescentes que se formou com vários outros jovens ali dentro, dentre os quais Mariana e os filhos de Cristina. O filho mais velho de Sueli chegou a cumprir um ano de pena por tráfico de drogas, no período em que a Vila ainda era considerada autogestionária. Após a invasão pelo Tráfico, sua filha teve um breve namoro com um dos novos donos. Seus outros dois filhos homens, a contragosto dos pais militantes, se forjaram na igreja pentecostal na tentativa de se oporem às relações com o tráfico em que estavam inseridos seus irmãos.

As consequências para as mulheres-mães terem um filho no tráfico dependem das posições que estabeleceram junto aos demais moradores. Ter filhos no tráfico pesou na reputação dessas duas mulheres com consequências diferentes. Embora alvo de acusações, Sueli não ficou tão à mercê dos julgamentos morais como Cristina. Mulher negra, crítica do racismo e sempre disposta a reagir às discriminações, militante do movimento que construiu a Vila, universitária e antiga companheira de Douglas, com quem compartilhou a organização do barracão e o cuidado com os filhos, foi sempre vista como uma pessoa de respeito. O casal, embora vivesse separadamente, constituíra um par solidário e responsável pelos filhos. Guardava uma respeitabilidade que provinha em certa medida das relações externas que cultivara ao longo do tempo. Eram os dois quem detinham a maior rede de contatos com sindicatos, representações estudantis, defensoria pública, professores universitários, movimentos dos sem-terra e sem-teto e assim por diante. Ainda que os conflitos se passassem como se eles fossem “iguais” a todos, suas pessoas estavam integradas pelos elos com esses vários “outros” significativos nos pequenos jogos de poder na Vila. E, além do mais, Sueli marcou sua posição sobre a participação do seu filho no tráfico deixando claro a sua contrariedade recusando-se visitá-lo na prisão.

A posição do núcleo familiar de Sueli e Douglas dentro da Vila contrastava com aquele de Cristina e de outras mulheres moradoras do barracão. Comparando com Mariana, uma mulher jovem, Cristina não era estigmatizada e acusada com o rigor que a atingia: a falta de cuidado com os filhos, com a casa, a não colaboração com o barracão, de ser “puta”, entre outras acusações circulavam na Vila (ver: Fernandes, 2013FERNANDES, Adriana. 2013. Escuta Ocupação: arte do contornamento, viração e precariedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Fernandes, 2017FERNANDES, Camila. 2017. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Birman, 2015BIRMAN, Patrícia. 2015. “Ocupações: territórios em disputa, gêneros e a construção de espaços comuns”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE; Márcia P.; MACHADO, Carly; SÁ CARNEIRO, Sandra de. (org.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV, pp. 163-187.). A presença dos filhos traficantes na casa de Cristina diminuía a confiabilidade que os moradores atribuíam a ela além de ter propiciado atitudes ameaçadoras tanto do tráfico quanto da polícia a sua pessoa.

As diferenças relativas às mulheres em termos de responsabilidade pelos cuidados de si, dos filhos e dos outros saltam aos olhos. No início da Vila, as mulheres encarregavam-se da cozinha coletiva, obrigavam-se a limpar os banheiros de uso comum para proteger a si próprias e aos filhos, entre outros encargos. Sueli nos contou como foi difícil levar a vida em comum quando chegou na Vila. Dentre os problemas enfrentados no cotidiano e que recaia com maior peso sobre as mulheres estava o ciclo mensal de abastecimento, uso, dívida e pagamento da conta de água. O barracão tinha apenas um medidor que calculava todo o uso de água dos moradores. O valor total da conta de água era dividido igualmente entre as casas. Embora fosse um problema de longa duração e que marcava a história da Vila, este agravou-se com a presença do tráfico que passou a disputar esse bem vital, gerando ansiedades permanentes e incertezas generalizadas. Por fazerem da própria casa o lugar de trabalho, eram as mulheres quem lidavam com a desestabilização do cotidiano gerado pela ausência de água ou pelo abastecimento da região com água contaminada. Cabia, portanto, às mulheres resolver os conflitos em torno do pagamento da água que se enredavam a vários outros problemas.

Alguns moradores homens conseguiram se relacionar com esses donos neutralizando suas ameaças e assim obtendo acesso a um abastecimento de água que não era facilitado às mulheres que cobravam a água, nem aos demais moradores. Dentre eles se encontrava Silvio, o filho mais velho de Cristina que, além do mais, fazia esportes no Batalhão da Polícia Militar próximo à sua casa. O dono, nesse caso, era visto como uma pessoa cuja face mais visível no cotidiano era dada principalmente por sua condição masculina: entre homens podia-se falar de futebol e tomar uma cerveja eventualmente, além de se realizar pequenas trocas de favores. O poder de achaque, de vida e de morte que os donos detinham, assegurado pela delegacia próxima, era minimizado, a favor de seu comportamento generificado, velando o uso da força que fazia tendo a polícia das redondezas como um auxiliar importante. Desde a invasão do barracão pelo tráfico, os novos donos ocuparam algumas casas com suas companheiras, expulsando antigos moradores, em alguns casos, sem pagar pelo consumo da água utilizada por meio de performances mais ou menos ameaçadoras.

Dada a importância da água nos ritmos da vida cotidiana, as mulheres se responsabilizavam pela função de cobrar os moradores, pagar a conta e, assim garantir o abastecimento de água no barracão. Sueli trabalhou durante anos como cobradora de água. Atualmente é Mariana, a responsável por passar de casa em casa para receber o dinheiro da água. Mas parte do tempo em que a Vila ficou sob o domínio do tráfico, era Cristina quem exercia esta função. Embora controversa na Vila devido a seus posicionamentos assertivos, muitos moradores que evitavam qualquer contato com Cristina na vida cotidiana a apoiavam no trabalho de cobrar a água devido a sua história construída no barracão como mulher honesta. Foram anos na batalha por essa posição de honestidade, que não significa bondade e tampouco cordialidade, que esteve estremecida quando seu filho Rafael voltou a morar com ela e começou a trabalhar para o tráfico de drogas.

UM MOMENTO CRÍTICO

De surpresa, Rafael saiu do Espírito Santo para passar o Natal com Cristina, que não o via há 7 anos, desde que havia deixado a prisão por tráfico de drogas. Morando com a mãe, não demorou muito para que Rafael logo retomasse suas atividades no tráfico, dessa vez na porta de sua casa. A partir deste momento, muitos dos apoiadores de Cristina na Vila passaram a vê-la como uma possível ameaça por ser a mãe de um traficante.

Se posição de Rafael protegia Cristina das ameaças do dono e favorecia sua posição de cobradora da água, ao mesmo tempo ela enfraquecia a sua imagem de pessoa honesta e não conivente com o tráfico. Sua casa passou a ser visada por policiais militares. Como no trabalho de Rosa (2015ROSA, Thaís. 2015. “Da casa própria à casa manjada: dinâmicas socioespaciais e vulnerabilidades territorializadas nas periferias urbanas”. In: Anais, 39º Encontro Anual da ANPOCS, pp: 1-38. https://www.anpocs.com/index.php/papers-39-encontro/gt/gt34/9767-da-casa-propria-a-casa-manjada-dinamicas-socioespaciais-e-vulnerabilidades-territorializadas-nas-periferias-urbanas/file
https://www.anpocs.com/index.php/papers-...
) e Feltran (2011FELTRAN, Gabriel. 2011. “‘Trabalhadores’ e ‘bandidos’ na mesma família”. In: CABANES, Roger; GEORGES, Isabel; RIZEK, Cibele; TELLES, Vera. (org.). Saídas de Emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo: Boitempo Editorial, pp. 397-417.; 2020FELTRAN, Gabriel. 2020. Das Prisões às Periferias: coexistência de regimes normativos na ‘Era PCC’. Revista Brasileira de Execução Penal, v. 1: 45-71. http://rbepdepen.depen.gov.br/index.php/RBEP/article/view/dossie2
http://rbepdepen.depen.gov.br/index.php/...
), a polícia local mapeava qual casa arrombar e, com um homem jovem morando consigo, a casa de Cristina passou a ser alvo de operações policiais. Em uma das operações, os policiais militares bateram com força na sua porta. De roupas escuras e camufladas, armados com fuzis e toucas ninjas que impediam a identificação, os policiais queriam revistar os cômodos. Com o filho dormindo no quarto ao fundo e ela prevendo uma sessão de espancamentos, Cristina decidiu, em uma fração de segundos, fingir que se assustava para proteger Rafael. Mulher, branca e idosa, Cristina deu um grito, deixou propositalmente a toalha cair e ficou nua na frente dos jovens policiais militares. Jogando com as relações de raça, gênero e geração, sua estratégia funcionou. Os policiais ficaram constrangidos e deixaram sua casa, ao menos dessa vez.

Ocorre que as relações no interior do tráfico de drogas são voláteis e incertas. Em menos de um ano os donos que protegiam Rafael passaram a ameaçá-lo de morte. Vigiar o filho em suas relações com o tráfico ao mesmo tempo em que vigiava as ações dos policiais militares ganhou precedência sobre todo o mais no seu cotidiano. Em uma vigília do sono de Rafael, ela analisou sua agitação, seus pesadelos, as frases que falava enquanto dormia e concluiu: meu filho está correndo perigo.

Era dezembro de 2017, época do ano em que policiais civis e militares estouram pontos de vendas de drogas para conseguir dinheiro e aumentar o orçamento das festas de Natal e ano novo de suas famílias. Dessa vez, os policiais militares estouraram a boca-de-fumo onde trabalhava Rafael. Dele e de seu colega Carlos os policiais levaram cerca de 14 mil reais em dinheiro, substâncias ilícitas e armamento. Cada um dos rapazes ficou devendo 7 mil reais para o gerente responsável pela boca-de-fumo onde trabalhavam. Cristina soube do ocorrido quando Rafael retornou com seu amigo ferido. Durante a operação, os policiais espancaram o rosto de Carlos com o fuzil. Ao cuidar dos ferimentos no rosto do rapaz, Cristina soube que ambos trabalhariam para o tráfico sem receber até que a dívida fosse paga. Rafael tinha uma situação melhor, visto que morava com sua mãe e o dinheiro do trabalho ficava exclusivamente com ele. Já Carlos tinha como única fonte de renda o trabalho no ponto de venda de drogas e com o dinheiro sustentava sua mulher e o filho pequeno. O acolhimento de Cristina como “mãe” dissolveu, ainda que momentaneamente, a sua condição de “traficante” para aquela de “filho” sob cuidados e afeto no interior do espaço de intimidade da casa de Cristina.

Por meio das fofocas e rumores que circulavam no bairro, Cristina foi informada que o gerente do tráfico local desconfiava de Carlos e Rafael e insinuava que ambos mentiam quando atribuíam aos policiais militares a perda da mercadoria, do dinheiro e das armas. Os rumores também diziam que o dono local havia chamado o matador do tráfico para dar um corretivo em Rafael e Carlos. A informação que chegou até a casa de Cristina é que Rafael havia apanhado do matador do tráfico e que ele estava jurado de morte. Rafael fugiu. O dono ameaçou tomar a casa de Cristina para pagar a dívida do filho. Felizmente ela conseguiu desenrolar por meio de acordos (que todos sabiam, mas que nunca eram mencionados) entre certos moradores e os agentes do tráfico. O fato de ser mulher-idosa e os cuidados que dedicava à mãe ainda mais idosa e doente, ajudaram-na a resolver o conflito.

MORTE MATADA, MÃE E CRIANÇA ACUSADAS

“Eu acho que as crianças sabem muitas coisas sobre a morte e o morrer”.

Veena Das (2009 DAS, Veena. 2009. “Two plaits and a step in the world: a childhood remembered”. In: KARLEKAR, Malavika; MOOKERJEE, Rugrashu. (eds.) Remembered childhood: essays in honour of André Béteille. Delhi, Oxford University Press, pp. 196-209. )

Homem branco, solteiro, de poucos amigos. Josué era um dos moradores mais antigos da Vila. Chegou no barracão por intermédio dos apoiadores e militantes no momento em que estes buscavam nas ruas do Rio de Janeiro pessoas para morarem no barracão. Da experiência das ruas, seu corpo trazia as marcas das agressões que havia vivido e que resultara no seu apelido: Queimado. Camila teve poucas experiências na companhia de Josué. Algumas das experiências foram nas idas aos órgãos do estado quando, junto aos moradores mais aguerridos, tentava-se denunciar a ação do tráfico na Vila ou quando se empenhavam para conseguir verba pública para a reforma estrutural do barracão. A notícia de sua morte nos chegou por meio da seguinte mensagem de celular, enviada por Cristina:

Por volta de 1:50 da madrugada mataram o Josué a pauladas. Graças a Deus eu não acordei. Dizem que foi horrível. Levaram o corpo dele em um triciclo. Dizem que ele tirou o pinto pra garota de 7 anos. Bem, têm várias reclamações sobre ele das meninas daqui do barracão. A Joana e outras meninas tinham medo dele. Hoje aqui está estranho. Dizem que fecharam a rua, a polícia saiu e não deixaram passar nem um carro ou moto.

Em uma madrugada de março de 2018, Josué voltava do trabalho quando foi surpreendido pelos traficantes locais. Acusado de mostrar o pinto e bater uma punheta para uma criança de sete anos de idade, os agentes do tráfico cercaram Josué e o espancaram até a morte, com o uso de tacos de madeira. Embora fosse madrugada, nas ruas do centro do Rio de Janeiro há sempre trabalhadores, prostitutas, imigrantes, boêmios, pastores, moradores de rua e também policiais militares. Como esse caso se configurou como um crime particularmente sujeito à punição - um caso de abuso sexual infantil, portanto, pedofilia - a morte por espancamento foi o castigo. O espancamento, então, se deu de forma pública, na rua, em frente ao barracão, com a presença da mãe, que acusava Josué, e da criança que teria sido abusada. Por não aguentar o que presenciava, a mãe da criança desmaiou. O corpo de Josué foi levado para um hospital público próximo por meio de um triciclo. O uso de carrinhos de mão, triciclos ou carrinhos de lixo para a remoção de corpos faz parte do repertório das condutas de policiais e traficantes que, muitas vezes, provocam indignação e revolta em moradores de periferia.

Outras mensagens chegaram de forma fragmentada: dizem que ele estava batendo punheta e chamando a garota de 7 anos; a Laura [mãe da criança] desmaiou lá; Deus nos proteja de nunca vermos isso; aqui não se fala em outra coisa. Nesse “não se falar outra coisa”, além de discutirem sobre a crueldade do que havia acontecido com Josué, os moradores se dividiam entre aqueles que achavam possível que Josué tivesse molestado a criança e outros que acreditavam que os traficantes locais usaram a criança como desculpa para eliminar Josué e ficarem com sua casa. O fato é que nunca foi comprovado que Josué assediou a criança. Seu caso desapareceu com a sua morte. Mas não passou em branco. Foi um acontecimento que reorganizou algumas dinâmicas relacionais ali dentro. Um compartilhamento coletivo do poder de morte do dono local foi amparado pela presença, desta vez, amplamente visível, da polícia militar que, ao invés de impedir as pauladas, facilitou-as, ao interromper o tráfego na rua até a morte física de Josué ser consumada.

O corpo de Josué foi deixado em frente a um hospital próximo e de lá foi levado ao Instituto Médico Legal (IML). Os poucos amigos que Josué tinha no barracão procuravam uma maneira de enterrá-lo. Para se exercer esse suposto direito de enterrar um corpo se apresentou um obstáculo difícil de ser resolvido no âmbito de amigos e vizinhos próximos. Ir ao IML e reconhecer o corpo implicaria em se tornar testemunha de um assassinato cometido pelo tráfico, visto que o ato de reconhecimento em circunstâncias criminais implica em responder um conjunto de questões relativas ao inquérito policial. Além disso, havia as ameaças reais feitas pelo dono local que alertava os moradores a não irem ao hospital pois, quem fosse reconhecer o corpo ia aguentar as consequências depois. Nenhum dos seus amigos foi reconhecê-lo no hospital ou no IML, embora desejassem fazê-lo, por medo das ameaças. Ocorre que, sem o reconhecimento do corpo, a regra comum é que os corpos “não identificados” (Ferreira, 2015FERREIRA, Letícia. 2015. Pessoas desaparecidas: uma etnografia para muitas ausências. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.) sejam enterrados como indigentes, o que indignou seus amigos e conhecidos. O reconhecimento foi vivido como uma condição a ser cumprida para recuperar a humanidade de Josué mediante seu enterro como pessoa identificada. Mariana, então, contatou um antigo apoiador da Vila, militante ativo na causa dos direitos humanos, que concordou ir identificar o corpo de Josué. Ele pôde responder às perguntas solicitadas: ele não era, de fato, testemunha ocular, não estava presente, não tinha muito o que falar. Além disso, ele não poderia ser confundido com um morador do barracão. Para o alívio de Mariana e outros amigos, o militante conseguiu a liberação do corpo e Josué foi enterrado em um dos cemitérios públicos da cidade (ver: Medeiros, 2016MEDEIROS, Flávia. 2016. Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Niterói, EdUFF.; Azevedo, 2019AZEVEDO, Desrirée. 2019. “Os mortos não pesam todos o mesmo. Uma reflexão sobre atribuição de identidade política às ossadas da Vala de Perus”. Papeles del CEIC. V. 2: 1-20. https://ojs.ehu.eus/index.php/papelesCEIC/article/view/20389
https://ojs.ehu.eus/index.php/papelesCEI...
).

Nos dias seguintes à morte de Josué, sua casa foi invadida pelo gerente local que o atribuiu a uma nova família. O fato da casa ter sido rapidamente ocupada por uma família intermediada pelo tráfico gerava mais desconfianças no interior das redes de fofocas, rumores, vigilâncias formadas pelos moradores e vizinhos no barracão. Essa ação fez com que mais moradores passassem a duvidar da narrativa que acusava Josué de molestar a criança. Conforme os meses se passavam, a acusação de abuso sexual se enfraquecia enquanto uma outra narrativa se cristalizava: a de que o abuso sexual teria sido uma estratégia dos donos locais para matar Josué e se apossarem de uma nova casa. Porém, junto a essa, foram surgindo outras pessoas responsabilizadas pelo ocorrido: a criança e sua mãe.

Em uma conversa que presenciamos sobre o assassinato de Josué foi partilhada a ideia de que sua morte tinha sido uma injustiça. O novo consenso que atribuía à criança e sua mãe a responsabilidade pelo ocorrido vinha por meio de alguns comentários: ela (a criança) mentiu pro tráfico de propósito; ela (a criança) ficava só de calcinha na rua mesmo; ela (a mãe) não estava nem aí pra menina, dá nisso. E quem pagou foi Josué! Tadeu pediu para explicar seu raciocínio e assim argumentou: ele próprio, um homem, jovem e negro, vivia sozinho na Vila, por isso sua casa também poderia ser alvo fácil de disputa: quem contestaria sua morte? Em uma das vezes que voltava do trabalho, ele se deparou com a criança na porta de sua casa. Prevendo que uma acusação recaísse sobre si, caso ele abrisse a porta de sua casa e a criança entrasse nela, afinal criança mente, Tadeu ligou para Mariana e pediu ajuda: imagina se eu abro a porta e essa criança entra dentro da minha casa, como eu vou explicar isso? A menina de 7 anos também passou a ser evitada pelas mães moradoras do barracão que a excluíam das brincadeiras com outras crianças e interditavam a sua entrada nas casas. Mariana, mulher que assegurou o enterro de Josué, explicou: essa menina é perigosa, não quero minha filha com ela não. Depois de questionarmos essa afirmação, dizendo que a tal “menina” era apenas uma criança, Mariana foi assertiva em colocar: eu aprendi desde cedo que não é a cegonha que traz o bebê pra gente não. Desde meus 5 anos de idade eu sei como se faz filho e crio minha filha sabendo como se vestir, como sentar.

A exigência de Mariana em relação a sua filha que desde muito cedo tem que aprender a “como se sentar” indica uma fala posicionada e relacionada às circunstâncias. As mulheres podem colocar os homens “em perigo”. Permitiu, no caso, uma confusão entre um trabalhador (Josué) com um estuprador e assim possibilitaram os “donos” e os senhores da guerra matarem um antigo morador da Vila. Sob o prisma das mulheres, elas se encontram situadas no meio da Grande Clivagem que separa policiais e bandidos na guerra que as submetem. Deste lugar, a respeitabilidade que conseguem deter as protege de ameaçar um “lado” da guerra, e virarem por sua vez um de seus destroços. As relações de gênero são assim constitutivas das relações de guerra. No plano dos valores morais compartilhados, as mulheres a princípio não devem ter “lado”. O lugar “entre” esses dois polos, embora irreal, é um recurso necessário para as práticas astuciosas e manobras de contornamento que buscam garantir a vida sob risco e também, como vimos, uma certa respeitabilidade9 9 Cf. As análises de Machado e Leite (2008) e outros sobre as narrativas dos moradores que vivem ao mesmo tempo sob esse duplo modo de subordinação construído por intermédio do dispositivo de combate à “violência”. .

A morte de Josué e a forma com que se consolidou o consenso sobre esta morte fez com que o “evento crítico” (Das, 1995DAS, Veena. 1995. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. Oxford, Oxford University Press.) fosse habitado pelos moradores da Vila nos termos reconhecidos como possíveis. Era, de fato, difícil colocar o vizinho Josué em contiguidade com aqueles o mataram de forma cruel, ou seja, sustentando que ele teria realizado um crime de pedofilia, portanto, uma “monstruosidade” (Lowenkron, 2015LOWENKRON, Laura. 2015. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Rio de Janeiro, EDUERJ.). Assim, as acusações morais sobre os corpos femininos que atribuíam à díade mãe-filha a “culpa” pelo assassinato permitiram a reconstrução da “honra” masculina de Josué e, enfim, a reconstrução da ordem estabelecida (ver: Das, 2008DAS, Veena. 2008. “Violence, Gender and Subjectivity”, Annual Review of Anthropology . V. 37: 283-299. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.36.081406.094430
https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.3...
). Este evento crítico, ao ser reabitado por meio da culpa e do perigo feminino, se apagou da superfície das conversas cotidianas. Mas ele existe na memória dos que viveram este evento. Seus gestos, hoje, continuam a construir as relações com o cuidado, com a morte e a tortura. As delicadas relações que as mulheres são encarregadas de gerir não serão abandonadas, bem como a vigilância e o controle de cada um dos seus passos. Uma dinâmica constante de acusações e solidariedades contribuem para garantir o equilíbrio precário no qual a respeitabilidade como valor em exposição sempre participa.

GUERRA SEM FIM: APONTAMENTOS FINAIS

Em sua discussão sobre violência e sofrimento social, Veena Das (2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and The Descent Into The Ordinary. Los Angeles, University of California Press.) analisa como dois dos grandes eventos que marcaram a história indiana - a Partição entre Índia e Paquistão (1947) e os tumultos decorrentes do assassinato de Indira Gandhi (1984) - se infiltraram na vida cotidiana das famílias. No trabalho de campo com aqueles que viveram a experiência da Partição, Das analisa como este evento se faz no presente, não só por meio da memória, mas em conexão intima e lenta com os processos de fazer família. No segundo caso, Das se depara no trabalho de campo com a rápida violência dos eventos e com a potência dos minúsculos gestos feitos pelas mulheres para refazer a vida após o assassinato de seus filhos e maridos. Analisamos aqui alguns gestos de grande potência em meio aos cuidados do cotidiano: a toalha de Cristina que cai, a argúcia de Sueli para elaborar uma carta se distanciando dos estigmas sobre os favelados, o esforço de Mariana para enterrar Josué, e finalmente uma situação limite em que a potência destruidora da guerra faz dos gestos de uma criança uma perigosa ameaça do poder que teria uma sexualidade não conforme às próprias mulheres, sujeitas às relações de gênero conformadas às relações de guerra.

Por mais que saibamos dos limites das experiências que conhecemos envolvendo o Tráfico e o Estado em favelas é difícil compreender o seu caráter pervasivo. Foi um choque para Camila se deparar com o que não era diretamente mencionado sobre as crianças e suas experiências com a morte. Quatorze crianças levantaram a mão quando perguntadas se elas conheciam alguém que havia morrido ou desaparecido no último mês na favela em que residiam. O choque de Camila foi, na verdade, perceber que crianças que alegremente queriam assistir a um filme em um centro cultural da favela de Acari, no ano de 2012, já carregavam repetidas e cotidianas experiências de morte e desaparecimento indicadas pelo gesto de levantar a mão10 10 Em 2020 a “Chacina de Acari” completou 30 anos sem resolução. As mães e irmãs continuam a busca pelos 11 jovens desaparecidos, cujos acusados pelo crime são policiais militares, membros de um grupo de extermínio. . Ao conviver com os adultos de hoje nesse e em outros territórios periféricos nem sempre somos capazes de considerar como crianças e adultos construíram um consenso compartilhado, como sugere Oliveira (2000), sobre modos de agir e pensar levando em conta as figuras reais e heterogêneas do grande par, sempre referido, Tráfico e Estado.

Embora a preocupação de Das seja a de compreender a continuidade desses eventos na vida cotidiana, há uma natureza diferente dos eventos que analisamos neste texto. A Partição e os tumultos tiveram “oficialmente” um início e um fim, enquanto a guerra no Rio de Janeiro ganhou a condição de um modo de existência e de convivência de diferentes populações territorializadas, racializadas e generificadas na cidade. Apesar do desespero que provoca e da resistência ativa a assimilá-la como o estreito horizonte do possível, as configurações políticas hegemônicas não assinalam o seu fim! Esta guerra já dura quarenta anos e não há nenhum indicativo de que ela irá terminar, ao contrário, a guerra é produzida como um solo permanente. Uma “guerra sem fim” (Mbembe, 2003MBEMBE, Achille. 2003. “Necropolitics”. Public Culture, v. 15, n. 1: 11-40. https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11
https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11...
), vivida como memória que se infiltra nas relações de família e vizinhança, ao mesmo tempo em que é atualizada diariamente por meio do controle de corpos e territórios e do poder de agredir, ameaçar e matar. Uma guerra que está no cotidiano como passado tecido na intimidade das relações e como um presente sempre atualizado, no qual as famílias e, destacamos a particularidade das mulheres que são forçosamente enredadas às relações de poder que incluem os atores tráfico de drogas e do estado. A armadura temporal da guerra é vivida ao mesmo tempo como passado, como presente e como projeção do futuro. Embora diferentes, as análises de Veena Das em ambos os eventos nos ajudam a refletir sobre os efeitos generificados que a Grande Clivagem produz na vida cotidiana das famílias que habitam as periferias do Rio de Janeiro. Nessa gestão da vida em guerra são os homens, jovens e negros os que seriam passiveis de matar e morrer e são as mulheres mães/irmãs/esposas, majoritariamente negras, quem têm que lidar com o cotidiano do sofrimento, com os modos de refazer suas vidas e, muitas vezes, com a responsabilidade de reconstrução da vida daqueles que estão a sua volta. Por isso, gostaríamos de também destacar a agência feminina nas ações que descrevemos acima e a potência dos seus gestos na manutenção da vida compartilhada que é cotidianamente destroçada por essa guerra infinita. Sueli, que escreve uma carta e mobiliza sua ampla rede de militância na tentativa de retirar o tráfico da Vila e impedir que seu cotidiano se transforme em um controle territorial marcado por mortes rotineiras. Sueli, que busca rejeitar qualquer “lado” que lhe oferecem no campo das batalhas correntes, ao gerir suas relações próximas deixando claro para filhos e vizinhos sua posição quando se recusou a visitar um filho preso por tráfico de drogas reafirmando também sua trajetória como militante de movimentos por moradia. Cristina, com todas as suas forças e com artimanhas das mais sutis, assegurou a vida de seu filho frente ao tráfico e à polícia que o ameaçara e mantém-se no governo coletivo da Vila. O minúsculo gesto de deixar a toalha cair para proteger o filho ou acolher maternalmente um jovem traficante agredido por policiais nos mostra os elos de afeto e solidariedade que essa guerra provoca. Mariana reconstituiu a humanidade de seu amigo Josué ao viabilizar seu enterro, enfrentando de forma silenciosa os poderes do tráfico e do estado. Todas essas mulheres, em algum momento da história da Vila, garantiram a vida em comum ao batalharem pela manutenção do abastecimento de água no barracão. Longe de construir essas mulheres como “heroínas”, nossa tentativa foi a de visibilizar e valorizar a potência dos minúsculos gestos que garantiram e teceram a reconstrução da vida diante de situações que destroçaram as relações, e que podem se repetir no presente. Para finalizar, gostaríamos de pontuar a natureza concreta das ameaças, agressões físicas e mortes que ocorreram no cotidiano e seu compartilhamento entre adultos e crianças. No plano das discussões mais amplas, as mortes por arma de fogo viram debate político porque são, de fato, majoritárias. Contudo, ao olharmos para ameaças, agressões físicas e mortes que registramos, estas são muito próximas e atingem visceralmente os corpos dos que as assistem. Matar por espancamento tem uma natureza e proximidade diferente daquela de dar tiros com uma certa distância, até mesmo de um helicóptero, por exemplo, como se passou a fazer no Rio de Janeiro mais recentemente11 11 Embora operações com o uso de helicópteros militares e atiradores de elite já ocorressem na cidade, o então governador do estado do Rio de Janeiro tem autorizado publicamente os assassinatos cometidos por agentes de estado. Lembremos da célebre frase de Wilson Witzel: “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”, pronunciada em novembro de 2018, logo após sua eleição. Em outro episódio, ocorrido em maio de 2019, o governador estava dentro de um helicóptero militar e autorizou tiros contra um suposto “acampamento de bandidos”. Contudo, o alvo era uma tenda utilizada por religiosos. Em decorrência da luta de moradores de favelas e periferias, o Supremo Tribunal Federal aprovou em agosto de 2020 uma liminar que limita o uso de helicópteros em operações militares. . A proximidade carnal da produção da morte por tortura, os sons emitidos por gritos e pedidos por socorro fazem parte de um conhecimento compartilhado entre moradores de periferia, habitam suas subjetividades e envolvem todos os sentidos corporais. São essas mortes que se embebem nas relações cotidianas, nas subjetividades e moralidades e nas formas de governar a vida. E não excluem as crianças. Por isso, consideramos importante compreender melhor como as mortes sob tortura e em continuidade com maus tratos físicos e morais modelam a vida, generificam seus aspectos mais íntimos e forjam os sentidos subjetivos da guerra como uma experiência de proximidade com o par Tráfico/Estado que a conduz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ABRAMS, Philip. 2006. “Notes on the Difficulty of Studying the State”. In: SHARMA, Aradhana & GUPTA, Akhil. (ed.). The Anthropology of the state: a reader Malden, Blackwell Publishing, pp. 112-130.
  • ARAÚJO, Fábio. 2014. Das ‘técnicas’ de fazer desaparecer corpos Rio de Janeiro, Lamparina.
  • ARAUJO, Marcella. 2017. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos, no Rio de Janeiro Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • ASAD, Talal. 2018. Secular Translations: Nation State, Modern Self, And Calculative Reason New York, Columbia University Press.
  • AZEVEDO, Desrirée. 2019. “Os mortos não pesam todos o mesmo. Uma reflexão sobre atribuição de identidade política às ossadas da Vala de Perus”. Papeles del CEIC V. 2: 1-20. https://ojs.ehu.eus/index.php/papelesCEIC/article/view/20389
    » https://ojs.ehu.eus/index.php/papelesCEIC/article/view/20389
  • BIRMAN, Patrícia. 2015. “Ocupações: territórios em disputa, gêneros e a construção de espaços comuns”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE; Márcia P.; MACHADO, Carly; SÁ CARNEIRO, Sandra de. (org.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências Rio de Janeiro, Editora FGV, pp. 163-187.
  • BIRMAN, Patrícia; FERNANDES, Adriana; PIEROBON, Camila. 2014. “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares. Mana - estudos de Antropologia Social , v. 20 , n. 3: 430-461. https://doi.org/10.1590/S0104-93132014000300001
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132014000300001
  • BIRMAN, Patrícia; LEITE, Márcia Pereira. 2018. “Rio e São Paulo: categorias emaranhadas e relativização dos seus sentidos nos estudos sobre (as chamadas) periferias”. In: BARROS, Joana; COSTA, André da; RIZEK, Cibele. (org.). Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios São Carlos, IAU/USP, pp. 27-40.
  • CARSTEN, Janet. 2007. Ghosts of Memories: Essays on Remembrance And Relatedness Malden, Blackwell Publishing .
  • CHO, Grace. 2008. Haunting the Korean Diaspora: Shame, Secrecy and The Forgotten War Minneapolis/London, University of Minnesota Press.
  • COUTINHO, Bruno. 2018. Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”: uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • DAS, Veena. 1995. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India Oxford, Oxford University Press.
  • DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and The Descent Into The Ordinary Los Angeles, University of California Press.
  • DAS, Veena. 2008. “Violence, Gender and Subjectivity”, Annual Review of Anthropology . V. 37: 283-299. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.36.081406.094430
    » https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.36.081406.094430
  • DAS, Veena. 2009. “Two plaits and a step in the world: a childhood remembered”. In: KARLEKAR, Malavika; MOOKERJEE, Rugrashu. (eds.) Remembered childhood: essays in honour of André Béteille Delhi, Oxford University Press, pp. 196-209.
  • DAS, Veena; POOLE, Deborah. 2004. “State and its margins: Comparative ethnographies”. In: DAS, Veena & POOLE, Deborah (eds.) Anthropology in the Margins of the State Santa Fe, School of American Research Press, pp. 3-34.
  • EFREM-FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território Campinas, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas.
  • FARIAS, Juliana. 2015. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. 2015. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico Rio de Janeiro, Mórula.
  • FELTRAN, Gabriel. 2011. “‘Trabalhadores’ e ‘bandidos’ na mesma família”. In: CABANES, Roger; GEORGES, Isabel; RIZEK, Cibele; TELLES, Vera. (org.). Saídas de Emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo São Paulo: Boitempo Editorial, pp. 397-417.
  • FELTRAN, Gabriel. 2020. Das Prisões às Periferias: coexistência de regimes normativos na ‘Era PCC’. Revista Brasileira de Execução Penal, v. 1: 45-71. http://rbepdepen.depen.gov.br/index.php/RBEP/article/view/dossie2
    » http://rbepdepen.depen.gov.br/index.php/RBEP/article/view/dossie2
  • FERNANDES, Adriana. 2013. Escuta Ocupação: arte do contornamento, viração e precariedade no Rio de Janeiro Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • FERNANDES, Camila. 2017. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • FERREIRA, Letícia. 2015. Pessoas desaparecidas: uma etnografia para muitas ausências Rio de Janeiro, Editora UFRJ.
  • GUTERRES, Anelise. 2014. A resiliência enquanto experiência de dignidade: antropologia das práticas políticas em um cotidiano de lutas e contestações junto a moradoras ameaçadas de remoção nas cidades sede da Copa do Mundo 2014 (Porto Alegre, RS e Rio de Janeiro, RJ/ Brasil). Porto Alegre, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • HAN, Clara. 2012. Life in Debt: times of care and violence in neoliberal Chile Berkeley, University of California Press.
  • HIRATA, Daniel; GRILLO, Carolina. 2017. “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: Perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social V. 29, n. 2: 75-98. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.125494
    » https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.125494
  • ISP, Instituto de Segurança Pública. 2020. “Séries históricas anuais de taxa de letalidade violenta no estado do Rio de Janeiro e grandes regiões”. http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf
    » http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf
  • LACERDA, Paula Mendes. 2015. Meninos de Altamira: violência, “luta” política e administração pública Rio de Janeiro, Garamond.
  • LEITE, Márcia Pereira. 2012. “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública V. 6, n. 2: 374-389. http://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/126/123
    » http://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/126/123
  • LEITE, Márcia Pereira. 2008. “Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: percepções e formas de ação de moradores de favelas cariocas”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Nova Fronteira, pp. 115-143.
  • LEITE, Márcia Pereira. 2004. “As mães em movimento”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE, Márcia Pereira. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz Porto Alegre, Editora da UFRGS, pp.141-190.
  • LEITE, Márcia Pereira; ROCHA, Lia de Mattos; FARIAS, Juliana; CARVALHO, Monique. (org.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção Rio de Janeiro, Mórula .
  • LOBO, Heloísa. 2015. Processos de remoções e seus desdobramentos: tramas e percursos em busca de uma casa Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • LOWENKRON, Laura. 2015. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos Rio de Janeiro, EDUERJ.
  • MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio, Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Nova Fronteira .
  • MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; LEITE, Márcia Pereira. 2008. “Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas?”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Nova Fronteira , pp. 47-76.
  • MAGALHÃES, Alexandre. 2013. Transformações no “problema favela” e a reatualização da remoção no Rio de Janeiro Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • MATTOS, Rômulo. 2014. “A ocupação policial do morro da Favela no contexto do 1° Centenário da Independência e o discurso sobre José da Barra (o ‘chefe de polícia’ da localidade)”. In: ANAIS, XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400295307_ARQUIVO_RomuloMattos2014.pdf
    » http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400295307_ARQUIVO_RomuloMattos2014.pdf
  • MBEMBE, Achille. 2003. “Necropolitics”. Public Culture, v. 15, n. 1: 11-40. https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11
    » https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11
  • MEDEIROS, Flávia. 2016. Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro Niterói, EdUFF.
  • MENEZES, Palloma. 2016. Entre o ‘fogo cruzado’ e o ‘campo minado’: uma etnografia do processo de ‘pacificação’ de favelas cariocas Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • MUEHLMANN, Shaylih. 2018. “The gender of the war on drugs”. Annual Review of Anthropology, v. 47: 315-330. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102317-050214
    » https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102317-050214
  • PACHECO DE OLIVEIRA, João. 2000. “Sobre índios, macacos e peixes: narrativas e memórias da intolerância na Amazônia contemporânea”. Etnográfica, vol. IV, n. 2: 285-310. http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_285-310.pdf
    » http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_285-310.pdf
  • PIEROBON, Camila. 2018. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Cristina e sua ética de combate Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • ROSA, Thaís. 2015. “Da casa própria à casa manjada: dinâmicas socioespaciais e vulnerabilidades territorializadas nas periferias urbanas”. In: Anais, 39º Encontro Anual da ANPOCS, pp: 1-38. https://www.anpocs.com/index.php/papers-39-encontro/gt/gt34/9767-da-casa-propria-a-casa-manjada-dinamicas-socioespaciais-e-vulnerabilidades-territorializadas-nas-periferias-urbanas/file
    » https://www.anpocs.com/index.php/papers-39-encontro/gt/gt34/9767-da-casa-propria-a-casa-manjada-dinamicas-socioespaciais-e-vulnerabilidades-territorializadas-nas-periferias-urbanas/file
  • SOUZA LIMA, Antônio Carlos; DIAS, Caio Gonçalves. 2020. “Anthropology and the State in Brazil: questions concerning a complex relationship”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 17: 1-21. http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412020v17d454
    » http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412020v17d454
  • TELLES, Vera. 2019. “Figurações da ‘guerra urbana’: perspectivas Rio de Janeiro-São Paulo”. Novos Estudos CEBRAP, v. 38, n.3: 521-527. http://dx.doi.org/10.25091/s01013300201900030001
    » http://dx.doi.org/10.25091/s01013300201900030001
  • VIANNA, Adriana. 2015. “Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE; Márcia Pereira; MACHADO, Carly; SÁ CARNEIRO, Sandra de. (orgs.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências Rio de Janeiro, Editora FGV , pp. 405-418.
  • VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”, Cadernos Pagu , v. 37, n.1: 79-116. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200004
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200004
  • VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. 2017. “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagem”. Cadernos Pagu, v. 51, n. 1: e175101. https://doi.org/10.1590/18094449201700510001
    » https://doi.org/10.1590/18094449201700510001
  • 1
    Agradecemos a leitura e comentários valiosos de Márcia Pereira Leite, dos membros do grupo de pesquisa “Distúrbio: dispositivos, tramas urbanas, ordens e resistências”, dos membros grupo de trabalho coordenado por Gabriel Feltran, dos membros do Programa Internacional de Pós-Doutorado do CEBRAP e, por fim, agradecemos os pareceristas deste texto. Agradecemos também apoio do CNPq, da FAPERJ no âmbito do projeto: “A gestão da pobreza e seus gêneros: políticas públicas, emaranhados e apropriações no Rio de Janeiro”, e da FAPESP (processo: 2018/15928-2), projeto intitulado: “Interstícios: entre a violência masculina do estado, do tráfico de drogas e da família, um corpo de mulher”.
  • 2
    Os termos em itálico são aqueles utilizados com frequência por nossos interlocutores ou falas específicas das pessoas com quem mantivemos contato durante a pesquisa; os termos entre aspas são aqueles utilizados nos documentos oficiais e também problematizações ou ainda citações de textos e conceitos, estes acompanhados da referência bibliográfica.
  • 3
    Márcia Pereira Leite (2004LEITE, Márcia Pereira. 2004. “As mães em movimento”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE, Márcia Pereira. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, Editora da UFRGS, pp.141-190.) fez uma discussão pioneira no Brasil sobre o tema da “violência urbana”, quando ela trouxe para o primeiro plano a figura das mães que lutam por “justiça” pelo filho que foi assassinado. Para a autora, a “mãe” e seu sofrimento em busca de justiça se relaciona com a tradição cristã em referência à Maria, mãe de Jesus, que ofereceu seu filho em sacrifício. Na esteira do trabalho de Leite, várias pesquisas têm trazido as experiências das mulheres que buscam justiça pelos filhos assassinados (Vianna, 2015VIANNA, Adriana. 2015. “Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE; Márcia Pereira; MACHADO, Carly; SÁ CARNEIRO, Sandra de. (orgs.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV , pp. 405-418.; Vianna e Farias, 2011VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”, Cadernos Pagu , v. 37, n.1: 79-116. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200004
    https://doi.org/10.1590/S0104-8333201100...
    ; Araújo, 2014ARAÚJO, Fábio. 2014. Das ‘técnicas’ de fazer desaparecer corpos. Rio de Janeiro, Lamparina.; Lacerda, 2015LACERDA, Paula Mendes. 2015. Meninos de Altamira: violência, “luta” política e administração pública. Rio de Janeiro, Garamond.; Farias, 2015FARIAS, Juliana. 2015. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Destacamos os trabalhos de Adriana Vianna (Vianna, 2015VIANNA, Adriana. 2015. “Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE; Márcia Pereira; MACHADO, Carly; SÁ CARNEIRO, Sandra de. (orgs.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV , pp. 405-418.; Vianna e Farias, 2011VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”, Cadernos Pagu , v. 37, n.1: 79-116. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200004
    https://doi.org/10.1590/S0104-8333201100...
    ; Vianna e Lowenkron, 2017VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. 2017. “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagem”. Cadernos Pagu, v. 51, n. 1: e175101. https://doi.org/10.1590/18094449201700510001
    https://doi.org/10.1590/1809444920170051...
    ) quando a autora discute como as gramáticas de gênero que se corporificam na díade “mãe-filho”. Para a autora, as “mães” se contrapõem - como sujeito político, moral e afetivo - ao “Estado que mata”, em uma batalha que é atravessada por representações e relações de gênero. Ao mesmo tempo, essa figura “mãe-filho” oblitera outras conexões familiares e não-familiares que estão presentes nessas relações, algo que valorizamos neste texto. Destacamos também a resenha crítica de Shaylih Muehmann (2018MUEHLMANN, Shaylih. 2018. “The gender of the war on drugs”. Annual Review of Anthropology, v. 47: 315-330. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102317-050214
    https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-1...
    ) sobre relações de gênero na guerra às drogas.
  • 4
    Para o emprego da noção de guerra em relação à violência no Rio de Janeiro ver, em primeiro lugar, o trabalho de Márcia Leite sobre a “metáfora da guerra” (2012). Destacamos duas coletâneas, fundamentais para o entendimento do problema da violência urbana no Rio de Janeiro. A primeira, “Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro” organizada por Luiz Antônio Machado da Silva (2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; LEITE, Márcia Pereira. 2008. “Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas?”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira , pp. 47-76.). A segunda, organizada por Márcia Leite, Lia Rocha, Juliana Farias e Monique Carvalho (2018LEITE, Márcia Pereira; ROCHA, Lia de Mattos; FARIAS, Juliana; CARVALHO, Monique. (org.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro, Mórula .), “Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção”.
  • 5
    Quando utilizamos o termo “Estado” em letra maiúscula, estaremos nos referindo à ideia de Abrams (2006ABRAMS, Philip. 2006. “Notes on the Difficulty of Studying the State”. In: SHARMA, Aradhana & GUPTA, Akhil. (ed.). The Anthropology of the state: a reader. Malden, Blackwell Publishing, pp. 112-130.) que difere o “Estado ideia” do “Estado prática”. O “Estado ideia” trata dos processos de abstração, na qual o Estado aparece como unidade coesa de sentido. Por outro lado, “Estado prática” nos permite olhar para as agências do estado na vida social. Em um sentido que dialoga ao proposto por Abrams, temos Das e Poole (2004DAS, Veena; POOLE, Deborah. 2004. “State and its margins: Comparative ethnographies”. In: DAS, Veena & POOLE, Deborah (eds.) Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe, School of American Research Press, pp. 3-34.), na qual o “estado” é grafado com letras minúsculas exatamente para que as análises consigam mostrar as formas com que o Estado aparece como abstração e como o estado aparece em suas práticas. Assim, quando escrevemos a palavra Estado em maiúsculo, nos referimos às abstrações e quando grafada em minúsculo, o que está em jogo são as práticas cotidianas que fazem o estado funcionar. Seguimos o mesmo raciocínio quando utilizamos o termo Tráfico, em maiúscula, e tráfico, em minúscula. No Brasil, muitos autores têm aprofundado nas discussões sobre estado. Sobre o tema, ver os trabalhos de Antônio Carlos de Souza Lima, dentre os quais destacamos o texto em que ele discute a relação entre Antropologia e Estado no Brasil: Souza Lima; Dias, 2020SOUZA LIMA, Antônio Carlos; DIAS, Caio Gonçalves. 2020. “Anthropology and the State in Brazil: questions concerning a complex relationship”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 17: 1-21. http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412020v17d454
    http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412020v...
    .
  • 6
    As estatísticas que tratam dos assassinatos no Rio de Janeiro, sobretudo de jovens negros e pobres, revelam números assustadores. Nos últimos trinta anos, cerca de 84 mil pessoas foram assassinadas apenas na cidade do Rio de Janeiro (ISP, 2020ISP, Instituto de Segurança Pública. 2020. “Séries históricas anuais de taxa de letalidade violenta no estado do Rio de Janeiro e grandes regiões”. http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf
    http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/S...
    ), majoritariamente nas periferias e sem julgamento. Os números são um gesto com vista à enormidade do problema no qual “os homens, jovens e negros são as principais vítimas dos assassinatos e as mulheres mães/esposas/irmãs, negras, são aquelas que acabam tendo que habitar o mundo pós-morte e lidar com o cotidiano do sofrimento” (Pierobon, 2018PIEROBON, Camila. 2018. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Cristina e sua ética de combate. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.: 34-35). Esses assassinatos indicam também o caráter interseccional das relações em que raça, gênero e território são inseparáveis (ver: Efrem-Filho, 2017EFREM-FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Campinas, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas.; Fernandes, 2017FERNANDES, Camila. 2017. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 7
    Inúmeros trabalhos fizeram um balanço das remoções e despejos no Rio de Janeiro. Sobre o tema, ver: Fernandes, 2013FERNANDES, Adriana. 2013. Escuta Ocupação: arte do contornamento, viração e precariedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Magalhães, 2013MAGALHÃES, Alexandre. 2013. Transformações no “problema favela” e a reatualização da remoção no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Gutterres, 2014GUTERRES, Anelise. 2014. A resiliência enquanto experiência de dignidade: antropologia das práticas políticas em um cotidiano de lutas e contestações junto a moradoras ameaçadas de remoção nas cidades sede da Copa do Mundo 2014 (Porto Alegre, RS e Rio de Janeiro, RJ/ Brasil). Porto Alegre, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.; Faulhaber e Azevedo, 2015FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. 2015. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro, Mórula.; e Lobo, 2015LOBO, Heloísa. 2015. Processos de remoções e seus desdobramentos: tramas e percursos em busca de uma casa. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro..
  • 8
    Além do trabalho de Hirata e Grillo (2017HIRATA, Daniel; GRILLO, Carolina. 2017. “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: Perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social. V. 29, n. 2: 75-98. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.125494
    https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
    ), Birman e Leite (2018BIRMAN, Patrícia; LEITE, Márcia Pereira. 2018. “Rio e São Paulo: categorias emaranhadas e relativização dos seus sentidos nos estudos sobre (as chamadas) periferias”. In: BARROS, Joana; COSTA, André da; RIZEK, Cibele. (org.). Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios. São Carlos, IAU/USP, pp. 27-40.) comparam as diferenças nas políticas públicas direcionadas à “guerra às drogas” e seus efeitos nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ver também o Dossiê: “Crimes, territórios e sociabilidades: comparações entre Rio de Janeiro e São Paulo” organizado por Vera Telles (2019TELLES, Vera. 2019. “Figurações da ‘guerra urbana’: perspectivas Rio de Janeiro-São Paulo”. Novos Estudos CEBRAP, v. 38, n.3: 521-527. http://dx.doi.org/10.25091/s01013300201900030001.
    http://dx.doi.org/10.25091/s010133002019...
    ).
  • 9
    Cf. As análises de Machado e Leite (2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; LEITE, Márcia Pereira. 2008. “Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas?”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira , pp. 47-76.) e outros sobre as narrativas dos moradores que vivem ao mesmo tempo sob esse duplo modo de subordinação construído por intermédio do dispositivo de combate à “violência”.
  • 10
    Em 2020 a “Chacina de Acari” completou 30 anos sem resolução. As mães e irmãs continuam a busca pelos 11 jovens desaparecidos, cujos acusados pelo crime são policiais militares, membros de um grupo de extermínio.
  • 11
    Embora operações com o uso de helicópteros militares e atiradores de elite já ocorressem na cidade, o então governador do estado do Rio de Janeiro tem autorizado publicamente os assassinatos cometidos por agentes de estado. Lembremos da célebre frase de Wilson Witzel: “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”, pronunciada em novembro de 2018, logo após sua eleição. Em outro episódio, ocorrido em maio de 2019, o governador estava dentro de um helicóptero militar e autorizou tiros contra um suposto “acampamento de bandidos”. Contudo, o alvo era uma tenda utilizada por religiosos. Em decorrência da luta de moradores de favelas e periferias, o Supremo Tribunal Federal aprovou em agosto de 2020 uma liminar que limita o uso de helicópteros em operações militares.
  • FINANCIAMENTO:

    CNPq, FAPERJ, FAPESP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    16 Dez 2020
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com