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A linha de montagem no final do século

NOTAS & COMENTÁRIOS

A linha de montagem no final do século

Benedito Rodrigues de Moraes NetoI; Felipe Luiz Gomes e SilvaII

IProfessor de economia e organização do trabalho na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo

IIProfessor de organização do trabalho na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo

No início da produção automobilística (1900 a 1912), o processo de montagem do automóvel tinha as seguintes características:

"... (na indústria automobilística) todos os componentes eram contratados fora. Apenas a montagem e o desenho (design) de algumas partes eram feitos na fábrica. Na fábrica, os trabalhadores operavam como uma equipe. Eles planejavam a produção, resolviam problemas de design e construíam os carros inteiros juntos como uma unidade. Esta era a maneira pela qual eles aprenderam a fazer bicicletas, e foram essas as relações de trabalho que eles trouxeram para os carros" (Maltese, 1975, p. 130).

Ford, em Minha vida e minha obra, nos mostra que os carros eram montados como se fossem casas: "o carro Ford consta de cinco mil peças, contando parafusos e porcas. Algumas bastante volumosas e outras tão pequenas como as peças de um relógio. Quando montamos os primeiros carros, o sistema consistia em serem as peças trazidas manualmente à medida das necessidades, tal como na construção de uma casa'' (Ford, 1926, p. 77.)

Isto significa que o trabalho na indústria automobilística, antes da introdução da linha de montagem, era trabalho qualificado. Segundo Francesca Maltese."os trabalhadores que faziam essas partes (rolamentos de esfera e eixos diferenciais) eram mecânicos qualificados e artesãos da máquina-ferramenta." (Maltese, 1975, p. 130.) E eles eram qualificados, ademais, como planejadores da produção, pois, como já vimos, formavam grupos de trabalho e "planejavam a produção, resolviam problemas de design e construíam os carros inteiros juntos como uma unidade''. Usando um termo comum na teoria das organizações, o planejamento era "internalizado", ou seja, não existia um setor dentro da empresa que planejasse o que iria acontecer no processo de trabalho; o planejamento era propriedade dos trabalhadores. Em outras palavras, a organização do trabalho se dava através do que se denomina hoje de "grupos semi-autônomos", com um grau bastante elevado de autonomia (grupos quase-autônomos). Os trabalhadores possuíam, enquanto equipe, controle dos passos e dos tempos necessários à realização da montagem. Eles eram administradores do seu tempo; a intervenção da administração era quase nula.

O que Ford faz em seguida é uma reorganização do trabalho, um revolucionamento da força de trabalho, e nenhum revolucionamento do instrumento de trabalho. Nesse sentido, na linha de montagem enquanto forma de organização do trabalho, a produtividade continua dependendo integralmente do trabalhador coletivo, do homem enquanto instrumento de trabalho. (Sobre esse ponto, confira Moraes Neto, 1984.) Isto nos é esclarecido através da famosa experiência de Hawthorne (1927 a 1932), realizada em uma indústria de montagem de relés para telefone (cf. Mayo, 1972). A experiência teve como objetivo observar se as condições de trabalho tinham algum efeito positivo sobre a produtividade; havia, portanto, uma preocupação no sentido de ligar o homem à produtividade, ou seja, considerava-se o homem elemento fundamental para a produtividade. Descobriu a experiência que os trabalhadores desenvolviam uma organização informal que controlava a produção, estabelecendo práticas restritivas. Observamos, então, que, através da linha de montagem, o capital não controla totalmente o processo de trabalho. Os trabalhadores podem, coletivamente, organizar-se em novas bases para influir no ritmo do seu trabalho; a experiência de Hawthorne nos mostra, já em 1929, os limites da linha de montagem. E se formos analisar a história da linha de montagem, vamos observar que ela sempre esteve em crise. Ouvimos recentemente de um empresário, quando da realização de uma entrevista, a seguinte frase reveladora: "A linha de montagem nunca tira nota 10." Os problemas da linha, conseqüentemente, não podem ser resolvidos pela sofisticação, como nos mostra a experiência do carro Vega, da GM, em 1972 (cf. Rothschild, 1974), pois não se trata de um problema de grau, mas sim de natureza; já está posto no seu próprio nascimento. O que ocorre é que, dependendo das circunstâncias de ordem política e social, esse limite imanente à linha de montagem pode não se manifestar. A manifestação dessa limitação desde os anos 60 na Europa e nos EUA, através de práticas restritivas da mais diversa natureza, colocou em xeque, como nunca antes, a eficiência dessa forma de organização do trabalho: "o absenteísmo, o turnover, o trabalho mal executado e mesmo a sabotagem tornaram-se os flagelos da indústria automobilística americana. Fortune, revista mensal da elite administrativa, descreve com um certo luxo de pormenores estas manifestações da resistência operária que não mudaram desde o início do taylorismo" (Pignon & Querzola, 1974, p. 58.)

Lembrando a frase do empresário, a linha de montagem nunca pode tirar nota 10 porque, sendo a forma mais desenvolvida de "uma máquina cujas peças são homens" (Ferguson, apud Marx, 1973, p. 295), não possui peças apropriadas à execução perfeita de movimentos uniformes e contínuos. Já nos dizia Marx, referindo-se à manufatura: "o homem é um instrumento muito imperfeito de produção quando se trata de conseguir movimentos uniformes e contínuos" (Marx, 1973, p. 306). Então, para a linha de montagem tirar nota oito ou nove, é necessário que as circunstâncias sociais, políticas e econômicas (desemprego aberto, euforia nacionalista, repressão política, etc.) levem os homens a diminuírem sua intrínseca imperfeição para tais movimentos. No caso recente norte-americano e de alguns países da Europa, como a Itália, a linha de montagem tem obtido uma nota sofrível. (Sobre o caso italiano, confira Fergus, 1983.)Em outras palavras, estamos em um momento, no final deste século, de crise aberta da linha de montagem. A esta crise, que se manifesta como uma crise de eficiência, o capital responde de três formas básicas:

a) retrocesso romântico: caracteriza-se pela implantação de "grupos semi-autônomos", com o objetivo de elevar a eficiência através de um retorno ao passado (vide processo de produção de automóveis antes da linha de montagem). Esta alternativa significa negar a linha de montagem com olhos para o passado, e só é possível porque, sendo a linha de montagem apenas uma forma diferente de organizar o trabalho em relação às equipes pré-fordistas, ela possui flexibilidade técnica para voltar atrás, coisa impossível de acontecer quando são revolucionados historicamente os instrumentos de trabalho (exemplo: têxtil, siderurgia, química etc);

b) retrocesso bárbaro: caracteriza-se pela descentralização espacial da empresa montadora, através da subdivisão da montagem e constituição de submontadoras em regiões atrasadas, e/ou pelo ressurgimento do putting-out. Sobre esta alternativa na Itália, o artigo já mencionado de Fergus Murray é bastante esclarecedor;

c) progresso: através da introdução da microeletrônica, basicamente via robotização, a linha de montagem transforma-se em um sistema de máquinas: "A automação é capaz de favorecer o aprimoramento sem precedentes das condições técnicas de produção, adequando o produto final aos novos padrões de precisão, uniformidade e homogeneidade. Para tanto, as operações devem ser controladas por equipamentos microeletrônicos e executadas em ritmo contínuo pelos sistemas de máquinas, sempre com as mesmas características de tempo, espaço e movimento de produção" (Peliano et aiii, 1985). Esta alternativa significa negar a linha de montagem com os olhos voltados para a frente; através dela, a montagem ajusta-se, de forma abrupta, ao princípio da maquinaria estabelecido por Marx.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fergus, Murray. The decentralisation of production - the decline of the mass-collective worker? Capital & Class, London, 19: 74-99, Spring. 1983.

Ford, Henry. Minha vida e minha obra. Rio de Janeiro/São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926.

Maltese, Francesca. Notes for a study of the automobile industry. In: Edwards, R.; Reich, M. & Gordon, D., ed. Labor market segmentation. Lexington, D.C. Heath, 1975.

Marx, Karl. El capital. 8. ed. México, Fondo de Cultura Económica, 1973.

Mayo, Elton. Problemas humanos de una civilización industrial. Buenos Aires, Nueva Visión, 1972.

Moraes Neto, Benedito R. Marx, Taylor, Ford - urna discussão sobre as forças produtivas capitalistas. Tese de doutorado. Unicamp, Instituto de Economia, 1984.

Peliano, José Carlos P. et alii. Impostos econômicos e sociais da tecnologia microeletrônica na indústria brasileira - estudo de caso da montadora "A" de automóveis. Brasília, CNRH/Ipea, 1985.

Pignon, D. & Querzola, J. Democraciae autoritarismo na produção. In: Gorz, A. et alii. Divisão do trabalho, tecnologia e modo de produção capitalista. Porto, Escorpião, 1974.

Rofhschild, Emma. Capitalismo, tecnologia, produtividade e divisão do trabalho na General Motors. In: Gorz, A. et alii. Divisão do trabalho, tecnologiae modo de produção capitalista. Porto, Escorpião, 1974.

  • Fergus, Murray. The decentralisation of production - the decline of the mass-collective worker? Capital & Class, London, 19: 74-99, Spring. 1983.
  • Ford, Henry. Minha vida e minha obra. Rio de Janeiro/São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926.
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  • Peliano, José Carlos P. et alii. Impostos econômicos e sociais da tecnologia microeletrônica na indústria brasileira - estudo de caso da montadora "A" de automóveis. Brasília, CNRH/Ipea, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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