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Desenvolvimento e crise de uma política de gestão da força de trabalho: um estudo de caso

ARTIGO

Desenvolvimento e crise de uma política de gestão da força de trabalho - um estudo de caso* * Agradeço especialmente Maria Lina Valadares Campos pela competente colaboração prestada durante o transcurso da pesquisa. Ao João Paulo Pires Vasconcelos e à Diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade o meu reconhecimento pela cordialidade e desprendimento com que colocaram os arquivos da entidade a minha disposição. E, ainda, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio concedido.

Bila Sorj

Professora-adjunta no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora pela Universidade de Manchester

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é o de examinar as circunstâncias pelas quais um grupo empresário-industrial inicia nos primeiros anos da década de 60 mudanças na política de gestão da força de trabalho até então praticada. Esta gestão, denominada pela empresa de "paternalista", implicava controle direto por parte da empresa do conjunto dos elementos constitutivos das condições de existência de seu corpo operário. Em contraposição a esta política, a gestão "moderna" circunscreve a intervenção da empresa ao âmbito propriamente fabril, transferindo a outras instituições, notadamente os organismos públicos, a regulação da reprodução da força de trabalho.1 1 . Esses dois modelos são estudados por Freyssinet para o caso de grandes grupos industriais franceses, sendo o primeiro denominado "instituição global" e o segundo, "empresa capitalista pura". Politiques d'emploi des grandes groupes français. Grenoble, PUG, 1982. p. 31-2.

Este estudo divide-se em duas partes. A primeira trata da constituição da gerência "paternalista" pela empresa estudada. A segunda trata da crise deste padrão de gestão da força de trabalho, verificada na década de 60. Devo colocar de imediato que a contraposição entre "paternalismo" e "modernização" não implica, em absoluto, uma idéia evolucionista de que o primeiro modelo conteria formas arcaicas, tradicionalistas e ultrapassadas de gerência empresarial, enquanto que o segundo se apoiaria numa prática empresarial mais racional, desenvolvida e eficaz.

Apesar de estes conteúdos se incluírem no discurso gerencial da empresa pesquisada, como visões autojustificadoras das "escolhas" empresariais, a realidade aponta em sentido bastante diverso. Primeiramente, a perspectiva evolucionista não encontra uma exata correspondência cronológica quando analisamos um conjunto maior de práticas gerenciais e observamos que empresas supostamente "modernas" - pelo nível tecnológico adotado e pelo setor industrial ao qual suas atividades produtivas se vinculam - adotam estratégias "paternalistas", enquanto outros grupos empresariais, que pelos mesmos critérios são considerados tradicionais, desenvolvem políticas de gestão da força de trabalho do tipo "moderno". Segundo, as opções gerenciais não são resultado de uma decisão soberana dos agentes empresariais, mas pelo contrário - e este é o ponto central de nossa argumentação - elas se definem com referência a um conjunto de constrangimentos (de ordem estrutural e comportamental de outros agentes sociais envolvidos), que determina o tipo de política de gestão da força de trabalho adotada por uma empresa.

Devo chamar a atenção ainda para o fato de que os modelos de gestão da força de trabalho mencionados dificilmente se encontram em "estado puro" na realidade das empresas industriais. O que se encontra, com mais precisão, é uma combinação de elementos de ambos os modelos, mas que certamente apontam para a predominância de um ou outro tipo. Para tomar o argumento mais palpável, a gestão "paternalista" não implica a ausência absoluta do estado como regulador das relações de mercado, principalmente no Brasil, onde seu papel nesta esfera não pode ser evidentemente negligenciado. Como veremos mais adiante, quando o movimento sindical passa a reivindicar, com todo o vigor, o cumprimento de direitos trabalhistas consagrados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) motiva a empresa, entre outros fatores, a regredir na sua política de salários indiretos.

Da mesma forma, a gestão "moderna" não encerra o retraimento absoluto da empresa em todo e qualquer elemento atinente à reprodução da sua força de trabalho. Se ela não controla o conjunto das condições de existência de seus assalariados, freqüentemente encontramos uma intervenção direta sobre uma ou outra destas condições: serviço médico, transporte coletivo, restaurantes e outros. Mais ainda, as empresas podem, e freqüentemente o fazem, aplicar distintas políticas a diferentes categorias de trabalhadores.2 2 . O transporte coletivo talvez seja o exemplo mais comum desta prática nas grandes empresas que operam com turnos contínuos. Sem interditar expressamente seu uso para os horistas, o horário de funcionamento dos ônibus acompanha a jornada de trabalho do pessoal administrativo ou dos mensalistas (engenheiros, supervisores...) , o que promove de fato uma política discrepante.

Estudaremos neste artigo o processo de crise e mudança de um tipo de gestão a outro. Estas mudanças não ocorrem, entretanto, num espaço de tempo curto. Limitaremos nossa análise ao início do processo de reestruturação da prática gerencial cujas conseqüências serão objeto de outro estudo.

2. FORMAÇÃO E REPRODUÇÃO DO CORPO OPERÁRIO

A existência de reservas florestais em abundância e a presença de jazidas de minério praticamente inesgotáveis motivam o grupo siderúrgico luxemburguês (Aciertes Réunies de Burbach Eich Dudelange) (ARBED) a adquirir em 1927 em Rio Piracicaba,3 3 . Em 1948, esta localidade foi elevada à categoria de distrito de João Monlevade. no Estado de Minas Gerais, uma vasta extensão territorial que viabilizasse a implantação de uma siderúrgica integrada a carvão vegetal. Incentivada pelo governo pós-revolucionário de 1930, que via com bons olhos a instalação de uma grande siderurgia no País como instrumento de consolidação do poder nacional,4 4 . Para uma história do desenvolvimento da siderurgia no Brasil e das polêmicas travadas ao seu redor, ver Wirth, J.D. A política do desenvolvimento na era de Vargas. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1973; e Baer, W. Siderurgia e desenvolvimento brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1970. a ARBED, em associação com empresários brasileiros, cria a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira (CSBM). A construção da nova siderúrgica tem início em 1935, com a extensão dos serviços ferroviários até aquela área, terminando em 1940, com a entrada em funcionamento dos laminadores e da trefilaria, sua primeira fase de instalação.

Em 1940, a Belgo-Mineira já se tornara a maior siderúrgica integrada na América Latina, e no País sua predominância é expressiva, como se pode conferir pelos dados que se seguem.

Em 1936, ela era responsável por 63% da produção nacional de ferro gusa e por 41% da produção de lingotes de aço. Em 1940 responde por 60% da produção nacional de lingotes de aço e por 70% dos laminados produzidos no País5 5 . Baer, W. op.cit. p. 88.

Situada em região relativamente distanciada dos centros urbanos já consolidados, a CSBM teve que tomar a iniciativa de mobilizar e formar um corpo operário adequado ao seu funcionamento e prover as condições necessárias à sua fixação e estabilização no local.

Podemos identificar três grandes grupos de trabalhadores que suprem o quadro de trabalhadores da nova usina:6 6 . Dados elaborados a partir da seção "Velha Guarda" do jornal da companhia, Pioneiro, n. 1 (1955) a 159 (1965). Esta seção conta parte da história da vida dos primeiros trabalhadores da usina, permitindo as conclusões expostas a seguir.

a) engenheiros e técnicos (em carpintaria, eletricidade, forno Martin, laminação e mecânica) recrutados a partir de 1922 na Europa e que haviam passado pela Usina de Sabará, pertencente ao mesmo grupo empresarial. Esses trabalhadores se encarregam da construção e montagem da usina e da formação técnica de trabalhadores brasileiros para operarem na fabricação do aço;

b) trabalhadores com alguma qualificação neste ramo industrial recrutados das usinas siderúrgicas vizinhas: Sabará, Usina Esperança (Itabirito) e Usina São Julião (Burnier). Esses trabalhadores assumem os postos de trabalho mais qualificados e dentre eles são recrutados os encarregados e contramestres de setores da usina. De fato, a região de Monlevade possuía vasta experiência na manufatura do ferro que se remonta às primeiras décadas do século XIX. O projeto pioneiro do setor se liga ao nome do engenheiro de minas francês, Jean Antoine Félix Dissandes de Monlevade, que estabelece na primeira metade do século XIX uma metalúrgica empregando a forja catalã. A continuidade e expansão deste projeto, assim como de tantos outros neste setor, esbarra nas limitações impostas pela supremacia política da elite agroexportadora. Apesar do destino comum que aguardava as tentativas de criação de uma grande siderurgia na região antes de 30, temos registros de inúmeros estabelecimentos de ferro-manufatura dispersos na região e de vida cíclica, mas que promoveram o treinamento de trabalhadores neste setor industrial e que puderam ser aproveitados pela CSBM.

c) trabalhadores sem nenhuma experiência específica anterior neste ramo industrial, oriundos da zona rural próxima (lavradores, tropeiros, cortadores de lenha) e das cidades vizinhas (operários da construção civil, pequenos comerciantes e funcionários públicos). Os lavradores constituem o maior contingente de trabalhadores, assumindo em geral os postos de trabalho menos qualificados.

O rastreamento da origem do primeiro núcleo de trabalhadores da empresa permite-nos concluir que o processo de proletarização da força de trabalho está estreitamente ligado à natureza da usina siderúrgica então implantada. A CSBM é uma usina integrada abastecida de carvão vegetal, o que envolveu, desde o início da sua atividade, a apropriação e exploração de vasta extensão territorial próxima a Monlevade e rica em florestas nativas. A apropriação desta mata florestal se deu através da compra de terras dos fazendeiros locais e da obtenção de concessão governamental para exploração das terras devolutas que, por sua vez, eram subempreitadas a contratistas que executavam seu desmatamento e a fabricação do carvão.

É justamente desta área de reflorestamento adquirida pela companhia que encontramos o lugar de origem de parte significativa do corpo operário da empresa.7 7 . Em 1944 a Belgo-Mineira contava em Monlevade com 2.756 empregados. IBGE. Usinas siderúrgicas de Minas Gerais. 1946. Separata Boletim, 29. Guerra e outras comprovam que 65% da área reflorestada da companhia está distribuída em 12 municípios, sendo que em 8 deles nasceram mais de 46% do total do pessoal atualmente empregado na empresa.8 8 . Gerra et alii. Processo de trabalho e transferência tecnológica na indústria siderúrgica de Minas Gerais. Relatório intermediário, maio 1982, p. 13-4 mimeog. Os dados obtidos por meio do jornal O Pioneiro levam à mesma conclusão. De 32 trabalhadores admitidos entre 1935 e 1942, 15 tinham como atividade anterior a agricultura e como lugar de origem exatamente os municípios dedicados às atividades de reflorestamento da companhia. Os 17 restantes, embora advindos da mesma região dos agricultores, apresentam profissões variadas como ferreiro, carpinteiro, pedreiro e são alocados na nova usina em trabalhos cujos conteúdos se aproximam de sua experiência anterior. Assim, marceneiros vão preferencialmente para a oficina de modelagem, os ferreiros para a oficina mecânica e pedreiros para as obras de construção civil. De fato, a implantação de uma usina siderúrgica integrada demanda atividades que vão desde demarcação de terreno e construção de obras civis (fabricação de cimento, de tijolos de cerâmica para construção do alto-forno) até fabricação de aço (sua atividade principal) passando pela extração de minério, construção de usina hidráulica etc. Desta forma a seleção de um corpo operário com experiências diversificadas não é fortuita, mas caracteriza a presença de necessidades variadas à implantação da usina.

Simultaneamente à constituição de um proletariado industrial, a companhia tem que providenciar as condições necessárias à sua reprodução, uma vez que se situa em local sem nucleação urbana prévia. Progressivamente, a empresa se encarrega de criar e administrar um conjunto de bens e equipamentos coletivos que viabilizem a fixação da população operária no local.

2.1 Habitação

A solução para o problema habitacional no início foi a armação de tendas que abrigassem a primeira concentração operária destinada à construção civil da usina, incluída aí a construção das habitações permanentes dos trabalhadores. Estas, construídas nas proximidades da usina, destinam-se aos trabalhadores e suas famílias mediante aluguel descontado diretamente da folha de salários da empresa. Aos engenheiros foram reservadas as melhores habitações, construídas em região de densa vegetação, longe da poluição industrial e em local onde é impossível avistar as altas chaminés. A distribuição do espaço local expressa a forte estratificação social que se estabelece na comunidade.

2.2 Educação

O sistema educacional compõe-se de escola primária e profissional. Esta última, criada em 1942 em convênio com o Serviço Nacional da Indústria (Senai), promove, mediante bolsa de estudos, a formação de adolescentes filhos de trabalhadores da Companhia. Estes obtêm treinamento que atenda às necessidades técnicas específicas da empresa e a ela são incorporados segundo a ordem de classificação nos exames.

2.3 Abastecimento de gêneros de primeira necessidade

Por intermédio de postos de abastecimento, a empresa comercializa produtos de primeira necessidade. O sistema de compras se faz mediante endividamento debitado diretamente nos salários. O endividamento também atua como forma de fixação do trabalhador no local, pois não permite acumular qualquer poupança que facilite sua transferência para outro mercado de trabalho. De fato, este sistema de compras provoca uma real desmonetarização das relações de troca. Ocorria comumente que, ao cabo de um mês, o salário havia sido praticamente consumido no posto de abastecimento, compelindo a empresa a conceder aos trabalhadores alguma soma em dinheiro, mais simbólica do que real, para sombrear a condição constrangedora de virtual servidão imposta aos trabalhadores.

2.4 Saúde

A empresa é, aqui, igualmente onipresente. Abre redes de tratamento de água e esgoto para servir à concentração operária. Cria e administra hospitais, ambulatório e farmácia. Institui o lactário que distribui mamadeiras às crianças até um ano de idade, produzidas na sua Usina Central de Pasteurização, com o fornecimento de leite sendo feito por fazendeiros de municípios vizinhos.

2.5 Recreação

Este sistema combina um conjunto de instituições voltadas para o lazer da população (cinema, clubes, times esportivos, rádio, jornal e outros), cujo formato, conteúdo e destinatários são objeto de minuciosa intervenção empresarial. Assim, a programação do cinema deve "dar nota preponderante aos espetáculos melodramáticos e aos relativamente violentos"; a criação dos times esportivos deve prever "barragem ao processo de reflexão de áreas profissionais ou setoriais da usina"; a estação de rádio local deve manter "programação viva e variada... programas semanais de auditório com participação de artistas populares locais e externos e implantação de atrações de carreira e dos sistemas de sorteio"9 9 . Documento da empresa. .

Outros mecanismos de controle se agregam a estes, como a intervenção na eleição de representantes municipais, um sistema generalizado de vigilância sobre a vida cotidiana e familiar dos trabalhadores e a repressão rápida e direta às atividades consideradas inconvenientes à empresa.

3. CRISE DA GESTÃO "PATERNALISTA"

3.1 Desenvolvimento urbano

Aqui se identificarão os processos sociais responsáveis pela mudança da política gerencial da empresa. Concentraremos nossa análise na década de 50 e inícios de 60 para identificar a dinâmica contraditória que as relações sociais assumem no contexto de gestão paternalista.

Na década de 50, Monlevade se consolida como núcleo urbano estável, e como pólo de atração e fixação de fluxos migratórios que se deslocam no território mineiro, motivados pela busca de emprego. O crescimento populacional de Monlevade foi da seguinte ordem:10 10 . Documento da empresa.

A população local manifestou um aumento, de 1950 a 1970, de 27.155 habitantes, dos quais 65% ocorrem na década de 50. Deste aumento populacional, a expectativa é de que apenas 1.086 indivíduos tenham nascido na própria área municipal.

O aumento populacional verificado não é acompanhado de um crescimento correspondente do emprego na maior indústria local (CSBM), cujo efetivo de trabalhadores cresce apenas 30% nos anos 50. Tampouco se verifica uma expansão e diversificação significativa das atividades industriais locais. Neste contexto se desenvolvem ocupações no setor terciário, em pequenas empresas de consertos, reparações e olaria e expande-se ainda um amplo setor informal e o desemprego. A ocupação do solo se dá de forma desorganizada, extravasando os limites originais do município, implantando-se, de forma acelerada, o favelamento.

Neste período, portanto, vai-se conformando um mercado de trabalho local, cuja oferta de mão-de-obra cresce independentemente da elevação do nível de emprego da companhia. O caráter da estrutura produtiva de Monlevade não ameaça o controle que a empresa mantém sobre o mercado de trabalho (níveis salariais, qualificações etc); pelo contrário, promove uma vasta reserva espontânea de mão-de-obra disponível para a empresa dominante.

Diante deste quadro, a política da empresa de fixar e estabilizar um corpo operário e ao mesmo tempo criar as condições de consumo e reprodução do coletivo de trabalhadores deixa de ser uma exigência objetiva, como o foi no início de suas atividades para atender às suas necessidades de funcionamento. Por sua vez, o crescimento demográfico e as peculiaridades do desenvolvimento urbano aí verificados desestabilizam a política de gestão até então praticada: passam a pressionar os equipamentos coletivos controlados pela empresa e dimensionados para um efetivo de usuários inferior, provocando a queda da qualidade dos serviços prestados. Diante desta situação, a companhia, para não expandir seus custos sociais, de retorno duvidoso, passa a rever sua política de vinculação do sistema urbano à empresa.

3.2 Modernização tecnológica

Nos anos 50 observa-se também mudança no perfil da indústria siderúrgica brasileira. A Belgo-Mineira, que usufruía uma posição extremamente privilegiada no mercado nacional, passa a ter que enfrentar a concorrência, primeiro, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que entra em funcionamento pleno em 1946, e posteriormente de outras empresas siderúrgicas estatais, como a Usiminas em 1963, todas desenvolvendo linhas de produtos equivalentes (produtos planos, tubos sem costura, trilhos, vergalhões e fio-máquina). Para fazer frente à concorrência que se estabelece no mercado siderúrgico nacional, a CSBM operou uma modernização de equipamentos e especialização de linha de produtos. A modernização introduz novas técnicas para aumentar a produtividade física da usina: instalação da máquina de sintetização, aciária LD e um laminador duorreversível, e especializar sua produção em produtos não-planos e trefilados, estes últimos, gradativamente transferidos para a cidade industrial de Contagem nas cercanias da capital de Minas Gerais.

Apesar da modernização tecnológica, o processo de trabalho na CSMB, que prevalece até hoje, pode ser caracterizado como processo de trabalho semicontínuo,11 11 . Para caracterização dos diferentes tipos de processo de trabalho ver Coriat, B. Procès de travail, économie du temps et théories de la segmentation de la force de travail. In: Gaudemar, J.P., org. Usines et ouvriers figures du nouvel ordre productif. Paris, Maspero, 1980. E para a caracterização do processo de trabalho na CSBM como "semicontínuo" ver Gerra et alii. op. cit. isto é, o fluxo produtivo é marcado por pontos de descontinuidade que constituem diferentes operações as quais para serem interligadas necessitam trabalho humano. "Neste caso, o ritmo de trabalho e o conhecimento operário assumem importância estratégica do ponto de vista da 'economia de tempo' e qualidade do produto"12 12 . Gerra et alii. op. cit. p. 38.

Em outras palavras, prevalecem neste tipo de processo de trabalho duas exigências simultâneas: tarefas individuais, bem determinadas e rigidamente ligadas ao equipamento e atividades de cooperação que dependem da capacidade de intervenção, iniciativa e coordenação dos operários.

As empresas que se encontram diante deste tipo de processo de trabalho desenvolvem diferentes mecanismos para motivar a participação e colaboração dos trabalhadores - dependendo das relações sociais que aí se estabelecem - desde supervisão estreita e autoritária até mecanismos menos diretos, como carreiras de promoção, prêmios de produtividade e outros.

No caso específico deste artigo, a prática de gestão "paternalista" opõe sérios obstáculos ao incremento da produtividade individual e grupal exigidas pela concorrência que se estabelece no mercado siderúrgico nacional. O sistema de remuneração via salários indiretos que são, grosso modo, coletivos, limita a capacidade de a empresa remunerar diferencial e significativamente o resultado do desempenho individual e grupal. A empresa, de fato, adotava o prêmio de produtividade acrescido ao salário-base. Entretanto, a flexibilidade no manejo destes fica comprometida pelos custos elevados dos salários indiretos.

A gestão "paternalista" torna-se disfuncional ao incremento da produtividade em mais dois aspectos. Os meios de consumo que a empresa promove se vinculam diretamente à aquisição do emprego e não como retribuição ao desempenho produtivo desejado. O sistema de ingresso no emprego através da admissão de filhos de trabalhadores já empregados na companhia promove o "direito" ao emprego, transmitido de forma hereditária, como critério principal no preenchimento de vagas abertas na empresa.

A continuidade da gestão "paternalista" esbarra então nos limites das relações sociais que ela mesma havia implantado no início da sua formação. Isto estimula uma revisão da política gerencial orientada para transferir os custos dos salários indiretos a outras instituições e favorece assim maior maleabilidade na distribuição dos salários diretos entre seus trabalhadores.

Esta alternativa se afirma como a única possível, dado o desgaste que os mecanismos de controle direto das chefias sobre o rendimento dos trabalhadores sofre com a mobilização sindical orientada no sentido de restringir o poder das chefias.

De fato, os encarregados e contramestres desfrutavam de uma autoridade discricionária e praticamente ilimitada para com seus subordinados. Seu controle só poderia ser eficaz na medida em que concentrassem em suas mãos instrumentos disciplinares: avaliação de desempenho, promoções, mecanismos de punição, transferência de trabalhadores a outras seções etc. O exercício deste poder dá origem a práticas arbitrárias, acompanhando muito mais as simpatias e caprichos dos chefes do que padrões informais e impessoais de gestão da força de trabalho.

O poder dos chefes intermediários transbordava em muito o âmbito fabril e as exigências de maximizar o rendimento no trabalho. Em termos gerais eles asseguravam o controle integral do funcionamento social. Facilitados pela concentração espacial da fábrica e moradia, tomavam a vida familiar dos trabalhadores objeto de fiscalização, levando ao conhecimento da direção condutas tidas como irregulares e atentatórias à moral pública. Não raro utilizavam violência física para resolver casos conflitivos, como despejo de trabalhadores demitidos ou de viúvas que insistiam em continuar habitando as casas da companhia.

A concentração da arbitrariedade e violência na figura dos chefes intermediários permitia ainda preservar a imagem paternalista da diretoria, em especial do presidente da empresa. Este último pode se apresentar aos trabalhadores como figura tolerante, compreensiva e benevolente. Sua relação com os trabalhadores se limita aos momentos de celebração religiosa, festas cívicas, inauguração de obras sociais e concessão de abono aos trabalhadores.

Não só o movimento sindical passa a contestar a exorbitância de poder exercido pelos contramestres, como a própria modernização tecnológica se incumbe de esvaziar a posição central que estes ocupavam no dia-a-dia da produção.13 13 . Entrevistas com contramestres admitidos na companhia na época de fundação. O esvaziamento da função dos contramestres é relativo. Eles continuam a ser elementos-chave na coordenação da produção de tipo fluxo "semicontínuo". A afirmação é válida se a tomarmos em perspectiva histórica.

Com o objetivo de reenquadrar a função do contramestre, a empresa, em 1956, torna a iniciativa de promover cursos destinados a "melhorar os padrões de produtividade em Sabará e Monlevade".14 14 . Jornal O Pioneiro, n. 41, ago. 1956.

Reenquadrar a função do contramestre significa responder a uma dupla exigência: por um lado, conter o excesso de poder a ele delegado pela direção da companhia e, por outro, aproximá-lo da gerência, uma vez que os contramestres constituem uma categoria indispensável, pelo domínio que possuem da técnica produtiva da empresa.15 15 . "Através dos contramestres a direção adquire bases eficientes para encaminhar problemas técnicos e os relacionados com fatores humanos". Ibid. n. 57, abr. 57.

As novas orientações são explícitas: aprimorar as relações entre os contramestres e seus subordinados através de um contato humano, cuidadoso e responsável, formando um ambiente de trabalho sadio, cordial e eficiente ("o contramestre não pode ser um ditador e sim um orientador dos auxiliares");16 16 . Essas orientações são baseadas na Cartilha do contramestre editada pelo Centro de Educação de Liège, que a empresa passa a transcrever em seu jornal. aproximar o contramestre da direção da empresa para examinar os problemas relativos ao pessoal, como também os de ordem técnica. Assim, transferência de pessoal e promoções passam a basear-se nos cartões dos contramestres e nos relatórios do Serviço de Pessoal. Na ocorrência de problemas técnicos na produção o contramestre deve recorrer e discutir com seus superiores.17 17 . Ibid. n. 56, abr. 1957.

O reenquadramento geral da força de trabalho é tratado de forma mais sistemática com a criação, em 1962, do Serviço de Relações Industriais, ascendido a Departamento de Relações Industriais em 1963. Tem como objetivos, entre outros, determinar o valor relativo dos cargos, proporcionar uma estrutura salarial compatível com outras empresas concorrentes no mercado, permitir maior controle sobre os custos de pessoal, servir de base para negociação com o sindicato e proporcionar critérios de recrutamento, seleção, promoção e transferência de pessoal.

3.3 A ação sindical 18 18 . Esta seção se apoia em dados obtidos através de entrevistas com trabalhadores, documentos do sindicato (especialmente as Atas das Assembléias Sindicais e das Reuniões de Diretorias de 1951 a 1963) e os contratos coletivos de trabalho do mesmo período. As atas de 1964, assim como outros documentos arquivados no sindicato, desapareceram com a intervenção sindical em 1964.

A prática "paternalista" de gestão da força de trabalho encontra mais um grande desafio: o crescimento da militância sindical, que culmina nas greves de outubro de 1962 e de novembro de 1963.

Criado em 1951, o Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade passa uma década para deflagrar sua primeira greve contra a companhia, em 1962. Três ordens de questões constituem o eixo reivindicativo do sindicato durante este período: aumentos salariais, cumprimento da legislação trabalhista e melhoria da qualidade de vida urbana.

O primeiro acordo coletivo de trabalho foi aprovado em 1953 pelo sindicato e companhia; renovado anualmente, previa o "salário móvel", sistema salarial único no País. O salário móvel era calculado mensalmente pela companhia com assistência de um representante do sindicato e conferia um aumento salarial automático toda vez que o custo de vida médio subisse 10% (e 5% a partir de 1959). Para cálculo das alterações do custo de vida eram aplicados os seguintes valores:

- alimentação, 50%; - habitação, 15%; - vestuário, 25%; - higiene e medicamentos, 5%; - transporte 5%.

Entretanto, o sindicato argumentava que os cálculos do custo de vida apresentados pela companhia e aplicados ao salário eram fictícios. Os postos de abastecimento, onde se calculava a alteração do custo de alimentação, não forneciam produtos em quantidade suficiente às necessidades dos trabalhadores, obrigando-os a adquirí-los no mercado livre a preços majorados.19 19 . A própria companhia reconhece as dificuldades que vinham ocorrendo para o abastecimento normal dos postos como consta de circular "Aviso ao Pessoal" de julho de 1962. Nesta, ela "agradece aos trabalhadores e seus familiares pela colaboração que vêm dando à companhia neste momento difícil..."

A baixa qualidade e a deterioração de muitos dos produtos oferecidos levava os trabalhadores a comprá-los nos armazéns privados. Os gastos com transportes eram tomados em quantidade inferior à efetiva necessidade de locomoção dos empregados, assim como os cálculos de gastos com habitação não computavam as excessivas majorações das taxas de eletricidade cobradas pelas Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig).

O argumento principal da empresa para justificar suas propostas de aumento sempre inferiores às demandas pelo sindicato se apoiava na sua sistemática de salários indiretos. Do ponto de vista da empresa, os bens e equipamentos de consumo coletivo deveriam ser considerados como rendimentos salariais efetivos dos trabalhadores. Se este apelo não sensibilizava os trabalhadores, tampouco - e mais grave ainda - não encontrava eco na Justiça do Trabalho. Arbitrando o dissídio coletivo provocado pelas greves de 1962 e 1963, a Justiça do Trabalho considera que os benefícios assistenciais mantidos pela companhia não eram exigidos por lei e, portanto, não poderiam compensar os pleitos salariais do sindicato, feitos com base no aumento do custo de vida, como rezava o acordo coletivo de trabalho.

Estamos então diante de uma situação crítica para a empresa. Por um lado, os primeiros anos da década de 60 apresentam uma situação fortemente inflacionária e um incremento da militância sindical local e nacional. Por outro, o sistema assistencial ou de salários indiretos não têm poder de frear as reivindicações salariais.

A segunda ordem de problemas que o sindicato passa a concentrar esforços em resolver diz respeito às irregularidades trabalhistas, cuja solução vinha sendo protelada pela empresa. Esta se vê pressionada para resolver demandas trabalhistas já asseguradas pela CLT, as quais tentava ignorar, fazendo prevalecer uma prática "privada" de gestão da força de trabalho. Respaldados em dispositivos da CLT, 400 trabalhadores encontram-se no ano de 1962 com processos na Justiça do Trabalho, contra a empregadora, sobre férias, trabalho noturno, abono-família, que eram calculados em franco desacordo com o que dispunha a CLT. Para citar alguns exemplos: o pagamento de férias dos floristas feito com base no salário vigente na data-base de sua concessão não incluía proporcionalmente o abono-família, prêmios de produção e outros incentivos; as demissões não faziam acompanhar das devidas compensações trabalhistas.

Tanto a primeira, como a segunda ordem de reivindicações revelam o quanto a análise da dinâmica da gestão da força de trabalho não pode prescindir da análise do ordenamento jurídico nacional. Mesmo em se tratando de um tipo de gestão de caráter privatizante, o Estado, com seus mecanismos de regulação social, não apenas se faz presente como provoca uma desestabilização das relações de trabalho praticadas pela empresa. Isto, é claro, com a condição de que o movimento operário e sindical use a seu favor a legislação trabalhista e a confronte com a prática gerencial.

O terceiro conjunto de reivindicações apresentadas pelo sindicato extrapola o âmbito das relações de trabalho para se referir às condições mesmas de consumo promovidas pela empresa.

A duplicidade de papéis assumidos pela empresa enquanto "patrão" e "estado" isto é, enquanto gestora da produção e da reprodução dos seus assalariados, forja uma pauta de reivindicações referente à melhoria da qualidade de vida na esfera urbana. Melhoria da iluminação pública da cidade, extensão das Unhas de transporte urbanas, criação de um asilo de menores, instalação de indústria têxtil no local, para ocupar a mão-de-obra feminina, constam do elenco de reivindicações dirigidas à empresa.

Constantemente recusadas pelo empregador como questões que fogem ao âmbito das relações trabalhistas, a desconsideração destas reivindicações afeta indiretamente as relações no trabalho, uma vez que provoca um clima generalizado de insatisfação, descontentamento e hostilização da empresa.

O imbricamento da esfera industrial com a esfera urbana promovido pela gestão "paternalista" confere ao sindicato papel central na representação dos interesses globais dos trabalhadores. Mais ainda quando os mandatos eletivos municipais se encontram sob controle político da empresa, tornando-os um canal menos eficiente e confiável de representação. A empresa, por sua vez, passa a ser o alvo privilegiado das hostilidades populares originais simultaneamente na fábrica e na cidade.

A empresa tenta, a partir de 1956, influir na orientação política do sindicato, visando mudar os rumos que este vinha trilhando naquele momento. O Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade inicia no ano de 1956, com a visita de uma delegação sindical a Volta Redonda para trazer os métodos de organização sindical ali praticados e considerados modelo a ser seguido, contatos a nível regional e nacional com o movimento sindical do País. Em 1957, uma comissão da CNTI visita Monlevade e a partir de então o Sindicato de Monlevade tem participação constante nos encontros regionais e nacionais dos trabalhadores. Já o II Congresso dos Metalúrgicos do Estado de Minas Gerais, realizado em setembro de 1957, é sediado em Monlevade e os seguintes contam com a participação de delegações de Monlevade.

A orientação sindical propugnada pela empresa se somava às iniciativas em andamento no contexto nacional de formar uma frente de sindicalistas "democráticos e cristãos" para se contrapor ao sindicalismo com forte hegemonia trabalhista e comunista que prevalecia no País.

Para situar melhor este enfrentamento, vale a pena transcrever trechos do I Encontro Interestadual do Sindicalismo Democrático, realizado em São Paulo, que a companhia veicula no seu jornal O Pioneiro em setembro de 1961 e que situa com clareza as clivagens do movimento sindical naquele momento:

"• Dentre os perigos que ameaçam mais intensa e urgentemente a democracia, está o comunismo. Por isso, os democratas devem combatê-lo com prioridade e por todos os meios, pois uma democracia que não se defende é uma democracia vencida.

• No esforço comum por um mundo melhor o sindicalismo deve integrar-se como força de defesa dos trabalhadores, e também de cooperação social, dirigindo sua ação no sentido de conseguir a melhoria das condições de vida e de trabalho, a elevação das classes trabalhadoras e justiça social.

• A liberdade sindical deve ser assegurada por todas as formas e defendida contra a ação daqueles que pretendem desvirtuá-la, atuando contra os interesses do sindicalismo, dos trabalhadores, da coletividade e da Nação.

• O direito de greve, uma das maiores conquistas das classes trabalhadoras, só deverá ser exercido quando falharem os recursos normais de conciliação ou dissídio coletivo.

• Minorias comunistas, ativas e audaciosas, valendo-se das franquias democráticas, intrigam, caluniam, envenenam diariamente a opinião pública, sabotam os esforços construtivos, a cooperação entre as nações, numa guerra fria para a destruição da própria democracia. Utilizando cripto-comunistas e filocomunistas, levantando as bandeiras da 'unidade' e do 'nacionalismo', levam muita gente a desempenhar o papel de inocentes úteis e a integrar organizações de 'Frente Única'. Para intimidar e neutralizar a resistência democrática, lançam mão de vocábulos tecnicamente estudados, como por exemplo: entreguista, divisionista, policial, pelego, imperialista, anticomunista. É necessário, porém, que os democratas conheçam estas táticas comunistas e se disponham a enfrentá-las"20 20 . O Pioneiro, n. 118, set. 1961.

Se neste texto aparecem com clareza os interlocutores do sindicalismo "democrático", em outros textos veiculados pela companhia, os interlocutores não são tão explicitados, mesmo porque são baseados em textos estrangeiros, como a cartilha da Confederação dos Sindicatos Cristãos da França ou da cartilha do líder sindical americano Leopold Hofmann.

A proposta de organização sindical encaminhada pelo jornal da empresa durante os anos de 56 a 61 incluem as seguintes questões:

1. A necessidade de os empregadores reconhecerem a contribuição que as organizações dos trabalhadores podem trazer para o aprimoramento das relações humanas.

2. A autonomia sindical como princípio de organização sindical. "O movimento sindical não pode se processar inteiramente à revelia do Estado. Mas a interferência estatal deve limitar-se às funções fiscalizadoras e assistenciais com caráter de supervisão e estímulo ao invés de ordenação e comando."

3. A transformação do líder sindical em técnico da gestão do conflito industrial. Neste sentido, o jornal O Pioneiro publica os "mandamentos do dirigente sindical", os quais passamos a transcrever:21 21 . O Pioneiro, n. 71, nov. 1957.

• o líder sindical é um estudioso da legislação sindical e da legislação do trabalho em geral, habilitando-se desta forma a orientar e resolver os problemas ocorrentes;

• procura esclarecer-se dos problemas profissionais, sociais e econômicos de nossos dias, especialmente aqueles que mais de perto afetam o grupo de trabalhadores que o sindicato representa;

• não permite interferências político-partidárias, seja de que natureza forem, na vida sindical, pois não ignora que o sindicato é um instrumento de ação profissional e não de ação política;

• é compreensivo em face dos problemas patronais, agindo sempre com calma, ponderação, veracidade e bom senso; sabe quando é oportuno transigir e quando as circunstâncias impõem a inflexibilidade de decisões.

• é um autêntico líder, agindo com base no espírito de compreensão e na adesão consciente da classe e nunca firmado em relações paternalistas, autoritárias e antidemocráticas.

A tentativa da empresa de moldar um sindicalismo alternativo àquele que prevalecia no País, na década de 50, não obtém os resultados desejados.22 22 . O único sinal de uma possível influência neste sentido seria a viagem do presidente do sindicato em setembro de 1959 aos EUA, para participar de um curso sindical promovido pela Embaixada Americana. Entretanto, esta participação não trouxe maiores conseqüências sobre a conduta já estabelecida pelo sindicato de Monlevade no que diz respeito às suas alianças com o movimento sindical hegemônico no País.

E, por sua vez, a participação ativa que o Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade desempenha nas discussões, mobilizações e organizações regionais e nacional contribui para romper o isolamento vivenciado pelos trabalhadores da CSBM. Este isolamento não era resultado apenas das características geográficas e da estrutura industrial monoempresarial da região. Sua rigidez deve-se especialmente à forma inédita de gestão da força de trabalho representada pelo sistema de salários indiretos e pela escala móvel de salários que dificultava as possibilidades de uma visão comparativa com relação ao conjunto dos trabalhadores do País. Esta situação se agrava ainda mais, quando o cálculo do custo de vida é computado pela própria empresa. Desta forma, o contato com outros sindicatos, especialmente de metalúrgicos, possibilita incrementar a visibilidade do controle de salários perpetrado pela Belgo-Mineira.

A participação em organizações mais gerais de trabalhadores provoca paradoxalmente contenção de demandas feitas pela base do sindicato. A questão da escala móvel de salários ilustra esta clivagem. Em 1957 os trabalhadores pedem em assembléia do sindicato para rescindir o contrato de escala móvel com a empresa. Esta demanda é contida pela diretoria e pelos representantes do sindicato do II Encontro dos Metalúrgicos do Estado de Minas Gerais, favoráveis à seqüência do acordo, uma vez que a instituição da escala móvel de salários era uma das reivindicações da Federação dos Metalúrgicos para o conjunto da categoria no Estado.

A orientação sindical que a empresa tenta fazer prevalecer não obtém sucesso e a perspectiva que se coloca para a empresa nos três primeiros anos da década de 60 é a de um agravamento das relações entre o sindicato e a companhia confirmado pelos dois movimentos grevistas que eclodem em 1962 e 1963.

3.4 As novas orientações

Aliviar as tensões locais significa, para a empresa, iniciar um processo de separação entre a fábrica e a cidade, de sorte que a cidade com seus problemas deixe de ser um agente provocador de conflitos entre o sindicato e a gerência, restringindo as disputas ao campo específico das relações de trabalho. O desaparecimento gradativo das condições que motivaram a constituição da gestão da força de trabalho de tipo "paternalista" e os problemas que esta passa a enfrentar estimulam um processo de revisão desta prática por parte da empresa. Porém, o processo de alteração da gestão praticada acontece em ritmo lento, para o qual contribui ainda o golpe de estado de 1964. A intervenção sindical e o enquadramento das lideranças na Lei de Segurança Nacional têm como conseqüência imediata o alívio das tensões locais entre o sindicato e a empresa. O ambiente repressivo que se abate sobre o sindicalismo militante do País serve de pretexto para a companhia efetuar demissões de trabalhadores considerados indesejáveis tanto política como tecnicamente. Elabora-se uma lista de 74 nomes colhidos das atas de presença das assembléias do sindicato.23 23 . Em 1972, os 74 trabalhadores demitidos - alguns já vivendo em outras partes do País, outros sobrevivendo em Monlevade em atividades de biscate - entram na Justiça do Trabalho para pleitear seus direitos trabalhistas. Apesar de terem ganho de causa na justiça regional, a companhia apela para o Supremo Tribunal do Trabalho e eles são derrotados. Esses trabalhadores são coagidos a assinar (sob a mira de um sargento) um "acordo" de demissão com a companhia sem a devida indenização. Nesta lista incluem-se trabalhadores com cargos eletivos do sindicato: presidente, vice-presidente, secretários, tesoureiros, delegados na federação, delegados secionais, membros do conselho fiscal e outros. Vinte dirigentes sindicais são incursos na Lei de Segurança Nacional, sob a alegação de que o sindicato participará de um amplo complô subversivo. Nos autos da Justiça Militar consta relatório do interventor do sindicato, alegando que "o sindicato participava de um movimento subversivo que envolvia camponeses liderados por Leonel Brizola". Em contrapartida, o consultor jurídico do sindicato argumenta o caráter eminentemente trabalhista da greve de 1963 e atribui à CSBM o objetivo de desmoralizar o sindicato com demissões irregulares e desestabilizar o Governo Goulart através da sua participação no Ibade, que "visava corromper a opinião pública e eleger deputados que barrassem projetos populares".

Com a mudança da correção de forças provocada pelo golpe militar, a companhia já se desobriga da proposta sindical que vinha tentando construir sem êxito em Monlevade. Esta mudança de perspectiva, por parte da empresa, pode ser evidenciada no editorial de julho de 1964 do jornal O Pioneiro: "Os sindicatos devem ser fortes, girando em tomo das aspirações dos trabalhadores que devem ser: condições de trabalho, níveis salariais, assistência e educação. Estas aspirações são as legítimas, mas no momento não é oportuno reivindicá-las, tendo em conta o interesse nacional. É indispensável também que, neste momento, o Governo promova o cumprimento das leis de proteção ao trabalho e à vida do trabalhador, oferecendo processo fácil e rápido capaz de estimular o entendimento entre empregados e empregadores, garantindo ao sindicalismo a necessária autonomia, proporcionando meios eficientes à crescente sindicalização e permanecendo atento ao processo evolutivo das relações entre capital e trabalho (grifo nosso).

Agora, mais confiante no Governo antipopular que se instaura no poder em 1964, a companhia atribui a ele o papel de regulamentar as relações de trabalho.

As duas mais importantes medidas do novo Governo com relação aos trabalhadores - o arrocho salarial e a revogação da lei da estabilidade no trabalho - alteram o sentido de urgência que a "modernização" da gestão da força de trabalho impunha nos três primeiros anos da década de 60. Neste sentido, a companhia adota uma postura de congelamento dos serviços sociais que já estavam em andamento e simultaneamente inicia a venda de casas de sua propriedade para os trabalhadores, dando preferência aos trabalhadores solteiros e qualificados.

Esta venda de casas ultrapassa o sentido propriamente econômico de capitalizar a empresa e diminuir os seus encargos sociais. Ela prefigura um novo tipo de relações sociais que a empresa pretende estabelecer com seus empregados, elaborando para tanto um discurso modernizador perpassado de noções liberais acerca do trabalho assalariado.

Contrapondo a perspectiva gerencial paternalista à de tipo moderno, o discurso empresarial24 24 . Registrado em documentos da empresa e em entrevistas com seus gerentes. se estrutura ao redor de dois conceitos-chave: autonomia e participação.

A gestão "paternalista" é percebida como autoritária e coercitiva, engendrando uma comunidade passiva, desorganizada e apática. O sistema de salários indiretos deturparia a noção mesma de salário como quantum monetário que deve ser livremente disposto pelo trabalhador. Contrapondo-se ao escravismo, a sociedade moderna deve assegurar duas condições básicas para seu funcionamento: a liberdade de se travar relações contratuais de trabalho e a livre disposição da remuneração daí obtida.

A intervenção da empresa no consumo operário reduziria a margem de iniciativa dos trabalhadores para a satisfação autônoma de suas necessidades e portanto da avaliação dos "custos" destas necessidades. A aquisição da casa própria responderia a esta necessidade na medida em que induz a um sentimento de responsabilidade dos bens possuídos e participação na solução de seus próprios problemas.

O sistema de salários indiretos deturparia a noção mesma de trabalho como condição de aferição de rendimento, uma vez que a sobrevivência passa a estar assegurada simplesmente através da aquisição do emprego. Em outras palavras, o salário, ao invés de recompensar o efetivo rendimento no trabalho, gratifica a obtenção do emprego e, portanto, passa a ser totalmente indiferente ao desempenho que o trabalhador apresenta no seu trabalho, dando origem à passividade e ao descomprometimento.

Trata-se, é óbvio, de uma "passividade" e de um "descomprometimento" com relação aos objetivos e atuação da empresa e não podem ser tomados como características abstratas e típicas encontradas nos coletivos de trabalhadores que experimentam uma gestão do tipo "paternalista", apesar de ser esta última a premissa básica sob a qual se apoia o discurso gerencial.25 25 . Esta premissa se acha especialmente destacada nos documentos da empresa a este respeito. Mesmo porque o momento em que a empresa deflagra um processo de revisão de sua prática gerencial corresponde justamente ao período de maior participação e militância sindical verificadas desde a instalação da usina até 1964.

A nova política modernizadora da gestão da força de trabalho é, sobretudo, uma resposta à crise da gestão "paternalista", que passa a ser desafiada pela concorrência de vários processos sociais que tentamos explicitar, e que inaugura um novo tipo de relação com seus trabalhadores.

  • 1. Esses dois modelos são estudados por Freyssinet para o caso de grandes grupos industriais franceses, sendo o primeiro denominado "instituição global" e o segundo, "empresa capitalista pura". Politiques d'emploi des grandes groupes français. Grenoble, PUG, 1982. p. 31-2.
  • 4. Para uma história do desenvolvimento da siderurgia no Brasil e das polêmicas travadas ao seu redor, ver Wirth, J.D. A política do desenvolvimento na era de Vargas. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1973; e Baer,
  • W. Siderurgia e desenvolvimento brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
  • 7. Em 1944 a Belgo-Mineira contava em Monlevade com 2.756 empregados. IBGE. Usinas siderúrgicas de Minas Gerais. 1946. Separata Boletim, 29.
  • 8. Gerra et alii. Processo de trabalho e transferência tecnológica na indústria siderúrgica de Minas Gerais. Relatório intermediário, maio 1982, p. 13-4 mimeog.
  • 14 Jornal O Pioneiro, n. 41, ago. 1956.
  • 20. O Pioneiro, n. 118, set. 1961.
  • 21. O Pioneiro, n. 71, nov. 1957.
  • *
    Agradeço especialmente Maria Lina Valadares Campos pela competente colaboração prestada durante o transcurso da pesquisa. Ao João Paulo Pires Vasconcelos e à Diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade o meu reconhecimento pela cordialidade e desprendimento com que colocaram os arquivos da entidade a minha disposição. E, ainda, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio concedido.
  • 1
    . Esses dois modelos são estudados por Freyssinet para o caso de grandes grupos industriais franceses, sendo o primeiro denominado "instituição global" e o segundo, "empresa capitalista pura".
    Politiques d'emploi des grandes groupes français. Grenoble, PUG, 1982. p. 31-2.
  • 2
    . O transporte coletivo talvez seja o exemplo mais comum desta prática nas grandes empresas que operam com turnos contínuos. Sem interditar expressamente seu uso para os horistas, o horário de funcionamento dos ônibus acompanha a jornada de trabalho do pessoal administrativo ou dos mensalistas (engenheiros, supervisores...) , o que promove de fato uma política discrepante.
  • 3
    . Em 1948, esta localidade foi elevada à categoria de distrito de João Monlevade.
  • 4
    . Para uma história do desenvolvimento da siderurgia no Brasil e das polêmicas travadas ao seu redor, ver Wirth, J.D.
    A política do desenvolvimento na era de Vargas. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1973; e Baer, W.
    Siderurgia e desenvolvimento brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
  • 5
    . Baer, W. op.cit. p. 88.
  • 6
    . Dados elaborados a partir da seção "Velha Guarda" do jornal da companhia,
    Pioneiro, n. 1 (1955) a 159 (1965). Esta seção conta parte da história da vida dos primeiros trabalhadores da usina, permitindo as conclusões expostas a seguir.
  • 7
    . Em 1944 a Belgo-Mineira contava em Monlevade com 2.756 empregados. IBGE.
    Usinas siderúrgicas de Minas Gerais. 1946. Separata Boletim, 29.
  • 8
    . Gerra et alii.
    Processo de trabalho e transferência tecnológica na indústria siderúrgica de Minas Gerais. Relatório intermediário, maio 1982, p. 13-4 mimeog.
  • 9
    . Documento da empresa.
  • 10
    . Documento da empresa.
  • 11
    . Para caracterização dos diferentes tipos de processo de trabalho ver Coriat, B. Procès de travail, économie du temps et théories de la segmentation de la force de travail.
    In: Gaudemar, J.P., org.
    Usines et ouvriers figures du nouvel ordre productif. Paris, Maspero, 1980. E para a caracterização do processo de trabalho na CSBM como "semicontínuo" ver Gerra et alii. op. cit.
  • 12
    . Gerra et alii. op. cit. p. 38.
  • 13
    . Entrevistas com contramestres admitidos na companhia na época de fundação. O esvaziamento da função dos contramestres é relativo. Eles continuam a ser elementos-chave na coordenação da produção de tipo fluxo "semicontínuo". A afirmação é válida se a tomarmos em perspectiva histórica.
  • 14
    . Jornal
    O Pioneiro, n. 41, ago. 1956.
  • 15
    . "Através dos contramestres a direção adquire bases eficientes para encaminhar problemas técnicos e os relacionados com fatores humanos". Ibid. n. 57, abr. 57.
  • 16
    . Essas orientações são baseadas na
    Cartilha do contramestre editada pelo Centro de Educação de Liège, que a empresa passa a transcrever em seu jornal.
  • 17
    . Ibid. n. 56, abr. 1957.
  • 18
    . Esta seção se apoia em dados obtidos através de entrevistas com trabalhadores, documentos do sindicato (especialmente as Atas das Assembléias Sindicais e das Reuniões de Diretorias de 1951 a 1963) e os contratos coletivos de trabalho do mesmo período. As atas de 1964, assim como outros documentos arquivados no sindicato, desapareceram com a intervenção sindical em 1964.
  • 19
    . A própria companhia reconhece as dificuldades que vinham ocorrendo para o abastecimento normal dos postos como consta de circular "Aviso ao Pessoal" de julho de 1962. Nesta, ela "agradece aos trabalhadores e seus familiares pela colaboração que vêm dando à companhia neste momento difícil..."
  • 20
    .
    O Pioneiro, n. 118, set. 1961.
  • 21
    .
    O Pioneiro, n. 71, nov. 1957.
  • 22
    . O único sinal de uma possível influência neste sentido seria a viagem do presidente do sindicato em setembro de 1959 aos EUA, para participar de um curso sindical promovido pela Embaixada Americana. Entretanto, esta participação não trouxe maiores conseqüências sobre a conduta já estabelecida pelo sindicato de Monlevade no que diz respeito às suas alianças com o movimento sindical hegemônico no País.
  • 23
    . Em 1972, os 74 trabalhadores demitidos - alguns já vivendo em outras partes do País, outros sobrevivendo em Monlevade em atividades de biscate - entram na Justiça do Trabalho para pleitear seus direitos trabalhistas. Apesar de terem ganho de causa na justiça regional, a companhia apela para o Supremo Tribunal do Trabalho e eles são derrotados.
  • 24
    . Registrado em documentos da empresa e em entrevistas com seus gerentes.
  • 25
    . Esta premissa se acha especialmente destacada nos documentos da empresa a este respeito.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1985
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