Acessibilidade / Reportar erro

ASSÉDIO SEXUAL NO TRABALHO: UM PROBLEMA DE LIDERANÇA

Resumos

A violência sexual contra as mulheres no ambiente de trabalho continua disseminada e inadequadamente tratada. O assédio sexual é frequentemente praticado por líderes, gerentes ou supervisores, como resultado de relações de poder abusivas. Reconhecer e abordar a tolerância cultural à violência sexual nas organizações é um dos passos para tratar desta questão. Neste artigo, argumentamos que a violência encontra-se normalizada por meio de práticas de liderança. Sugerimos que um posicionamento da liderança contra o assédio sexual é essencial para a correção organizacional.


Sexual violence against women in the workplace remains rife and poorly addressed. Sexual harassment is often perpetrated by leaders, managers, or supervisors as the result of abusive power relations. Recognising and addressing the cultural tolerance for sexual violence in organizations and society is one of the steps in addressing this issue. In this paper, we argue that violence is normalised through leadership practices. We suggest that leadership against sexual harassment is essential for organizational redress.


INTRODUÇÃO

O ambiente de trabalho tem sido identificado como um espaço social onde as mudanças que abordam e buscam eliminar a violência sexual cometida contra as mulheres podem ser implementadas e aplicadas por meio de medidas voltadas à igualdade de gênero (Webster et al. , 2018Webster, K., Diemer, K., Honey, N., Mannix, S., Mickle, J., Morgan, J., ... Ward, A. (2018).Australians’ attitudes to violence against women and gender equality. Findings from the 2017 National Community Attitudes towards Violence against Women Survey (NCAS) (Research report, 03/2018). Sydney, NSW: ANROWS.). No entanto, esta forma de violência continua disseminada e inadequadamente tratada, apesar das intervenções legais que criminalizaram a violência sexual, e da implementação ampla de mecanismos de gestão e treinamento voltados à diversidade (Mackay, 2018Mackay, A. (2018). Recent developments in sexual harassment law: Towards a new model. Submission 108 to the National Inquiry into Sexual Harassment in Australian Workplaces. Sydney: Australian Human Rights Commission . Retrieved from https://humanrights.gov.au/our-work/sex-discrimination/publications/respectwork-sexual-harassment-national-inquiry-report-2020
https://humanrights.gov.au/our-work/sex-...
). Para além de abordagens pontuais em relação à diversidade e de ações punitivas em casos específicos de indivíduos que cometeram assédio, faz-se necessário combater a tolerância cultural à violência sexual nas organizações e na sociedade em sentido mais amplo. Um tratamento adequado para o flagelo da violência contra as mulheres no ambiente de trabalho também implica em mudanças culturais e sistêmicas. Incluem-se aí mudanças radicais nas culturas do ambiente de trabalho que facilitam a violência sexual, o que requer atenção ao fato de que o assédio sexual é frequentemente cometido por líderes, gerentes ou supervisores, e resulta de relações de poder abusivas. Mudanças no ambiente de trabalho são uma responsabilidade dos grupos de liderança, e é crucial abordar o fato de que alguns líderes exercem um papel na prática da violência sexual.

Fatos e pesquisas recentes dos EUA e Austrália, como o julgamento e condenação de Harvey Weinstein, e da Austrália, como os resultados da pesquisa nacional sobre o assédio sexual no trabalho (Gebicki, Meagher, & Flax, 2018Gebicki, C., Meagher, A., & Flax, G. (2018). Everyone’s business: Fourth national survey on sexual harassment in Australian workplaces. Sydney: Australian Human Rights Commission.), realizada pela Comissão Australiana de Direitos Humanos (Australian Human Rights Commission’s [AHRC]), mostram que a prática da violência sexual contra mulheres no ambiente de trabalho continua ocorrendo. Estudos recentes sobre as atitudes sociais em relação à violência contra as mulheres (Webster et al., 2018Webster, K., Diemer, K., Honey, N., Mannix, S., Mickle, J., Morgan, J., ... Ward, A. (2018).Australians’ attitudes to violence against women and gender equality. Findings from the 2017 National Community Attitudes towards Violence against Women Survey (NCAS) (Research report, 03/2018). Sydney, NSW: ANROWS.) e sobre as atitudes das lideranças em relação à violência sexual no ambiente de trabalho (Hart, Crossley, & Correll, 2018Hart, C. G., Crossley, A. D., & Correll, S. J. (2018). Leader messaging and attitudes toward sexual violence. Socius, 4, 1-11. doi:10.1177/2378023118808617
https://doi.org/0.1177/2378023118808617...
) mostram um alto nível de aceitação e prática de hostilidades e má conduta sexuais contra as mulheres.

Embora muitas pessoas sejam vítimas de má conduta sexual no ambiente de trabalho (por exemplo, pessoas LGBTQI+, homens e mulheres), neste artigo, enfocamos especificamente a violência direcionada às mulheres. Discutimos formas de assédio sexual que variam desde a atenção sexual indesejada até a coerção sexual, a agressão sexual e o abuso sexual. Embora esses termos tenham significados diferentes em diferentes contextos e países, neste artigo, utilizamos a expressão ‘assédio sexual’ para designar quaisquer formas de “comportamento sexual indesejado que seja ofensivo, humilhante ou intimidador. Pode ser escrito, verbal ou físico, e pode acontecer pessoalmente ou online” (ReachOut, 2021ReachOut. (2021). What is sexual harassment? ReachOut. Retrieved from https://au.reachout.com/articles/what-is-sexual-harassment
https://au.reachout.com/articles/what-is...
, n.p.). Geralmente, utiliza-se a expressão ‘abuso sexual’ para designar uma ampla variedade de atividades e comportamentos sexuais contra pessoas incapazes de dar consentimento (por ex., crianças) (Cortina, Koss & Cook, 2018Cortina, L., Koss, M., & Cook, S. (2018). What’s the difference between sexual abuse, sexual assault, sexual harassment and rape. The Conversation. Retrieved from https://theconversation.com/whats-the-difference-between-sexual-abuse-sexual-assault-sexual-harassment-and-rape-88218
https://theconversation.com/whats-the-di...
). A agressão sexual é crime e “ocorre quando uma pessoa é forçada, coagida ou induzida a atos sexuais contra sua vontade ou sem seu consentimento” (New South Wales [NSW] Department of Community and Justice, 2021New South Wales Department of Community and Justice. (2021). What is sexual assault. NSW Department of Community and Justice. Retrieved from https://www.victimsservices.justice.nsw.gov.au/sexualassault/Pages/sexual_assault_victims.aspx
https://www.victimsservices.justice.nsw....
).

Seguindo Özkazanç-Pan (2018)Özkazanç Pan, B. (2019). On agency and empowerment in a# MeToo world.Gender, Work & Organization, 26(8), 1212-1220. doi: 10.1111/gwao.12311
https://doi.org/10.1111/gwao.12311...
, ressaltamos a importância de questionar as estruturas e sistemas de gênero que têm facilitado o assédio sexual. Isto muda a ênfase da questão, transferindo-a dos indivíduos para uma abordagem estrutural e relacional. A prevalência da masculinidade tóxica nos diversos setores e organizações constitui campo fértil para práticas que marginalizam, silenciam e punem mulheres, no sentido de fazê-las aceitar ou tolerar rotineiramente a violência sexual cometida contra elas. Denunciar o sexismo cultural (Savigny, 2020Savigny, H. (2020).Cultural sexism: The politics of feminist rage in the #metoo era. Bristol, UK: Bristol University Press.) e as lideranças que apoiam o sexismo e a violência culturais é fundamental para o encaminhamento de soluções. Lideranças que perpetuam ‘regimes de desigualdade’ (Acker, 2006Acker, J. (2006). Inequality regimes: Gender, class, and race in organizations. Gender & Society, 20(4), 441-464. doi: 10.1177/0891243206289499
https://doi.org/10.1177/0891243206289499...
) são um elemento chave a ser considerado na abordagem de estruturas e sistemas discriminatórios de gênero que proporcionam campo fértil para a violência. Entretanto, a violência sofrida pelas mulheres é desigual, como aponta bell hooks (2004)hooks, b. (2004).We real cool: Black men and masculinity. London, UK: Psychology Press Ltd. em suas discussões sobre a violência contra as mulheres negras.

A seguir, delineamos a natureza do assédio sexual contra as mulheres. Depois, examinamos exemplos de violência contra a mulher em casos de grande visibilidade, os quais demonstram a necessidade de denunciar a violência, bem como evidenciam o modo como a desigualdade interseccional emerge. Na parte final, discutimos a necessidade de que as lideranças incluam ações claras e sistêmicas contra a violência sexual no ambiente de trabalho.

ASSÉDIO SEXUAL NO TRABALHO

Com base em dados dos EUA e da Austrália, o assédio sexual no ambiente de trabalho ainda é uma prática comum, apesar de reformas políticas e de mecanismos e estratégias de igualdade de gênero bem estabelecidos (Australian Bureau of Statistics, 2018Australian Bureau of Statistics. (2018). 49060DO0002_2016 Personal Safety, Australia, 2016: Most recent incident of violence: Tables 8 to 16. Canberra: Australian Bureau of Statistics.; Feldblum & Lipnic, 2016Feldblum, C. R., & Lipnic, V. A. (2016). Report of the co-chairs of the EEOC select task force on the study of harassment in the workplace. Retrieved from https://www.eeoc.gov/eeoc/task_force/harassment/upload/report.pdf
https://www.eeoc.gov/eeoc/task_force/har...
; US Equal Employment Opportunity Commission, 2019US Equal Employment Opportunity Commission. (2019). Enforcement & litigation statistics. Retrieved from https://www.eeoc.gov/eeoc/statistics/enforcement/sexual_harassment_new.cfm
https://www.eeoc.gov/eeoc/statistics/enf...
; Nason & Sangiuliano, 2020Nason G., & Sangiuliano M. (2020). Deliverable No. 3.3. State of the art analysis: Mapping the awarding certification landscape in Higher Education and Research. Hague: European Union.). Na Austrália, a Agência Australiana de Estatística (ABS) vem aplicando uma Pesquisa de Segurança Pessoal (PSS) que inclui perguntas sobre violência sexual e de gênero. A PSS 2016 mostra que cerca de 10,6% dos incidentes mais recentes de agressão sexual ou ameaça sexual cometidos por um homem contra uma mulher nos últimos dez anos ocorreram no trabalho, e 12,5% dos agressores eram empregadores/gerentes/supervisores/colegas (Australian Bureau of Statistics, 2018Australian Bureau of Statistics. (2018). 49060DO0002_2016 Personal Safety, Australia, 2016: Most recent incident of violence: Tables 8 to 16. Canberra: Australian Bureau of Statistics.).

A Comissão Australiana de Direitos Humanos (AHRC) iniciou uma pesquisa nacional sobre o Assédio Sexual nos Ambientes de Trabalho Australianos (Gebicki et al., 2018Gebicki, C., Meagher, A., & Flax, G. (2018). Everyone’s business: Fourth national survey on sexual harassment in Australian workplaces. Sydney: Australian Human Rights Commission.). Os resultados dessa pesquisa mostram que “uma em cada três pessoas (33%) sofreram assédio sexual no trabalho nos últimos cinco anos. Assim como ocorre com o assédio sexual ao longo da vida, as mulheres tinham maior probabilidade de ser assediadas sexualmente no ambiente de trabalho do que os homens” (Gebicki et al., 2018, p. 8). A pesquisa apurou ainda que:

  • 25% dos autores de assédio sexual no ambiente de trabalho que agiam sozinhos eram supervisores ou gerentes diretos (11%), outro gerente ou supervisor do trabalho (8%) ou o chefe do local de trabalho ou da organização (por ex.: o CEO, proprietário da empresa ou similar) (6%) da vítima ou sobrevivente;

  • 47% dos casos em que havia mais de um autor envolviam um gerente ou supervisor direto (21%), outro gerente ou supervisor (16%) ou o chefe do local de trabalho ou da organização (10%);

  • 22% das testemunhas únicas de atos de assédio sexual no ambiente de trabalho eram o gerente ou supervisor direto (12%), outro gerente ou supervisor do trabalho (6%) ou o chefe do local de trabalho ou da organização (4%) da vítima ou sobrevivente; e

  • nos casos de várias testemunhas, 42% incluíam o gerente ou supervisor direto (16%), outro gerente ou supervisor do trabalho (16%) ou o chefe do local de trabalho ou da organização (11%) da vítima ou sobrevivente.

Esses resultados precisam ser examinados à luz do fato - confirmado pela pesquisa - de que “Uma em cada cinco pessoas assediadas sexualmente no trabalho afirmou que o comportamento era comum (20%) em seu ambiente de trabalho” (Gebicki et al., 2018Gebicki, C., Meagher, A., & Flax, G. (2018). Everyone’s business: Fourth national survey on sexual harassment in Australian workplaces. Sydney: Australian Human Rights Commission., p. 9). Estes números estão correlacionados a outros resultados de diversas pesquisas nacionais recentes que evidenciam a extensão das visões sexistas na Austrália. Por exemplo, uma pesquisa nacional sobre atitudes sociais em relação à igualdade de gênero constatou que 53% da população pesquisada acreditavam que, na Austrália, o sexismo estava mais disseminado no ambiente de trabalho, atrás da política (58%), mas na frente da mídia (42%) e da publicidade (33%) (Evans, Haussegger, Halupka, & Rowe, 2019Evans, M., Haussegger, V., Halupka, M., & Rowe, P. (2019). Social attitudes to gender equality in Australia: Part 1: Quantitative findings. Canberra: 5050 by 2030 Foundation. Retrieved from https://www.5050foundation.edu.au/assets/reports/documents/From-Girls-to-Men.pdf
https://www.5050foundation.edu.au/assets...
). Outra pesquisa nacional sobre as atitudes em relação à violência contra as mulheres e à igualdade de gênero verificou que 14% dos australianos acreditavam que os homens são líderes melhores na política e no trabalho (Webster et al. 2018Webster, K., Diemer, K., Honey, N., Mannix, S., Mickle, J., Morgan, J., ... Ward, A. (2018).Australians’ attitudes to violence against women and gender equality. Findings from the 2017 National Community Attitudes towards Violence against Women Survey (NCAS) (Research report, 03/2018). Sydney, NSW: ANROWS.).

Além disso, embora apenas indicativa do que pode ser considerado como práticas e cultura aceitas, uma revisão de 58 relatos submetidos à Pesquisa Nacional da AHRC sobre o Assédio Sexual nos Ambientes de Trabalho Australianos - acessados em 8 de julho de 2019, publicamente disponíveis no site da AHRC,1 1 https://www.humanrights.gov.au/our-work/sex-discrimination/projects/national-inquiry-sexual-harassment-australian-workplaces juntamente com 131 relatos submetidos em nome de organizações - evidencia quão comum e normalizado é o assédio de caráter sexual no trabalho. Uma busca realizada nesses relatos utilizando as palavras-chave ‘chefe’, ‘diretor’, ‘líder’, ‘gerente’, ‘executivo’, ‘CEO’, ‘sênior’ e ‘supervisor’ revelou que 25 indivíduos relataram comportamentos sexualmente motivados ou sexistas cometidos por funcionários em cargos de gestão (por ex., comentários sexualizados indesejados, piadas obscenas, toques, estupro), 18 relatos de falta de apoio ou resposta inadequada por parte da gestão diante dos relatos de tais más condutas (por ex., falta de ação diante das queixas, isolamento ou bloqueio de promoção do funcionário que se queixou), e 8 relatos de apoio ou aceitação implícita de atitudes e comportamentos sexuais objetificantes em relação à mulher (por ex., culpabilização da vítima pelas ações do agressor). Embora não houvesse dados disponíveis sobre outras formas de diferenciação, esta rápida busca também mostrou que a maioria dos agressores eram homens (apenas 6 dos 58 relatos individuais eram sobre agressoras mulheres), e as vítimas eram majoritariamente mulheres (5 homens dentre os 58 indivíduos).

Nesses relatos, uma revisão sobre as referências ao movimento social ‘MeToo’ e ‘#MeToo’ evidencia os impactos conflitantes que o movimento teve junto às vítimas. Embora não seja possível generalizar a partir dos relatos individuais, percebe-se que, para algumas dessas pessoas, o movimento teve um impacto negativo, incluindo a retraumatização (ex., “Eu não pensava nesse incidente havia anos, mas tive de reviver o trauma do ataque e suas consequências pessoais e na carreira quando a campanha #MeToo ganhou força por aqui há 12 meses”) e confirmando a falta de ação dos que ocupam posições de responsabilidade ou assistência, bem como a impunidade dos agressores (por ex., “Toda essa conversa de MeToo é bobagem. Você fala para as mulheres comunicarem o assédio sexual ao RH. O RH faz uma investigação que acoberta o ‘suposto’ ato.”). Por outro lado, percebe-se, também, que o movimento ajudou vítimas que não queriam utilizar os canais formais de comunicação, no sentido de revelar informalmente os incidentes (ex., “Já tentei comunicar essas coisas no movimento MeToo, mas me falta coragem”), e as apoiou a comunicar formalmente os incidentes, por meio, por exemplo, de um relato à AHRC, caso da citação abaixo:

O holofote internacional do #MeToo sobre a má conduta sexual e o abuso de poder por indivíduos em posição de autoridade, e as alegações de má conduta sexual feitas contra figuras da mídia aqui na Austrália têm sido, inegavelmente, um catalisador para dar voz (predominantemente) às mulheres, dando-lhes a capacidade de falar sobre comportamentos que sequer deveriam ter ocorrido, e muito menos no ambiente de trabalho.

Nos EUA, de acordo com uma pesquisa conduzida em janeiro de 2018 com 1.000 mulheres e 1.000 homens com idades a partir de 18 anos, conduzida em janeiro de 2018 (Kearl, 2018Kearl, H. (2018). The facts behind the #MeToo movement: A national study on sexual harassment and assault. Retrieved from http://www.stopstreetharassment.org/wp-content/uploads/2018/01/Full-Report-2018-National-Study-on-Sexual-Harassment-and-Assault.pdf
http://www.stopstreetharassment.org/wp-c...
, p. 7): “81% das mulheres e 43% dos homens relataram ter passado por alguma forma de assédio sexual e/ou agressão sexual durante a vida.

  • Mais de 3 em cada 4 mulheres (77%) e 1 em cada 3 homens (34%) sofreram assédio sexual verbal;

  • Uma em cada 2 mulheres (51%) e 1 em cada 6 homens (17%) foram sexualmente tocados de forma indesejada;

  • Cerca de 4 em cada 10 mulheres (41%) e 1 em cada 4 homens (22%) passaram por assédio sexual na internet;

  • Mais de 1 em cada 3 mulheres (34%) e 1 em cada 10 homens (12%) foram fisicamente seguidos;

  • Perto de 1 em cada 3 mulheres (30%) e 1 em cada 10 homens (12%) passaram por genital flashing [ato obsceno em que o assediador expõe genitália à vítima];

  • Mais de 1 em cada 4 mulheres (27%) e 1 em cada 14 homens (7%) sobreviveram a agressão sexual”.

Essa pesquisa também destacou que “Qualquer pequena diferença entre os grupos étnicos/raciais de mulheres não foi estatisticamente significativa. De modo geral, entre os homens, os hispânicos foram os que relataram ter sofrido mais assédio e agressão sexual para todas as categorias, enquanto os homens negros foram os que relataram ter sofrido menos. A diferença entre os grupos étnicos/raciais foi particularmente significativa para o assédio fisicamente agressivo (36% dos homens hispânicos, em comparação com 25% dos homens brancos e 18% dos homens negros) e para agressão sexual (12% dos homens hispânicos em comparação com 8% dos homens negros e 6% dos homens brancos)” (ibid, p. 18).

Esses relatos e pesquisas destacaram a necessidade de mudança, sugerindo a intersecção de desigualdades entre gênero, classe e raça, e enfatizaram o papel que as práticas de liderança desempenham na manutenção ou promoção de uma cultura que apoia o abuso de poder sobre as mulheres sob a forma de má conduta sexual. Eles também revelaram a compreensão dos indivíduos sobre a capacidade das práticas de liderança no sentido de coibir o abuso sistêmico e individual das mulheres.

CASOS DE INTERSECÇÕES DE DESIGUALDADE

A fim de ilustrar mais vividamente as formas pelas quais homens em posições de liderança utilizam seu poder para abusar das mulheres, passamos agora a analisar dois casos de grande repercussão na mídia que ajudaram a atrair atenção para a questão do abuso e da violência sexuais contra as mulheres. Esses casos constituem exemplos terríveis das relações entre poder, violência e liderança, bem como da complexidade das práticas coercitivas na intersecção das diferenças (por ex., gênero, classe social, idade, etnicidade).

No dia 7 de dezembro de 2017, em uma audiência do Congresso dos EUA sobre assédio sexual no ambiente de trabalho, Gloria Lett, advogada e assessora congressual para assuntos de relações de trabalho, prestou um depoimento em que relatava suas próprias experiências de discriminação. Além de explicar como o assédio sexual levou-a, no início de sua carreira, a deixar um emprego com o qual estava satisfeita, ela também revelou algumas realidades de discriminação e abuso de caráter racial a que foi submetida. Lett descreveu um incidente nos seguintes termos:

Como mulher negra, também já sofri discriminação racial no ambiente de trabalho [...] Trabalhei numa empresa privada onde um gerente branco trazia um chicote, que ele deixava à mostra em seu escritório. E quando lhe perguntavam sobre aquilo, ele dizia que queria - abre aspas - motivar os funcionários negros - fecha aspas. (Edwards, 2017,Edwards, D. (2017, December 7). House Employment Counsel staff testifies: White ex-boss used whip at work to ‘motivate the black employees’. RawStory. Retrieved from https://www.rawstory.com/2017/12/house-employment-counsel-staff-testifies-white-ex-boss-used-whip-at-work-to-motivate-the-black-employees/
https://www.rawstory.com/2017/12/house-e...
s.p.)

A história de Lett é uma história de racismo explícito que ecoa assustadoramente as injustiças extremas do passado dos EUA, amplificando-as em um presente onde a autoridade branca utiliza ameaças de violência na tentativa de controlar os afro-americanos. É também uma história sobre liderança. Não os contos de fadas de heroísmo que caracterizam grande parte das pesquisas sobre liderança (Grint, 2010Grint, K. (2010). The sacred in leadership: Separation, sacrifice and silence. Organization Studies, 31(1), 89-107. doi: 10.1177/0170840609347054
https://doi.org/10.1177/0170840609347054...
), mas a dura realidade do que pode acontecer quando a autoridade no local de trabalho interage com um legado cultural de colonialismo e sexismo. O relato de Lett é angustiante por si só, mas angustiante também porque representa as experiências de tantas mulheres no ambiente de trabalho nas mãos dos homens. Ele mostra, ainda, como essas experiências podem ser perturbadoramente diferentes para as mulheres negras. São justamente disparidades como essas, e o modo como os líderes as exploram e reproduzem para garantir seu domínio, que mostram como funcionam os regimes de desigualdade (Cook & Glass, 2014Cook, A., & Glass, C. (2014). Above the glass ceiling: When are women and racial/ethnic minorities promoted to CEO?Strategic Management Journal, 35(7), 1080-1089. doi: 10.1002/smj.2161
https://doi.org/10.1002/smj.2161...
).

O segundo é o caso do produtor de filmes de Hollywood e agressor sexual em série Harvey Weinstein. Quando Lupito Nyong’o, atriz queniana-mexicana vencedora de um Oscar, escreveu no The New York Times, em outubro de 2017 (Nyong’o, 2017), sobre o assédio que sofreu nas mãos de Weinstein, ela foi a primeira atriz negra proeminente a testemunhar ter sido assediada por Weinstein; as outras acusadoras eram, em geral, brancas. Foi em resposta a Nyong’o que, em comparação com todas as outras acusadoras, Weinstein elaborou uma negação muito específica, afirmando efetivamente que ela havia inventado a história. Embora ele tenha assumido a responsabilidade por tantos de seus comportamentos repreensíveis, sua reação mudou quando sua acusadora era negra, o que resultou em muitas pessoas chamarem sua defesa de racista (Wang, 2017Wang, A. (2017). Harvey Weinstein, accused by dozens, specifically disputes Lupita Nyong'o's claims. Stuff, 23 October. Retrieved from https://www.stuff.co.nz/entertainment/celebrities/98141118/weinstein-accused-by-dozens-specifically-disputes-nyongos-harassment-claims
https://www.stuff.co.nz/entertainment/ce...
).

O histórico de Weinstein de assédio e agressão sexual contra mulheres ao longo de toda a sua carreira é um exemplo do pior tipo de abuso de poder por uma figura de autoridade masculina branca. Este comportamento foi possibilitado pelo poder a ele conferido por sua posição de liderança como copresidente da The Weinstein Company. Seu perturbador histórico de abuso sistemático de mulheres em uma indústria na qual ‘líderes’ brancos tomam decisões de carreira que afetam a vida das mulheres com base em uma avaliação da ‘fodibilidade’2 2 https://www.universitiesaustralia.edu.au/uni-participation-quality/students/Student-safety (Adewunmi, 2017Adewunmi, B. (2017, October 19). There’s an elephant In Harvey Weinstein’s hotel room. BuzzFeed News. Retrieved from https://www.buzzfeed.com/bimadewunmi/lets-talk-about-black-women-in-hollywood-and-harvey?utm_term=.qvROlOr9V#.shmyJyQqV
https://www.buzzfeed.com/bimadewunmi/let...
) de cada uma delas não é desprovido de dimensões raciais

Tanto o gerente ‘feitor de escravos’ de Gloria Lett quanto Harvey Weinstein conseguiram seguir impunes com seus padrões de repetido abuso por tantas décadas porque seus comportamentos têm sido aceitos como normais em seus respectivos ambientes institucionais. Esses atos representam uma forma injuriosa de liderança que constitui uma prática aceita e dominante, sendo apoiada e legitimada por intersecções de sistemas complexos de poder, tais como as visões racistas brancas étnico-nacionalistas e a dominação patriarcal. Em sua defesa, Weinstein disse: “Cheguei à maioridade nos anos 60 e 70, quando todas as regras sobre comportamento e ambiente de trabalho eram diferentes. Essa era a cultura na época.” (Eve, 2017,Eve, J. (2017, October 5). The sixties made me do it! Harvey Weinstein’s excuse. Huffington Post. Retrieved from https://www.huffingtonpost.com/entry/the-sixties-made-me-do-it-harvey-weinsteins-excuse_us_59d6a427e4b08ce873a8cc77
https://www.huffingtonpost.com/entry/the...
s.p.). As implicações dessa recusa em assumir a responsabilidade são que quando a desigualdade de poder entre homens e mulheres é institucionalizada, o abuso das mulheres torna-se normalizado. Além disso, tal institucionalização é ainda mais solidificada pela “pressão para reconstruir a história de modo a manter a associação, própria do status quo, entre liderança, ação individual, masculinidade e noções estáticas e hierárquicas de poder e controle” (Fletcher, 2004Fletcher, J. K. (2004). The paradox of postheroic leadership: An essay on gender, power, and transformational change. Leadership Quarterly, 15(5), 647-661. doi: 10.1016/j.leaqua.2004.07.004
https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2004.07...
, p. 653; ver também Ford, 2005Ford, J. (2005). Examining leadership through critical feminist readings. Journal of Health Organization and Management, 19(3), 236-251. doi: 10.1108/14777260510608961v
https://doi.org/10.1108/1477726051060896...
). É assim que os regimes de desigualdade operam, e é assim que os líderes os exploram para assegurar sua dominação (Cook & Glass, 2014Cook, A., & Glass, C. (2014). Above the glass ceiling: When are women and racial/ethnic minorities promoted to CEO?Strategic Management Journal, 35(7), 1080-1089. doi: 10.1002/smj.2161
https://doi.org/10.1002/smj.2161...
).

LIDERANÇA COMO AÇÃO POLÍTICA CONTRA A VIOLÊNCIA SEXUAL

O assédio sexual contra mulheres que se identificam ou são percebidas como pertencentes a outro grupo minoritário ocorre dentro e por meio de intersecções de estruturas de poder. É, portanto, crucial compreender que, no ambiente de trabalho, essas formas de discriminação e práticas de liderança violentas estão inseridas em regimes e sistemas de desigualdade historicamente moldados, os quais produzem experiências distintas que tornam alguns de nós insignificantes (Collins, 2015Collins, P. H. (2015). Intersectionality's definitional dilemmas. Annual Review of Sociology, 41, 1-20.) por meio da realização e implementação de “práticas, processos, ações e significados que geram e mantêm desigualdades de classe, gênero e raça dentro de organizações específicas” (Acker, 2006Acker, J. (2006). Inequality regimes: Gender, class, and race in organizations. Gender & Society, 20(4), 441-464. doi: 10.1177/0891243206289499
https://doi.org/10.1177/0891243206289499...
b, p. 443).

O enfrentamento da violência sexual e a conquista da igualdade nas organizações exigem uma ruptura das condições subjacentes que reproduzem os privilégios e injustiças, incluindo a tolerância cultural à violência. Lidar com esses atos de violência e condições organizacionais requer um compromisso profundo por parte da liderança e a construção de alianças em todos os níveis das organizações, ao invés de uma forma acrítica de compliance ou de abordagem “neutra em termos de gênero” que falha em reconhecer as necessidades individuais e mantém a desigualdade de gênero.

Um bom começo é entender como funcionam os regimes de desigualdade, por meio da análise das hierarquias e posições de liderança dentro das organizações. Mas isso não é suficiente, pois, em alguns casos, um foco individual pode ter o efeito oposto, fazendo com que determinadas pessoas pareçam ou se sintam mais isoladas, constituindo, assim, uma plataforma normativa para o comportamento opressor em instituições que reforçam a dominação patriarcal por meio da ordem estrutural . Se nosso objetivo é sermos capazes de (inter)agir como iguais em organizações sem violência, alcançar a igualdade em ambientes de trabalho específicos é apenas parte da luta emancipatória. Para liderar mudanças sistêmicas mais amplas, é necessário agir além das violações individuais ou desigualdades em organizações isoladas. É necessário, também, assumir a responsabilidade por todas as nossas ações.

Enfrentar a violência sexual no ambiente de trabalho requer mudanças políticas (Rottenberg, 2019Rottenberg, C. (2019). # MeToo and the prospects of political change. Soundings, 71(71), 40-49. doi: 10.3898/SOUN.71.03.2019v
https://doi.org/10.3898/SOUN.71.03.2019v...
) e compromisso por parte dos líderes. Tal política significa a implementação práticas de liderança que reconheçam a existência de regimes de desigualdade e busquem desafiar e transformar as relações tradicionais de gênero no ambiente de trabalho caracterizadas por interações produtivas e restritivas baseadas no poder. Essa política depende também da criação de práticas compartilhadas ou de “comunidade”, exemplificadas por movimentos feministas, como o #MeToo, o #ShoutingBack e o Black Lives Matter (Pullen, Rhodes, McEwen & Liu, 2019Pullen, A., Rhodes, C., McEwen, C., & Liu, H. (2019). Radical politics, intersectionality and leadership for diversity in organizations. Management Decision. https://doi.org/10.1108/MD-02-2019-0287
https://doi.org/10.1108/MD-02-2019-0287...
). De fato, a discussão de Özkazanç-Pan (2019, p.1217)Özkazanç Pan, B. (2019). On agency and empowerment in a# MeToo world.Gender, Work & Organization, 26(8), 1212-1220. doi: 10.1111/gwao.12311
https://doi.org/10.1111/gwao.12311...
sobre o feminismo coletivo nos lembra que “a mudança do sistema de gênero exigirá esforços, vozes e pesquisas coletivos que certamente cruzam as fronteiras nacionais, virtuais e comunitárias quando se faz necessária uma ação comunal e transversal ampla”. Essas formas de organização mostram a importância vital de construir forças que atravessem os eixos de diferença para romper a hierarquia, o poder e os regimes nos quais a desigualdade se perpetua, e não apenas tratar das mudanças estruturais necessárias para interromper o ressurgimento do mesmo comportamento em outros indivíduos, mas também denunciar e/ou processar agressores individuais em nível organizacional e nacional (Teixeira & Rampazo, 2017Teixeira, J. C., & Rampazo, A. da S. V. (2017). Assédio sexual no contexto acadêmico da administração: O que os lábios não dizem, o coração não sente? Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 11(4), 1151-1235. ; Teixeira, Silva, Mesquita, & Rampazo, 2018Teixeira, C. T., Silva, C. R., Mesquita, J. S., & Rampazo, A. V. (2018). Assédio sexual no contexto acadêmico da administração: Relações de poder cotidianas sobre as quais elas já disseram, e nós vamos dizer mais. E. V CBEO, Curitiba, PR. Recuperado de http://www.sisgeenco.com.br/sistema/cbeo/anais2018/ARQUIVOS-resumos/GT11-197-152-20180520170758.pdf
http://www.sisgeenco.com.br/sistema/cbeo...
).

Algumas das queixas no âmbito do movimento #MeToo com relação ao assédio sexual no ambiente de trabalho levaram a mudanças, como o aumento da apresentação de queixas legais, mais incidentes relatados e a implementação de novos programas de treinamento (Baum, 2019Baum, B. (2019). Workplace sexual harassment in the “Me Too” era: The unforeseen consequences of confidential settlement agreements. Paper presented at the ASBBS 26th Annual Conference, Harrah, Las Vegas, USA. Retrieved from http://asbbs.org/files/2019/ASBBS_26th_Conference_Proceedings.pdf#page=45
http://asbbs.org/files/2019/ASBBS_26th_C...
). Alguns exemplos de material de treinamento incluem o Consent Matters, destinado a funcionários e estudantes universitários na Austrália,3 e o norte-americano That’s Harassment (Avin & Schwimmer, 2018Avin, S., & Schwimmer, D. (2018). That’s harassment. Milk Studios. YouTube channel. Retrieved from https://www.youtube.com/channel/UCQnHegT-awFsplQdVLCaKpA
https://www.youtube.com/channel/UCQnHegT...
). Os próximos passos necessários para encerrar o ciclo de violência envolvem a responsabilização dos homens por suas ações contra as mulheres, e, ainda, que os líderes assumam a responsabilidade pelas mudanças culturais e de atitude nas organizações.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br