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Opções tecnológicas aos países em desenvolvimento: considerações sobre um caso

ARTIGOS

Opções tecnológicas aos países em desenvolvimento: considerações sobre um caso

Midori AokiI; Rui Fontana LopezII

IAssessora de investimento no mercado de capitais e candidata ao mestrado em economia da London School of Economic and Politicai Science

IITécnico da Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo

A evolução do estudo dos fenômenos econômicos e o fortalecimento dos estados nacionais, com o conseqüente aperfeiçoamento dos instrumentos colocados à sua disposição, tornaram possível aos governos, dentro de certos limites, influenciar o curso do desenvolvimento. As sucessivas crises enfrentadas durante o predomínio do liberalismo e suas repercussões mundiais evidenciaram a necessidade da utilização mais ampla desse potencial para amenizar os impactos das flutuações e desequilíbrios associados às relações econômicas, ao mesmo tempo que facilitaram a aceitação desse maior grau de intervencionismo. Outro efeito das dificuldades econômicas mundiais foi o realce da situação de vulnerabilidade dos países subdesenvolvidos, com suas implicações políticas, econômicas e sociais.

A conjugação dessas perspectivas resultou na acentuada preocupação com a promoção deliberada do desenvolvimento, que passou a ser assumida como um compromisso natural, atribuível aos governos de países ainda nãodesenvolvidos. Portanto, entre as múltiplas opções que, dado o grau de controle obtido, as sociedades estariam em condições de fazer, a primeira, qual seja, a desejabilidade ou não de sua inserção na dinâmica do desenvolvimento, assim entendida a liberação de todo um complexo de pobreza e dependência, já estava decidida de forma mais ou menos implícita. O maior problema, porém, está no nível seguinte do processo, quando é necessário operacionalizar esse objetivo, uma vez que a escolha de determinado caminho ou "modelo de desenvolvimento" condicionará as possibilidades de decisões posteriores. É nesse plano que pode ser enquadrado o problema da opção tecnológica.

Qualquer que seja a sociedade e os critérios de avaliação utilizados, o fato de existirem recursos naturais desuniformemente distribuídos e necessidades concretas mínimas para a sobrevivência de seus membros permite associar de alguma forma o nível de bem-estar ao domínio de técnicas que permitam um confronto vantajoso com a natureza, com outras sociedades e entre seus próprios componentes. A escolha da tecnologia adequada, em sentido amplo, a ser aplicada no processo de produção de um país é, portanto, um aspecto crucial da orientação imprimida ao desenvolvimento, uma vez que ela afeta o nível de eficiência da utilização dos recursos já existentes e o potencial de evolução futura. Todas as inter-relações advindas dessa opção a tornam, senão a mais, pelo menos uma das mais importantes decisões para os planos econômico, político, social e cultural.

Isso dá margem a uma questão: pode um país, com efeito, optar livremente por um modelo tecnológico? Responder afirmativamente, sem reservas, pode ser irreal, por ignorar-se o aspecto histórico da evolução tecnológica e as exigências associadas; as possibilidades não atingem todas as técnicas disponíveis. Em oposição, o "determinismo tecnológico", ao concluir que, consideradas todas as restrições, há em realidade apenas uma alternativa em cada caso, ignora que, fixadas as condições objetivas a serem respeitadas, ainda resta uma ampla faixa referente a escalas, produtos e processos, dentro da qual um país pode exercer sua capacidade de decisão. Essa faixa deve ser vista dinamicamente, no sentido de que o espectro de alternativas possíveis muda ao longo do tempo e é, ele mesmo, resultado de escolhas, na medida em que as técnicas podem ser desenvolvidas em uma direção em vez de outra, em função dos valores presentes na própria defi. nição do conceito e dos beneficiários do desenvolvimento econômico-social.1 1 Veja Stewart, Frances. Choice of techniques in developing countries. In: Journal of Development Studies, London, 9, Oct. 1972.

Muitos problemas foram ou são comuns a todos os países subdesenvolvidos, como a falta de autonomia político-econômica, deficiências na formação de recursos humanos, posição desvantajosa nas relações internacionais de troca ou infiltração de interesses de potências estrangeiras em seus limites internos. A decisão de superar essas dificuldades gerou soluções impregnadas dos valores anteriormente estabelecidos,2 2 As possibilidades de escolha são, em certo sentido, função de aspectos com amplo caráter ideológico, e a difusão de ideologias é resultado de relações de poder que estabelecem os padrões educacionais e de outras formas de incorporação de valores dificilmente alteráveis. o que determinou que a grande maioria das experiências desenvolvimentistas se dessem no âmbito do já difundido modo de produção capitalista, naturalmente com algumas variações, mas sem diferenças radicais. A grande preocupação desses países parece ser a de conseguir, a qualquer custo, acompanhar a tecnologia produzida em seus centros de influência. Essa determinação pode fazer supor a existência de alguma relação necessária entre industrialização segundo padrões tecnológicos capitalistas e desenvolvimento, embora em muitos casos o resultado concreto tenha sido o aprofundamento das relações de dependência e crescentes dificuldades para a manutenção do ritmo de absorção de novas técnicas.

A atuação do governo na transferência dos benefícios produzidos no sistema científico-tecnológico para a sociedade é cada vez mais efetiva e direta, apesar de assumir em cada caso características específicas.

A intervenção possível do Estado no sentido de concretizar esta relação entre o sistema científico-tecnológico e o sistema produtivo estaria localizada num contínuo de posturas compreendidas entre os casos extremos da Inglaterra e da China. É na Inglaterra que se verifica a postura mais liberal do Estado em relação ao sistema científico. Este atua só como organismo provedor de verbas e condições para o trabalho científico, sem formular objetivos ou metas muito definidas, ocorrendo a relação ciênciaprodução diretamente, sem uma mediação efetiva do sistema político. No outro extremo encontra-se o caso da China onde a mediação pelo sistema político é claramente identificada. É o Estado que, além de prover materialmente a produção de ciência e tecnologia, coloca as demandas e objetivos a serem perseguidos pela comunidade científica.

O objetivo deste trabalho ao focalizar a China é, portanto, apresentar um modelo de desenvolvimento baseado em uma opção tecnológica que também considerou e procurou superar uma série de obstáculos próprios de países não-desenvolvidos, mas com uma visão alternativa bastante distinta do processo de superação de deficiências para atingir o progresso socioeconómico. Além da inovação que representa a proposta, a rapidez da transformação e os resultados que parecem ter sido obtidos justificam uma observação mais cuidadosa dessa opção.

Embora cada país seja um caso peculiar e não exista a ingênua pretensão de sugerir que a transposição das medidas adotadas na China a qualquer um deles traria os mesmos benefícios, pode ser útil para a ampliação de perspectivas a verificação de que muitas soluções alternativas originais e eficazes para graves problemas típicos do subdesenvolvimento podem ser aplicada.,, desde que sejam criadas condições políticas e culturais coerentes com os objetivos propostos e superadas as limitações impostas por toda uma ordem de compromissos internacionais. O fato de o processo de desenvolvimento chinês ter-se desenrolado fora do âmbito do modo de produção capitalista altera todos os parâmetros, critérios de avaliação e fatores privilegiados na promoção desse objetivo, bem como os instrumentos passíveis de utilização para tal, mas isso não impede que o conhecimento de suas características auxilie a visualizar novas formulações para aplicação em outros contextos.

A compreensão da rápida transformação que, ao que tudo indica, se operou na sociedade chinesa a partir da implantação do governo popular, em 1949, pede, ainda que através de um rápido esboço, o esclarecimento de um ponto: quais eram as reais condições anteriormente vigentes e que forneceram as bases restritas ou permissivas para seu estabelecimento?

Em face das dificuldades de transporte e comunicação em um território tão vasto, a fragmentação sempre foi, em muitos aspectos, uma característica até certo ponto natural da China. Isso se tornou um problema e se agravou especialmente a partir de 1840. A perspectiva otimista que poderia advir do potencial representado pela extensão territorial, numerosos habitantes, dotação de recursos naturais e uma longa tradição como Império unificado3 3 A unidade pôde ser conferida especialmente por fatores de ordem cultural, que compensavam a mencionada dispersão geográfica e política. independente, foi historicamente contrariada nesse período.

Entre as causas do atraso da economia chinesa, especialmente ao nível daqueles segmentos da economia que não estavam sob influência externa, um fator significativo, senão principal, foi a influência negativa do governo. A burocracia imperial e o Governo Central de Pequim no século XIX eram essencialmente antidesenvolvimentistas, resistindo à modernização e sendo muito fracos para evitar a fragmentação do poder político e econômico. Em parte como conseqüência desses fatores, os promotores da modernização que pôde ser observada no período tiveram que ser principalmente estrangeiros e instituições externas; como resultado, a modernização foi identificada com infiltração e, assim, foi percebida como uma ameaça não só à ordem tradicional mas à própria integridade do Estado chinês, o que aumentou as resistências e dificultou sua difusão. Apareceu, então, uma economia tripartida em setores fracamente relacionados: o abrangente setor tradicional, representado pela agricultura, um setor relativamente moderno construído em torno de portos e cidades vizinhas em áreas que foram objeto de tratados com potências estrangeiras e a peculiar economia da Manchúria, sob domínio do Japão a partir de 1931, onde ocorreu a maior parte de todo o progresso industrial. Embora política e socialmente esses dois núcleos de industrialização fossem indesejáveis, eles desempenharam algumas funções importantes a longo prazo para o desenvolvimento econômico. Primeiro, criaram economias externas, como serviços públicos, uma infra-estrutura financeira e outras facilidades, ainda que confinadas a uma pequena área. Segundo, proporcionaram uma oportunidade de treinamento para o pessoal técnico e administrativo e para um incipiente empresariado nativo.

A agricultura, à qual estava vinculada a grande maioria da população, permaneceu dentro de padrões tradicionais, proporcionando um nível de vida próximo da margem de subsistência a uma população crescente em função das características da atividade rural (investimento requerido baixo ou quase nulo, resultando a incorporação de unidades adicionais de mão-de-obra um rendimento marginal positivo). Esse equilíbrio precário foi rompido com o agravamento dos conflitos internos, o que levou a um intenso declínio na produção.

O período descrito pode ser localizado entre 1840 e 1950 e teve como cenário histórico contínuas pressões externas, emprego de mecanismos de opressão e intensificação de penetrações estrangeiras. Ao mesmo tempo, e como efeito já certamente esperado, observou-se o declínio dinástico, a desunificação política e o parcial desmembramento territorial.

Quando os chineses comunistas assumiram o poder em 1949, portanto, tinham em mãos uma economia inflacionária, predominantemente agrária, desorganizada, fragmentada e enfraquecida pelos atritos internos e arremessos do colonialismo externo. De acordo com praticamente todos os critérios disponíveis, o país certamente estava nos degraus mais inferiores da escala mundial de desenvolvimento. O PNB per capita estaria próximo de US$ 50, a metade ou 1/3 do registrado na Inglaterra no século XVII, montante bastante reduzido, mesmo considerando os possíveis erros introduzidos pela conversão. Mais de 65% desse produto era proveniente de uma agricultura com baixo nível de produtividade, operando dentro de padrões tecnológicos e institucionais tradicionais. A taxa de analfabetismo devia estar próxima de 80%.

A supressão de muitos detalhes, imposta pelos objetivos desse trabalho, pode dar uma idéia exagerada de atraso que não é real. A existência de alguns setores e fases de relativa prosperidade não pode ser subestimada.4 4 Veja Eckstein, A.; Galenson, W. & Liu, T. C. Economic trends in communist China. Chicago, Aldine Plubishing Company, 1968, especialmente os cap. 1 e 2. Nos contornos mais marcantes, porém, é possível observar que estão presentes alguns fatores fundamentais que permitem caracterizar uma situação propícia à reprodução do subdesenvolvimento. Alguns desses aspectos, como a infiltração externa, também sugeririam a oportunidade para mudanças mais radicais.

Nesse quadro, uma das atribuições da reconstrução socialista seria, naturalmente, a superação do subdesenvolvimento. A fórmula adotada pela China para esse fim, como confirmam os fatos históricos, elegeu como ponto privilegiado a independência em relação aos meios de produção e daí, necessariamente, a independência tecnológica. Políticas distintas podem ser percebidas nos diversos estágios em que pode ser dividido o progresso chinês em direção a esse objetivo.

Antes de passar ao exame desses estágios e das escolhas que eles representaram, parece útil apresentar dois comentários efetuados por Shigeru Ishikawa5 5 Ishikawa, Shigeru. A note on the choice of technology in China. In: Journal of Development Studies, London, 9, Oct. 1972. a respeito da opção tecnológica.

A escolha de tecnologia pode ser enfocada em duas dimensões: em uma definição estreita, se referiria às opções dos planejadores entre tecnologias conhecidas e disponíveis e técnicas imediatamente aplicáveis à produção industrial e agrícola. A definição mais ampla se refere a políticas de pesquisa e desenvolvimento e à difusão de novas tecnologias e técnicas, que refletem a direção particular que os planejadores escolhem para o desenvolvimento futuro. Na experiência chinesa, as políticas de mudança tecnológica estão de tal modo inter-relacionadas com o problema de escolha no sentido estrito que ambas são quase inseparáveis. Assim, cada passo na evolução técnica deve ser entendido sempre nesse quadro mais amplo.

A segunda observação do autor oferece um instrumento para esquematizar os aspectos envolvidos no problema da escolha de tecnologia. Este pode ser visto em termos de uma estrutura estratificada em quatro camadas:

a) no topo da estrutura, estariam os objetivos básicos dos planejadores em relação ao problema;

b) a seguir, vêm os critérios de escolha, que traduzem os objetivos básicos em uma função-objetivo para operacionalizar a opção ótima;

c) um passo essencial é a preparação do "composto tecnológico" e de alternativas técnicas, desde que a escolha ótima suponha pleno conhecimento de tudo que está disponível;

d) finalmente, estão colocadas as condições objetivas que restringem ou ampliam as possibilidades de escolha dos planejadores.

Este modelo pode ser transposto de forma bastante ajustada à realidade chinesa, dado que pressupõe uma racionalidade planejada na opção, que encontra correspondência na economia centralizada do país. O enfoque será útil, posteriormente, para avaliar os efeitos relacionados à expansão da faixa de alternativas tecnológicas verificada pela alteração nas limitações e fatores objetivos.

Três fases principais, com tendências diferenciadas, marcam a história da socialização da China e as estratégias para a obtenção da independência tecnológica. Em todas elas, o objetivo básico foi, e continua sendo, o de "crescimento e desenvolvimento máximos"; a evolução dos conhecimentos sobre a realidade, a expansão dos recursos disponíveis e as modificações ocorridas, determinaram as diferentes formas pelas quais sè procurou atingi-lo.

A primeira etapa pode ser chamada de "fase do modelo soviético" (1953/57). A escolha tecnológica nesse I Plano Qüinqüenal visava ao estabelecimento de uma fundação inicial de industrialização socialista com prioridade para o investimento na indústria pesada. Algumas características dessa fase foram: âmbito para uma escolha efetiva limitada ao setor estatal; critérios de escolha determinados principalmente por conselheiros soviéticos; tecnologia importada ou projetada por fontes soviéticas; capital para investimento limitado, o que não foi claramente percebido pelos planejadores; considerável desemprego e subemprego; conhecimento técnico extremamente escasso; capacidade de planejamento e desenvolvimento muito limitada; capacidade de importação de bens e tecnologia muito limitada, mas suprida por auxílio soviético; centralização apenas no setor de empresas estatais, permanecendo os demais sob controle privado.

Nessas condições, a opção concreta foi a constituição de um número relativamente pequeno de empresas estatais para produção em larga escala com tecnologia avançada. A estrutura resultante dessa decisão de investimento pode ser chamada de dual: o setor estatal sob influência soviética, caracterizando-se pela intensidade de capital e requisições de pessoal especializado, e os demais setores, utilizando tecnologia moderna mas desatualizada ou mesmo tradicional, com projetos de pequena escala e trabalhointensivos.

O vasto setor agrícola não foi prioritário nesse período. A tentativa de aumentar a produção de cereais se baseou simplesmente na tecnologia e recursos já existentes.

As dificuldades foram surgindo após algum tempo, demonstrando a inadequação da escolha. Projeções econômicas com base em dados que começaram a ser conhecidos previram sérios problemas na oferta de alimentos e na absorção da força de trabalho a longo prazo. Verificaram-se desequilíbrios na economia nacional - como a escassez de matérias-primas e bens intermediários, especialmente na siderurgia e em muitos ramos de indústrias leves - demanda insuficiente em relação à capacidade produtiva - como na indústria de bens de capital - e desnecessária duplicação de investimento.

O passo seguinte é, ao retirar-se a União Soviética, a atribuição do encargo do planejamento a técnicos nacionais pela primeira vez. Foi a fase conhecida como "O Grande Salto para a Frente" (1958-60) cujos objetivos concretos eram "colocar a economia nacional, incluindo a agricultura e manufaturas, sistematicamente e de maneira planejada, em uma nova base tecnológica, isto é, a base tecnológica da produção moderna em larga escala, de modo que a mecanização pudesse ser utilizada onde possível e que a eletrificação fosse trazida a todas as cidades e vilas do país".6 6 Relatório do Comitê Central para a 2.ª Sessão do VIII Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, citado em Dean, Genevieve. A note on the sources of technological innovation in the People's Republic of China. In: Journal of Development Studies, London, 9, Oct. 1972. Os problemas da fase anterior sugeriram como solução uma política tecnológica de "andar sobre as duas pernas", ou seja, "introduzir tanto quanto possível as técnicas mundiais avançadas ao mesmo tempo em que é estimulado um movimento de massa disseminado em cidades e vilas por todo o país, para aperfeiçoar ferramentas e introduzir inovações técnicas, de modo que operações semi ou totalmente mecanizadas possam ser apropriadamente combinadas com o necessário trabalho manual".7 7 Citado em Dean, Genevieve. op. cit. A mudança de setores prioritários foi, portanto, acompanhada por uma grande ênfase na "inovação introduzida por trabalhadores". Entre os pontos a destacar nesse período estão:

a) ampliação do âmbito de atuação envolvendo toda a economia nacional em dois setores: central, compreendendo empresas cujas capacidades técnicas e produtivas lançariam as bases para a futura industrialização em um nível avançado, e local, consistindo de 38 regiões econômicas provinciais (posteriormente sete regiões econômicas) que deveriam ter uma estrutura industrial proporcionadora de substancial auto-suficiência a cada uma delas;

b) o objetivo de máximo crescimento foi aplicado com um horizonte diminuído de tempo;

c) ampliação de possibilidades de opção de projetos na área de pequena escala;

d) expansão gradual da capacidade nacional de planejamento e desenvolvimento e capacidade de manufatura de bens com tecnologia moderna, dados os investimentos governamentais em pesquisa e educação;

e) capacidade de importar reduzida pela retirada do auxílio soviético;

f) processo de socialização da economia completado;

g) permanência do subemprego, mas com deficit da mão-de-obra criado pela política do "Grande Salto".

Sob o ponto de vista dos objetivos propostos, o "Grande Salto" fracassou, ao fazer surgir um grande número de empresas locais, de pequena escala, empregando tecnologia nativa. O resultado foi ineficiência econômica e técnica; custos de produção superiores aos correntes no mercado; negligência quanto às limitações tecnológicas locais; criação de produtos não-usáveis em diversos ramos, solicitando crescentes montantes de subsídios governamentais para manutenção dessas empresas. Isso também impediu a realização dos planos em relação à agricultura. Mais do que um erro de opção tecnológica, houve excessiva atribuição de importância ao "comportamento público", tanto é que muitas das proposições do "Grande Salto" foram transportadas de forma mais elaborada ao período que se seguiu, utilizando a participação popular em proporções realísticas. O maior efeito positivo do "Grande Salto" foi a mobilização de todos os setores do país, criando um clima extremamente favorável à participação, identificação com os problemas nacionais, receptividade de inovações, além de alguns resultados concretos que começaram a constituir uma opção tecnológica propriamente chinesa. Até a fase soviética, apesar do aparecimento de indústrias pesadas modernas, não se pode falar em uma alternativa original; a dependência permanecia, apenas centralizada na União Soviética. O "Grande Salto" pode ser tomado como uma experiência que permitiu testar e perceber as falhas de um modelo tentativo. É de se notar sua curta duração, três anos, indicando que a característica planejada e controlada da economia permitiu uma rápida alteração nos pontos que se mostraram falhos.

A situação atual da China parece ser, em grande parte, produto do período que se iniciou em 1961 e sofreu algumas alterações em 1964. Uma parte importante na estratégia desse período foi um aumento planejado, a longo prazo, no pessoal técnico e trabalhadores especializados, através de numerosos programas de treinamento técnico amplamente expandidos. Embora não negando diretamente a importância das inovações propostas por trabalhadores ou de aperfeiçoamentos técnicos que aumentariam a eficiência da agricultura e indústria de pequena escala e trabalho-intensivas, a base da nova etapa tecnológica relacionava o progresso a um novo técnico, que permitia introduzir qualidade e variedade no produto fisicamente aumentado pela fase anterior. A prioridade seria dada à padronização de produtos e adequação de projetos, por meio de "supervisão e avaliação técnicas" ao invés do preenchimento de quotas de produção.

Ao objetivo de máximo crescimento e desenvolvimento acrescentou-se um ponto focalizando um dos problemas mais difíceis, mesmo para economias desenvolvidas: a superação dos "três grandes diferenciais", referentes à oposição usual entre trabalho intelectual e trabalho braçal, produtividade agrícola e industrial e nível de vida rural e urbano. No plano tecnológico isto significa, de um lado, que o avanço tecnológico deve ser estendido à agricultura e em todos os sentidos, e por outro lado, que a criação de ciência não é prerrogativa de "cientistas" nem pode ser efetuada sem uma relação direta com os meios de produção. Pode-se perceber aqui que a integração entre cientistas e artesãos que caracteriza a Revolução Industrial Inglesa está sendo buscada ao nível de cada indivíduo da sociedade e a expressão concreta dessa disposição traduz-se em uma política educacional que combina a educação formal com as técnicas de "aprender fazendo" e treinamento especializado dentro do trabalho.

Há uma distinção, porém, entre projeto produtivo e pesquisa científica. A função de projeto deve incluir pesquisa aplicada e integrar a pesquisa científica com as empresas de produção, assim como transmitir as requisições tecnológicas específicas ao sistema científico. As unidades de pesquisa, por sua vez, concentram-se em algumas áreas de caráter teórico e sistemático voltadas para o longo prazo. Em conseqüência, o conhecimento técnico geral e a capacidade de planejamento e desenvolvimento vêm-se expandindo no campo da tecnologia avançada e também da intermediária, tendo como aspecto principal sua imediata relação com o uso no sistema produtivo.

Com referência ao critério de máximo crescimento, sua aplicação teve um caráter dual. O setor local foi subdividido em indústria e agricultura e dois mecanismos de estímulo aos setores foram adotados: o de liderança estatal e o de indução de investimentos. No setor central foi colocado como objetivo a equiparação gradual da tecnologia chinesa com a internacional. Foram também estimulados a ampliação da capacidade do complexo científico-tecnológico e o desenvolvimento da indústria de máquinas inclusive com a incorporação de tecnologia estrangeira.

A eficácia na operação desses programas foi reforçada pelos benefícios, já presentes, da educação formal e do treinamento técnico. Em termos de estratégia real dos III e IV Planos Qüinqüenais observa-se a preocupação com a modernização da agricultura, a implantação de um número relativamente grande de empresas locais operando com tecnologia intermediária e, ao nível da indústria central, uma absorção gradual da tecnologia estrangeira mais moderna.8 8 Veja Ishikawa, S. op. cito p. 165.

Sendo a China um país onde a agricultura é o setor econômico mais importante e que ocupa a maior parte da população, é interessante examinar mais detalhadamente como vem-se processando a difusão do conhecimento tecnológico no setor primário chinês.

O país, ao longo de vários séculos, sempre esteve à mercê de colheitas insuficientes e a fome era um fenômeno comum à população da China. Atualmente parece ter sido alcançado o objetivo de produzir alimentos suficientes para toda a população. A agricultura fez avanços notáveis desde que a República Popular ascendeu ao poder em 1949. Boa parte desses avanços foi conseguida entre 1957 e 1971, período que testemunhou um aumento de 65 milhões de toneladas na produção de cereais.

Sterling Wortman, relator da visita que 12 cientistas norte-americanos fizeram à China em 1974, apresenta alguns dados e comenta a agricultura chinesa, procurando identificar a estratégia adotada pelo país na superação do problema agrícola.9 9 Wortman, Sterling. Agriculture in China. Scientific American, New York, v. 232, n. 6, p. 13-21, June 1975.

Observando-se as principais colheitas chinesas verifica-se que os notáveis ganhos em produtividade devem-se principalmente à introdução de variedades de plantas mais produtivas, ao fenômeno da irrigação, à crescente aplicação de fertilizantes, à opção pelas culturas múltiplas e à forma de organização da produção propriamente dita.

Com relação ao uso de espécies mais produtivas, os cientistas chineses empreenderam um esforço considerável na diminuição do tempo entre o plantio e a colheita de seus principais produtos de modo a permitir a máxima utilização do solo e o máximo volume produzido. A exemplo de pesquisas desenvolvidas em centros de pesquisas de várias partes do mundo, nessa linha de investigação, eles desenvolveram sementes de arroz e trigo que diminuem o prazo entre o plantio e a colheita, aumentando o número anual destas. Outra prática agrícola adotada em grande escala na China é a irrigação. Cerca de 1/3 de toda a área cultivada do país é irrigada; os melhoramentos e a difusão dos sistemas de irrigação constituem fator que efetivamente contribui para o aumento da produção agrícola chinesa. Nos anos recentes tem-se verificado a construção de um número cada vez maior de canais, açudes e poços equipados com bombas mecânicas.

Outro fator importante no aumento da produtividade foi a maior utilização de fertilizantes. Hoje, na China, seu uso é reduzido, segundo os padrões americanos, mas pelos padrões chineses os recentes aumentos têm sido substanciais.

Outro fator tecnológico relevante é a prática de culturas múltiplas; é raro encontrar terras ociosas na China e em muitas áreas em que antes cresciam duas culturas anuais, hoje são produzidas três.

A forma de organização da produção agrícola em comunas também é importante ao se considerar o problema da agricultura chinesa.10 10 Cada comuna abrange um certo número de brigadas de produção, cada brigada inclui um certo número de equipes de produção que, por sua vez, são compostas por unidades familiares. É através delas que os benefícios do complexo científico tecnológico chinês são articulados com as necessidades vitais da sociedade. No que diz respeito à agricultura, essa forma de organização da produção é um instrumento eficiente para introdução e adoção de nova tecnologia. Por exemplo, cada unidade de pesquisa agrícola é integrada com o setor agrícola por meio do que se chama pontos básicos. Estes são estações agrícolas experimentais ligadas diretamente a algumas brigadas de produção em cada uma das regiões de uma certa província. Estas brigadas selecionadas apresentam aspectos ambientais típicos da província: um dado tipo de solo, um certo nível de precipitação pluviométrica. Cada estação agrícola experimental é dirigida por cientistas e técnicos (designados por um centro de pesquisas central) e também por agricultores em trabalho experimental. O objetivo básico das pesquisas, ao nível das brigadas de produção, é desenvolver melhores sistemas de plantio, colheita e armazenamento, de acordo com as peculiaridades de cada região. Há ainda práticas não propriamente experimentais mas de treinamento e demonstração das técnicas mais adequadas.11 11 Wortman. op. cit. p. 20.

Não se pode negar a adequação dessa combinação de pesquisa aplicada e demonstrações para solução dos problemas de curto prazo. Mas como argumenta Wortman, a abordagem não está livre de problemas a longo prazo. A interrupção da pesquisa fundamental e a descentralização dos estudos experimentais impostas por um sistema desse tipo pode diminuir as possibilidades de avanço científico futuro na agricultura. Se os chineses conseguirão ou não ultrapassar esse problema é uma questão que fica em aberto.12 12 Wortman. op. cit. p. 21.

Convém observar, entretanto, que a "objeção" apresentada por Wortman, embora válida, tem importância somente relativa, uma vez que o sistema científico-tecnológico chinês parece ter consciência desse problema e sua atuação não se restringe exclusivamente aos trabalhos de pesquisa altamente descentralizados. A própria linha de pesquisas no campo das novas espécies de plantas com prazos de maturação mais curtos exemplifica a atenção que os cientistas chineses têm para com a pesquisa fundamental.

O importante, e que justifica a inclusão do problema da agricultura chinesa neste trabalho, é que ela constitui um caso ilustrativo de uma forma muito peculiar de inserção dos benefícios concretos da ciência e tecnologia no sistema produtivo.

O mesmo tipo de orientação presente na agricultura informa as atividades do setor industrial estabelecendo uma relação orgânica entre os setores primário e secundário além de configurar uma indústria com uma integração vertical muito acentuada. O mais notável nesta integração é o fato de a mesma ser voltada para a criação de equipamentos e insumos à produção agrícola; como aponta Ishikawa, os tipos de indústria na China integram-se segundo o padrão que se segue: a) indústria de base e infra-estrutura energética; b) indústria de processamento de aço e ferro; c) indústria de bens de capital; d) indústria de máquinas e implementos agrícolas; fábricas para produção de máquinas e materiais para conservação de água e sistemas de irrigação; fábricas para produção de maquinaria elétrica utilizada no setor agrícola; indústria de fertilizantes e pesticidas; e) agricultura propriamente dita; f) processamento de produtos agrícolas.

A orientação mais recente caracteriza-se pela introdução da "campanha de reforma de projeto", que vem se processando desde 1964, durante a qual a ênfase tem sido o desenvolvimento de novos projetos adequados às condições domésticas. Nesse período, a inovação popular foi mais uma vez reconhecida como fonte de progresso tecnológico, mas em uma relação complementar, não-substitutiva, com atividades especializadas de engenharia. Esta reforma foi iniciada, entre outras coisas, como resposta ao que pareceu ser uma falta de responsabilidade institucionalizada para a seqüência da inovação. Foi observado que muitos casos de experimentos, pesquisas e projetos estavam deslocados. Quando os projetistas enviavam seus desenhos aos departamentos de manufatura, para fabricar produtos de acordo com eles, consideravam seu trabalho terminado, não se preocupando em saber se isso era possível, quanto durariam os produtos ou quando e onde as máquinas seriam instaladas.

O sistema de responsabilização encontrado consiste na atribuição a alguém de responsabilidade para elaborar um projeto concreto. O elemento é autorizado a manipular todos os problemas técnicos levantados por seu projeto, assegurando responsabilidade e também autoridade. Sua atuação começa antes da preparação do projeto, com a observação in loco da máquina ou da região onde será instalada uma indústria e com a coleta de dados e sugestões, e prossegue até a entrada em operação normal daquilo que foi projetado. Isso resulta em uma cooperação do projetista profissional com técnicos e "técnicos trabalhadores" nas fábricas, que se traduz em soluções amplamente ajustadas à realidade chinesa, além do valor educativo dessa experiência para ambos.

A opção chinesa em relação à tecnologia internacional pode ser resumida em um trecho de um artigo do jornal Kuang-ming Daily,13 13 Dean, Genevieve, op. cit. p. 196. segundo o qual a tecnologia estrangeira avançada somente deve ser importada como base para o aprendizado; a cópia direta apenas condenaria o nível técnico chinês à inferioridade comparativa, "porque os outros estão avançando continuamente. Enquanto você copia a máquina deles, eles já produziram uma outra; quando você tentar produzir a sua, eles estarão na terceira versão. Fazendo isso, você necessariamente sempre estará atrás. A compra de amostras de máquinas de outros pode ter o objetivo apenas de aumentar nosso conhecimento e permitir que saibamos de que forma os outros caminharam. Não podemos traçar nosso caminho pela simples cópia de caminhos alheios".

A idéia presente ao longo deste trabalho pode ser captada no comentário de Geneviève Dean14 14 Dean, Genevieve C. Science and the thoughts of chairman Mao. New Scientist, p. 298, 12 Feb. 1970. Apud: Jones, Graham. The role of science and technology in developing countries. Oxford University Press, 1971. p. 22. sobre a opção tecnológica chinesa, ao afirmar que em muitos países a tendência é promover a mudança científico-tecnológica a partir do topo, pressupondo que a introdução de técnicas muito avançadas em setores limitados da economia será gradualmente transferida aos níveis mais baixos, chegando, eventualmente, a modernizar todos os setores da economia. Em contraste, na China, a política de Mao Tse-tung objetiva prover a força de trabalho com novas habilidades técnicas - ainda que rudimentares - e confiar na capacidade inovadora de trabalhadores especializados de modo a gerar o progresso técnico. Neste caso a modernização ocorreria de baixo para cima na razão do maior grau de sofisticação da capacidade tecnológica dos trabalhadores.

BIBLIOGRAFIA

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  • 1
    Veja Stewart, Frances. Choice of techniques in developing countries. In:
    Journal of Development Studies, London, 9, Oct. 1972.
  • 2
    As possibilidades de escolha são, em certo sentido, função de aspectos com amplo caráter ideológico, e a difusão de ideologias é resultado de relações de poder que estabelecem os padrões educacionais e de outras formas de incorporação de valores dificilmente alteráveis.
  • 3
    A unidade pôde ser conferida especialmente por fatores de ordem cultural, que compensavam a mencionada dispersão geográfica e política.
  • 4
    Veja Eckstein, A.; Galenson, W. & Liu, T. C.
    Economic trends in communist China. Chicago, Aldine Plubishing Company, 1968, especialmente os cap. 1 e 2.
  • 5
    Ishikawa, Shigeru. A note on the choice of technology in China. In:
    Journal of Development Studies, London, 9, Oct. 1972.
  • 6
    Relatório do Comitê Central para a 2.ª Sessão do VIII Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, citado em Dean, Genevieve. A note on the sources of technological innovation in the People's Republic of China. In:
    Journal of Development Studies, London, 9, Oct. 1972.
  • 7
    Citado em Dean, Genevieve. op. cit.
  • 8
    Veja Ishikawa, S. op. cito p. 165.
  • 9
    Wortman, Sterling. Agriculture in China. Scientific American, New York, v. 232, n. 6, p. 13-21, June 1975.
  • 10
    Cada comuna abrange um certo número de brigadas de produção, cada brigada inclui um certo número de equipes de produção que, por sua vez, são compostas por unidades familiares.
  • 11
    Wortman. op. cit. p. 20.
  • 12
    Wortman. op. cit. p. 21.
  • 13
    Dean, Genevieve, op. cit. p. 196.
  • 14
    Dean, Genevieve C. Science and the thoughts of chairman Mao.
    New Scientist, p. 298, 12 Feb. 1970. Apud: Jones, Graham.
    The role of science and technology in developing countries. Oxford University Press, 1971. p. 22.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 1976
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