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A transferência de tecnologia na perspectiva dos engenheiros (São Paulo, 1978-85)

ARTIGO

A transferência de tecnologia na perspectiva dos engenheiros (São Paulo, 1978-85)

Lili Katsuco Kawamura

Socióloga, professora na EAESP/FGV e autora do livro Engenheiro: trabalho e ideologia

1. INTRODUÇÃO

Abordar a tecnologia como objeto específico de estudo possibilita incorrer na falácia de sua autonomia e neutralidade quanto às relações econômicas, sociais, políticas e culturais. Dessa maneira, torna-se importante situá-la enquanto elemento intrinsecamente ligado ao processo econômico-social enquanto força produtiva, dentre outras. Colocada nesses termos, a tecnologia configura-se de acordo com o modelo de "desenvolvimento econômico" adotado e os interesses dos grupos que a sustentam no contexto social. Nesse sentido, não se constitui em um elemento autônomo que possa ser introduzido em um determinado momento do processo econômico como se surgisse de forma desvinculada do processo histórico.

No Brasil, a forma pela qual a tecnologia se incorporou em diferentes esferas de atividade foi condicionada pelo processo de industrialização por que passou o país, configurando-se particularmente na dependência tecnológica. Esta passa a se reforçar crescentemente a partir de meados de 50, com a rearticulação das forças produtivas nos moldes da produção em escala no setor industrialtrial, impulsionadas pelas medidas governamentais favoráveis aos investimentos estrangeiros no mercado interno. Medidas políticas adotadas a partir do golpe de 64 consolidaram o processo de internacionalização do mercado brasileiro, definindo-se os grupos econômicos dominantes, como a coalizão de empresas transnacionais, grupos nacionais associados ao capital estrangeiro e empresas estatais. Concomitantemente, ocorreu um desenfreado processo de inserção, em nossa economia, da tecnologia sofisticada elaborada nos principais países industrializados, especialmente EUA, Japão e Alemanha.

A lógica da acumulação imperialista, na medida em que cria e recria suas condições de realização nas várias regiões do mundo, aproveitando-se daquelas que já lhes são favoráveis nesses locais, se faz sentir em todas as esferas da vida social, na proporção em que são necessárias para a expansão das empresas transnacionais. Assim, a plena realização capitalista se faz acompanhar da difusão dos valores vinculados ao grande capital com tecnologia sofisticada nas várias esferas da vida social, cultural e política.

A difusão da ideologia "transnacional" encontrou condições favoráveis à sua expansão, não só pelo tradicional processo de dependência cultural, particularmente em relação a alguns países da Europa e aos EUA em períodos anteriores, mas principalmente pelo impacto das políticas governamentais adotadas a partir do fim dos anos 60. São significativas nesse sentido as políticas relativas à educação, as artes, ao lazer, à pesquisa científica e tecnológica, dentre outras, onde estavam claramente expressas a valorização máxima do planejamento, da organização, eficiência, especialização e do conhecimento técnico em detrimento (ou mesmo anulação) do conhecimento obtido através da prática do trabalho cotidiano e da criatividade nas diferentes esferas da vida.

A interiorização do padrão tecnológico vinculado ao capital estrangeiro nas diferentes atividades econômico-sociais veio reforçar os processos de elitização e de marginalização na sociedade brasileira. Tais processos se refletem na distribuição da renda, na estrutura de emprego (e desemprego), na distribuição especial dos recursos e equipamentos urbanos (saneamento, eletricidade, transporte e outros) e sobretudo no acesso à moradia, alimentação, saúde, educação e lazer.

Ao lado da alta rentabilidade da indústria, do sistema financeiro, das organizações comerciais e de serviços, verificou-se um crescente e contínuo processo de desemprego, um aumento geométrico de favelas e cortiços, um aumento das taxas de morbidade por doenças endêmicas e fome, além do crescimento da mortalidade, principalmente infantil.

Numa população onde a maioria depende do salário para sobreviver, a pobreza está diretamente ligada com sua inserção no processo de trabalho e os benefícios por ela auferidos. Por sua vez, as dificuldades de acesso à moradia se agravaram com a ausência de alimentos para a maioria da população pobre. Na medida em que a tecnologia no campo associou-se à produção voltada para a exportação e agroindústria, em detrimento da produção de alimentos, piorou a situação alimentar do povo.

O impacto da tecnologia complexa na saúde veio beneficiar fundamentalmente a dinâmica da capitalização na medicina, visto que reforçou a gigantesca ampliação da rede hospitalar, das empresas médicas, da indústria químico-farmacêutica e de equipamentos e instrumentos cirúrgicos. Toda a medicina complexa, dotada de equipamentos tecnológicos sofisticados, passou a orientar-se segundo doenças cardiovasculares, cancerígenas e cirurgias plásticas, quando a maioria da população ainda padece das doenças endêmicas e de subnutrição, relacionadas com o baixo nível de vida. A estrutura de atenção à saúde está voltada para as classes privilegiadas, que podem pagar médicos especializados e hospitais sofisticados, embora comporte uma rede de atendimento aos trabalhadores mediante convênios entre empresas médico-hospitalares e empresas industriais, comerciais e de serviços, ao lado de uma precária rede de atenção oferecida pelo Estado orientada especialmente aos desempregados, aposentados e indigentes. Agravam essa situação a forma da alocação dos recursos tecnológicos em prol do saneamento que privilegia abertamente as áreas "nobres" habitadas pelas camadas dominantes. A deterioração da qualidade da vida urbana, mormente na periferia, reforça-se pela poluição provocada pelo complexo industrial tecnológico.

Em face da presença marcante da tecnologia estrangeira nas várias esferas da vida econômica e social, podemos dizer que a questão tecnológica passa a ser cada vez mais tema de debate a partir de fins dos anos 70, associada com a crise econômica em processo. Diversas posições ideológicas são tomadas por diferentes grupos sociais em relação à dependência tecnológica: desde a postura de defesa declarada do modelo econômico-social adotado até a posição de mudança estrutural da sociedade brasileira, passando por posições de defesa da tecnologia nacional, sob caráter liberal ou não.

A análise do debate travado no meio dos engenheiros pode nos permitir ter uma idéia das várias posições ideológicas a respeito, mas fundamentalmente nos possibilitar avaliar a posição predominante dentro de uma categoria profissional historicamente formada e vinculada, em sua prática profissional, à atividade tecnológica.

2. POSIÇÕES IDEOLÓGICAS DA CATEGORIA DO ENGENHEIRO EM FACE DA QUESTÃO TECNOLÓGICA

Considerando-se que a categoria do engenheiro insere-se de forma variada (até mesmo contraditória) na estrutura hierárquica da trabalho (empresários, diretores, assalariados em funções predominantemente subordinadas etc.), de um lado e, de outro, que sua organização em associações representativas ainda é relativamente pequena, é de se supor que a maioria encontra-se pautada pela ideologia dominante. Significa que parcela considerável dos engenheiros, senão a maioria, procura integrar-se ao processo econômico-social de forma acrítica, seguindo os parâmetros que lhe são dados quer pela estrutura formal de ensino, quer pelos meios de comunicação de massa e órgãos específicos ligados à engenharia e à tecnologia.

Nessa perspectiva, podemos dizer que se faz presente, em considerável proporção, uma visão "tecnocrática" da tecnologia, isto é, uma concepção fundamentada em sua neutralidade e imprescindibilidade como fator de modernização econômica e superação do subdesenvolvimento, conforme os cânones prescritos pelos países capitalistas avançados. Mesmo sem uma defesa declarada, podemos afirmar que há uma tácita cumplicidade com o modelo de dependência tecnológica que se insere ao modelo de internacionalização da economia e sociedade brasileiras. Excluídos os que adotam essa postura convictamente, em vista de interesses comprometidos com o processo de internacionalização, segmentos dessa maioria de engenheiros apresentam potencialidades para alterarem sua posição ideológica, em virtude das transformações que tendem a ocorrer na forma de sua inserção no próprio mercado de trabalho e no avanço da organização da categoria profissional e dos trabalhadores em geral.

Essa posição mantém sua força, uma vez que até recentemente (final dos anos 70), a quase-totalidade das entidades representativas dos engenheiros assumia postura conservadora em prol dos interesses dominantes na sociedade, o que é explicável pelo fato de a maioria ter sido criada antes da II Guerra Mundial, quando quase toda a categoria ocupava posições eminentemente dominantes na estrutura social.

Com o processo de mobilização da categoria, iniciado, mesmo que de forma incipiente, nos últimos anos da década de 70, novas posições ideológicas quanto à questão tecnológica começaram a se manifestar publicamente, seja a partir de grupos de trabalho, seja de entidades sindicais e outras, que foram assumidas por direções que se posicionavam como oposições às diretorias tradicionais.

Na medida em que atualmente as manifestações dos engenheiros se realizam, ao menos de modo sistemático e organizado, através das entidades representativas, e esporadicamente através de mobilizações específicas como greves - as quais, por sua vez, são do conhecimento das entidades - pensamos poder apreender as novas posturas ideológicas da categoria em relação à questão tecnológica. Mesmo a posição conservadora transparece aqui, na proporção em que importante associação de engenheiros ainda está sob o controle de direções tradicionais.

É importante esclarecer nesse ponto que nosso objetivo não é associar dada posição ideológica com determinada entidade representativa, senão apreender, mediante expressões significativas das associações de engenheiros, diferentes posturas ideológicas em face da dependência tecnológica. Para o primeiro propósito, tornar-se-ia necessário um exaustivo levantamento junto a cada entidade. Ademais, algumas das manifestações aqui consideradas são realizadas conjuntamente por duas ou mais associações da categoria profissional.

Em São Paulo, algumas manifestações significativas da categoria por questões salariais ou por reivindicações e denúncias relativas a determinada área da engenharia têm apontado um ponto comum no trato da questão tecnológica, isto é, a posição de defesa da tecnologia nacional. Embora essa postura delimite claramente o âmbito fundamentalmente definido como a defesa do mercado brasileiro em relação à desenfreada investida do capital estrangeiro, ela apresenta variações quanto à qualificação dessa tecnologia. Assim, se expressam posições remanescentes das defendidas por setores nacionalistas na década de 50 (a exemplo do "Petróleo é nosso"), posturas que delimitam a área de defesa da tecnologia nacional para algumas áreas, consideradas prioritárias e que poderão incorporar as demais áreas de forma paulatina. Há ainda posições que qualificam a defesa da tecnologia nacional como a defesa dos projetos econômicos vinculados basicamente às áreas de atendimento social, isto é, de interesse da maioria da população.

A posição de defesa da tecnologia nacional apareceu de forma expressiva no movimento desencadeado pelo Clube de Engenharia no Rio de Janeiro, na segunda metade da década de 60, em vista da perda do mercado de trabalho junto às grandes obras governamentais para firmas e técnicos estrangeiros. De acordo com a manifestação da Comissão Permanente de Defesa da Engenharia Brasileira criada junto ao dube de Engenharia em sua publicação intitulada A luta pela engenharia brasileira, em 19671 1 . Clube de Engenharia: Comissão Permanente de Defesa da Engenharia Brasileira. A luta pela engenharia brasileira. Rio de Janeiro, Engenharia Editora, 1967. o processo de entrada de técnicos estrangeiros passou a se fazer de forma crescente a partir de meados dos anos 60. Segundo a publicação, inicialmente "foram alguns casos isolados de contratação injustificada de firmas estrangeiras, para nos últimos três anos ser promovida a vinda indiscriminada de empresas, cuja grande credencial técnica era, na maioria das vezes, um suposto trânsito junto a organismos internacionais de crédito ou junto a certos funcionários desses organismos.

A sucessão de casos obrigou o Clube de Engenharia a uma tomada de posição em defesa da engenharia brasileira, tanto mais que os processos de contratação tinham o patrocínio declarado de algumas das mais altas autoridades do Governo federal e os maus exemplos frutificavam nos diversos escalões governamentais, ameaçando estender-se, inclusive, à execução das obras.2 2 . Id. ibid. p. 17.

Na época, ao solicitar o apoio das demais entidades de engenheiros, a Comissão recebeu manifestação de apoio do Instituto de Engenharia de São Paulo, cujo presidente convidou os membros da Comissão a visitarem os escritórios de engenharia em São Paulo, com o intuito de fornecer-lhes elementos e informações úteis ao movimento.3 3 . Id. ibid. p. 94.

A partir do final dos anos 70, uma posição destacada na defesa da tecnologia nacional retoma a questão da perda do mercado de trabalho a técnicos e firmas de engenharia estrangeiros, introduzindo, no entanto, denúncias e críticas à introdução compulsória, mediante contratos, de "pacotes tecnológicos" fechados. Segundo artigo publicado no Jornal do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo4 4 . Jornal do Sindicato dos Engenheiros (JOSE), São Paulo, n. 8, p. 7. "muitas das empresas que contratam tecnologia e recebem de tal forma que são capazes de fabricar apenas um determinado produto. Não têm condições de alterá-lo, modificá-lo ou mesmo reprojetá-lo, isto é, compram tecnologia como mercadoria para uma só utilização. (...) Além dessa desvantagem no aspecto técnico, somam-se outras de natureza comercial e administrativa, acentuadas ainda mais quando a empresa que encomendou o produto impOe ao fabricante o fornecedor de tecnologia com o qual já mantém relações comerciais anteriores".5 5 . JOSE, n. 8, p. 7.

A partir disso defende-se que a superação do subdesenvolvimento depende da criação de "condições favoráveis à máxima absorção dessa tecnologia de modo que, paulatinamente, se alcance um estágio tal que se descaracterize sua procedência alienígena adaptando-a, modificando-a e aperfeiçoando-a, aplicando-a inclusive no desenvolvimento de novos produtos, além do produto objeto da contratação original".6 6 . JOSE, n. 8, p. 7. Nessa linha, observa-se a aceitação do padrão tecnológico (sofisticado) adotado, desde que se encontrem mecanismos que possibilitem sua absorção pelos técnicos brasileiros. Evidentemente, não está considerada nessa proposta a gama de interesses dotados de força econômica, social e política que envolve, tanto externa como internamente, a manutenção da dependência econômica e tecnológica. Assim, poder-se-ia questionar: em que bases de novos interesses se daria a inversão dos interesses favoráveis aos detentores dessa força tecnológica?

Uma vertente da defesa da tecnologia nacional, diferentemente da posição anterior, procura qualificá-la como a busca da tecnologia "a serviço da população". Segundo essa postura: "Em cada área da atividade humana em que se apresente um problema de alternativas tecnológicas é necessário realizar uma análise do grau de viabilidade e adequação de cada opção, analisando os efeitos sobre a dependência, sobre o balanço de pagamentos, o emprego, o desenvolvimento científico e tecnológico, considerando também a economia de fabricação, a qualidade do produto, a segurança e a poluição."7 7 . JOSE, Suplemento Especial, p. 3. Nessa perspectiva, a "auto-suficiência tecnológica é tão absurda como a importação indiscriminada de técnicas sem a preocupação com a subordinação de nossa economia ao capital internacional que tal importação provoca. Devemos preconizar a autonomia tecnológica: capacidade nacional de definir e controlar qual a tecnologia que nos interessa em cada campo de atividade produtiva, estabelecer a combinação apropriada de tecnologias, sejam elas importadas, adaptadas ou nacionais. (...) Por um lado devemos orientar o desenvolvimento tecnológico de cada área segundo a maior conveniência do país e em particular buscando dar trabalho a todos. Muitos tipos de serviços, por exemplo, podem ser prestados com tecnologia simples, sem que sejam afetados nem a qualidade e custo do serviço nem o desenvolvimento tecnológico do país. Por outro lado, é necessário orientar e controlar nossas relações com o exterior.

É fundamental reservar para a "tecnologia nacional determinados mercados, principalmente para aqueles produtos que têm relação estreita com nossa independência e desenvolvimento".8 8 . Ibid.

Nessa proposta salienta-se a necessidade do controle da tecnologia, independentemente de sua origem (nacional ou estrangeira), a ser incorporada nas várias esferas da vida social do país, evidentemente dentro das relações capitalistas definidas. Quando se associa a proposta da tecnologia voltada para a população e a necessidade da reserva de mercado para tecnologia nacional, especialmente em áreas vinculadas intimamente com nossa independência e desenvolvimento, observamos uma definição ainda difusa quanto à orientação dessa tecnologia nacional, considerando-se a existência de interesses contraditórios no interior de nossa sociedade. Torna-se importante qualificar "população" e "independência e desenvolvimento" para quem?

Tentativas, com dificuldades de várias ordens, são ensaiadas em direção à definição de propostas de assessoria técnica às pessoas carentes, quanto a medidas básicas de saneamento, construção de moradias e uso do solo. Com isso procura-se auxiliar comunidades carentes que habitam a periferia em suas alternativas de sobrevivência, procuradas a qualquer custo dentro de suas limitadas condições de vida.

São significativas nesse sentido iniciativas de grupos de engenheiros e estudantes que se propõem a fornecer essa assessoria, como a aventada "possibilidade de um trabalho de assessoria técnica à população carente de São Paulo por grupos de engenheiros interessados num trabalho comunitário, em conjunto com a Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz".9 9 . JOSE, n. 14, p. 3. Na mesma linha, está a iniciativa de alunos da Escola Politécnica de São Paulo em manter junto ao Centro Acadêmico da Engenharia Civil um escritório de engenharia para atender pessoas carentes. Embora existindo desde 1955, só recentemente (início dos anos 80) alguns alunos conseguiram concluir um projeto de saneamento (canalização de um córrego em Diadema).10 10 . JOSE, n. 12, p. 7.

Subjacente a essas iniciativas está a valorização da tecnologia orientada à população carente, mesmo que ainda de forma incipiente junto à categoria dos engenheiros. A dificuldade maior consiste em não se confundir assessoria às reivindicações e lutas dessas camadas sociais com a mera assistência sob caráter paliativo em relação aos seus problemas.

Através dos debates travados em torno da questão geral da tecnologia ou em torno de temas e áreas específicas, bem como através das reivindicações de segmentos da categoria profissional, podemos apreender algumas associações sistematicamente feitas, isto é, o estreito vínculo entre tecnologia nacional e soberania nacional. Além disso, destaca-se, por outro lado, a relação apontada entre dependência tecnológica e desemprego.

No discurso de posse do Colegiado Técnico do Instituto de Engenharia (1983), ressaltou-se o perigo da dependência tecnológica, na medida em que "o aniquilamento e destruição da tecnologia nacional estão iminentes (...); a recessão que ora nos atinge, em todos os campos da engenharia, com o desemprego e o subemprego ceifando as gerações mais jovens, desmantelando equipes, degradando salários - tudo isso representa nada mais nada menos que a perda da tecnologia nacional. E perda da tecnologia (...), significa perda de soberania - volta inconteste à condição de colônia, ao estado de servidão"11 11 . Jornal Evolução, São Paulo, Instituto de Engenharia, p. 6, set. 1983. (o grifo é nosso).

Algumas manifestações de engenheiros sobre áreas ou Questões específicas onde esteve presente o debate sobre a questão tecnológica nos permitem acrescentar outros elementos qualitativos para a compreensão das várias posições ideológicas da categoria sobre o tema. Tiveram repercussão em São Paulo as mobilizações dos engenheiros de consultoria e dos profissionais ligados à informática, em sua luta pela "reserva de mercado na informática", no decorrer de 1983 e 1984.

Preocupados com a onda de demissões no setor de engenharia consultiva a partir de fins de 1982, sindicatos (de engenheiros, arquitetos, economistas, geólogos, desenhistas) e entidades empresariais (Empresas de Assessoramento e Pesquisa, Associação Brasileira de Engenharia Industrial) passaram a discutir saídas para a crise e o desemprego. Tanto no I Encontro dos Engenheiros de Consultoria (1983) quanto no Seminário Nacional de Engenharia Consultiva (1984), realizados em São Paulo, vigora a concepção de que os profissionais da área se constituem em detentores do acervo técnico-científico formado durante cerca de 30 anos, período de expansão das empresas do setor.

Segundo engenheiros da área, na "segunda metade dos anos 50 e início dos anos 60, começaram a se formar as primeiras, e hoje grandes, empresas brasileiras de consultoria, executando o detalhamento de projetos", embora se apoiando no acervo tecnológico das empresas estrangeiras. Na década de 70, já prescindiam da dependência tecnológica em praticamente quase todos os setores em que têm atuado.12 12 . JOSE, n. 29, p. 4 Para os profissionais, "o acervo técnico-científico formado durante esse período está sendo destruído com demissões de profissionais. (...) Desta maneira, desmantelam-se equipes - patrimônio tecnológico da Nação - (...)"13 13 . JOSE, Especial, p. 3, nov. 1983. (o grifo é nosso).

A proposta de defesa da tecnologia e empresa nacionais, o vínculo do desemprego no setor com a dependência tecnológica, dentre outros itens, estão presentes na Carta dos engenheiros de consultoria (1983). Em particular, reivindicam investimentos estatais de modo prioritário em obras de infra-estrutura, visto que o dinamismo do setor depende fundamentalmente da demanda do setor público, "de onde vêm 80% de seus projetos".14 14 . JOSE, Especial, p. 3, nov. 1983. É interessante notar que reivindicam não só a proteção em relação à entrada de firmas e técnicos de consultoria estrangeiros, mas também em relação à concorrência dos serviços de consultoria internos ao setor público. Fica claro aqui o caráter corporativo da manifestação dos profissionais do setor. Além disso, a defesa da engenharia de consultoria "nacional" vem reforçar os interesses dominantes na área, sem se questionar a orientação dos investimentos e obras públicas. Ou melhor, não se questiona para quem se tem orientado o acervo de obras, mas fundamentalmente se questiona quem realiza os trabalhos de engenharia.

O Movimento Brasil Informática lançado em abril de 1984 em São Paulo foi liderado por associações de profissionais e empresas da área (Associação Brasileira da Indústria de Computadores e Periféricos (Abicomp); Associação Nacional de Profissionais de Processamento de Dados (APPD); Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Informática (Assespro); Sociedade Brasileira de Computação (SBC); Sociedade dos Usuários de Computadores e Equipamentos Subsidiários (Sucesu); Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo, e visava fazer aprovar uma lei pelo Congresso Nacional, garantindo a reserva de mercado na área de informática.

Em vista de a indústria de informática (nacional) ter crescido a ponto de ocupar quase metade do mercado brasileiro (1983), há, segundo os engenheiros, pressões com vista à derrubada da reserva de mercado e outras formas protecionistas. Inclusive no próprio Congresso Nacional estão em trâmites não só a proposta que garante a reserva de mercado para o setor nacional, mas também a que defende a abertura do setor às multinacionais (projeto do senador Roberto Campos).15 15 . JOSE, n. 27, p. 4. Atualmente, o mercado da informática situa-se em três faixas: "minis e micros com reserva para a tecnologia nacional; médio porte, com reserva só para o capital nacional, e uma terceira, dos grandes computadores, de livre concorrência".16 16 . JOSE, n. 29, p. 8

A visão dos engenheiros inseridos nessa luta pode ser compreendida mediante as colocações do engenheiro e empresário na área que recebeu do Instituto de Engenharia de São Paulo o título de "engenheiro do ano de 1983", significando o apoio da entidade à sua luta pela defesa da indústria nacional na informática. Segundo ele: "Percebe-se que a grande ameaça a qualquer processo de capacitação tecnológica em um país subdesenvolvido é o interesse das nações avançadas. Política tecnológica que não leve isso em conta está fadada a se tornar totalmente incompetente. E por isso é útil que qualquer movimento que busque a capacitação tecnológica nacional impeça o avanço e a ação das empresas estrangeiras naquela área. Por isso, a reserva de mercado é o único instrumento viável. O mercado brasileiro deve ser reservado para produtos de empresas nacionais que sejam fruto de tecnologia brasileira."17 17 . Evolução, mar. 1984.

O ponto central da mobilização está em defender o mercado da informática para os empresários e profissionais do setor, independentemente do questionamento da forma como poderá se orientar o processo de informatização da sociedade. Não está em cogitação, pelo menos como essencial na luta, a gama de interesses que tem atendido o setor e o controle do processo de automação, ou pelo menos a participação, nele, das camadas de trabalhadores. Inclusive, as emendas relativas às possibilidades de participação destes na introdução da automação a partir da criação de comissOes paritárias nas empresas e a garantia da privacidade e direito de acesso aos bancos de dados pela população, apresentadas no Congresso Nacional, foram vetadas pelo presidente da República.

A disseminação do processo de informatização na sociedade constitui-se um poderoso instrumento de controle do Estado sobre os cidadãos, uma vez que possibilita o acúmulo sistematizado de informações sobre cada um deles. Tal controle é extensivo evidentemente aos detentores do capital vinculados à informática ou que se utilizam dela em suas empresas. Ademais, o impacto que o processo vem causando na economia e na sociedade pode afetar, de forma profunda, a questão do emprego/desemprego, tópico considerado na mobilização dos engenheiros pela tecnologia nacional como elemento importante, na medida em que altera profundamente a organização do trabalho industrial: "a introdução dos robôs, os tornos mecânicos sendo substituídos por máquinas de controle numérico. A própria organização do trabalho nos escritórios está começando a sofrer uma modificação muito profunda em função da informática, e o sistema bancário sofreu uma expansão muito grande, tanto na oferta quanto na velocidade dos serviços em função da informática."18 18 . JOSE, n. 26, p. 5.

Outras mobilizações da categoria em torno de temas e reivindicações específicas apontam a mesma preocupação central, isto é, a defesa do mercado interno contra a desnacionalização da economia e as lutas em prol do aumento do emprego de engenheiros. São exemplos as denúncias sobre o projeto Carajás, a política habitacional (BNH), saneamento, energia nuclear e outras.

Essa posição condiz com a preocupação central manifesta no conjunto das mobilizações da categoria, isto é, a questão do mercado de trabalho e salarial, como mostra a concentração de ação dos dirigentes e militantes de entidades e movimentos de engenheiros nos debates em torno do tema, nos dissídios coletivos e outras gestões sobre questões trabalhistas junto aos empregadores.

De modo geral, predomina junto à categoria profissional, apesar das nuanças, uma posição ideológica de defesa da tecnologia nacional de forma acrítica e com acentuada influência da ideologia da modernização e do desenvolvimento em sua visão da sociedade brasileira, além dos interesses corporativos acentuados em suas reivindicações e propostas.

O aprofundamento da discussão e das propostas sobre a questão tecnológica - e mesmo as possibilidades de mudança na perspectiva ideológica dominante apontada - vai depender, dentre outros elementos, não só do avanço na organização e mobilização particular da categoria profissional, mas sobretudo do trato profundo do problema pelos vários segmentos dominados da sociedade brasileira.

Considerando-se particularmente as várias entidades de engenheiros existentes em São Paulo e mesmo de acordo com o caráter das manifestações realizadas, a posição ideológica mencionada associa-se de forma arraigada ou não à prática política dessas associações.

Nessa mesma perspectiva, podemos afirmar que, no âmbito nacional, o peso dessa postura e das demais antes mencionadas variam não só regionalmente, mas também em função do caráter das entidades profissionais. Dessa forma, não podemos estender as reflexões feitas para São Paulo, da mesma forma, para a mobilização dos engenheiros no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em Pernambuco, apenas para mencionar alguns exemplos, como apontam as diferentes teses apresentadas nos encontros nacionais. Entretanto, as cartas elaboradas no final de cada congresso comportam acentuada influência da posição ideológica dominante observada para a categoria em São Paulo.

  • 1 Clube de Engenharia: Comissão Permanente de Defesa da Engenharia Brasileira. A luta pela engenharia brasileira. Rio de Janeiro, Engenharia Editora, 1967.
  • 4. Jornal do Sindicato dos Engenheiros (JOSE), São Paulo, n. 8, p. 7.
  • 7. JOSE, Suplemento Especial, p. 3.
  • 9. JOSE, n. 14, p. 3.
  • 10. JOSE, n. 12, p. 7.
  • 11. Jornal Evolução, São Paulo, Instituto de Engenharia, p. 6, set. 1983.
  • 12. JOSE, n. 29, p. 4
  • 13. JOSE, Especial, p. 3, nov. 1983.
  • 15. JOSE, n. 27, p. 4.
  • 16. JOSE, n. 29, p. 8
  • 18. JOSE, n. 26, p. 5.
  • 1
    . Clube de Engenharia: Comissão Permanente de Defesa da Engenharia Brasileira.
    A luta pela engenharia brasileira. Rio de Janeiro, Engenharia Editora, 1967.
  • 2
    . Id. ibid. p. 17.
  • 3
    . Id. ibid. p. 94.
  • 4
    .
    Jornal do Sindicato dos Engenheiros (JOSE), São Paulo, n. 8, p. 7.
  • 5
    .
    JOSE, n. 8, p. 7.
  • 6
    .
    JOSE, n. 8, p. 7.
  • 7
    .
    JOSE, Suplemento Especial, p. 3.
  • 8
    . Ibid.
  • 9
    .
    JOSE, n. 14, p. 3.
  • 10
    .
    JOSE, n. 12, p. 7.
  • 11
    . Jornal Evolução, São Paulo, Instituto de Engenharia, p. 6, set. 1983.
  • 12
    .
    JOSE, n. 29, p. 4
  • 13
    .
    JOSE, Especial, p. 3, nov. 1983.
  • 14
    .
    JOSE, Especial, p. 3, nov. 1983.
  • 15
    .
    JOSE, n. 27, p. 4.
  • 16
    .
    JOSE, n. 29, p. 8
  • 17
    .
    Evolução, mar. 1984.
  • 18
    .
    JOSE, n. 26, p. 5.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1985
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