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Austeridade e financeirização: a construção do discurso reformista no campo previdenciário brasileiro

Austeridad y financiarización: la construcción del discurso reformista en el campo de la seguridad social brasileña

Resumo

O artigo busca traçar um panorama na construção dos discursos reformistas no campo previdenciário brasileiro pós-Constituição Federal de 1988. Para tanto, estabelece uma análise das exposições de motivos anexadas às Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) e que justificam os projetos submetidas ao Parlamento brasileiro. O estudo tem como pressupostos teórico-metodológicos a análise de discurso crítica (ADC), buscando responder em que medida as concepções de austeridade e financeirização permeiam o processo de construção dos discursos que justificam a proposição das reformas previdenciárias. É também objetivo deste trabalho desvelar as ideologias presentes nos discursos. Os resultados apontam que os ideais capitalistas pautados pela lógica da financeirização e da austeridade aparecem na construção dos discursos das reformas, o que demonstra sua influência sobre a construção discursiva de seus autores, inferindo uma filiação das reformas a essas concepções hegemônicas. Conclui-se que a ADC é um importante meio para compreender os processos que envolvem as políticas públicas, desde sua formulação até sua avaliação.

Palavras-chave:
previdência social; análise de discurso crítica; austeridade; financeirização; política social

Resumen

El artículo busca esbozar un panorama en la construcción de discursos reformistas en el campo de la seguridad social brasileña después de la Constitución Federal de 1988. Con este fin, establece un análisis de las exposiciones de motivos adjuntas a las propuestas de enmiendas constitucionales y que justifican los proyectos sometidos al Parlamento brasileño. Sus supuestos teóricos y metodológicos son el análisis crítico del discurso (ADC), que busca responder en qué medida las concepciones de austeridad y financiarización impregnan el proceso de construcción de los discursos que justifican la proposición de las reformas de la seguridad social brasileña. También es el objetivo de este trabajo develar las ideologías presentes en los discursos. Los resultados indican que los ideales capitalistas guiados por la lógica de la financiarización y la austeridad aparecen en la construcción de los discursos de las reformas, lo que demuestra su influencia en la construcción discursiva de sus autores, infiriendo una afiliación de las reformas a estas concepciones hegemónicas. Se concluye que la ADC es un medio importante para comprender los procesos que involucran políticas públicas, desde su formulación hasta su evaluación.

Palabras clave:
seguridad social; análisis crítico del discurso; austeridad; financiarización; política social

Abstract

This article seeks to outline a panorama in the construction of reformist discourses in the Brazilian social security field after the 1988 Federal Constitution, unveiling the ideologies present in such discourses. The study conducted an analysis of the explanatory statements that justify constitutional amendment proposals submitted to the Brazilian parliament. The theoretical and methodological method was critical discourse analysis (CDA), seeking to answer to what extent the conceptions of austerity and financialization permeate the process of construction of the discourses that justify the proposition of the Brazilian social security reforms. The results indicate that capitalist ideologies guided by the logic of financialization and austerity appear in the construction of the reformist discourses, which demonstrates their influence on the authors and suggests the affiliation of the reforms to these hegemonic conceptions. It is concluded that CDA is an important tool to understand the processes that involve public policies, from its formulation to its evaluation.

Keywords:
social security; critical discourse analysis; austerity; financialization; social policy

1. INTRODUÇÃO

Compreender a dinâmica da realidade social apresenta desafios complexos, em especial ao considerarmos que ela costuma ser moldada por ideias dominantes, muito difundidas e reiteradas de forma sistemática. Nessa realidade, o convencimento é peça central para que interesses particulares sejam reproduzidos e justificados, além de fazer parte da junção de uma ideia-força e de interesses de grupos poderosos na busca por institucionalizar uma leitura particular sobre os outros e sobre o mundo (Souza, 2015Souza, J. (2015). A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. LeYa.). Portanto, o convencimento é parte de uma constituição discursiva de sociedade e de uma prática social enraizada em estruturas sociais materiais e concretas (Fairclough, 2016Fairclough, N. (2016). Discurso e mudança social. Editora UnB.).

O discurso como prática molda e restringe normas, convenções, relações, identidades e instituições, constituindo todas as dimensões da estrutura social. Logo, o discurso vai contribuir para a construção das identidades sociais, das relações sociais entre as pessoas e de sistemas de conhecimento e crença. A formação de práticas discursivas se insere em toda vida social, de maneira convencional, quando reproduz a sociedade, e, de maneira criativa, quando contribui para transformá-la. O discurso como prática política mantém, estabelece e transforma as relações de poder. Como prática ideológica, ele constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo (Fairclough, 2016Fairclough, N. (2016). Discurso e mudança social. Editora UnB.).

As ideologias, no contexto das práticas discursivas, podem ser compreendidas como as representações dos elementos da realidade, podendo ser concebidas em dimensões e formas diversas, contribuindo para a instauração, a sustentação ou a transformação das relações de poder, dominação e exploração social (Fairclough, 2003Fairclough, N. (2003). Analysing discourse: textual analysis for social research. Psychology Press & Routledge Classic Editions.; Lira & Alves, 2018Lira, L. C. E., & Alves, R. B. C. (2018). Teoria social do discurso e evolução da análise de discurso crítica. In J. R. Batista Junior, D. T. B. Sato, & I. F. Melo (Orgs.), Análise de discurso crítica para linguistas e não linguistas. Parábola.). A hegemonia está ligada a uma tentativa de universalização do particular. Ela se refere, principalmente, a alianças e integrações dadas pela experimentação de concessões que ocorrem mais por consenso e menos por coerção (Lira & Alves, 2018Lira, L. C. E., & Alves, R. B. C. (2018). Teoria social do discurso e evolução da análise de discurso crítica. In J. R. Batista Junior, D. T. B. Sato, & I. F. Melo (Orgs.), Análise de discurso crítica para linguistas e não linguistas. Parábola.).

O poder do Estado é derivado das leis, sendo o discurso o instrumento de difusão e sustentação para sua manutenção (Batista et al., 2018Batista, J. R. Jr., Sato, D. T. B., & Melo, I. F. (2018). Introdução. In J. R. Batista Junior, D. T. B. Sato, & I. F. Melo (Orgs.), Análise de discurso crítica para linguistas e não linguistas. Parábola.). Parte desse discurso tem usado a lógica da austeridade e da financeirização na tentativa de empreender reformas políticas (Blyth, 2017; Ferreira, 2011Ferreira, A. C. (2011). A sociedade de austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, 95(1), 119-136. http://journals.openedition.org/rccs/4417
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; Giffin, 2007Ferreira, M. R. J. (2019). Políticas sociais frente à austeridade econômica brasileira. In A. C. Lacerda(Coord.), O mito da austeridade. Contracorrente.). O Estado, no contexto da austeridade e da financeirização, teria seu papel alterado, passando a promover os mercados financeiros sob uma lógica neoliberal, defendendo maior desregulamentação, flexibilização e privatização, atribuindo aos indivíduos a responsabilidade pelo seu bem-estar social e incentivando uma mercantilização da vida (Lavinas et al., 2017Lavinas, L., Araújo, E., & Bruno, M. (2017). Brasil: vanguarda da financeirização entre os emergentes (Texto para Discussão, 32). Universidade Federal do Rio de Janeiro https://www.ie.ufrj.br/images/IE/TDS/2017/TD_IE_032_2017_LAVINAS_ARA%C3%9AJO_BRUNO.pdf
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; Lavinas & Gentil, 2018Lavinas, L., & Gentil, D. L. (2018). Brasil anos 2000: a política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, 37(2), 191-211. https://doi.org/10.25091/S01013300201800020004
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).

A austeridade é apresentada como uma solução frente aos contextos de crise econômica e de aumento da dívida pública, servindo como argumento central na defesa da necessidade de reformular a atuação do Estado (Teixeira, 2018Teixeira, M. O. (2018). A crise econômica e as políticas de austeridade: efeitos sobre as mulheres. In P. Rossi , E. Dweck , & A. L. M. Oliveira(Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária.). Quando aplicada discursivamente, a austeridade fortalece no sistema político o poder corporativo, estando pautada por ideologias, falácias, argumentos morais e de empiria frágil (Rossi et al., 2018Rossi, P., Dweck, E., & Arantes, F. (2018). Economia política da austeridade. In P. Rossi, E. Dweck, & A. L. M. Oliveira (Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária.).

Particularmente, torna-se relevante a compreensão desse fenômeno no âmbito das reformas do sistema previdenciário brasileiro, desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por diferentes governos. Compreendendo que os discursos analisados nascem em contextos políticos, sociais e históricos distintos, o que se tem como questão central neste artigo é: em que medida as concepções de austeridade e financeirização permeiam o processo de construção dos discursos que justificam a proposição das reformas previdenciárias brasileiras?

Buscam-se identificar marcas ligadas à dinâmica da austeridade e da financeirização no campo público e, de forma crítica, desvelar as ideologias presentes no discurso dos proponentes das reformas previdenciárias brasileiras. É importante esclarecer que a compreensão de crítica adotada por esta investigação é a demarcação dos dados, situando-os no social, adotando ainda uma posição política clara, em que se focalize a reflexão (Wodak, 2004Wodak, R. (2004). Do que trata a ACD: um resumo de sua história, conceitos importantes e seus desenvolvimentos. Linguagem em (Dis)curso, 4(Especial), 223-243. https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/297
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).

Assim, seguindo os pressupostos de Chouliarak e Fairclough (1999Chouliarak, L., & Fairclough, N. (1999). Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh University Press.), este estudo buscou investigar a problemática social, as redes de práticas em que o problema se insere, bem como a percepção da ação e da ordem discursiva, aplicando a análise e refletindo sobre o papel dessas práticas discursivas e suas implicações no campo social, o que permitiu desvelar o problema, trazendo à tona as articulações hegemônicas, contribuindo para a possibilidade de uma superação da realidade da problemática levantada.

O artigo está organizado em cinco seções, sendo a primeira esta introdução. Na segunda, discute-se o estabelecimento das ideias ligadas à financeirização e à austeridade em políticas sociais como prática social. Na terceira, são apresentados os caminhos metodológicos para a investigação. A quarta aborda a análise discursiva e, por último, tecem-se as considerações finais.

2. FINANCEIRIZAÇÃO E AUSTERIDADE EM POLÍTICAS SOCIAIS: ELEMENTOS DA PRÁTICA SOCIAL

Marcado por uma sucessão de crises financeiras e sujeito a uma forte instabilidade graças à sua natureza especulativa, o mercado busca possibilidades de expansão nas mais diversas áreas (Salvador, 2010Salvador, E. D. S. (2010). Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serviço Social & Sociedade, 104(1), 605-631. https://doi.org/10.1590/S0101-66282010000400002
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). Entre essas dinâmicas, a financeirização desponta como um instrumento que viabiliza transformar e expandir as possibilidades do capital (Lins, 2019Lins, V. F. (2019). A economia política da financeirização: possíveis implicações no mundo do trabalho. Economia e Desenvolvimento, 31(1), 1-13. https://doi.org/10.5902/1414650936085; Salvador, 2010Salvador, E. D. S. (2010). Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serviço Social & Sociedade, 104(1), 605-631. https://doi.org/10.1590/S0101-66282010000400002
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), podendo ser compreendida como a “predominância dos mercados e demais instituições financeiras como a forma par excellence de definição, gestão e realização da riqueza no capitalismo contemporâneo. Isso significa dizer que se trata de um fenômeno necessariamente multifacetado” (Lins, 2019Lins, V. F. (2019). A economia política da financeirização: possíveis implicações no mundo do trabalho. Economia e Desenvolvimento, 31(1), 1-13. https://doi.org/10.5902/1414650936085, p. 11).

Assim, os elementos centrais da financeirização estão ligados à necessidade de expansão do capital, de modo que ele, uma vez acumulado, pode ser o motor dessa expansão, passando a buscar formas de rendimentos que vão se ligar às mais diversas estratégias, entre elas a expansão via serviços de saúde, educação, previdência, entre outros. Essa lógica tem suas bases nas reformas neoliberais implementadas a partir dos anos de 1980 e tem no Consenso de Washington suas diretrizes iniciais (Lins, 2019Lins, V. F. (2019). A economia política da financeirização: possíveis implicações no mundo do trabalho. Economia e Desenvolvimento, 31(1), 1-13. https://doi.org/10.5902/1414650936085), sendo o neoliberalismo uma ideologia que assume posição contrária ao Estado democrático social (Bresser-Pereira, 2009Bresser-Pereira, L. C. (2009). Assalto ao Estado e ao mercado, neoliberalismo e teoria econômica. Estudos Avançados, 23(66), 7-23. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200002
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, 2018Bresser-Pereira, L. C. (2018). Interesse, neoliberalismo e cinismo político. Em Debate, 10(1), 54-62. https://www.bresserpereira.org.br/papers/2018/292-Interesse-neoliberalismo-cinismo-EmDebate-BH.pdf
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).

As reformas neoliberais ligadas à relação dinâmica entre Estado e setor privado se basearam em três questões centrais: a privatização, a flexibilização e a desregulamentação. Essas medidas proporcionariam aos países centrais uma vantagem competitiva ampliada num cenário global cada vez mais interconectado, enquanto ofereceriam aos países em desenvolvimento uma salvaguarda para cumprir suas obrigações de dívida externa. Isso estabeleceria uma ideologia capitalista hegemônica, que advogaria pela adoção de políticas de austeridade, sob a premissa de uma lógica supostamente vantajosa e inevitável (Giffin, 2007Giffn, K. M. (2007). Financeirização do Estado, erosão da democracia e empobrecimento da cidadania: tendências globais? Ciência & Saúde Coletiva, 12(6), 1491-1504. https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000600011
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).

Quando pensamos na seguridade social, principal mecanismo de proteção social brasileiro, a financeirização afeta diretamente as políticas sociais, porque a financeirização da riqueza implica pressão sobre a política social, em especial as instituições da seguridade social, pois nelas estao o nicho dos produtos financeiros (Salvador, 2010Salvador, E. D. S. (2010). Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serviço Social & Sociedade, 104(1), 605-631. https://doi.org/10.1590/S0101-66282010000400002
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, p. 606). Essa concepção se dá, sobretudo, por atribuir aos direitos sociais, antes atividades executadas pelo Estado, uma lógica de direito monetarizado que pode ser operado pelo setor privado via mercados bancário-financeiros (Granemann, 2007Granemann, S. (2007). Políticas sociais e financeirização dos direitos do trabalho. Em Pauta, 20(1), 56-68. https://e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/159
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). Com isso, “propostas neoliberais incluem a transferência da proteção social do âmbito do Estado para o mercado e a liberalização financeira passa pela privatização dos benefícios da seguridade social” (Salvador, 2010Salvador, E. D. S. (2010). Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serviço Social & Sociedade, 104(1), 605-631. https://doi.org/10.1590/S0101-66282010000400002
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, p. 606).

Essa transformação da seguridade social em produtos do mercado financeiro se pauta na ideia de que é no mercado que as pessoas precisam comprar suas aposentadorias e seus seguros de saúde (Salvador, 2010Salvador, E. D. S. (2010). Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. Serviço Social & Sociedade, 104(1), 605-631. https://doi.org/10.1590/S0101-66282010000400002
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). Segundo Granemann (2007Granemann, S. (2007). Políticas sociais e financeirização dos direitos do trabalho. Em Pauta, 20(1), 56-68. https://e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/159
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), essa concepção está baseada na necessidade da acumulação capitalista de encontrar novos espaços que gerem valorização, resolvendo, ainda que paliativamente, a crise do sistema. Para a autora, a expressão atual dessa dinâmica está atrelada às contrarreformas do Estado e revela que as políticas que continuam sob a regência do Estado assumem posições de pauperização, substituindo políticas universais por mera monetização da reprodução da vida social, como no caso da substituição desses equipamentos sociais universais por bolsas de todos os tipos (Granemann, 2007Granemann, S. (2007). Políticas sociais e financeirização dos direitos do trabalho. Em Pauta, 20(1), 56-68. https://e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/159
https://e-publicacoes.uerj.br/index.php/...
).

É nesse contexto que as políticas de austeridade fiscal ganham força, estando relacionadas com a capacidade de regulação de reequilíbrio da economia, de redução da dívida pública e de retomada do crescimento econômico, numa opção de contratação voluntária de ajustes que incidirão na redução dos salários, do gasto público, das pensões e dos subsídios, bem como na reforma do sistema de saúde, na flexibilização, entre outras (Ferreira, 2011Ferreira, A. C. (2011). A sociedade de austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, 95(1), 119-136. http://journals.openedition.org/rccs/4417
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; Ribeiro, 2019Ribeiro, R. L. (2019). Austeridade seletiva e desigualdade. Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento, 78(1), 158-172. https://doi.org/10.12957/rfptd.2019.39274
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). Assim, trata-se d “uma palavra-ação por estar ligada ao ato de austerizar ou de tornar austero, significando [...] o processo de implementação de políticas e de medidas econômicas que conduzem à disciplina, ao rigor e à contenção econômica, social e cultural” (Ferreira, 2011Ferreira, A. C. (2011). A sociedade de austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, 95(1), 119-136. http://journals.openedition.org/rccs/4417
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, p. 119).

A austeridade pode ser definida como uma “política de ajuste da economia fundada na redução dos gastos públicos e no papel do Estado em suas funções de gerador do crescimento econômico e promotor do bem-estar social” (Teixeira, 2018Teixeira, M. O. (2018). A crise econômica e as políticas de austeridade: efeitos sobre as mulheres. In P. Rossi , E. Dweck , & A. L. M. Oliveira(Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária., p. 283). Nesse contexto, a austeridade se apresenta como uma abordagem racional, uma ferramenta econômica inquestionável que obscurece a tomada de decisões políticas que poderiam ser alvo de contestação. Como consequência, os governos locais, sob o crivo da incontestabilidade da austeridade, muitas vezes alinham suas políticas com os interesses de organizações globais em busca dos próprios objetivos políticos (Farnsworth & Irving, 2018Farnsworth, K., & Irving, Z. (2018). Deciphering the International Monetary Fund’s (IMFs) position on austerity: incapacity, incoherence and instrumentality. Global Social Policy, 18(2), 119-142. https://doi.org/10.1177/1468018117729821
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).

Frente a uma desaceleração econômica e ao aumento da dívida pública, o governo deveria realizar um ajuste fiscal cortando gastos públicos, e não aumentando impostos. Assim, há uma ação relacionada com as contas públicas, o que levaria a uma visão de credibilidade junto ao setor econômico e desencadearia uma recuperação por parte dos investimentos realizados por esse setor (Rossi et al., 2018Rossi, P., Dweck, E., & Arantes, F. (2018). Economia política da austeridade. In P. Rossi, E. Dweck, & A. L. M. Oliveira (Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária.). Tais ações são realizadas na busca por inspirar a “confiança empresarial, já que o governo não poderá atrair investimentos sugando todo o capital privado disponível por meio do endividamento público nem aumentar a dívida, que quase sempre já se encontra em patamar muito elevado” (Ribeiro, 2019Ribeiro, R. L. (2019). Austeridade seletiva e desigualdade. Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento, 78(1), 158-172. https://doi.org/10.12957/rfptd.2019.39274
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, p. 158).

A austeridade é, portanto, “uma noção perigosa porque ignora as externalidades negativas que gera, o impacto das escolhas de uma pessoa sobre as escolhas de outra pessoa, especialmente para as sociedades com distribuição de renda altamente desigual” (Ribeiro, 2019Ribeiro, R. L. (2019). Austeridade seletiva e desigualdade. Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento, 78(1), 158-172. https://doi.org/10.12957/rfptd.2019.39274
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, p. 161). As evidências de que a austeridade não produz os resultados desejados na prática não conseguem enfraquecer os discursos que a apoiam, os quais são impulsionados por posições ideológicas muito arraigadas e potencialmente prejudiciais (Blyth, 2017). As alterações nas políticas públicas são impulsionadas por um discurso público que promove reformas restritivas que podem não resultar em mudanças significativas no presente, mas ter efeitos no futuro (Kerstenetzky, 2012Kerstenetzky, C. L. (2012). O Estado do bem-estar social na idade da razão: a reinvenção do estado social no mundo contemporâneo. Elsevier.).

Por meio de discursos que enfatizam a inexistência de alternativas, a austeridade busca responsabilizar tanto os indivíduos quanto a sociedade pela atual conjuntura de descontrole do sistema (Ferreira, 2011Ferreira, A. C. (2011). A sociedade de austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, 95(1), 119-136. http://journals.openedition.org/rccs/4417
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). Desse modo, as dinâmicas ligadas à financeirização e à austeridade assumem um ponto central nas discussões que cercam as propostas de políticas para o campo social (Ferreira, 2019Ferreira, A. C. (2011). A sociedade de austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, 95(1), 119-136. http://journals.openedition.org/rccs/4417
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), o que remete à importância da compreensão dessas temáticas. Como “o imperativo da ‘austeridade’ e do ajuste fiscal encobre o propósito de alterar o modelo de sociedade pactuado pela Constituição de 1988” (Fagnani, 2018Fagnani, E. (2018). Austeridade e seguridade: a destruição do marco civilizatório brasileiro. In P. Rossi, E. Dweck, & L. A. Oliveira (Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária., p. 70), a percepção é que, a cada dia, se torna mais forte a inserção desses discursos na formulação de políticas e de reformas.

Tanto as ideias ligadas à financeirização quanto as associadas à austeridade têm um caráter seletivo, uma vez que refletem medidas que afetam diretamente os grupos mais vulneráveis da sociedade, impactando políticas como a seguridade social, os salários e os serviços públicos, enquanto, ao mesmo tempo, preservam vantagens para os mais privilegiados, como benefícios fiscais e tratamento tributário favorável. Tudo isso mostra que a austeridade está relacionada com um problema de distribuição política, e não necessariamente com um problema econômico contábil (Ribeiro, 2019Ribeiro, R. L. (2019). Austeridade seletiva e desigualdade. Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento, 78(1), 158-172. https://doi.org/10.12957/rfptd.2019.39274
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). A austeridade, nesse caso, é utilizada para a inserção dessas ideias no setor público, não sendo reduzida somente à crise do setor financeiro, mas também a uma preferência ideológica (Wiggan, 2016Wiggan, J. (2016). Austerity politics. In P. Alcock, T. Haux, V. McCall, & M. May (Eds.), The student’s companion to social policy. Wiley-Blackwell.).

3. CAMINHOS METODOLÓGICOS

O corpus desta pesquisa é composto por três exposições de motivos (EM) anexadas às PECs apresentadas ao Congresso, as quais versam sobre reformas na política previdenciária, temporalmente situadas entre a promulgação da Constituição e os dias atuais. A coleta dos dados foi realizada nos sites oficiais do Executivo e do Legislativo, que disponibilizam os procedimentos e os documentos no andamento das PECs. A escolha dos excertos analisados partiu da localização de léxicos recorrentes na construção do discurso de austeridade e financeirização apontados por estudos anteriormente analisados e que são descritos no Quadro 1.

QUADRO 1
LÉXICOS ANALISADOS

Para melhor visualização, os textos foram codificados, assumindo a seguinte nomenclatura: EC_NX_ANO, em que “EC” entra como abreviação de “emenda constitucional”, seguida de “NX”, em que X representa o número da emenda que a justificativa originou, e, por último, “ANO”, identificando o ano de sua promulgação. Nos excertos ao longo da discussão é acrescido um número referente à posição de seu parágrafo no texto original. No Quadro 2 são descritas as três Emendas Constitucionais que tiveram as exposições de motivos analisadas.

Quadro 2
Detalhamento das Emendas Constitucionais analisadas

A análise dos dados obtidos na coleta teve como foco as construções discursivas ideológicas presentes nos textos, que se relacionam com a lógica da financeirização e da austeridade, seguindo as orientações propostas por Fairclough: análise das práticas discursivas, focalizando a intertextualidade e a interdiscursividade das amostras do discurso; análise dos textos (microanálise da prática discursiva); e análise da prática social da qual o discurso é parte (Fairclough, 2016Fairclough, N., & Melo, I. F. (2012). Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D’água, 25(2), 307-329. https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v25i2p307-329
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, p. 294).

A análise propicia ao operador verificar as relações de causalidade e determinação intrínsecas às práticas discursivas, bem como as estruturas sociais e culturais, desvelando as relações de poder e as ideologias materializadas nos textos e nas práticas (Fairclough & Melo, 2012Fairclough, N., & Melo, I. F. (2012). Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D’água, 25(2), 307-329. https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v25i2p307-329
https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242....
). Isso porque a relação linguagem-sociedade é interna, ou seja, o discurso é socialmente constitutivo e constituído socialmente (Vieira & Resende, 2016Vieira, V., & Resende, V. D. M. (2016). Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. Pontes., p. 46). Para Van Dijk, no método de estudos críticos do discurso, o discurso não é analisado apenas como um objeto “verbal” autônomo, mas também como uma interação situada, como uma prática social ou como um tipo de comunicação numa situação social, cultural, histórica ou política (2018, p. 12).

Desse modo, a análise de discurso crítica (ADC), como um método investigativo, propiciou a compreensão de como os discursos estão imbricados nas práticas sociais, possibilitando a verificação das ideologias e as práticas hegemônicas, sendo, portanto, uma importante ferramenta para a compreensão do objetivo central desta pesquisa, que procura investigar financeirização e austeridade, assim como discursos hegemônicos e ideológicos, na construção das práticas discursivas governamentais, materializadas nas exposição de motivos das propostas de reformas da previdência social no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

4. PRÁTICA DISCURSIVA: CONSTRUÇÃO DAS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS BRASILEIRAS

Dirigida, em regra, ao presidente da República ou ao vice-presidente, a exposição de motivos é um gênero discursivo que tem como finalidade informar determinado assunto, a proposição de medidas e a submissão de projetos normativos à apreciação legislativa, tendo como proponente um ministro de Estado ou vários deles, quando a proposição é avalizada, a ser compreendida como interministerial. Uma exposição de motivos, em sua estrutura essencial, inicia com a identificação do problema que requer ação ou informação relevante a ser apresentada. Em seguida, no desenvolvimento, justifica por que a medida proposta é a solução ideal, mencionando alternativas, se houver. Na conclusão, reforça a proposta de ação ou apresenta considerações finais, dependendo do propósito da exposição de motivos (Casa Civil, 2018Casa Civil. (2018). Manual de redação da Presidência da República (3a ed., rev., atual. e ampl.). Presidência da República. http://www4.planalto.gov.br/centrodeestudos/assuntos/manual-de-redacao-da-presidencia-da-republica/manual-de-redacao.pdf
http://www4.planalto.gov.br/centrodeestu...
).

Assim, tal exposição possibilita verificar a justificação adotada pelos governos para a proposição de emendas constitucionais, permitindo compreender escolhas governamentais para compor a explicação sobre a necessidade de uma reforma. Particularmente neste estudo, a análise das exposições anexadas às propostas de reformas previdenciárias no Brasil busca desvelar o uso abusivo do poder que viola normas, valores e, portanto, direitos sociais em favor daqueles que detêm o poder (Van Dijk, 2018Van Dijk, T. A. (2018). Discurso e Poder. Contexto.).

Para que algumas ações e relações específicas sejam sustentadas, precisam se tornar legítimas. Essa legitimação (Thompson, 2011Thompson, J. B. (2011). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Vozes.) é a forma inicial na construção discursiva das reformas analisadas, pautando sua construção em torno de seis questões centrais: o crescimento da população brasileira e, com isso, a elevação das despesas previdenciárias; a alta expectativa de vida dos brasileiros e as aposentadorias precoces; a discrepância entre as legislações previdenciárias dos setores público e privado; a defasagem da legislação previdenciária brasileira; a dívida pública brasileira; o custo que a previdência representa ao Brasil (Amaral et al., 2022Amaral, A. de S., Costa, T. de M. T. da, & Lelis, D. A. S. (2022). Desvelando os argumentos reformistas: uma lexicalização das reformas previdenciárias brasileiras In Anais 9do Encontro Brasileiro de Administração Pública, São Paulo, SP, Brasil. https://sbap.org.br/ebap/index.php/home/article/view/734
https://sbap.org.br/ebap/index.php/home/...
).

Esses pontos são recorrentemente estabelecidos e demonstrados por meio da suposta objetividade dos números, materializando-se em gráficos que vinculam, numa série de dados, a situação finaceira da política previdenciária. Eles abordam questões cruciais, como a alta expectativa de vida dos brasileiros, que resulta em aposentadorias precoces e aumenta os desafios financeiros do sistema. Além disso, evidenciam a crescente dívida pública e o custo que a previdência representa para o país, consolidando a argumentação em prol das reformas previdenciárias. Essa abordagem gráfica visa tornar os números impactantes, contribuindo para a comunicação eficaz das propostas reformistas.

O governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que presidiu o Brasil de 1995 a 2002, foi caracterizado por uma orientação de centro-direita com raízes na social-democracia. Durante seu mandato, FHC implementou políticas econômicas que buscaram a estabilidade do país, entre eles o Plano Real, além de promover reformas econômicas, como privatizações e abertura comercial. Entre as reformas, a Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, alterou o sistema de previdência, tanto no campo privado quanto no público, implementando o tempo de contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), fixando idades mínimas de aposentadorias, aumentando o tempo de contribuição etc.

A reforma enfatizou princípios fiscais e em detrimento de objetivos sociais, sendo assinada, entre outros autores, por Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira, crítico das políticas neoliberais, mas signatário da reforma de FHC. O discurso estabelecido na sustentação da reforma gira em torno de aspectos financeiros e da despesa pública, construindo a ideia de um desequilíbrio nas contas previdenciárias e do déficit público. A identificação desses aspectos discursivos na construção da justificativa se apresenta de forma consonante com o trabalho de Araújo (2009Araújo, E. S. (2009). As reformas da Previdência de FHC e Lula e o sistema brasileiro de proteção social. Revista de Políticas Públicas, 13(1), 31-41. https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/2996
https://periodicoseletronicos.ufma.br/in...
), que, ao analisar as reformas previdenciárias de FHC, identifica as mesmas características como pontos centrais e de grande relevo no discurso do governo.

A tentativa de construir uma ideia padronizada e geral sobre a agenda reformista parte de argumentos ligados à universalização (Thompson, 2011Thompson, J. B. (2011). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Vozes.). Desse modo, interesses específicos são tidos como preocupações gerais vistas e exigidas por um “clamor popular” pela construção de um sistema mais efetivo. Além disso, procuram construir a ideia de que existe uma preocupação geral acerca das questões a serem tratadas na reforma, buscando a construção de um consenso social em torno da necessidade das reformas apresentadas naquele momento histórico.

A agência do processo material expressa a ação em curso, delimitada e compartilhada pelo clamor popular. A construção discursiva afasta a responsabilidade do proponente, que estaria reagindo à provocação daquele que clama por maior efetividade no sistema previdenciário. Essa construção caminha para a afirmação do déficit no sistema, que colocaria em risco toda a capacidade de manutenção da própria previdência e de todo o sistema econômico do país, que, por consequência, traria sérios prejuízos ao sistema social. O governo FHC, responsável pela proposição, compreendeu que a situação fora ignorada por aqueles que detinham o poder de mudança, o que impedia um diagnóstico do sistema:

Para um bom diagnóstico das dificuldades do sistema, não se pode ignorar que, nos dois últimos anos, o saldo operacional da Previdência Social, ou seja, a diferença entre o valor arrecadado com as contribuições sobre a folha de pagamentos e as despesas com benefícios, pessoal e custeio tem sido negativo. A persistência deste déficit levou progressivamente à redução e à interrupção do repasse de parcela destes recursos para a Saúde (Emenda Constitucional nº 20, 1998Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998. (1988). Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 14, grifos nossos).

O uso do processo mental “ignorar” busca construir a ideia de que o problema está posto, mas que existe escolha pelo não enfrentamento da situação, isso é, aquele que vê, porém se mantém inerte. Esse primeiro ponto no discurso é suporte para a culpabilização do sistema como responsável pelo não investimento em outras áreas sociais. Ao utilizarem “levou”, os autores intensificam a persistência do déficit, que conduz progressivamente a interrupção de recursos para a saúde. Essa concepção é a base para o sustento da necessidade de uma reforma, incluindo aspectos flexíveis das legislações para que se adequem ao novo contexto social.

Apesar de mencionada uma única vez, a ideia da flexibilidade pode ser encontrada na exposição de motivos em dois momentos principais: referindo-se às peculiaridades do processo produtivo e relacionando-se com a política de recursos humanos. A flexibilidade está intimamente ligada à desregulamentação, tendo em vista que, quando utilizada no discurso, se associa à dinâmica dos processos produtivos e de recursos humanos. Sabemos que encargos trabalhistas e manutenção de limites de horas, entre outros direitos, muitas vezes são vistos como problemas a serem superados pelos detentores do capital por representarem custos. Assim, assumir uma flexibilidade nas normas pode abrir espaço para maior possibilidade de lucros. A ideia é apresentada da seguinte forma:

Desse modo, ela poderá adquirir a flexibilidade necessária para se adequar às peculiaridades do processo produtivo, possibilitando uma distribuição mais justa dos encargos sociais sobre os fatores de produção (Emenda Constitucional nº 20, 1998Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998. (1988). Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 34, grifos nossos).

Sob o discurso de que reformas análogas estão sendo constantemente implementadas no mundo todo, o governo sinaliza sua inclinação às tendências reformistas daquela época, culpabilizando a precariedade do sistema vigente e defendendo a necessidade de um processo contínuo de ajustes. Essa constatação corrobora a tese de Mota (1995Mota, A. E.(1995). Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. Cortez.), que, ao estudar as tendências da previdência e da assistência social no Brasil, percebeu uma cultura de crise em que os alinhamentos e os modos operativos se dariam de forma particular, porém articulados com um projeto geral. Nessa perspectiva, a hegemonia se constrói a partir de modos de operação, atrelando a forma como são exercidas suas atividades com os processos políticos, históricos e econômicos daquele determinado contexto.

Nesse contexto de construção hegemônica, segue-se a análise da exposição de motivos concernente ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), tendo como objeto a justificativa relacionada com a proposição da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, cujo foco foram os servidores públicos. Lula governou o Brasil de 2003 a 2010, sob uma orientação de centro-esquerda, e, durante seu mandato, implementou políticas de inclusão social, como o programa Bolsa Família, destacando-se também pelo crescimento econômico, impulsionado pelo boom das commodities e pela expansão da classe média.

Em seu governo, as alterações ligadas ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) eliminaram a integralidade dos benefícios dos servidores públicos. No período, estabeleceu-se um teto de benefícios equivalente ao regime geral de previdência e introduziu-se a taxação de inativos, entre outras modificações. Ainda que de forma focada no serviço público, a EC propiciou a abertura do governo para realizar reformas.

Além disso, a sociedade questiona cada vez mais o ônus que representam pensões de longa duração para cônjuges muito jovens, que têm capacidade de retornar ao mercado de trabalho, ou, caso disponham de outra fonte de renda própria no momento do falecimento do segurado, possam se ajustar gradativamente à nova circunstância familiar (Emenda Constitucional nº 41, 2003Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003. (2003). Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc41.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 13).

O questionamento da sociedade acerca do ônus referente às pensões de longa duração seria o responsável pela proposição da reforma, camuflando a relação de responsabilidade do agente político com as novas reformas propostas. A construção dessa forma simbólica é usada para legitimar as ações reformistas, estabelecendo o que Resende e Ramalho (2019Resende, V. M., & Ramalho, V. (2019). Análise de discurso crítica(2a ed.). Contexto., p. 50) apontam como “[...] relações de dominação pelo fato de serem apresentadas como justas e dignas de apoio”.

O déficit também é apresentado na EM, remetendo à ideia de que as atuais regras previdenciárias seriam o motivo causador do desequilíbrio financeiro do sistema vigente à época. Assim, o sistema previdenciário próprio dos servidores estaria comprometido nas três esferas governamentais por ter regras que estariam na contramão dos princípios financeiros, sendo uma alternativa para a construção de uma flexibilidade nas regras vigentes.

Dessa forma, com as medidas propostas, almeja-se corrigir as distorções do atual modelo, propiciando maior equidade entre os regimes de previdência social, flexibilidade para a política de recursos humanos, adequação ao novo perfil demográfico brasileiro, melhoria dos resultados fiscais e, sobretudo, garantia de que as obrigações decorrentes das previsões constitucionais serão efetivamente cumpridas em relação ao direito do servidor público de ter uma aposentadoria digna, de forma sustentável, e sem privar o restante da sociedade dos recursos necessários ao crescimento e ao desenvolvimento da nação (Emenda Constitucional nº 41, 2003Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003. (2003). Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc41.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 6).

A concepção de flexibilidade está fortemente atrelada à ideia de desregulamentação, numa trajetória que compreende os preceitos sociais traçados pela Constituição Federal de 1988 como um peso para o desenvolvimento econômico do país. Essa concepção corrobora o trabalho de Fagnani (2018Fagnani, E. (2018). Austeridade e seguridade: a destruição do marco civilizatório brasileiro. In P. Rossi, E. Dweck, & L. A. Oliveira (Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária.), que aponta para um movimento pautado e encoberto pelos discursos imperativos do ajuste fiscal e da austeridade, com o intuito de modificar o modelo de sociedade estabelecido pela Constituição Federal de 1988.

Pode-se dizer, portanto, que o governo Lula dá continuidade à construção de um projeto de reformas, porém de forma mais particular, ao situar suas mudanças no serviço público. Ainda que não tão abrangente, por não estabelecer uma reforma generalizada dos institutos que regulam a previdência social, a EC ajuda a firmar essa posição reformista, contribuindo significativamente para a busca de um clima de naturalização dessas reformulações, atribuindo a elas um caráter de necessidade frente ao contexto socioeconômico. Percebe-se, como apontado por Araújo (2009Araújo, E. S. (2009). As reformas da Previdência de FHC e Lula e o sistema brasileiro de proteção social. Revista de Políticas Públicas, 13(1), 31-41. https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/2996
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), que existe uma estratégia consistente de reformulação previdenciária que abre significativo espaço para o fim do serviço público e para a acumulação privada.

Por fim, analisou-se a Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019, dada pelo governo de Jair Messias Bolsonaro, à época filiado ao Partido Social Liberal (PSL) e, posteriormente, ao Partido Liberal (PL). Iniciado em 2019 e representado por uma orientação de extrema-direita, o governo é conhecido por uma posição conservadora em questões sociais, adotando uma abordagem liberal na economia, buscando implementar reformas e promovendo desregulamentações. A reforma da previdência aprovada pelo governo estabeleceu, entre outras coisas, uma idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres - 65 e 62 anos, respectivamente - e um tempo mínimo de contribuição - 20 anos para homens e 15 para mulheres. A proposta é marcada por sua amplitude e, ainda que nem todos os pontos tenham sido efetivamente aprovados, se apresenta como a mais profunda reforma apresentada pós-Constituição.

A dívida pública e o problema fiscal brasileiro são fundamentos centrais para a construção do texto analisado. Busca-se construir uma relação direta da situação previdenciária com o aprofundamento da dívida pública e da situação fiscal no Brasil, pelo fato de a previdência ser entendida como custo por ter altas despesas administrativas, em razão do número crescente de beneficiários oriundos da alta expectativa de vida dos brasileiros. Esse problema estrutural seria o principal intensificador do endividamento brasileiro: “E esse nó fiscal tem uma raiz: a despesa previdenciária. Enquanto nos recusamos a enfrentar o desafio previdenciário, a dívida pública subirá implacavelmente e asfixiará a economia” (Emenda Constitucional nº103, 2019, parágrafo 6, grifos nossos).

Os objetivos traçados na Constituição de desenvolver a nação e combater a pobreza exigem um ambiente macroeconômico estável que não se apresentará sem um novo pacto para a Previdência. Podemos sair do círculo vicioso de mais despesa, mais dívida e mais juros para um círculo virtuoso de despesa e dívida sustentáveis com juros moderados (Emenda Constitucional nº 103, 2019Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. (2019). Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 6).

No primeiro excerto, o uso figurado no discurso vislumbra a construção de proximidade entre algo inanimado e algo orgânico, com vida própria. A palavra “raiz” é agenciada para demonstrar a origem do problema levantado, que dá vida ao nó fiscal, construindo a noção de que a reforma é o instrumento para cortar o mal pela raiz. Da mesma forma, a construção, a partir do processo material “asfixiará”, busca dar ao participante afetado, a economia, ares de organicidade, passível de morte, causada pela dívida pública, que subirá implacavelmente caso o problema base do nó fiscal não seja imediatamente solucionado pela recusa ao enfrentamento da questão.

Já no segundo excerto existe a tentativa de diferenciar dois polos extremos. O primeiro caracteriza o sistema previdenciário vigente com um círculo vicioso, ou seja, uma conotação negativa que atribui ao sistema a responsabilidade direta pelo crescimento das despesas, da dívida e dos juros, em contraponto com o novo pacto previdenciário. O segundo polo ganha uma conotação positiva, porque conseguiria levar o país a um círculo virtuoso de menos despesas, de dívida sustentável e de juros moderados, contribuindo para um ambiente macroeconômico estável, que, por sua vez, ajudaria a combater a pobreza e os objetivos traçados pela Constituição Federal de 1988.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem havido um forte movimento de proposições de reformas no sistema previdenciário brasileiro. A exposição de motivos, associada à Emenda Constitucional nº 103, após a implementação de todas as ações propostas pelas reformas anteriores, destaca a capitalização do sistema como parte fundamental na abordagem dos problemas enfrentados pelo sistema previdenciário. De acordo com a EM, essa transição para a capitalização é vista como um elemento-chave para impulsionar impactos positivos no investimento e promover o crescimento sustentável, sugerindo que a solução poderia ser alcançada por meio da adoção da capitalização obrigatória. A proposta, se aprovada, representaria uma mudança estrutural ao introduzir a capitalização e a privatização do sistema de proteção social.

Por fim, ainda se propõe a criação de um novo regime capitalizado de previdência para as novas gerações, por meio de uma lei complementar. Assim, ajusta-se o atual sistema, trazendo equilíbrio e igualdade, ao mesmo tempo que se abre a possibilidade de criar um novo sistema para aqueles não vinculados ao sistema atual (Emenda Constitucional nº 103, 2019Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. (2019). Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 20).

Exatamente para buscar um novo modelo que fortaleça a poupança no país, com impactos positivos sobre o investimento, o crescimento sustentado e o desenvolvimento, propõe-se introduzir, em caráter obrigatório, a capitalização tanto no RGPS quanto nos RPPS (Emenda Constitucional nº 103, 2019Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. (2019). Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 55).

Por fim, a ideia ligada à geração de confiança do mercado pode ser observada na construção discursiva a partir da concepção de que o gasto público, o endividamento público, a carga tributária, entre outros, são os principais fatores do afastamento do investimento privado no país. Essa ideia parte da concepção de que a austeridade é um instrumento capaz de restaurar a confiança do mercado e que os ajustes propostos conseguiriam reorganizar e reajustar essa condição tão prejudicial ao país (Fagnani, 2018Fagnani, E. (2018). Austeridade e seguridade: a destruição do marco civilizatório brasileiro. In P. Rossi, E. Dweck, & L. A. Oliveira (Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária.; Rossi et al., 2018Rossi, P., Dweck, E., & Arantes, F. (2018). Economia política da austeridade. In P. Rossi, E. Dweck, & A. L. M. Oliveira (Eds.), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária.). Assim, o discurso é construído para favorecer a compreensão de que os ajustes são motores para que a confiança empresarial seja estimulada.

Tal situação dificulta, em larga medida, a alocação de recursos para outras políticas públicas, pressiona a carga tributária e o endividamento público, tendendo a diminuir o investimento (Emenda Constitucional nº 103, 2019Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. (2019). Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm
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, parágrafo 38). A dívida e seus juros inviabilizam a geração de oportunidades (Emenda Constitucional nº 103, 2019Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. (2019). Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, parágrafo 38).

A carga tributária e o endividamento público provocariam, ou tenderiam a provocar, o afastamento e as possibilidades de investimento no país, impossibilitando a alocação de recursos para outras áreas e políticas públicas. Essa dívida em posição de trajetória arriscada inviabilizaria a geração de oportunidades. Culpabiliza-se a situação pelo desemprego dos jovens, em razão da falta de chances para empreender e de competitividade empresarial. Esse inimigo comum, responsável pela desestruturação de todo um sistema previdenciário, seria o culpado também por cooptar recursos necessários ao desenvolvimento da nação, portanto responsável pela situação de toda a incapacidade estatal de promover efetivas ações que conseguissem propiciar o crescimento do país. Nota-se um aprofundamento das dimensões de austeridade e financeirização ao longo da trajetória de construção das reformas previdenciárias brasileiras analisadas, sobretudo na Emenda Constitucional nº 103 (2019Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. (2019). Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
).

No Quadro 3 é apresentada a votação dos partidos que lideraram os governos nos períodos de análise, indicando tanto a aprovação com margem significativa de votos quanto mudanças de posiconamento quando o partido era de situação ou de oposição. Isso sugere que, em momentos diferentes da história política brasileira, houve um amplo apoio parlamentar para essas reformas, independentemente da orientação político-ideológica do governo.

QUADRO 3
DETALHAMENTO DA VOTAÇÃO DOS PARTIDOS POR EMENDA CONSTITUCIONAL

Observa-se a mudança de votos do PT ao longo das reformas, o que demonstra a diferenciação entre as votações e os discursos do partido quando situado em oposição e posição. Crítico às reformas previdenciárias dos governos FHC e Bolsonaro, o partido foi orientado e votou massivamente para a aprovação da reforma proposta pelo governo Lula. Os dados levantados corroboram o trabalho de Ribeiro e Mendes (2019Ribeiro, R. L. (2019). Austeridade seletiva e desigualdade. Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento, 78(1), 158-172. https://doi.org/10.12957/rfptd.2019.39274
https://doi.org/10.12957/rfptd.2019.3927...
), que demonstram a mudança do posicionamento ideológico do PT, em especial quando passou a assumir o Governo Federal.

A posição ideológica e as estratégias políticas dos partidos desempenharam um papel importante nas votações que levaram as reformas a serem aprovadas. Porém, é relevante compreender o aprofundamento dado pela reforma previdenciária aprovada no governo de Jair Bolsonaro, em 2019, o que demonstra que a associação de um momento oportuno a um governo orientado essencialmente por posições neoliberais pode trazer impactos significados à política de bem-estar social, afirmando o longo caminho traçado e objetivado pelas reformas previdênciarias, a transformação de direitos sociais em ativos financeiros.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou identificar marcas ligadas à dinâmica da austeridade e da financeirização no campo previdenciário brasileiro, desvelando, de forma crítica, as ideologias presentes no discurso dos proponentes das Emendas Constitucionais. Foram analisadas três exposições de motivos, em três governos distintos, ou seja, a construção dos discursos parte de momentos históricos, políticos, econômicos e sociais diferentes. Assim, evidenciaram-se as marcas ligadas à austeridade e à financeirização no contexto da previdência brasileira em aspectos ligados ao problema fiscal, à dívida pública, ao déficit da previdência, à flexibilidade, à desregulamentação, à capitalização e à confiança do mercado.

Observa-se uma conexão próxima entre as exposições de motivos, que revelam que as lógicas da austeridade e da financeirização estão presentes na formulação do discurso relacionado com as reformas previdenciárias. Isso ocorre porque a previdência é um terreno fértil para a expansão do capital financeiro por meio da capitalização do sistema, para investimentos em fundos privados e para a transferência dos recursos destinados aos benefícios previdenciários para setores mais favoráveis aos interesses daqueles que detêm o capital e buscam a intervenção estatal em seu favor. Este trabalho, assim, lançou luz sobre aspectos ocultos na construção da agenda de reformas, contribuindo para uma compreensão mais abrangente desses discursos sob diferentes perspectivas.

O estudo destacou a importância da análise dos discursos na elaboração das políticas de seguridade social, pois ajudou a compreender as ideologias presentes nos textos. Além disso, permitiu identificar as relações e as construções discursivas que justificam a necessidade e a relevância dessas políticas em determinado contexto, bem como revelou o que não está explicitamente declarado e, em particular, o que se procurou ocultar. De maneira geral, as ideologias que legitimam as reformas apresentam semelhanças significativas e estão pautadas pela austeridade e pela finaceirização. No entanto, é relevante observar que essas ideologias variam em intensidade ao longo da história das reformas da previdência social no Brasil, ficando claro o aprofundamento dado pela Emenda Constitucional nº 103 de 2019.

O estudo não teve a intenção de ignorar as dificuldades operacionais do sistema de seguridade social no Brasil nem subestimar a importância de fatores como o crescimento populacional e as questões fiscais que afetam sua efetividade. O objetivo foi revelar questões cruciais relacionadas com as dinâmicas econômicas dominantes, que tendem a influenciar a elaboração de políticas sociais em benefício de interesses privados, marginalizando vozes discordantes dos interesses do capital. Essa influência enfraquece as políticas públicas e resulta na redução do Estado de bem-estar social.

Aprofundar a análise crítico-discursiva em cada reforma, concentrando-se nos aspectos ligados à elaboração dos discursos midiáticos e sua importância na formação do imaginário sobre eles, além de produzir uma avaliação crítica dos dados quantitativos apresentados nas justificativas e sua alegada objetividade, seria uma abordagem proveitosa para dar continuidade a novos estudos.

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

REFERÊNCIAS

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  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Pareceristas:

  • 4
    Eli Iola Gurgel Andrade (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte / MG - Brasil) https://orcid.org/0000-0002-0206-2462
  • 5
    Dois pareceristas não autorizaram a divulgação de suas identidades.
Alketa Peci (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil) https://orcid.org/0000-0002-0488-1744
Gabriela Spanghero Lotta (Fundação Getulio Vargas, São Paulo / SP - Brasil) https://orcid.org/0000-0003-2801-1628

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2023
  • Aceito
    06 Nov 2023
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