Resumo
Evitar sobrepreços e preços manifestamente inexequíveis são dois objetivos principais da recém-promulgada Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. O presente artigo demonstra que, ao tentar alcançar o primeiro objetivo, a nova lei de licitações promove o segundo, pois um comando específico tende a reduzir os preços até congelá-los nos menores valores possíveis, conduzindo os contratados à maldição do vencedor. Alerta-se os agentes públicos sobre o fato de que a manutenção desse comando levará a descumprimentos generalizados de contratos e a uma eventual falência de competidores. O método Monte Carlo é utilizado para demonstrar que um mecanismo abrangente de pesquisa de preços evitará o problema e garantirá o efeito pretendido pela lei.
Palavras-chave: lei nº 14.133/2021; licitação; maldição do vencedor; sobrepreço; preço inexequível
Resumen
Evitar los sobreprecios y los precios manifiestamente inviables son dos de los principales objetivos de la recién promulgada Ley 14.133/2021 de Brasil. Este artículo demuestra que, al intentar lograr el primer objetivo, la nueva ley de licitaciones promueve el segundo, ya que un comando específico tiende a reducir los precios hasta congelarlos a los valores más bajos practicables, llevando a los contratados a la maldición del ganador. Se advierte a los funcionarios públicos que mantener este comando conducirá a incumplimientos generalizados de contratos y eventual quiebra de los competidores. Se utiliza el método Monte Carlo para demostrar que un mecanismo integral de investigación de precios evitará el problema y garantizará el efecto buscado por la ley.
Palabras clave: ley 14.133/2021; licitación; maldición del ganador; sobreprecio; precio inviable
Abstract
Avoiding overpricing and irresponsible pricing are two central objectives of the recently enacted Law 14133/2021. This article shows that when trying to achieve the first objective, the new Brazilian public procurement law promotes the second, since a specific command reduces maximum prices until they freeze to the lowest possible values, leading the contractors to the winner’s curse. Public officials are warned that maintaining this command will lead to widespread breaches of contracts and eventual bankruptcy of contractors. The Monte Carlo method is adopted to show that a comprehensive price database will avoid the problem and guarantee the effect intended by the law.
Keywords: law 14133/2021; public procurement; winner’s curse; overpricing; irresponsible pricing
1. INTRODUÇÃO
Em abril de 2021, foi promulgada a Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), que compilou regras de contratações públicas brasileiras estabelecidas nas Leis nº 8.666 (Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993), 10.520 (Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002) e 12.462 (Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011), reformulando-as em vários pontos. Uma importante inovação trazida pelo art. 11 da nova lei é a definição dos objetivos gerais das licitações, em perfeita aderência aos princípios básicos recomendados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2009, 2020) e pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2020). Entretanto, alguns dispositivos da nova lei podem levar a resultados indesejados, em especial aos preços inexequíveis que a lei almeja evitar e, consequentemente, à ineficácia das contratações. Isso porque uma orientação específica da lei, que será detalhada adiante, inevitavelmente conduzirá os contratados à maldição do vencedor.
O termo “maldição do vencedor” (ou winner’s curse) foi cunhado por Capen, Clapp, e Campbell (1971), sendo posteriormente desenvolvido por um dos últimos vencedores do prêmio Nobel de Economia, Paul Milgrom (1989). Em descrição ajustada ao presente artigo, o fenômeno ocorre quando um competidor vence uma licitação por um preço na região do inexequível, obrigando-se a trabalhar sem lucro ou, o que é pior, mediante prejuízo. O Estado, por sua vez, tende a experimentar diversos problemas associados, como o atraso e o abandono de contratos. Como exemplo, uma recente auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) demonstrou que as obras abandonadas no Brasil ocasionam prejuízos bilionários e danos ao crescimento, à geração de empregos e ao atendimento à população (TCU, 2019).
Aprofundando o estudo dessas obras, Signor, Love, Marchiori, e Felisberto (2020) mostraram estatisticamente que uma importante causa desses abandonos pode ser o baixo preço contratado, estimulado pelos baixos limites impostos pelos editais - em outras palavras, os vencedores foram amaldiçoados porque o poder público pressionou os preços para além do limite exequível.
De forma semelhante, este artigo revela que uma prescrição específica da Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, art. 23, § 1º, I), objetivando evitar sobrepreços na aquisição de bens e contratação de serviços em geral, na realidade fomenta a maldição do vencedor ao limitar os preços de novas licitações aos preços medianos de licitações passadas. A seção 3 apresenta o embasamento teórico e um exemplo prático do mau funcionamento dessa prescrição, que, por acabar resultando em preços inexequíveis, não pode ser utilizada. Possíveis soluções para o problema são apresentadas na seção 4, que recomenda que a pesquisa de preços pode ser baseada nos demais parâmetros descritos no mesmo art. 23, em especial o do inciso V, e que diferentes critérios de julgamento sejam adotados quando possível. Além disso, este trabalho alerta para a urgência de novos regulamentos que sistematizem pesquisas amplas de mercado para evitar o problema.
2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Segundo a OCDE, seus países-membros gastam 12% do produto interno bruto (PIB) por meio de licitações, e esse percentual pode aumentar para 20 a 30% para países em desenvolvimento (OCDE, 2020). Naturalmente, a importância desse volume de recursos gerou o interesse de diversos pesquisadores pelo tema, com destaque para Paul R. Milgrom e Robert B. Wilson, vencedores do prêmio Nobel de Economia em 2020. De importância fundamental para o presente artigo é o fato de que o prêmio (Nobel) diz respeito a evitar a maldição do vencedor (The Nobel Prize, 2021).
2.1. Evitando a Maldição do Vencedor
Apesar de um exame detalhado sobre os numerosos estudos, as características e os demais aspectos dos diferentes tipos de licitações extrapolar o escopo do presente artigo, para que se entenda o que é a maldição do vencedor e como a evitar, é indispensável destacar o trabalho seminal de Capen et al. (1971). Esses pesquisadores estadunidenses observaram que vencedores de licitações para exploração de campos de petróleo não obtinham a lucratividade esperada porque, basicamente, um excesso de competitividade levava os preços a uma faixa irreal. Assim, vencer uma licitação era mais uma maldição do que uma benção. O fenômeno foi depois confirmado por importantes pesquisadores em diferentes áreas, como as parcerias público-privadas (PPPs) na área de concessão de transportes, a terceirização na bilionária indústria de tecnologia da informação e até nos direitos de transmissão de partidas de futebol (Bazerman & Samuelson, 1983; Kagel & Levin, 1986; Milgrom & Weber, 1982).
Como a maldição se configura quando alguém vence uma licitação por um preço inexequível, sendo obrigado a trabalhar sem lucro ou mediante prejuízo, para evitar o problema, o competidor arrojado deve estimar cuidadosamente sua proposta para não se distanciar muito do valor real do objeto licitado. Nas palavras de Milgrom (1989, p. 6), “a recompensa para uma boa estimativa de custos em licitações é grande, porque permite propostas agressivas sem grandes riscos”.
2.2. O que Leva à Maldição do Vencedor
A causa primordial para a maldição do vencedor é a inexistência ou a assimetria de informação, que impede ou dificulta os competidores que precisarem de um valor do objeto licitado, conforme destacaram Capen et al. (1971) e os autores que os seguiram. O fenômeno é potencializado por outros fatores, como o grau de competitividade, usualmente expresso pelo número de competidores e a tendência associada de propostas inexequíveis (Bazerman & Samuelson, 1983); a inexperiência do vencedor, que pode levá-lo a apresentar uma proposta irreal (Milgrom, 1989); a inerente incompletude dos contratos, que, por não poder prever todas as situações passíveis de ocorrência durante sua execução, podem levar a desequilíbrios entre as partes - em especial para contratos de longa duração - e a reduções de qualidade ou outras alterações que contrabalancem esse desequilíbrio (Hart & Moore, 2008); o oportunismo governamental, em que o poder público usa dispositivos legais à sua disposição para se apossar dos ganhos dos contratantes privados e também o oportunismo do setor privado, que usa informações assimétricas ou enviesadas para desequilibrar os contratos (Spiller, 2013); e a falta de expertise das instituições públicas para planejar e fiscalizar, bem como dos agentes privados para executar, o que dificulta que os contratos iniciem e finalizem a contento (Cabral, 2017; Quelin, Cabral, Lazzarini, & Kivleniece, 2019), além de outros fatores como comportamentos irracionais e deficiências de julgamento (Bazerman & Samuelson, 1983).
2.3. O Caso Brasileiro
Trazendo a questão para as licitações brasileiras, em que geralmente o critério de seleção do vencedor é o menor preço, observa-se que a maldição do vencedor ocorre porque, na prática, os vencedores raramente rejeitam valores inexequíveis (Signor et al. 2020). Por exemplo, Dias (2021) analisou métodos e teorias de autores precedentes para identificar a maldição do vencedor ainda na fase de licitação, concluindo que nem os métodos analisados nem as prescrições da Lei nº 8.666 (Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993) e do projeto da nova lei de licitações - o então Projeto de Lei nº 4.253, de 2020 - conseguiram antever os contratos problemáticos em licitações de obras de uma universidade.
Apesar da recomendação global de que as licitações busquem a melhor relação custo-benefício das propostas (OCDE, 2009) e de a Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021) prever diferentes critérios de julgamento, ainda é comum a visão de que o contratante - o Estado, para a finalidade deste artigo - obterá vantagem sobre os contratados ao buscar sempre o menor preço. Além disso, o Estado deve buscar economizar o dinheiro do contribuinte, e, frente à importância das contratações públicas nas economias nacionais (OCDE, 2020), é inegável que, ao reduzir os preços de suas compras, a administração estará atuando na contenção da inflação. Entretanto, em longo prazo, essa situação pode se tornar insustentável e levar à degeneração do sistema, já que fornecedores falimentares não geram qualquer vantagem à economia (e à população) e preços congelados costumam não produzir bons resultados (Barrionuevo, 2015; Conceição & Monteiro, 2021; Schuettinger & Butler, 1979).
Além disso, não se pode esquecer a possibilidade de que ocorra um “apagão das canetas” (Mundim, 2020; Sundfeld & Marques, 2013), já que o comportamento racionalmente esperado de servidores encarregados de licitações será manter a aderência à legislação mesmo quando movimentos inflacionários ou alguma flutuação pontual determinem um aumento nos preços de mercado. Nesse caso, ainda que as licitações desertas se tornem frequentes, os servidores continuarão impelidos a manter os valores inexequíveis como limites máximos, temendo responsabilizações individuais.
Como a situação ideal é a de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, em que as obrigações assumidas pelo vencedor sejam equivalentes à compensação econômica que lhe corresponderá, tanto os sobrepreços quanto a maldição do vencedor costumam ser evitados pelas legislações nacionais. Por exemplo, em breve resgate histórico da legislação brasileira, observa-se que a Lei nº 8.666 (Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993) já estabelecia a necessidade de ampla pesquisa de mercado e a desclassificação de propostas com valor global superior ao limite estabelecido ou com preços manifestamente inexequíveis, apesar de não haver menção explícita à fonte dos limites superiores ou inferiores para os preços nos primeiros anos da lei.
Os limites superiores foram os primeiros a ser estabelecidos, abarcando obras e serviços de engenharia. Por estar ligado a numerosos escândalos que permearam o noticiário policial nas últimas décadas, o sobrepreço de obras foi analisado por diversos pesquisadores, como Lopes (2011); Pereira (2002); Signor, Love, Vallim, Raupp, e Olatunji (2019); e Vallim (2018). A repulsa social ao sobrepreço motivou a previsão, progressivamente a partir de 2003, do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi) e do Sistema de Custos Referenciais de Obras (Sicro) como limites máximos para a contratação de obras e serviços de engenharia - não havia, porém, limites claros nem para os preços máximos de bens e serviços, em geral, nem para os preços inexequíveis.
Aqui cabe a ressalva de que uma característica comum ao Sicro e ao Sinapi é que suas principais informações são os custos de composições de serviços, resultado de uma combinação de quantidades e de preços unitários de insumos, ambos provenientes de amplas pesquisas de mercado. Assim, como os preços medianos das composições também consideram informações externas ao ambiente das licitações públicas, sua utilização é segura, conforme já demonstrado por Signor, Love, Olatunji, Marchiori, e Gripp (2016) - suas conclusões podem ser facilmente estendidas para o Sicro.
Apesar, entretanto, dos estudos e dos avanços verificados para as obras e os serviços de engenharia, as aquisições de bens e contratação de serviços em geral continuaram sem limites estabelecidos pela legislação até o advento da Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021). Inicialmente, registra-se que a nova lei inovou ao tornar explícitos os objetivos das licitações, entre os quais os principais para o presente artigo são transcritos:
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
ENT#091;...ENT#093;
I - assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
ENT#091;...ENT#093;
III - evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
ENT#091;...ENT#093;
No que toca especificamente a evitar sobrepreço, a Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021) estabelece:
Art. 23. O valor previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto.
I Nsºo processo licitatório para aquisição de bens e contratação de serviços em geral, conforme regulamento, o valor estimado será definido com base no melhor preço aferido por meio da utilização dos seguintes parâmetros, adotados de forma combinada ou não:
I - composição de custos unitários menores ou iguais à mediana do item correspondente no painel para consulta de preços ou no banco de preços em saúde disponíveis no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP);
ENT#091;...ENT#093;
V - pesquisa na base nacional de notas fiscais eletrônicas, na forma de regulamento.
ENT#091;...ENT#093;
(Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, grifos nossos).
A próxima seção demonstrará que a mediana do painel de preços prevista pela nova lei tende a levar a um desequilíbrio indesejado no caso de aquisição de bens e contratação de serviços em geral. Será demonstrado que, quando somente as contratações anteriores do poder público são utilizadas para estabelecer o limite máximo de preços, ocorre o efeito indesejado de sua redução até o mínimo exequível, fomentando a maldição do vencedor.
3. EFEITO DO USO DA MEDIANA DO PAINEL DE PREÇOS
Como visto antes, a Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021) determina que os preços de bens e serviços em geral devem ser estimados pela mediana do item correspondente no painel para consulta de preços ou no banco de preços em saúde disponíveis no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). O painel de preços objetiva auxiliar os gestores públicos na tomada de decisões acerca dos processos de compra, dar transparência aos preços praticados pela administração e estimular o controle social. Para evitar a responsabilização por eventuais sobrepreços, o comportamento racional esperado dos funcionários públicos responsáveis por licitações será usar suas medianas como limites máximos.
Ocorre que, ao contrário do Sicro e do Sinapi, usados com sucesso como referências de preços para obras e serviços de engenharia, o painel de preços não conta com ampla pesquisa de mercado entre órgãos públicos e privados; apenas com registros de licitações promovidas por órgãos governamentais, conforme relata o manual do sistema (Rogério, 2018).
Assim, o que se busca demonstrar é que, quando os preços máximos são restritos às medianas das compras públicas anteriores, os futuros preços vencedores tendem a ser reduzidos até o mínimo exequível ou, se não fixado um limite, a zero. Isso porque a inserção contínua de valores iguais ou inferiores à mediana numa amostra acarreta obrigatoriamente a manutenção ou a redução da mediana da nova amostra, conforme ilustra o Gráfico 1. Na prática, o preço será congelado em seu minimum minimorum e, a partir de determinado momento, não haverá espaço para a redução de valores em novas licitações, a não ser em casos especiais, como a superoferta de determinado produto, ou caso um fornecedor em particular, por qualquer motivo, ofereça o item por um preço inferior ao de custo, submetendo-se à maldição do vencedor.
COMPORTAMENTO DO LIMITE DE PREÇOS DE LICITAÇÕES FUTURAS CASO O ART. 23, § 1º, I SEJA APLICADO
Os autores efetuaram diversos testes para comprovar o comportamento ilustrado pelo Gráfico 1. É fácil perceber que, a partir de determinado momento, a redução de preços dificultará (ou impedirá) as aquisições de produtos sujeitos a eventuais picos ou sazonalidade de custos. Apesar dos evidentes problemas para a aquisição de bens, alerta-se que é para a contratação de mão de obra que essa padronização do preço ao mínimo exequível apresenta seus piores efeitos. De fato, é possível demonstrar que a adoção rígida do inciso I, do § 1º, do artigo 23, da Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), condenará todos os trabalhadores contratados por empresas interpostas mediante licitação a receber o salário-mínimo estipulado em seus respectivos acordos ou convenções trabalhistas.
Para exemplificar o fenômeno, tome-se uma série de licitações fictícias para contratar a “prestação de serviços de copeiragem” (Código Catser 14397). Uma pesquisa realizada no painel de preços1 em 4 de abril de 2021 retornou, para a região Centro-Oeste, 78 registros com preços variando entre R$ 102,00 e R$ 3.678.365,29. Em análise detalhada, verificou-se que o menor valor diz respeito à diária paga a um profissional, e o valor de R$ 3.678.365,29, ao montante anual pago por um órgão público por um grupo de funcionários (encarregados, copeira e garçons). Buscando retratar o procedimento a ser seguido pelo responsável pela licitação, os valores extremos foram excluídos, restando 31 registros situados entre R$ 1.998,00 e R$ 4.453,96, que têm o mesmo objeto e se acredita exprimirem o valor unitário mensal de contratação desses trabalhadores. Todos os preços da amostra saneada foram ordenados e são mostrados na Tabela 1, resultando numa mediana de R$ 2.909,59.
O Gráfico 2 mostra o histograma desses preços e sobrepõe a eles uma distribuição Lognormal 3P (σ=0,34; μ=6,99; γ=1998,00), que se entende adequada para descrevê-los (Hajargasht & Griffiths, 2013) e não pode ser rejeitada segundo o teste Kolmogorov-Smirnov (α=5%). Vale ressaltar que, quaisquer que sejam os histogramas e as distribuições, após algumas licitações limitadas pela mediana das licitações anteriores ocorrerá um achatamento de salários e um posterior tabelamento ao piso salarial mínimo da categoria - para o presente exemplo, assume-se que os proventos do trabalhador, somados às leis sociais e ao lucro do empresário, não podem ser inferiores ao menor preço observado: R$ 1.998,00 - o salário-mínimo nacional em 2020 era de R$ 1.045,00.
Para prosseguir com o exemplo, os autores assumem que os vencedores de cada licitação futura oferecerão um preço 20% inferior ao fixado no respectivo edital - naturalmente, os descontos tendem a variar de acordo com diversos fatores descritos em ampla bibliografia (Kagel & Levin, 1986; Pereira, 2002; Signor et al., 2019), mas os resultados seriam os mesmos para quaisquer percentuais. Buscando simular o funcionamento do painel de preços, à medida que novos valores eram inseridos na amostra, os mais antigos eram excluídos, assumindo um regime anual aproximadamente constante. O Gráfico 3 ilustra as distribuições dos valores após 16 licitações - quando o valor vencedor seria obrigatoriamente reduzido ao mínimo praticável - e após 31 licitações - quando a mediana alcançaria R$ 1.998,00 e não permitiria que o profissional recebesse mais que o mínimo da categoria.
HISTOGRAMAS DOS PREÇOS PARA DESCONTOS VENCEDORES DE 20% SOBRE A MEDIANA APÓS 16 LICITAÇÕES (ESQUERDA) E APÓS 31 LICITAÇÕES (DIREITA)
A velocidade de achatamento e padronização dos preços dependerá, naturalmente, do número de dados da amostra original, de sua dispersão e do desconto vencedor observado em cada licitação - aqui fixado em 20%, apenas com finalidade exemplificativa. Entretanto, o resultado será sempre o mesmo: a padronização dos preços para o mínimo exequível, conforme se deseja alertar.
4. PROPOSTAS PARA SOLUCIONAR O PROBLEMA
Consideradas as implicações do problema apresentado, entende-se que, sem prejuízo de outras alternativas que se mostrem mais adequadas, uma possível solução para as licitações que buscam o menor preço pode ser a aplicação de outro dispositivo previsto na própria Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021). De fato, o inciso V, do § 1º, do art. 23, define que os preços de novas licitações podem também ser limitados por valores provenientes de pesquisa em base nacional de notas fiscais eletrônicas, na forma de regulamento. Essa pesquisa de valores provenientes de transações de mercado é necessária para evitar a retroalimentação que degenera o modelo e acaba por congelar os preços. Tal prática se assemelha às metodologias de Sicro e Sinapi, cujas pesquisas não se limitam às contratações realizadas pelo poder público.
Para exemplificar, os autores simularam licitações seguindo tanto a prescrição do inciso I quanto a do inciso V, do § 1º do art. 23 da nova lei. No primeiro caso, utilizando os dados provenientes do painel de preços descritos na Tabela 1 como sementes, valeram-se do método Monte Carlo para simular milhares de situações, adotando como preços vencedores os valores medianos de cada conjunto anterior reduzidos por descontos aleatórios com distribuição Uniforme (a = 0; b = 0,25). Com esse procedimento, observaram que, antes mesmo de 100 licitações, os preços já são limitados aos mínimos valores exequíveis.
Em contraste, buscando antever o funcionamento do inciso V, do § 1º, do art. 23, da Lei 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), mantendo os dados do painel de preços como semente - considerando-os representativos do mercado - mas dessa vez inserindo, a cada nova licitação, um preço proveniente de pesquisa ampla de mercado - aqui gerado aleatoriamente também pelo método Monte Carlo, com base na distribuição Lognormal antes descrita -, os autores observaram que não ocorre degeneração do modelo.
O Gráfico 4 ilustra o comportamento de medianas e preços vencedores para as licitações simuladas de serviço de copeiragem quando se restringe a pesquisa de valores ao painel de preços e quando se adota pesquisa ampla de mercado. Todas as previsões anteriores são confirmadas pelas simulações.
COMPORTAMENTO DE MEDIANAS E PREÇOS VENCEDORES PARA PESQUISAS RESTRITAS AO PAINEL DE PREÇOS E AMPLA DE MERCADO
Por fim, o Gráfico 5 compara os histogramas dos preços observados depois de 100 licitações quando se usa o painel de preços (modelo já degenerado) e depois de 1.000 licitações quando se adota pesquisa ampla de mercado (modelo ainda íntegro). Como previsto, os preços vencedores são sempre o valor mínimo no primeiro caso e variam no segundo, atingindo preços médios da ordem de R$ 2.700,00.
HISTOGRAMAS ESPERADOS PARA OS PREÇOS DO SERVIÇO DE COPEIRAGEM PARA DESCONTOS VENCEDORES ALEATÓRIOS ENTRE 0 E 25% SOBRE A MEDIANA ANTERIOR, CALCULADA COM BASE NAS LICITAÇÕES ANTERIORES (ESQUERDA) E EM AMPLA PESQUISA DE MERCADO (DIREITA)
Apesar da inegável utilidade das licitações que buscam o menor preço para a aquisição de bens e serviços padronizados, é importante destacar que, nos demais casos, uma estratégia mais abrangente para afastar a maldição do vencedor e, ao mesmo tempo, alcançar o resultado mais vantajoso para a administração pública (art. 11 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021) é a priorização de critérios que avaliem não só os custos, mas também os benefícios das contratações. Para tanto, o critério de julgamento pelo menor preço poderá ser substituído pela melhor técnica, por técnica e preço ou pelo maior retorno econômico, quando aplicáveis.
É possível antever, porém, que os servidores públicos responsáveis pelas licitações encontrem dificuldades iniciais nessa importante alteração procedimental e cultural. Dois fatores limitantes fundamentais na busca dessas soluções mais eficazes são a falta de especialização das comissões de licitação, ainda costumeiramente formadas por servidores designados ad hoc, e o receio que esses servidores têm de uma eventual responsabilização pelos órgãos de controle, o que os impele a trilhar o caminho mais seguro e conhecido do julgamento pelo menor preço. Espera-se que esses entraves sejam futuramente removidos pela atuação mais próxima dos órgãos de controle que, conforme determina o art. 173 da Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), passaram a ser responsáveis por capacitar os servidores que desempenharão essa importante função.
5. CONCLUSÃO
O presente artigo demonstrou que a inovação específica trazida pelo inciso I, do § 1º, do art. 23, da Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), que na prática limita o preço máximo de licitações futuras à mediana dos preços vencedores de licitações passadas, tende a levar a um resultado contrário ao esperado. A prática de retroalimentação da amostra tende a degenerar o modelo, congelando os preços contratados nos mínimos valores exequíveis e, em última análise, fomentando o fenômeno conhecido como maldição do vencedor. Em longo prazo, a administração e toda a sociedade brasileira, como consequência, sofrerão prejuízos se não houver uma correção de rumo.
As análises aqui apresentadas comprovam essa tendência indesejada. Como solução para o problema, sem prejuízo de outras alternativas que possam se mostrar mais adequadas, aponta-se a necessidade de pesquisas amplas de mercado para fixação de limites superiores de preços para novas licitações que visem à aquisição de bens e à contratação de serviços em geral. Para tanto, sugere-se que a regulamentação de pesquisas a partir da base nacional de notas fiscais eletrônicas seja implementada com a maior brevidade possível, permitindo que o valor estimado previsto seja baseado no inciso V, do § 1º, do art. 23.
Ainda no sentido de pleno atendimento aos objetivos da Lei nº 14.133 (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), para que a administração assegure a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso, há que considerar uma gradual mudança dos critérios de julgamento, substituindo o menor preço por melhor técnica, por técnica e preço ou pelo maior retorno econômico, sempre que possível, junto com a capacitação contínua dos servidores responsáveis pelas contratações públicas.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à Polícia Federal, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio à realização do artigo.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Mar 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Feb 2022
Histórico
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Recebido
10 Abr 2021 -
Aceito
21 Dez 2021