Resumo
Introdução: As convulsões não epilépticas psicogênicas (CNEP ou “pseudoconvulsões”) permanecem como tema obscuro no cenário perioperatório. Trata-se de distúrbios motores e cognitivos súbitos, mas por tempo limitado, que imitam as convulsões epilépticas, mas que são psicogenicamente mediados. Pseudoconvulsões ocorrem com mais frequência do que epilepsia em cenário perioperatório. O diagnóstico e o tratamento precoces podem evitar lesões iatrogênicas.
Caso: Paciente do sexo feminino, 48 anos, com história de depressão e “convulsões”, apresentou-se para cirurgia ginecológica. A paciente descreveu sua história de convulsões “controladas” sem o uso de terapia anticonvulsivante. Foi submetida à anestesia geral sem intercorrências e recuperou-se neurologicamente intacta. Durante as duas primeiras horas de pós-operatório, apresentou três episódios semelhantes à convulsão, com tremores generalizados das extremidades e impulso pélvico; seus olhos estavam bem fechados. Não observamos mordedura da língua ou incontinência. Os episódios duraram cerca de três minutos cada; um dos episódios resolveu espontaneamente e os outros dois após a administração de lorazepam por via intravenosa. Durante os episódios, a condição hemodinâmica da paciente era estável e a ventilação adequada, de modo que a intubação traqueal foi considerada injustificável. Após a convulsão, a paciente estava neurologicamente intacta. Tomografia axial da cabeça, teste metabólico e eletroencefalograma não mostraram alterações. O diagnóstico de provável CNEP foi feito.
Discussão: As convulsão não epilépticas psicogênicas imitam o tremor e devem ser inicialmente consideradas no diagnóstico diferencial de tremor pós-operatório, pois podem ser mais prováveis do que a epilepsia nesse cenário. Os padrões da pseudoconvulsão incluem episódios convulsivos assíncronos que duram mais de 90 segundos, olhos forçadamente fechados com resistência à abertura e respostas pupilares mantidas. Manifestações autonômicas, como taquicardia, cianose e incontinência, normalmente estão ausentes. Uma história psiquiátrica é comum. O conhecimento e o diagnóstico correto de pseudoconvulsões são muito importantes para os anestesiologistas para a prevenção de morbidade e lesões iatrogênicas, como a parada respiratória causada por terapia anticonvulsivante, além dos riscos associados à intubação orotraqueal e internação prolongada. O diagnóstico de pseudoconvulsões deve ser cuidadosamente documentado e retransmitido nas trocas de equipes médicas para evitar erros de diagnóstico e complicações iatrogênicas. As recomendações de tratamento são anedóticas; intervenções psiquiátricas são o pilar do tratamento. As recomendações anestésicas incluem técnicas que envolvem o uso de agentes de ação curta, juntamente com altos níveis de apoio e amparo psicológico no período perioperatório.
PALAVRAS-CHAVE Convulsão; Não epiléptico; Complicações; Período de recuperação da anestesia; Pseudoconvulsões na sala de recuperação; Complicações pós-operatórias
Abstract
Introduction: Psychogenic non-epileptic seizures (PNES or “pseudoseizures”) remain an obscure topic in the peri-operative setting. They are sudden and time-limited motor and cognitive disturbances, which mimic epileptic seizures, but are psychogenically mediated. Pseudoseizures occur more frequently than epilepsy in the peri-operative setting. Early diagnosis and management may prevent iatrogenic injury.
Case: 48 year-old female with a history of depression and “seizures” presented for gynecologic surgery. She described her seizure history as “controlled” without anticonvulsant therapy. The patient underwent uneventful general anesthesia and recovered neurologically intact. During the first two postoperative hours, the patient experienced 3 episodes of seizure-like activity with generalized shaking of extremities and pelvic thrusting; her eyes were firmly closed. No tongue biting or incontinence was noted. The episodes lasted approximately 3 min each, one of which resolved spontaneously and the other two following intravenous lorazepam. During these episodes, the patient had stable hemodynamics and adequate ventilation such that endotracheal intubation was deemed unwarranted. Post-ictally, the patient was neurologically intact. Computed axial tomography of the head, metabolic assay, and electroencephalogram showed no abnormalities. A presumptive diagnosis of PNES was made.
Discussion: Psychogenic non-epileptic seizures mimic shivering, and should be considered early in the differential diagnosis of postoperative shaking, as they may be more likely than epilepsy in this setting. Pseudoseizure patterns include asynchronous convulsive episodes lasting more than 90 s, forced eye closure with resistance to opening, and retained pupillary responses. Autonomic manifestations such as tachycardia, cyanosis and incontinence are usually absent. A psychiatric background is common. Knowledge and correct diagnosis of pseudoseizures is of great importance for anesthesiologists to prevent morbidity and iatrogenic injury such as respiratory arrest caused by anticonvulsant therapy, in addition to the risks associated with endotracheal intubation and prolonged hospital stays. The diagnosis of pseudoseizures must be thoroughly documented and relayed in transfer of care to avoid misdiagnosis and iatrogenic complications. Treatment recommendations are anecdotal; psychiatric interventions are the hallmark of treatment. Anesthetic recommendations include techniques involving the minimum required short-acting agents, along with high levels of peri-operative psychological support and reassurance.
KEYWORDS Convulsion; Non-epileptic; Complications; Anesthetic anesthesia recovery period; Recovery room pseudoseizures; Postoperative
Introdução
As convulsões não epilépticas psicogênicas (CNEP), também conhecidas como pseudoconvulsões, são uma entidade bem conhecida na literatura neurológica; no entanto, permanecem como tema obscuro no cenário perioperatório. CNEP são distúrbios motores, cognitivos e/ou das funções emocionais, súbitos e de curta duração que imitam as convulsões epilépticas. Diferentemente das convulsões epilépticas, as CNEP não estão associadas à disfunção orgânica ou fisiológica do sistema nervoso central, mas são psicogenicamente mediadas.1,2 Essas convulsões devem ser consideradas precocemente no diagnóstico diferencial de tremor pós-operatório, pois convulsões são eventos raros no pós-operatório,3,4 o que torna as CNEP mais prováveis do que epilepsia nesse cenário.3 O diagnóstico e o tratamento precoces podem prevenir a morbidade resultante de tratamento inadequado e do mau uso de recursos nesses pacientes.
Apresentamos um caso de atividade convulsiva ocorrido na sala de recuperação pós-anestésica (SRPA), posteriormente diagnosticado como CNEP.
Relato de caso
Paciente do sexo feminino, 48 anos, com história significativa de incontinência urinária, depressão, enxaqueca crônica, asma, câncer renal (status post nefrectomia) e história remota de “convulsões”, apresentou-se para procedimento de técnica de sling vaginal. Durante a anamnese, a paciente descreveu sua história de convulsão como “resolvida” sem exigir terapia anticonvulsivante; o último episódio ocorrera havia mais de três anos. A paciente foi submetida à anestesia geral, que foi induzida com propofol, fentanil e midazolam (como pré-medicação) e mantida com sevoflurano. A cirurgia transcorreu sem intercorrências, seguida por extubação traqueal de emergência bem-sucedida, após a qual a paciente foi transferida para a SRPA, sem complicações e neurologicamente intacta.
Durante as duas horas subsequentes na SRPA, a paciente apresentou três episódios de atividade semelhante à convulsão. Os episódios começaram como tremor generalizado das extremidades, com impulsos da cabeça e pelve e olhos firmemente fechados. Não observamos mordedura da língua e/ou incontinência intestinal ou urinária. Os episódios duraram cerca de três minutos cada; um deles se resolveu espontaneamente e os outros dois após a administração de 2 mg de lorazepam por via intravenosa. Durante permanência na SRPA, as condições hemodinâmicas da paciente eram estáveis e sua ventilação/oxigenação adequada, de modo que a intubação traqueal foi considerada injustificável. Após as convulsões, o estado neurológico da paciente melhorou lentamente e voltou ao normal. Um neurologista foi consultado e recomendou a feitura de tomografia axial da cabeça, teste metabólico e eletroencefalograma (EEG). Todos os testes foram negativos e não mostraram alterações. Uma revisão completa do prontuário da paciente revelou teste anterior de EEG com atividade cerebral normal em cenário de quatro “convulsões convulsivas”. A paciente também fora tratada no passado por déficits neurológicos transitórios de etiologia desconhecida, o que sugeria transtorno somatoforme. Após discussão com a equipe de neurologia, bem como com o próprio neurologista da paciente, o diagnóstico de CNEP foi feito. O restante da permanência hospitalar transcorreu sem intercorrências e a paciente recebeu alta no dia seguinte.
Discussão
A agitação generalizada no período pós-operatório é muito comumente devida a tremores e pode ou não ser de origem termorregulatória.5 Acredita-se que os tremores não termorregulatórios sejam secundários aos efeitos dos anestésicos voláteis, da dor ou de ambos.6 Convulsões pós-operatórias são eventos raros e, portanto, são uma causa infrequente de agitação generalizada no pós-operatório. Quando ocorrem, geralmente são atribuíveis a uma reação identificável do medicamento, um distúrbio metabólico ou um evento neurológico, com maior incidência na população neurocirúrgica.3
As CNEP (também conhecidas como “pseudoconvulsões”) imitam os tremores e devem ser consideradas precocemente no diagnóstico diferencial de tremor pós-operatório, pois essas convulsões podem ser mais prováveis do que epilepsia no período pós-operatório.3 Descritas pela primeira vez em SRPA por Parry e Hirsch,7 esses ataques se assemelham à epilepsia grave, mas não têm descargas elétricas anormais no EEG.
A prevalência de CNEP foi estimada entre duas e 33 por 100.000.8 Na verdade, entre os pacientes encaminhados aos centros ambulatórios de epilepsia, entre 5-25% são susceptíveis de apresentar CNEP, enquanto 25-40% dos pacientes em regime de internamento monitorados por convulsões intratáveis são finalmente diagnosticados com CNEP.1
Em geral, as CNEP tendem a seguir certos padrões que incluem: episódios convulsivos extravagantes que duram mais de 90 segundos, com movimentos assíncronos dos membros; movimento da cabeça de um lado para outro; olhos forçadamente fechados com resistência à abertura e respostas pupilares mantidas.1,3 Manifestações autonômicas, como taquicardia, cianose e incontinência, normalmente estão ausentes. A lembrança de eventos durante a convulsão, gagueira, vocalizações e lacrimejamento, são relativamente incomuns em ataques epilépticos e sugerem CNEP. Uma história de transtornos psiquiátricos é comum e pode incluir depressão; ansiedade; distúrbios somatoformes, de personalidade limítrofe, narcisista e histriônico; bem como história de abuso físico e/ou sexual.1 Em um estudo, o valor preditivo da ocorrência de um episódio em sala de espera ou de exame médico foi estimado em 75% para CNEP.9 O diagnóstico de CNEP é feito por exclusão e o padrão ouro em ferramenta diagnóstica parece ser a gravação simultânea das convulsões em vídeo e no EEG.10
O conhecimento das CNEP é de grande relevância para os anestesiologistas para prevenir morbidades e lesões iatrogênicas. Um estudo que acompanhou 13 pacientes com CNEP por mais de quatro anos documentou oito episódios de parada respiratória, causados por terapia anticonvulsivante intravenosa administrada devido ao diagnóstico presumido de convulsões.11 Além disso, outras morbidades podem advir de intubação orotraqueal e hospitalizações prolongadas. O diagnóstico de CNEP deve ser cuidadosamente documentado e retransmitido na transferência de equipes para evitar complicações posteriores. Episódios múltiplos de CNEP após a anestesia geral justificam uma avaliação adicional e a exclusão de outros diagnósticos. Em casos ambíguos, uma avaliação neurológica pré-operatória também pode ser indicada.
As recomendações de tratamento para CNEP são baseadas principalmente na experiência anedótica ou em pequenas séries de casos; contudo, as intervenções psiquiátricas são os pilares do tratamento. Essas devem ser individualizadas de acordo com o transtorno psiquiátrico subjacente; uma intervenção comum é a psicoterapia tradicional.12 As recomendações anestésicas são escassas, mas incluem técnicas que envolvem quantidades mínimas dos agentes de ação curta preferidos, juntamente com altos níveis de apoio psicológico no perioperatório e, mais importante, a tranquilização constante desses pacientes.3
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Aug 2016
Histórico
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Recebido
22 Ago 2013 -
Aceito
17 Out 2013