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Bourdieu e as relações de trabalho: tecendo fios de um encontro profícuo

QUIJOUX, Maxime. Bourdieu et le travail. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2015

A obra de Pierre Bourdieu, uma das mais impactantes na sociologia do século XX, tem sido pouco mobilizada no âmbito dos estudos do trabalho, inclusive na França. A obra coletiva Bourdieu et le travail, organizada por Maxime Quijoux, que teve origem em um colóquio homônimo1 1 Colloque “Bourdieu et le travail”, organizado pelo Laboratoire Institutions et Dynamiques et Historiques de l’Économie (IDHE-ENS Cachan), Centre Européen de Sociologie et Science Politique (CESSP-Paris 1), Laboratoire d’Économie et Sociologie du Travail (LEST-CNRS-Aix-Marseille). , realizado em 2012, parte dessa constatação – que também poderia se estender aos estudos da sociologia do trabalho no Brasil –, e se propõe a superar tal lacuna por meio de um duplo exercício: primeiramente, evidenciando o lugar reservado à interpretação das relações de trabalho no estudos de Bourdieu; e apresentando investigações contemporâneas, sobretudo de jovens pesquisadores/as, que lançam mão das ferramentas teóricas cunhadas pelo célebre sociólogo francês, para discutir um amplo leque de casos empíricos. Embora o livro em questão seja de 2015, a publicação de sua resenha se justifica em função da obra oferecer uma contribuição absolutamente inédita, tecendo os fios teóricos e empíricos, aparentemente soltos, que dão um lugar central às reflexões sobre o trabalho na teoria do mundo social de Pierre Bourdieu, o que poderá redundar em novas reflexões e usos da obra do autor no Brasil.

Na primeira parte do livro, Bourdieu et le travail, une introduction, escrita pelo próprio organizador da obra, encontramos um denso e detalhado esforço de reconstrução do espaço dedicado à análise das relações de trabalho na obra de Bourdieu, por meio do qual Quijoux demonstra como as reflexões de Bourdieu acerca do lugar do trabalho no mundo social teriam influenciado tanto a noção de espaço social como um espaço multidimensional de posições sociais – definido pela posse de determinados capitais (econômicos, culturais, sociais, simbólicos) – quanto o desenvolvimento dos conceitos estruturantes de sua teoria, tais como campo, habitus, estilo de vida e illusio. Nesse sentido, Quijoux defende que o trabalho não pode ser entendido, na obra de Bourdieu, como um objeto com propriedades sociais específicas, mas como espaço suplementar de expressão das divisões sociais que estruturam as sociedades contemporâneas, constituindo-se, portanto, como um campo: espaço dinâmico de lutas objetivas e simbólicas que opõem agentes em torno das definições de diferentes dimensões das relações de trabalho. Assim, uma análise (rigorosa e minuciosa) do caráter agonístico do funcionamento desses microcosmos sociais, que são os campos, abriria a possiblidade para se pensar as relações de trabalho como um domínio social paradoxal: capaz tanto de legitimar as dominações mais subterrâneas, quanto de gerar disputas capazes de reconfigurar objetiva e subjetivamente a experiência do trabalho na tessitura da vida social.

De acordo com Quijoux, Bourdieu estaria interessado, sobretudo, nos modos como, a partir de processos de socialização – portanto, dos processos de constituição do habitus –, trabalhadores e trabalhadoras, de um lado, dariam forma ao seu pertencimento de classe e à sua trajetória produzindo disposições profissionais específicas; e, de outro, em como tais pessoas tomariam parte nas disputas pela definição de seu trabalho e seu ofício ou profissão. Assim, “reintegrando” o trabalho a uma dinâmica mais geral do funcionamento da vida social, o sociólogo francês indica que ele não é tão somente um espaço de luta entre exploradores e explorados (ou entre explorados e explorados), nem unicamente um meio para ganhar a vida e assegurar a subsistência da família: a vida profissional, com a disciplina, regularidade, práticas e valores que lhes são inerentes, constituiria um pilar fundamental do enquadramento da existência individual e coletiva. De modo que, assim como no caso do equilíbrio emocional, o sistema de quadros temporais e espaciais nos quais se desenrola a existência não poderia se constituir, na ausência dos marcos que são fornecidos pelo trabalho. Avançando no mesmo sentido, o trabalho, para Bourdieu, seria também capaz de formar uma consciência temporal e racional particular, que resultaria em maior discernimento político. Nas palavras de Quijoux: “o trabalho aparece na obra de Bourdieu, como uma, senão a única, instituição capaz de oferecer novas disposições, úteis tanto para uma conduta reflexiva como prospectiva, individual e coletiva” (Quijoux, 2015QUIJOUX, Maxime (dir.). Bourdieu et le travail. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2015., p. 82).

Ainda em relação a essa primeira parte do livro, vale destacar a análise de Quijoux sobre a articulação entre as questões do trabalho e um objeto muito célebre da obra de Bourdieu: a escola. Mais especificamente, o autor destaca a tênue, mas fundamental, relação entre a instituição escolar e o trabalho, na medida em que cabe à primeira preparar, sobretudo subjetivamente, os indivíduos para os postos de trabalho que lhes serão destinados por sua origem e trajetória social. Assim, destacando a importância da escola sobre o mundo profissional e lançando mão do conceito de habitus, Bourdieu ultrapassaria uma leitura sincrônica – bastante frequente em relação às condições de trabalho – e demonstraria que a relação com o trabalho é o resultado de uma articulação complexa entre socialização primária e secundária, origem e trajetória social, propriedades e disposições e, também, entre as configurações dos campos profissionais e do mercado de trabalho, em seus delineamentos nacionais e regionais.

Na segunda parte do livro, Bourdieu, l´Algerie et le travail: réflexivités et enjeux heuristiques, o foco recai sobre o fecundo período de estudos na Argélia, quando, acompanhado de jovens estatísticos franceses, jovens pesquisadores da Faculdade de Letras de Argel, entre eles Abdelmalek Sayad (1933-1998), e guias locais, e lançando mão de uma abordagem etnossociológica (produção e uso de dados quantitativos, observações, entrevistas, material fotográfico), Bourdieu se debruçou sobre o desmantelamento das relações econômicas e de trabalho tradicionais e seus desconcertantes efeitos sobre a formação de novas disposições econômicas (e culturais) ajustadas ao capitalismo, em um contexto histórico e social particular. A esse respeito, nesta parte do livro, encontra-se um texto do próprio Bourdieu, Retour sur l´expérience Algérienne, mais especificamente, uma comunicação oral na qual ele discute alguns aspectos das condições da produção de sua sociologia no contexto argelino. Em seguida, Fabien Sacriste, analisando a oposição entre trabalho tradicional e trabalho assalariado, enfatiza a transformação da relação com o tempo imposta pelo desenvolvimento do capitalismo ao trabalhador. E, finalmente, o texto de Claude Didry discute a fecundidade das pesquisas do período argelino para a formação de uma inteligibilidade das dimensões históricas do trabalho nas sociedades industriais.

Para a terceira parte do livro, Activités intellectuelles, professions artistiques et économie symbolique, foram selecionadas comunicações apresentadas no colóquio supracitado que discutiram objetos mais estudados por Bourdieu –, a saber, a escola e o mundo artístico – e sua conexão com as questões da sociologia do trabalho. Nicolas Sembel apresenta uma rigorosa e detalhada discussão sobre a paradoxal pouca visibilidade do trabalho de professores e professoras na obra de Bourdieu; demonstrando, no entanto, que o sociólogo francês teria desenvolvido chaves analíticas importantes para a compreensão do trabalho docente, tanto por meio da discussão do funcionamento das instituições escolares quanto pela análise de suas próprias experiências escolares, por meio das quais Bourdieu realiza um exercício de auto-objetivação. Wenceslau Lizé e Delphine Naudier, por sua vez, analisam o trabalho desenvolvido por profissionais chamados “intermediários” no campo artístico (agentes de atores, diretores de casting, gerentes de músicos), ou seja, atividades que se localizam entre o mundo das artes e do comércio, o que conduziria a uma transformação tanto do habitus profissional desses sujeitos, que se tornam “operadores de mercado”, quanto do habitus dos artistas que eles representam, que são estimulados a se tornarem “empresários de si mesmos”. Em seguida, Pierre Emmanuel Sorignet apresenta uma pesquisa sobre bailarinos contemporâneos e as especificidades de uma profissão na qual o corpo é o instrumento de trabalho principal e sobre como a sociologia de Bourdieu o conduziu a analisar seus dados por meio da “sociologia da crença”. Finalmente, Marc Perrenoud propõe analisar como foi possível articular a sociologia trabalho interacionista e uma sociologia dos bens simbólicos na construção de análises que consideram tanto as dimensões objetivas quanto subjetivas das relações de trabalho.

A partir de enquetes contemporâneas, na quarta parte do livro, Habitus professionnel et division sociale: le travail entre reproduction e socialisation, encontram-se trabalhos que destacam a fecundidade empírica da noção de habitus e de trajetória, bem como dos processos de socialização dos quais são tributários, nas análises das relações de trabalho. Assim, Cécile Rabot analisa a forma como os bibliotecários pensam e praticam seu trabalho e identifica um habitus profissional específico, associado a agentes que ocupam uma posição dominada no campo literário, educacional e/ou político cultural. Esse habitus seria o produto de socializações que remetem, por um lado, às origens e trajetórias sociais desses profissionais e, por outro, às formas de organização do trabalho no âmbito das bibliotecas. Yohan Selponi, por sua vez, trata do trabalho de enfermeiras escolares, vinculando habitus profissionais das agentes às suas práticas laborais e investimentos profissionais. Enquanto Thibaut Menoux analisa como as trajetórias dos concièrges de hotéis de luxo permitem um encontro entre um habitus de classe popular, na maioria das vezes, e situações de trabalho que envolvem a aquisição de gostos e disposições próprias à alta burguesia. Rémy Caveng, finalmente, questiona a existência e os métodos de constituição de uma “disposição à precariedade” a partir do caso de trabalhadores em empresas de pesquisa de opinião. Indicando que não existe um habitus de trabalhador temporário, o autor nos convida a compreender diferentes maneiras de viver a instabilidade no trabalho, o que varia em função dos recursos e disposições dos agentes, e se desdobra em formas variáveis de relação com a condição de assalariado.

A quinta parte do livro Le travail entre dominations et conflits se dedica à reunião de artigos que discutem um objeto capital tanto na obra de Bourdieu, quanto nos estudos do trabalho: a dominação. O texto de Laurence Proteau expõe as lógicas do senso prático de policiais, mais especificamente, trata-se de uma análise dos modos de produção de um habitus policial no âmbito das relações de trabalho, com ênfase sobre as condições de transformação de disposições adquiridas ao longo da vida em um habitus profissional específico, associado, de modo consciente ou inconsciente, a um conjunto específico de valores e práticas. Lucie Goussard, por sua vez, discute como o grau de adaptação dos executivos às injunções gerenciais, que caracterizariam o “novo espírito do capitalismo”, varia de acordo com o tipo e o volume de capitais possuídos pelos agentes e, no mesmo sentido, aponta que tal processo é tributário, em grande medida, da posição social de origem dos agentes, em um contexto no qual executivos de origem popular tenderiam a ficar em situações mais vulneráveis. No encontro entre a sociologia do trabalho e sociologia dos movimentos sociais, Sophie Béroud discute a relevância do conceito de “campo sindical”, convidando à análise das propriedades e relações dos agentes e organizações que atuam nesse espaço, reconstituindo a gênese e as especificidades das disputas dessa atividade política e social particular, bem como as possibilidades e limites da autonomização do campo sindical. Por fim, a contribuição de Michael Burawoy oferece uma reflexão sobre a noção de dominação no trabalho, a partir de uma leitura crítica dos escritos do marxista Antonio Gramsci (em particular de suas reflexões sobre hegemonia e construção do consentimento) e de “A dupla verdade do trabalho” de Bourdieu. Considerando Gramsci excessivamente otimista e Bourdieu muito pessimista sobre as possibilidades de emancipação pelo trabalho, Burawoy propõe sua própria teoria da mudança social a partir da noção de que, sob certas condições, os indivíduos podem ser levados a perceber a dominação e desafiá-la.

Leitura fundamental para aqueles que se interessam pela obra de Bourdieu e as questões do mundo do trabalho, essa obra pode ser entendida como um convite instigante aos pesquisadores e pesquisadoras brasileiras, especialmente a quem pretende pensar as relações de trabalho considerando o necessário trânsito entre as dimensões objetivas e subjetivas, materiais e simbólicas na constituição dessa dimensão da vida social. Nesse sentido, destacam-se ao menos duas questões fundamentais: a necessidade de análises que considerem tanto um recorte sincrônico quanto diacrônico no estudo das trajetórias e experiências de trabalho, dando-se o devido relevo ao fato de que essas são resultado de processos de socialização diversos e alongados no tempo. Valeria destacar, ainda, que a longa e profunda discussão feita por Bourdieu sobre o papel da escola na formação do habitus de classe e o habitus profissional, como preparadora para o mundo do trabalho, ainda é pouco considerada na sociologia brasileira. Como consequência, a sociologia do trabalho brasileira olha muito pouco para a escola e os sistemas escolares, em sua organização e seus efeitos; enquanto a sociologia da educação no Brasil, embora fortemente ligada à obra de Bourdieu, também não se debruça com frequência sobre as relações de trabalho e as configurações do mercado de trabalho, o que acaba por diminuir potenciais olhares cruzados sobre fenômenos tão fortemente relacionados.

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    Colloque “Bourdieu et le travail”, organizado pelo Laboratoire Institutions et Dynamiques et Historiques de l’Économie (IDHE-ENS Cachan), Centre Européen de Sociologie et Science Politique (CESSP-Paris 1), Laboratoire d’Économie et Sociologie du Travail (LEST-CNRS-Aix-Marseille).
  • Referência do texto resenhado – QUIJOUX, Maxime. (dir) Bourdieu et le travail. Rennes : Presses Universitaire de Rennes, 2015.

Bibliografia

  • QUIJOUX, Maxime (dir.). Bourdieu et le travail. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2021
  • Aceito
    14 Dez 2021
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