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Pelos caminhos dos encantados

Through the paths of the encantados

Ahlert, Martina. Encantoria. Uma etnografia sobre pessoas e encantados em Codó (Maranhão). Curitiba e São Luís: Kotter Editorial e Editora da Universidade Federal do Maranhão, 2021. 248

“A mata a fez forte e sensível, ainda menina, para reconhecer o movimento do mundo. Uma vez escutou que ‘o vento não sopra, é o próprio sopro’”.

Itamar Vieira Junior, Torto Arado.

As caminhadas, os percursos e os transcursos dessa obra são embalados, como o título e o trecho inicial do primeiro capítulo anunciam, por uma profusão de cânticos, chamados, vozes e sons. Composição atenta aos distintos compassos e ritmos que regem as relações entre encantados e pessoas, Encantoria. Uma etnografia sobre pessoas e encantados em Codó (Maranhão) é, em muitos sentidos, uma etnografia em (do) movimento, embora firmemente fincada no chão – no chão das ruas da cidade, das casas, dos quintais e das rodas nas quais a terra é remexida pelo dançar de pés, pelos ecos de palavras cantadas e pelo ressoar de tambores dobrados. O livro resulta de pesquisa etnográfica de longa duração junto a membros do terecô, religião afro-brasileira prevalecente na região de Codó, e os encantados. Entidades espirituais uma vez humanas – que, após suas mortes, “encantaram-se” e passaram a viver nas matas –, os encantados incorporam em pessoas, estabelecem vários canais de comunicação com estas e as acompanham em suas vidas cotidianas.

A obra promove diálogos com variada e ampla bibliografia sobre as religiões afro-brasileiras. A análise pormenorizada de monografias especializadas reconhece os méritos de estudos sobre o terecô no Maranhão. Ahlert, porém, aponta (e se dirige) para outros lugares, escapando de empreendimentos interessados em classificar o terecô. Atenta às experiências, às histórias e às trajetórias sociais daquelas(es) com quem conviveu, a autora evita enquadrar, de antemão, o terecô – que, não raro, é concebido, tal como a pajelança, sob o signo da falta, comparativamente a formações religiosas consolidadas e autorizadas, como o Tambor de Mina. Recusando a diferenciação e a hierarquização de práticas religiosas, Ahlert nos convida não a definir o que o terecô é, mas a acompanhar o que ele faz (p. 47).

Terecô remete, de maneira geral, à religião afro-brasileira (re)criada em Codó. A palavra também se refere a ritmos de tambor e a rituais específicos. A maior parte das tendas (locais liderados por pais e mães de santo nos quais se “brinca” o terecô) possui denominações como “tenda espírita de umbanda”, enquanto outras se vinculam ao candomblé, que aportou mais recentemente na cidade. Membros do terecô, também conhecidos como “brincantes”, definem suas experiências de modos múltiplos e classificam encantados de formas variadas. Diante dessa variabilidade, Ahlert segue os modos de articulação locais (p. 29), atentando tanto para diversas ordens de relação entre pessoas humanas e encantados quanto para os modos pelos quais brincantes concebem, debatem e definem essas relações. Enfatiza-se, então, as variações nas formas de fazer terecô (p. 223).

Cientistas sociais – e antropólogos, em particular – interessados em estudar formações religiosas encontram, de partida, um ensinamento teórico e metodológico fundamental: categorias classificatórias não têm valor em si mesmas; precisam ser colocadas em suspenso, para abrir caminho às experiências vividas das pessoas. Tal como os encantados, seres que não são pensados de forma unitária ou substancializada, além de se apresentarem aos humanos de várias formas (p. 220), esta obra evita circunscrever as realidades vividas das pessoas a domínios já demarcados do social.

Para entender como as pessoas vivem sua vida na companhia de encantados, Ahlert conduziu um estudo em várias tendas, aproximando-se de interlocutoras(es) por meio do movimento (p. 58). O capítulo 1, que é precedido de uma introdução na qual as balizas teóricas e os princípios metodológicos são anunciados, remete, inicialmente, a diversos percursos. Logo a seguir, adentra nas terras da encantaria, que são assomadas, há décadas, pela insegurança fundiária, o que acarretou no deslocamento de tendas das matas e dos povoados para o perímetro urbano (p. 65). Das matas, por sinal, provêm a maior parte dos encantados – cuja origem primordial, estima-se, é a África. A mata não é concebida, meramente, como local de origem, mas sobretudo como “lugar de pensamento”, como “signo” que carrega em torno de si atributos associados aos encantados (p. 75-76).

Assim, quando se pensa o terecô, “uma multiplicidade de formas de abordar a zona rural, a relação com a terra e com as matas se coloca” (p. 67). A multiplicidade de relações com a terra, com as matas, tendas e casas está diretamente atrelada à própria constituição ontológica dos encantados, seres “fugazes, fugidios, transgressores” (p. 72) que não deixam de, à sua maneira, estabelecer relações de posse, domínio e maestria com a terra. Nesse sentido, uma das contribuições desta obra – passível de maior desenvolvimento – tem a ver com pensar a participação de encantados nas retomadas (e reocupações) da terra, algo bem documentado no Nordeste indígena (Alarcon, 2022ALARCON, Daniela. (2022), O retorno dos parentes. Mobilização e recuperação territorial entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. Rio de Janeiro, E-papers.).

O capítulo 2, “Um guia para zelar”, descreve em minúcias a participação de encantados na vida das pessoas. Semelhantemente a obras como a de Rabelo (2014), oRABELO, Miriam. (2014), Enredos, feituras e modos de cuidado. Dimensões da vida e da convivência no candomblé. Salvador, Editora da UFBA. foco desloca-se de grandes ritos para as formas de convivência cotidianas de encantados e humanos. O tempo é fundamental aqui. Encantados “têm ancestralidade, mas sua história não está acabada” (p. 114). Possuem uma vida social que independe dos humanos e experenciam a passagem do tempo de outra forma. Coexistem com humanos, mas muitas pessoas não sabem o número exato de entidades que recebem. Encantados seguem caminhos não óbvios, por vezes saem de cena por longos anos, não se fazem ouvir. Em suma, e como atestam os interlocutores e as interlocutoras de Ahlert, “a gente nunca vai saber a realidade toda da encantaria” (p. 114).

Deste modo, mesmo pessoas que tenham herança ou “dom de nascença” (para receber/incorporar encantados) conhecem esses seres paulatinamente. Preparar o corpo para recebê-los e conhecê-los é indispensável. As pessoas se aproximam de formas variadas de entes espirituais e tendas, estabelecem compromissos e se encarregam de obrigações progressivamente. As relações entre pessoas e encantados “não são dadas ou previamente definidas” (p. 107). Consultas, atendimentos, incorporações imprevistas, visões, aflições, sonhos e visitas configuram distintas relações. Neste rico capítulo, a autora segue as diversas ordens de coexistência entre encantados e humanos, que nem sempre estão bem sintonizadas. Atenta à convivência, ao cuidado, à relação, à intimidade e à companhia, Ahlert demonstra, com sucesso, como as experiências dos terecozeiros “indicam [...] uma forma de ver o mundo que só faz sentido no reconhecimento da multiplicidade de seres que o compõem” (p. 120).

A experiência do Terecô no âmbito do doméstico não é redutível à ideia de privado (p. 121), tampouco o convívio com os encantados se circunscreve a espaços estritamente religiosos (p. 157). A “permeabilidade” (p. 128) entre espaços, os processos de convivência e relações de proximidade, são objeto de atenção no capítulo 3, “O pé do meu tambor”, no qual a autora descreve os atos rituais, os encontros, as visitas e os festejos que têm lugar nas tendas – e estendem-se para além delas. De um lado, os festejos “desenham trajetos”, “ocupam a cidade”. De outro, as tendas são “espaços de força”, verdadeiros polos de atração para os quais encantados afluem, inclusive para visitar os locais onde seus assentamentos estão plantados (p. 148; 156-157). As casas, as tendas e os barracões estão em constante construção. Tal como as pessoas humanas e entes espirituais, esses espaços de encontro e convergência são constantemente refeitos. Em suma, “a tenda mobiliza sentidos de cuidado e proteção, ao tempo que se espalha, pelo movimento dos encantados, pela cidade” (p. 157).

Encantoria traz contribuições à antropologia urbana, na medida em que percorre os movimentos na, da e pela cidade, em companhia de brincantes e encantados. Codó não é uma metrópole, embora seja conhecida, não raro estereotipicamente, como a capital da feitiçaria no Brasil. Em Codó, a grande maioria das tendas, diferentemente de igrejas cristãs, fica nas partes dos fundos das casas. Ao adentrar tendas e quintais, Ahlert se afasta dos olhares litorâneos sobre as cidades do interior, aproximando-se não de monumentos, mas de relicários, os lugares que servem de guarda das coisas mais preciosas para as pessoas. O movimento permite atentar para as conexões, para aquilo que Marcelin (1999)MARCELIN, Louis. (1999), “A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo baiano”. Mana – Estudos de Antropologia Social, 5, 2: 31-60. chamou de “configuração de casas”. Os caminhos da cidade, local de procedência e local de encontro (p. 73), são traçados e desenhados pelos ritmos, compassos e pelas cadências de pessoas, humanas e mais-do-que-humanas.

O capítulo 4, “Fazendo experiência”, se debruça sobre a categoria “trabalho”, que remete às atividades rotineiras de mães e pais de santo. Rezas, giras, toques, curas, auxílios a problemas, manutenção de tendas, limpeza de corpos – ou seja, “trabalhos” – reforçam os vínculos com os encantados, além de dotarem especialistas religiosos de força. Neste capítulo, analisa-se o papel do dinheiro nas trocas, prestações e contraprestações, além dos “movimentos de diferenciação” desencadeados pelo uso e manejo do dinheiro, que são informados “por certa noção de ética” (p. 185-186). A autora também aborda as diferentes formas de atenção e cuidado desencadeadas por atos rituais e não-rituais. O corpo novamente emerge como instância de confluência de forças, pois esses diversos trabalhos “deixam resíduos” nos corpos de terecozeiros (p. 181; 187).

Tal como exposto no capítulo 5, “Vida Cheia”, as experiências de fazer terecô conformam a constituição física das pessoas, gerando cansaço, envelhecimento e mesmo solidão. Se a vida é, essencialmente, estar (e fazer-se) acompanhado de outros, a passagem do tempo acarreta menor engajamento nos trabalhos espirituais. Consequentemente, esse movimento, a depender do momento da vida das pessoas, pode resultar em enfraquecimento das mesmas, em apartamento. Companhia e cuidado; lembrança e despedida. Pessoas são constituídas relacionalmente. Acompanhadas e desacompanhadas, também se relacionam com mortos e com a morte. De modo muito sensível, a autora demonstra como a relação com aqueles que morreram não se encerram com a morte (p. 209-210). As relações se reconfiguram, também em virtude do envelhecimento de mães e pais de santo e do desfazimento de tendas.

Vê-se, portanto, que a opção metodológica e teórica de não circunscrever a religião a um domínio restrito do social – ou a uma esfera distinta da família e do parentesco, da economia ou da política – é exitosa. Encantoria se embala por outros movimentos de composição, dando vazão a articulações com estudos sobre o campesinato, por exemplo. Um maior engajamento com obras que questionam a própria rentabilidade do conceito de religião nuançaria ainda mais o livro (Asad, 2003ASAD, Talal. (2003), Genealogies of religion. Disciplines and reasons of power in Christianity and Islam. Baltimore, John Hopkins University Press.). Mais descrições sobre o trânsito de pessoas entre igrejas católicas e neopentecostais, acompanhando mais de perto os itinerários de desfazimento de relações com entes espirituais, seriam de interesse. De igual maneira, detalhes adicionais sobre o universo sonoro de brincantes e encantados, sobre os tambores e outros instrumentos, viriam bem a calhar, musicando ainda mais a Encantoria, afinal, os pontos cantados são importantes fontes de informação sobre quem são os encantados (p. 72).

Seja como for, esta obra expande os horizontes dos estudos sobre religiões afro-brasileiras, pois a autora efetivamente acompanha os movimentos e as conexões de humanos e não-humanos em distintos espaços de experiência. Coerentemente, as considerações finais não se limitam a retomar ideias; ao contrário, abrem-se novas trilhas analíticas. A ênfase na “emergência prática das coisas” (p. 45) decorre diretamente da atenção dispensada às maneiras pelas quais as pessoas compartilham experiências e levam suas vidas na companhia de encantados (p. 225-226). O terecô, então, diz respeito não apenas à religião, mas sobretudo à vida. Cabe a nós atender aos chamados, que fascinam, da Encantoria.

  • DOI: 10.1590/3811015/2023
  • Ahlert, Martina. Encantoria. Uma etnografia sobre pessoas e encantados em Codó (Maranhão). Curitiba e São Luís: Kotter Editorial e Editora da Universidade Federal do Maranhão, 2021. 248 p.

Referências

  • ALARCON, Daniela. (2022), O retorno dos parentes. Mobilização e recuperação territorial entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia Rio de Janeiro, E-papers.
  • ASAD, Talal. (2003), Genealogies of religion. Disciplines and reasons of power in Christianity and Islam Baltimore, John Hopkins University Press.
  • MARCELIN, Louis. (1999), “A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo baiano”. Mana – Estudos de Antropologia Social, 5, 2: 31-60.
  • RABELO, Miriam. (2014), Enredos, feituras e modos de cuidado. Dimensões da vida e da convivência no candomblé Salvador, Editora da UFBA.

Publication Dates

  • Publication in this collection
    07 July 2023
  • Date of issue
    2023

History

  • Received
    28 Sept 2022
  • Accepted
    17 Nov 2022
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