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A crítica indígena e a produção intelectual no texto e no audiovisual

Indigenous criticism and intellectual production in text and audiovisual media

KRENAK, Ailton; CARELLI, Rita. 2022. Futuro ancestral.São Paulo: Companhia das Letras
RICARDO, Fany. 2023. Povos indígenas no Brasil (2017-2022). São Paulo: Instituto Socioambiental
TERENA, Eloy. 2022. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula Editorial

A produção intelectual brasileira sobre os povos originários tem sido impactada, de maneira crescente ao longo dos últimos anos, pela escrita de pensadores, intelectuais e pesquisadores indígenas. O protagonismo destes agentes no âmbito do indigenismo e das políticas públicas que lhes dizem respeito, tomando o lugar dos segmentos não indígenas que há muito constituem a rede de apoio à causa indígena, já vinha sendo observado pela literatura, sobretudo após o último processo constituinte, marcado pelo surgimento de novas lideranças e organizações indígenas autônomas. Em um momento mais recente, vimos a expansão desse protagonismo para o campo das letras, da pesquisa acadêmica e de uma crônica indígena do “mundo branco”.

A “crítica indígena” não é um fenômeno novo, apesar de ganhar novos contornos no contexto hodierno. Graeber; Wengrow (2022)GRAEBER, David; WENGROW, David. (2022), O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade. São Paulo, Companhia das Letras. nos contam sobre a importância do pensamento indígena não apenas sobre a formulação europeia pós-medieval do binômio igualdade/desigualdade, mas também sobre a forma como Montaigne e, posteriormente, os autores do Iluminismo irão analisar a civilização cristã e as instituições sociais de seu tempo. Líderes como Kondiaronk (c. 1649–1701) chacoalharam o pensamento europeu ao afirmarem que as hierarquias não tinham nada de natural. No Brasil do século XXI, vozes de diferentes povos parecem atualizar esta crítica indígena, forjando paralelos alegóricos com a própria crítica antropológica e engendrando novas matizes a essa crônica do país, seu Estado e suas políticas.

Futuro ancestral, escrito por Ailton Krenak e organizado por Rita Carelli (Krenak; Carelli, 2022KRENAK, Ailton; CARELLI, Rita. (2022), Futuro ancestral. São Paulo, Companhia das Letras.), Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico, de Eloy Terena (2022), eTERENA, Eloy. (2022), Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela articulação dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro, Mórula Editorial. os artigos de autoria indígena publicados na tradicional série Povos indígenas no Brasil – PIB (Ricardo, 2023RICARDO, Fany. (2023), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental.), publicada pelo Instituto Socioambiental, revelam novas configurações desta produção intelectual indígena que envolve uma multiplicidade de gêneros, desde crônica literária à análise formal de políticas públicas, passando eventualmente por uma contra-antropologia dos não indígenas. São trabalhos que, por sua vez, partilham da experiência comum de terem sido gestados no contexto histórico da pandemia de COVID-19 e do governo mais anti-indígena da história recente do país (Capiberibe, 2021CAPIBERIBE, Artionka. (2021), “Reaching Souls, Liberating Lands: Cross-cultural Evangelical Missions and Bolsonaro’s Government”. Brazilian Political Science Review, 15, e0003. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-3821202100020002.
https://doi.org/10.1590/1981-38212021000...
; Rufino, 2022bRUFINO, Marcos Pereira. (2022b), “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 19, e19607. DOI: http://doi.org/10.1590/1809-43412022v19e607.
http://doi.org/10.1590/1809-43412022v19e...
). Futuro ancestral, construído a partir de diversas falas de Ailton Krenak, habilmente selecionadas por Rita Carelli, faz um julgamento ácido e comovente da sociedade urbano-industrial, em tom próximo a de outros autores indígenas, como Davi Kopenawa, que nos percebe, não sem razão, como o “povo da mercadoria” (Kopenawa; Bruce, 2015KOPENAWA, Davi; BRUCE, Albert. (2015), A queda do céu. São Paulo, Companhia das Letras.). A expressão que lhe serve de título ironiza a condição de pânico generalizado com as projeções apocalípticas no campo climático e ambiental, que imputam às nossas formas societárias as razões pelo desequilíbrio e desorganização da biosfera.

O futuro é ancestral, nos diz Ailton, pois ele sempre esteve aqui, nos modos indígenas de viver e interagir com os seres do mundo. O deboche do olhar do Ocidente sobre a vida “selvagem” agora se volta contra ele próprio, que a cada dia percebe o ridículo da busca incessante por riqueza e de seu refúgio em um cosmos de consumo e satisfação ilimitados. Erramos ao não abraçar as diferentes narrativas sobre o funcionamento e criação do mundo e, talvez mais ainda, sobre a complexidade de relações entre os seres que ocupam esta terra. Mesmo quando nos deixamos afetar por uma certa sensibilidade mística ou religiosa, falhamos com o que está mais perto de nós: contemplamos a sacralidade do Rio Ganges, mas não enxergamos nossos rios como viventes. “Rios da memória, rios voadores, que mergulham, que transpiram e fazem chuva” (Krenak, 2022b, pKRENAK, Ailton. (2022b) “Rios da memória, rios voadores, que mergulham, que transpiram e fazem chuva”, in A. Krenak; R. Carelli. (org.), Futuro Ancestral. São Paulo, Companhia das Letras.. 12).

A obra (Krenak, 2022aKRENAK, Ailton. (2022a) “Cidades, pandemias e outras geringonças”, in A. Krenak; R. Carelli. (org.), Futuro Ancestral. São Paulo, Companhia das Letras.), em seu capítulo “Cidades, pandemias e outras geringonças”, traz percepções importantes sobre a forma como opomos cidade e floresta, trabalho e contemplação, natureza e cultura. Ao tratar da pandemia que marcou esta segunda década do século XXI, nota como o espaço da floresta e das matas ressurge mais uma vez como índice de perigo e ameaça à civilização. Ao longo de todo esse período, não olhamos para os desequilíbrios gerados por sociedades obcecadas com a produção, mas para Wuhan e seus bichos. Um malvado pangolim selvagem contaminou um bicho não tão selvagem assim, que contaminou um humano, que contaminou outro e assim espalhou o mal por todo o planeta. No Brasil, a cadeia de contágio que ceifou milhares de vidas encontrou um presidente que sempre nos alertou para o mal que as florestas fazem ao desenvolvimento econômico da nação e para a inutilidade dos indígenas, descritos por ele como epítomes do ócio. Ele desprezou a magnitude da pandemia e tentou nos convencer de que um problema maior seriam as terras indígenas e as Unidades de Conservação que não deixam o país ser o gigante que lhe aguarda o destino.

O livro de Eloy Terena (2022)TERENA, Eloy. (2022), Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela articulação dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro, Mórula Editorial. expõe a análise jurídica e política do indigenismo oficial no Brasil, apresentando outra face do protagonismo intelectual indígena. O título, ao destacar a esfera judiciária no contexto pandêmico, nos engana, visto que a obra faz, para além da pandemia, uma sinopse importante das ações do governo Bolsonaro na política indigenista e traz também duas linhas do tempo: a das ações do governo e a dos atos do presidente da Funai no período. Eloy Terena é um exemplo do que temos observado nos últimos anos. O ingresso de indígenas nas universidades e sua presença crescente nos programas de pós-graduação país afora têm contribuído para a formação de uma “massa crítica” indígena que, paralelamente à crítica cultural ou ontológica, destrincha as relações entre os povos indígenas e as políticas públicas, a movimentação legislativa, as ações do judiciário e a atuação de outros agentes (Rufino, 2022aRUFINO, Marcos Pereira. (2022a), “Protagonismo, direitos e política indigenista no Brasil contemporâneo”, in A.R. Machado; V. Macedo. (org.), Povos indígenas entre olhares. São Paulo, Edições Sesc e Editora da Unifesp.).

A análise do indigenismo oficial sob Bolsonaro, por si só, torna o livro um documento importante, dada a pertinência desse período histórico para os povos originários do país (Terena et al., 2021TERENA, Taily; TICUNA, João; SOARES, Gabriel. (2021), “Afterword: No matter who won, indigenous resistance will always continue”, in K. Hatzikidi; E. Dullo. (orgs.), A horizon of (im)possibilities: a chronicle of Brazil’s conservative turn. London, Senate House.). Outro aspecto também contribui para a sua relevância: ele documenta um ato de importância simbólica e política para a luta indígena nacional, que foi a sustentação oral feita pelo próprio autor, em agosto de 2020, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Advogado do povo Terena, Eloy foi à tribuna representando a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e alguns partidos da oposição (PT, PDT, PSOL, REDE, PSB e PCdoB) para defender a ADPF 709 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), uma ação direta de inconstitucionalidade que questiona a atuação do governo brasileiro por suas omissões no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Em sua fala no STF, e em outros capítulos do livro, temos uma exposição sistemática das diversas situações em que o governo federal demonstra completo descaso com os efeitos da pandemia sobre as centenas de povos indígenas do país, não apenas por omissão e negligência em relação aos protocolos sanitários e à vacinação, mas também por menosprezar os riscos da contaminação para populações vulneráveis em termos imunológicos.

Ao narrar a entrada do vírus nos territórios, vemos claramente os contornos do indigenismo oficial anti-indígena de Bolsonaro e sua política de promoção e favorecimento das missões de fé neopentecostais que, em muitas situações, agiram na proliferação de informações falsas sobre a pandemia e a vacina. A situação foi ainda mais grave para os povos isolados, que requerem cuidados especiais da Funai e de outros órgãos do Estado. Além da inação do governo, tivemos um relaxamento nas regras de proteção e isolamento destes grupos, sobretudo a partir da nomeação de um missionário vinculado à Missão Novas Tribos do Brasil para o comando da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai. O autor ainda apresenta em detalhes a reação do movimento indígena às ações do governo e discute o plano elaborado pela Apib para o enfrentamento da pandemia.

A análise da política indigenista, a descrição da situação gerada pela entrada da pandemia nas aldeias e o relato das reações do movimento por um intelectual Terena nos mostram o alargamento do protagonismo indígena para além da ação militante nas associações. Tal alargamento atingiu também uma das mais importantes publicações do indigenismo brasileiro, a série Povos indígenas no Brasil, conhecida dos antropólogos, indigenistas e demais interessados na questão indígena desde o início da década de 1980. Construídos com a colaboração de uma vasta gama de pesquisadores e ativistas do campo que se convencionou chamar “amigos dos índios”, os volumes da série têm sido lançados ininterruptamente a cada cinco ou seis anos, sob a responsabilidade inicial do programa Povos Indígenas do Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informação) e, a partir dos anos 1990, do Instituto Socioambiental. Os espessos volumes – esta última edição tem mais de 900 páginas – trazem dezenas de artigos que cobrem os mais diversos aspectos da realidade indígena, com ênfase especial sobre a demarcação territorial e os eventos pertinentes à política indigenista. Se por muito tempo a autoria dos textos era reservada a não indígenas, nas últimas edições já era percebida uma participação incipiente de lideranças e interlocutores indígenas. Esta participação cresceu substancialmente neste último volume, iniciado com um simbolismo importante pelo capítulo “Palavras indígenas”, com o pensamento de oito lideranças que falam, sobretudo, da terra e da centralidade do território para a garantia de direitos.

O tema da literatura indígena é objeto de dois artigos. O primeiro de Trudruá Dorrico (2023)DORRICO, Truduá. (2023), “A Autoria Originária em Relevo na Literatura Indígena”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental., que explora a “autoria originária”, sobretudo aquela produzida por mulheres indígenas; e o segundo de Daniel Munduruku (2023)MUNDURUKU, Daniel. (2023), “Literatura indígena entrando pelo cânone”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental., que discute o tensionamento provocado pela literatura indígena sobre o cânone. Ailton Krenak (2023)KRENAK, Ailton. (2023), “A Terra cansa”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental. e Eloy Terena (2023)TERENA, Eloy. (2023), “A ADPF 709 no STF e o enfrentamento da pandemia”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental. também se fazem presentes nesta edição. Ailton, com uma entrevista provocante sobre o desenvolvimentismo e as possibilidades de uma vida pós-extrativista; e Eloy, com um texto resumo sobre a pandemia e a ação do movimento indígena. A segunda parte do livro é constituída por diversas seções regionais, cada uma delas dedicada a uma porção do território nacional, em que são apresentados textos sobre os eventos e as questões mais importantes que envolveram os grupos indígenas nos últimos seis anos. Nos muitos capítulos destas seções, observamos também a presença paulatina de autores indígenas, entre lideranças ou pesquisadores, fornecendo em primeira mão o relato ou a análise do que ocorreu em suas terras, tarefa antes reservada a pesquisadores e agentes não indígenas.

Nos chama a atenção, todavia, a forte presença de mulheres indígenas em muitos destes capítulos. Dos oito textos da seção “Palavras indígenas”, seis são escritos por elas (Francy Baniwa, Vanda Witoto, Kerexu Yxapyry, Maial Paiakan, Angela Kaxuyana e Japira Pataxó). Em outro capítulo, Sandra Benites, uma guarani, fala dos desafios de ser a primeira curadora indígena do Masp (Museu de Arte de São Paulo) e do lugar da arte indígena em “acordar a memória” do país sobre sua sociodiversidade. Nos capítulos regionais da segunda parte, há outras tantas mulheres. É importante mencionar a presença de dois capítulos voltados à questão, na seção “Protagonismo indígena”: um mapeia as organizações indígenas compostas exclusivamente por mulheres; outro faz uma minibiografia de diversas ativistas indígenas que têm ganhado repercussão nos últimos anos, além das já conhecidas Joênia Wapichana e Sônia Guajajara. As “peles de papel”, centrais para a forma como os não indígenas elaboram as suas ideias e edificam sua relação com o mundo, recebem agora a inscrição dos povos originários. A literatura, a produção acadêmica e a análise política começam a ser semeadas pelo pensamento plural de quem só se fazia ouvir por meio de terceiros. A tomada das letras por autores indígenas está, ao que parece, em seu ato inicial, nos surpreendendo com o avanço e consolidação da presença desses povos na universidade.

Para além do texto, é notável a apropriação indígena de outros suportes de expressão, como o audiovisual. Davi Kopenawa está presente não apenas em livros. É também um personagem central em A última floresta (2021)A ÚLTIMA FLORESTA. (2021), Direção: Luiz Bolognesi. Produção: Gullane. Brasil. (77 min.)., filme-documentário lançado em 2021, no Festival de Cinema de Berlim. Apesar de dirigido por Luiz Bolognesi, o filme tem Kopenawa como um de seus roteiristas e a colaboração de outros Yanomami. O seu enredo deve muito ao livro A queda do céu, escrito por ele em parceria com Bruce Albert, e nos apresenta parte dos modos de ser e do universo cosmológico Yanomami, fazendo ainda um relato surpreendente da longa saga desse povo pela defesa da terra. Hoje, testemunhamos um importante conjunto de cineastas indígenas, como Takumã Kuikuro, Divino Tserewahú, Larissa Ye’padiho Duarte, Patrícia Ferreira Pará Yxapy, Sueli e Isael Maxakali, Genito Gomes e muitos outros que, a propósito, nos recordam as sementes plantadas em finais dos anos 1980 pelo projeto Vídeo nas aldeias, conduzido por Vincent Carelli. No entanto, cito especialmente A última floresta por conta de sua recepção e impacto. Além de ter colecionado premiações importantes do mundo do cinema, ele é distribuído mundialmente por uma das gigantes das plataformas de streaming.1 1 Zé Celso, um dos grandes dramaturgos brasileiros, falecido há pouco (julho de 2023), tinha como projeto iminente trazer para o teatro o texto que Bolognesi trouxe para as telas.

O protagonismo indígena no audiovisual acompanha os passos do que já vinha ocorrendo nas letras. Se a produção impressa do Instituto Socioambiental abriu espaço para as vozes indígenas, como vimos na supracitada última edição do PIB, vemos o mesmo acontecendo com sua produção cine-documental. O canal da instituição no Youtube (Instituto Socioambiental, 2006INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. (2006), Canal oficial do Instituto Socioambiental no Youtube. Disponível em https://www.youtube.com/@InstitutoSocioambiental, consultado em 13/09/2023.
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) reúne centenas de inserções e coloca lideranças, profissionais e pensadores indígenas na linha de frente de seus vídeos. São, em sua maioria, trabalhos curtos, com informações objetivas e apuro estético, e que sugerem a intenção de ultrapassar as fronteiras do público afeito às discussões do indigenismo, como se vê em Fazedores de floresta (documentário em realidade virtual, gravado em 360º) e também nas séries #OFuturoPodeSerOutro e #PulsaXingu, que fazem uso da linguagem de animação.

O protagonismo indígena, os desafios colocados pela pandemia de COVID-19 e a proeminência das mulheres nesse novo momento do indigenismo, temas que elegemos para tratar dos livros discutidos acima, aparecem nestas produções, mas ganham destaque sobretudo em duas outras séries do canal: Economia da floresta e Direto da floresta. Na primeira, cujo foco se situa sobre as iniciativas locais de autossustentação, vemos as comunidades em ação, no centro da narrativa, nos mostrando seus saberes, técnicas e estratégias de gestão de atividades econômicas nascidas do aproveitamento dos recursos da terra. Testemunhamos a produção da pimenta Jiquitaia dos Baniwa e descobrimos que a centralidade das mulheres nesta atividade provocou a criação das primeiras organizações indígenas de mulheres na região do Alto Rio Negro. Vemos a jornada da castanha Wai Wai e também a produção recorde de óleo de pequi no Xingu, feito extraordinário dos Kĩsêdjê e que lhes rendeu o prêmio Equatorial Prize do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Com os Yanomami, nos deparamos com a produção da primeira barra de chocolate em sua terra, a partir do cacau selvagem, e com o seu discernimento das várias espécies de cogumelos comestíveis e venenosos, sob a observação atenta do chef Alex Atala.

Na segunda destas séries, Direito da floresta, os Yanomami aparecem novamente. Em um episódio, eles nos contam sobre o aumento do garimpo em seu território, em outro, Davi Kopenawa expressa o seu apoio à candidatura de Raoni ao prêmio Nobel. O protagonismo feminino aparece na apresentação do Yarang, movimento de mulheres Ikpeng, cujo árduo trabalho de coleta de sementes e reflorestamento tem garantido a resistência das nascentes do Rio Xingu e Araguaia, tendo atingido a marca de um milhão de árvores plantadas. A pandemia de COVID-19 é tema do episódio “Corpo vivo, parente!”, que fala dos cuidados e ações necessários para, em cada aldeia, contornar a inação do governo e enfrentar a doença, durante o período em que o imunizante ainda não existia. Em outro vídeo, postado meses depois, assistimos com alívio à chegada da vacina no Parque Indígena do Xingu.

A história recente dos ataques aos povos originários e da contra resistência indígena, o contexto delicado forjado pela pandemia e a potência criativa que anima diversos projetos de alternativas econômicas no espaço da floresta, muitos deles liderados por mulheres, são narrados aqui por quem vive e é objeto direto destas ações. O ativismo indígena, manifesto na escrita de autores e intelectuais indígenas, vai aos poucos ocupando outras esferas de expressão. O audiovisual, o rádio e o podcast representam alguns dos outros canais por meio do qual essas alteridades se apresentam, adentrando a esfera pública por múltiplas portas. Tudo nos faz crer que a resenha e o ensaio bibliográfico dos periódicos acadêmicos tratarão, de modo crescente, destes materiais.

  • 1
    Zé Celso, um dos grandes dramaturgos brasileiros, falecido há pouco (julho de 2023), tinha como projeto iminente trazer para o teatro o texto que Bolognesi trouxe para as telas.

Bibliografia

  • A ÚLTIMA FLORESTA. (2021), Direção: Luiz Bolognesi. Produção: Gullane. Brasil. (77 min.).
  • CAPIBERIBE, Artionka. (2021), “Reaching Souls, Liberating Lands: Cross-cultural Evangelical Missions and Bolsonaro’s Government”. Brazilian Political Science Review, 15, e0003. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-3821202100020002
    » https://doi.org/10.1590/1981-3821202100020002
  • DORRICO, Truduá. (2023), “A Autoria Originária em Relevo na Literatura Indígena”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022 São Paulo, Instituto Socioambiental.
  • GRAEBER, David; WENGROW, David. (2022), O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade São Paulo, Companhia das Letras.
  • KOPENAWA, Davi; BRUCE, Albert. (2015), A queda do céu São Paulo, Companhia das Letras.
  • KRENAK, Ailton. (2023), “A Terra cansa”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental.
  • KRENAK, Ailton. (2022a) “Cidades, pandemias e outras geringonças”, in A. Krenak; R. Carelli. (org.), Futuro Ancestral São Paulo, Companhia das Letras.
  • KRENAK, Ailton. (2022b) “Rios da memória, rios voadores, que mergulham, que transpiram e fazem chuva”, in A. Krenak; R. Carelli. (org.), Futuro Ancestral São Paulo, Companhia das Letras.
  • KRENAK, Ailton; CARELLI, Rita. (2022), Futuro ancestral São Paulo, Companhia das Letras.
  • MUNDURUKU, Daniel. (2023), “Literatura indígena entrando pelo cânone”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022 São Paulo, Instituto Socioambiental.
  • RICARDO, Fany. (2023), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022 São Paulo, Instituto Socioambiental.
  • RUFINO, Marcos Pereira. (2022a), “Protagonismo, direitos e política indigenista no Brasil contemporâneo”, in A.R. Machado; V. Macedo. (org.), Povos indígenas entre olhares. São Paulo, Edições Sesc e Editora da Unifesp.
  • RUFINO, Marcos Pereira. (2022b), “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 19, e19607. DOI: http://doi.org/10.1590/1809-43412022v19e607
    » http://doi.org/10.1590/1809-43412022v19e607
  • TERENA, Eloy. (2023), “A ADPF 709 no STF e o enfrentamento da pandemia”, in F. Ricardo. (org.), Povos indígenas no Brasil: 2017/2022. São Paulo, Instituto Socioambiental.
  • TERENA, Eloy. (2022), Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela articulação dos povos indígenas do Brasil Rio de Janeiro, Mórula Editorial.
  • TERENA, Taily; TICUNA, João; SOARES, Gabriel. (2021), “Afterword: No matter who won, indigenous resistance will always continue”, in K. Hatzikidi; E. Dullo. (orgs.), A horizon of (im)possibilities: a chronicle of Brazil’s conservative turn. London, Senate House.
  • INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. (2006), Canal oficial do Instituto Socioambiental no Youtube. Disponível em https://www.youtube.com/@InstitutoSocioambiental, consultado em 13/09/2023.
    » https://www.youtube.com/@InstitutoSocioambiental

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2023
  • Aceito
    01 Set 2023
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