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SISTEMA POLÍTICO-ADMINISTRATIVO E INTERAÇÕES NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

POLITICAL-ADMINISTRATIVE SYSTEM AND THE INTERACTIONS IN THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC POLICIES

SYSTÈME POLITICO-ADMINISTRATIF ET INTERACTIONS DANS LA MISE EN ŒUVRE DES POLITIQUES PUBLIQUES

Resumos

O artigo propõe uma análise sociológica sistêmica das burocracias de nível de rua e seus possíveis efeitos em trajetórias de inclusão e exclusão. Com base na sociologia de Niklas Luhmann, o objeto específico da análise é a autonomia da interação na produção de estruturas de expectativas sociais que podem orientar decisões sobre inclusão e exclusão em organizações de implementação de políticas públicas. O resultado é um modelo sistêmico multinível para observar a burocracia de nível de rua, articulando distintos níveis de formação sistêmica, como organização, interação, redes sociais e sistemas de função. Neste quadro, a análise multidimensional das formas de inclusão e exclusão permite observar e comparar o peso relativo das interações implementadoras e da dimensão relacional do Estado para trajetórias de inclusão e exclusão em cada setor de política pública.

Burocracias de nível de rua; Sistemas sociais; Interação; Políticas Públicas; Inclusão social


This paper proposes a systemic sociological analysis of street-level bureaucracies and their possible effects on trajectories of inclusion and exclusion. Based on Niklas Luhmann’s sociology, the specific object of the analysis is the autonomy of interaction in the production of structures of social expectations that can guide decisions about inclusion and exclusion in organizations implementing public policies. The result is a multilevel systemic model to observe the street-level bureaucracy, articulating different levels of systemic formation, such as organization, interaction, social networks and function systems. In this framework, the multidimensional analysis of the forms of inclusion and exclusion makes it possible to observe and compare the relative weight of the implementing interactions and the relational dimension of the State for trajectories of inclusion and exclusion in each sector of public policy.

Street-level bureaucracies; Social systems; Interaction; Public policies; Social inclusion


L’article propose une analyse sociologique systémique des bureaucraties au niveau de la rue et de leurs effets possibles sur les trajectoires d’inclusion et d’exclusion. Basé sur la sociologie de Niklas Luhmann, l’objet spécifique de l’analyse est l’autonomie de l’interaction dans la production de structures d’attentes sociales qui peuvent guider les décisions sur l’inclusion et l’exclusion dans les organisations de mise en œuvre des politiques publiques. Le résultat est un modèle systémique à plusieurs niveaux pour observer la bureaucratie au niveau de la rue, en articulant différents niveaux de formation systémique, tels que l’organisation, l’interaction, les réseaux sociaux et les systèmes de fonction. Dans ce contexte, l’analyse multidimensionnelle des formes d’inclusion et d’exclusion nous permet d’observer et de comparer le poids relatif de la mise en œuvre des interactions et de la dimension relationnelle de l’État pour les trajectoires d’inclusion et d’exclusion dans chaque secteur des politiques publiques.

bureaucraties au niveau de la rue; Systèmes sociaux; Interaction; Politiques publiques; Inclusion sociale


Introdução

Neste artigo, propomos abordar o tema das interações entre burocratas de nível de rua e público (Lipsky, [1980] 2010; Dubois, 1999DUBOIS, Vincent. (1999), La vie au guichet: relation administrative et traitement de la misère. Paris, Economica.; Pires, 2017PIRES, Roberto R. C. (2017), “Sociologia do guichê e implementação de políticas públicas”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 81 (1): 5-24; Lotta, 2018LOTTA, Gabriela. (2018), “Burocracia, redes sociais e interação: uma análise da implementação de políticas públicas”. Revista de Sociologia e Política, 26 (66): 145-173.), com base na sociologia da administração pública do sociólogo alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Nossa intenção é ressaltar seu significado para trajetórias de inclusão e exclusão.

Os primeiros trabalhos de Luhmann (1964LUHMANN, Niklas. (1964), Funktionen und Folgen formaler Organizationen. Berlim, Duncker & Humblot.; 1966), embora não tratassem diretamente do tema da discricionariedade dos burocratas de nível de rua na interação com o público, tocavam nesse tema apoiados em sua sociologia das organizações, desenvolvida desde o início da década de 1960. Nessa sociologia das organizações, um dos focos é a crítica ao modelo weberiano, especialmente a seus postulados sobre comando e controle, impessoalidade e formalidade das estruturas de conduta. Para o sociólogo, estava claro que a atuação de indivíduos em papéis organizacionais não obedecia apenas a normas impessoais, formalmente definidas e fixadas em cadeias hierárquicas de comando e controle (Luhmann, 1964LUHMANN, Niklas. (1964), Funktionen und Folgen formaler Organizationen. Berlim, Duncker & Humblot.).

Já nos anos de 1960, Luhmann considerava organizações como sistemas sociais que operam com uma variedade estrutural muito peculiar, combinando estruturas formais e informais. Formulou, por exemplo, o conceito de ilegalidades necessárias (“ brauchbare Illegalitäten ”, Luhmann, 1964LUHMANN, Niklas. (1964), Funktionen und Folgen formaler Organizationen. Berlim, Duncker & Humblot., p. 86), ou seja, a ideia de que, para que as organizações operem e funcionem produzindo ordem social, incluindo obviamente organizações implementadoras de políticas públicas, precisam de ilegalidades, não necessariamente no sentido jurídico do termo, mas sim no sentido geral de desvios em relação a normas oficiais e formais. Esses desvios não são apenas inevitáveis como também necessários para a produção de ordem social no âmbito das organizações.

Visando observar as burocracias de nível de rua baseados na sociologia de Luhmann, mobilizamos não apenas sua sociologia das organizações como também sua sociologia das interações e dos grandes sistemas funcionais da sociedade. Nesse sentido, não se trata de trabalhar apenas a questão do poder discricionário e das decisões dos burocratas de rua (nível organizacional), como na tradição anglo-saxã de Lipsky (Dutra, Lotta e Pires, 2018), mas também as interações cotidianas entre esses agentes organizacionais e os indivíduos no contexto de trabalho, como na sociologia do guichê da tradição francesa (Pires, 2017PIRES, Roberto R. C. (2017), “Sociologia do guichê e implementação de políticas públicas”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 81 (1): 5-24).

O foco deste artigo é o problema da autonomia da interação, enquanto esfera sistêmica de tipo próprio, na produção de estruturas de expectativas sociais que podem orientar as decisões sobre inclusão e exclusão em organizações de implementação de políticas públicas. Sugerimos uma análise sistêmica multinível da burocracia de nível de rua. Com a sociologia de Luhmann, tentamos combinar as dimensões da decisão organizacional e da interação como níveis sistêmicos que regulam a inclusão em diferentes sistemas funcionais (economia, ensino, saúde), recursos sociais (renda, poder, conhecimento) e serviços públicos. Nos estudos desse sociólogo, a análise multidimensional das formas de inclusão e exclusão permite observar e comparar o peso relativo das interações de implementação para trajetórias de inclusão e exclusão em cada setor de política pública.

Assim, pretendemos destacar como as interações entre burocratas de nível de rua e público podem afetar tais trajetórias de inclusão e exclusão. Esses efeitos sociais produzidos em organizações e interações implementadoras dificilmente podem ser observados com uma descrição unitária das estruturas de desigualdade, como a estratificação econômica. Nosso argumento é que tais efeitos são dotados de uma efetividade social específica, tendo sua própria contribuição organizacional e/ou interacional para reforçar ou modificar trajetórias de inclusão e exclusão (Dutra, 2013DUTRA, Roberto. (2013), Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion. Constança, UVK Verlag.).

Para Luhmann (1997a), na sociedade moderna não há uma única estrutura de desigualdade ordenando as chances de inclusão e exclusão social dos indivíduos. Inclusão e exclusão precisam ser entendidas com base na diferenciação entre sistemas sociais e ambiente e na especialização de padrões de acesso e não acesso em cada sistema social. Cada sistema social – e organizações e interações são dois tipos distintos de sistemas sociais – define suas estruturas e critérios de inclusão e exclusão, mesmo que levando em conta restrições que o ambiente impõe. Portanto, trata-se de uma noção multidimensional, declinada pela diferenciação de sistemas sociais, das estruturas de inclusão e exclusão. Disso, resulta que os efeitos das organizações implementadoras de políticas, como sistemas sociais específicos, e os efeitos das interações entre burocratas de rua e público precisam ser pensados como específicos desses dois sistemas envolvidos no processo de implementação.

Nosso argumento articula implementação de políticas públicas com o problema da inclusão e da exclusão. A postulação geral aponta que o valor e a posição social de um indivíduo não são definidos apenas pela posse (ou não posse) diferencial de recursos sociais externos, como renda, propriedade econômica, títulos escolares e direitos de acesso a serviços e bens, como também pela incorporação de disposições para conduta em diferentes esferas institucionais da vida social, como família, escola, trabalho, política, moral, religião, consumo cultural etc. Sociologicamente, os recursos externos e as disposições para conduta podem ser considerados recursos para o agir social que regulam, ao mesmo tempo, as chances de inclusão nas diferentes esferas institucionais da sociedade (Dutra, 2013DUTRA, Roberto. (2013), Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion. Constança, UVK Verlag.).

Nessa concepção sociocultural, ao lado dos recursos sociais externos e das disposições para conduta, há um terceiro conjunto de fatores decisivo para as chances de inclusão e reconhecimento social dos indivíduos, a saber, as formas de classificação (preconceitos de etnia e de gênero, divisões simbólicas de classe, preconceitos regionalistas etc.) amplamente empregadas na sociedade que os agentes importam, como premissas decisórias informais, para suas rotinas e práticas organizacionais. Tais formas de classificação não são apenas rotulações e estigmas externos aos indivíduos.

As organizações do Estado, assim como organizações não estatais, também participam do processo social contínuo de construção da identidade social e pessoal dos indivíduos e grupos. Ainda que esse processo de construção comece e seja em grande medida condicionado pela formação de disposições e capacidades culturais para conduta no ambiente da família, continua se realizando por meio do contato com outras instituições e organizações, como o Estado e suas organizações de implementação de políticas. Essas organizações também produzem e reproduzem disposições e capacidades para indivíduos e coletividades, sendo, nesse sentido, responsáveis por construir ou reconstruir as próprias capacidades de agência de indivíduos e grupos em diferentes dimensões da vida. O acesso a essas organizações não deve ser reduzido a acesso a bens e serviços. Deve ser entendido como acesso a práticas institucionais com o poder de conferir, negar, reforçar ou deteriorar o próprio status (socialmente construído) de agente, de cidadão e de ser humano. Como em alguns setores de políticas públicas a autonomia da interação implementadora é incontornável, não há como analisar a construção de processos e trajetórias de inclusão e exclusão sem observar essas interações.

Em uma sociedade marcada pela diferenciação das esferas sociais, como é o caso do Brasil, o mecanismo de construção social da pessoa (do ser humano e do cidadão socialmente reconhecido e positivamente valorado) também se diferencia, levando à constituição de uma pluralidade de formas de negar ou conferir o status de pessoa social (Dutra, 2013DUTRA, Roberto. (2013), Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion. Constança, UVK Verlag.). Nesse contexto, embora a convergência continue sendo forte, existem caminhos normais pelos quais os sistemas sociais divergem em negar ou conferir tal status de pessoa social.

Este artigo está dividido em quatro seções. Na primeira seção discutimos a sociologia das organizações de Max Weber (1864-1920), destacando como a crítica desse modelo é compartilhada pelas análises das burocracias de nível de rua e pela sociologia das organizações de Luhmann. Na segunda seção, abordamos a teoria da sociedade de Luhmann, delineando suas implicações para a sociologia das organizações implementadoras e os pontos de contato e aproximação com a análise das burocracias de nível e rua. A terceira seção apresenta a relação entre discricionariedade dos burocratas de nível de rua, decisão organizacional e interação, destacando a dimensão relacional da administração pública que se constitui no ambiente interacional das organizações implementadoras de políticas públicas. Na quarta seção, buscamos mostrar como a abordagem sistêmica das burocracias de nível de rua articula interação, organização e sistema funcional – além das redes sociais e de outros possíveis candidatos à condição de sistemas sociais como grupos e comunidades –, por meio da análise da especificidade do sistema político-administrativo enquanto Estado de bem-estar social. Esta análise permite considerar as interações entre burocratas e público como um fator característico de sistemas político-administrativos cujas políticas públicas, como no caso dos Estados de bem-estar social, consistem em resultados que só podem ser produzidos em interações capazes de mobilizar processos de transformação da pessoa social e de seus atributos.

Organizações implementadoras: o modelo de Max Weber e sua crítica

A sociologia weberiana da burocracia influenciou profundamente o modelo top-down, criticado nas análises das burocracias de nível de rua, com argumentos que se aproximam da crítica de Luhmann a Weber e dialogam com ela. A organização burocrática seria o “tipo mais puro” de exercício da dominação racional legal (Weber, 1976, p. 19). O núcleo desse modelo é o pressuposto de que, quanto maior é uma organização e mais complexas são suas atribuições, maior é a tendência à burocratização. Para Weber, há uma relação de interdependência entre os problemas de cooperação e coordenação resultantes da crescente complexificação e especialização das tarefas organizacionais, sobretudo em grandes organizações, e a formação de um aparato administrativo dedicado à promoção de canais de comunicação e coordenação apoiados na hierarquia de autoridade enquanto forma necessária para efetivar a coordenação de diversas tarefas na consecução dos objetivos organizacionais.

No entanto, estudos comparativos sobre as organizações contribuíram para a revisão do modelo weberiano. Esses estudos não invalidam as hipóteses centrais de Weber sobre a organização burocrática, mas “indicam as condições em que as relações, inicialmente tidas como universais, são contingentes” (Blau, 1976BLAU, Peter. M. (1976), “O estudo comparativo das organizações”, in E. Campos (org.), Sociologia da burocracia, Rio de Janeiro, Zahar, pp. 125-153., p. 143). A impessoalidade rigorosa, por exemplo, pode ser eficiente apenas em determinadas condições e na coordenação de tipos específicos de tarefas (Litwak, 1961LITWAK, Eugene. (1961), “Models of bureaucracy which permit conflict”. American Journal of Sociology, 67 (2): 177-184.). Nessa mesma direção, Parsons (1964PARSONS, Talcott. (1964), “Introduction”, in M. Weber, The theory of social and economic organization, Nova York, Free Press, pp. 1-86., pp. 58-60), Gouldner (1954GOULDNER, Alvin W. (1954), Patterns of industrial bureaucracy. Gencloe, Free Press., pp. 22-24) e Stinchcombe (1959STINCHCOMBE, Arthur L. (1959), “Bureaucracy and craft administration of production: a comparative study”. Administrative Science Quarterly, 4 (1): 168-187., pp. 168-187) criticaram a premissa de que a especialização profissional e a autoridade hierárquica são características associadas e complementares na organização burocrática. Para esses três autores, a especialização profissional entra em conflito com a hierarquia administrativa, pois não se trata de duas estruturas complementares, mas sim de formas alternativas e concorrentes de controle e coordenação.

Na análise dessas organizações implementadoras, é importante perceber como Luhmann desconstrói a concepção weberiana de orientação clara sobre a relação entre meios e fins generalizada na organização pela cadeia de comando e controle. De acordo com Weber, a burocracia é um instrumento da dominação racional. Aplicando sua teoria da ação ao fenômeno burocrático, Weber considera as formas de autoridade como meios generalizados para alcançar fins diversos. Tais formas podem ser chamadas racionais, na medida em que servem como meios para alcançar fins arbitrariamente modificáveis. Os fins, por sua vez, são estabelecidos pela autoridade dentro da organização burocrática. Segundo o autor, as ações decisivas ocorrem sempre de modo vertical e, em geral, de cima para baixo. Ainda que de forma implícita, há em Weber um vínculo entre racionalização e formas hierárquicas de organização.

Luhmann desafia o modelo acionalista de meios e fins e a concepção hierárquica de comando e controle ( top-down ). Além de serem frequentemente contraditórios e não precederem necessariamente a disposição sobre os meios, os fins estipulados em sistemas organizados não esgotam os motivos variados das ações dos membros individuais. Podem ser reinterpretados e modificados, sobretudo em função dos meios disponíveis, sem ameaçar a unidade autopoiética da organização.

Outro elemento que diferencia substancialmente o entendimento de Luhmann sobre as estruturas e o funcionamento prático das organizações da administração pública da teoria weberiana são suas críticas ao modelo hierárquico de comando e controle. Primeiro, o modelo percebe a racionalização apenas do ponto de vista dos participantes individuais. Nas organizações modernas, não existe apenas um controlador e um dirigente, tampouco uma única forma de comando e controle. Em segundo lugar, o modelo exclui a possibilidade de que os subordinados tenham mais conhecimento sobre as decisões que seus superiores, subestimando o fluxo comunicacional de baixo para cima. Terceiro, ignora que consenso, tanto sobre meios como sobre fins, não pode ser alcançado meramente por ações de mando hierárquico. Por último, a estrutura real de poder de uma organização se atualiza no processo contínuo de construção de decisões, mas o modelo hierárquico isola a decisão dos superiores desse processo contínuo, considera a ação dos subordinados – agentes de rua, por exemplo – como mera implementação dessa decisão e ignora que eles também decidem sobre aquilo que os superiores decidiram. Os subordinados podem reinterpretar com significativa margem de discricionariedade o sentido do que foi fixado pelos superiores. Isso vale não apenas para decisões isoladas como ainda para decisões que estruturam e programam outras decisões (premissas decisórias): organizações possuem múltiplos pontos em que se pode decidir sobre vigência, produção, reprodução, variação e transformação de premissas decisórias. Não há um decisor unitário sobre as estruturas do sistema. O fluxo comunicativo constrói pontos de decisão, refazendo e complementando a ordem formal da organização com estruturas informais.

Essa revisão do modelo weberiano é o ponto de partida para uma teoria das organizações baseada na variedade dos tipos de organização, e não na unidade. 1 1 Perrow (1991) parte do mesmo pressuposto, embora desenvolva uma abordagem teórica distinta. Enquanto o modelo weberiano estava centrado em uma concepção de eficiência econômica – embora sua inspiração fosse o entusiasmo prussiano com o tipo militar de organização –, tomando como dada a concepção de que os critérios mais apropriados para objetivos econômicos são também os melhores parâmetros para quase todas as outras esferas sociais, o ponto de partida da variedade dos tipos de organizações está diretamente vinculado, como veremos adiante, a uma teoria da sociedade fundada na diferenciação e na multiplicidade de referências valorativas que disputam, com os critérios econômicos, a estruturação de decisões e práticas organizacionais.

Desse modo, observar o processo de implementação passa, necessariamente, pela observação da dimensão relacional do Estado que afeta e orienta a gestão das organizações implementadoras.

Até o início da década de 1970, quase não se estudava a implementação de políticas públicas (Birkland, 2001BIRKLAND, Thomas A. (2001), An introduction to the policy process: theories, concepts, and models of public policy making. Nova York, M.E. Sharp., p. 177). Isso se devia, sobretudo, à crença de que essa fase não era problemática, dado que refletia apenas a execução simples, por parte do braço administrativo do Estado e de outras organizações e atores envolvidos no processo de implementação, da decisão que havia sido previamente formulada pelos governantes. No entanto, a partir dessa mesma década, como resultado de uma multiplicidade de fatores, o Estado, em especial nos países do Atlântico Norte, enfrentou uma crise permanente de governabilidade, deparando com enormes dificuldades em gerir políticas públicas e controlar os processos sociais em geral. Desde então, diferentes modelos teóricos foram criados para explicar – e, não raro, propor estratégias de intervenção – os fracassos e as dificuldades dos agentes governamentais e da administração pública em conduzir a fase de implementação (Hudson e Lowe, 2004HUDSON, John & LOWE, Stuart. (2004), Understanding the policy process: analysing welfare policy and practice. Bristol, Policy Press., p. 205).

O modelo top-down, ao postular o controle racional-burocrático na gestão de políticas públicas, comunga de uma concepção da vida social centrada na ideia de que o sistema político-administrativo é capaz de controlar o funcionamento de outros sistemas funcionais, organizações e interações, a fim de garantir a obtenção de determinados resultados em termos de implementação de políticas (Brans e Rossbach, 1997BRANS, Marleen & ROSSBACH, Stefan. (1997), “The autopoiesis of administrative systems: Niklas Luhmann on public administration and public policy”. Public Administration, 75 (3): 417-439.). Ao negligenciar a autonomia operativa dos sistemas sociais, esse modelo não se encontra preparado para lidar com a imprevisibilidade e a complexidade dos processos de implementação. Imprevisibilidade e complexidade não são aspectos laterais, já que são constitutivas das relações intersistêmicas que caracterizam os processos de implementação, sejam relações entre distintos subsistemas societais como política, direito, ensino, saúde e economia, sejam relações entre distintos níveis de formação sistêmica como sociedade, organização e interação.

Na próxima seção, debatemos a teoria da sociedade de Luhmann, delineando suas implicações para a sociologia das organizações implementadoras e os pontos de contato e aproximação com a análise das burocracias de nível e rua.

Sociologia das organizações de Niklas Luhmann: dupla diferenciação da sociedade e burocracias de nível de rua

Nosso objeto, isto é, as interações entre burocratas de rua e público (Lipsky, [1980] 2010), deve ser contextualizado no que denominamos, dentro da teoria sistêmica, dupla diferenciação da sociedade. A sociedade é diferenciada, em primeiro lugar, em subsistemas funcionais, como política, economia, direito, ensino, ciência, família, religião, arte, esporte etc. Esses subsistemas se caracterizam pela autonomização de lógicas binárias de valores, como verdade/não verdade na ciência, licitude/ilicitude no direito, governo/oposição na política, capacidade de pagar/incapacidade de pagar na economia, aprendido/não aprendido no ensino, transcendente/imanente na religião etc. A diferenciação funcional pode ser entendida, portanto, como a autonomização funcional de binarismos valorativos e operativos autorreferentes (sistema funcionais), que estruturam a vida em sociedade de forma mais ampla, levando à constituição de uma única e mesma sociedade mundial composta exatamente de sistemas funcionais globalizados (Luhmann, 1997a).

No entanto, esse primeiro tipo de diferenciação, que Luhmann chama de funcional, não basta para descrever o funcionamento real das práticas sociais, incluindo os processos de implementação de políticas públicas. É necessário levar em conta, de forma combinada com o uso do conceito de diferenciação funcional, um segundo tipo de diferença que, embora acompanhe historicamente a diferenciação funcional, é transversal a ela e leva à constituição de níveis distintos de construção da ordem social: sociedade, organização e interação. O nível da sociedade é formado pela própria diferenciação de sistemas funcionais.

No segundo nível, estão as organizações, incluindo aquelas implementadoras de políticas públicas, enquanto sistemas baseados na construção de sentido de ações realizadas ou descritas como decisões. Nem tudo o que acontece em uma organização é realizado, da perspectiva dos indivíduos envolvidos, como uma decisão, mas, em sua autoconstituição sistêmica, as organizações se diferenciam de seu meio descrevendo os elementos do mundo como decisões e, assim, transformando internamente esses elementos em unidades de sentido que valem como decisões. Organizações são sistemas de tipo específico, porque se diferenciam de seu ambiente societal, caracterizando-se enquanto encadeamentos autônomos e recursivos de decisões, nos quais decisões transformadas em passado (coisa decidida) servem de premissas estruturantes para outras decisões, sem eliminar, porém, o elemento de contingência e incerteza embutido na ideia de decisão. 2 2 A ideia de que as estruturas também são o resultado das práticas sociais das organizações pode ser encontrada em autores como Giddens (2003) e Guerreiro Ramos (1983, p. 12).

O terceiro nível é precisamente o das interações, que se caracteriza enquanto tipo singular de formação sistêmica pela copresença dos participantes. Um sistema de interação se diferencia de seu meio (constitui-se) quando os participantes, de forma recíproca, percebem que são percebidos, ou seja, na medida em que a percepção da copresença se instaura. É exatamente a situação de guichê (Pires, 2017PIRES, Roberto R. C. (2017), “Sociologia do guichê e implementação de políticas públicas”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 81 (1): 5-24), na qual burocratas interagem com o público. Para Luhmann, são sistemas sociais que “incluem tudo aquilo que pode ser tratado como presente, e podem em certos casos decidir entre os presentes o que deve e o que não deve ser tratado como presente” (2016, p. 467).

A ocorrência de interações entre burocratas de nível de rua e o público remete à relação entre sistemas de interação e sociedade. Embora a sociedade e as organizações não possam controlar o fluxo de interações cotidianas em todo seu conjunto e complexidade e muito menos determinar de fora as estruturas da comunicação presentificada, a ocorrência rotineira e organizada de interações pode ser disponibilizada pela sociedade, que assume, para as interações, a forma de um ambiente interno com facilitações e limitações determinadas, com uma complexidade que precisa ser reduzida pelas interações.

Nas interações, o risco de uma total imprevisibilidade do comportamento é reduzido pela emergência de esquemas diferenciadores e estruturadores que canalizam o fluxo de comunicação para níveis toleráveis de complexidade entre os presentes (Neves, 2019NEVES, Fabrício. (2019), “Anarquia de base, interação, relação e antiessencialismo na teoria dos sistemas sociais”, in F. Dépelteau & F. Vandenberghe (orgs.), Sociologia relacional, uma DR teórica, São Paulo, Annablume, no prelo.). Por exemplo, as formas de classificação e identificação que surgem nas interações entre burocratas de nível de rua e público, ao ganhar uma generalidade na construção de expectativas de conduta mais elevada que os casos pessoais em sua individualidade imediata, canalizam o fluxo comunicacional e reduzem a complexidade da interação.

Contudo, não é só a interação que precisa reduzir a complexidade da sociedade. A sociedade também precisa reduzir as possibilidades que surgem na interação, especialmente o conjunto incontrolável e infinito de variações estruturais que ocorrem nas interações. Esse é o caso das variações produzidas pelas interações rotineiras entre burocratas de nível de rua e público em determinados setores de políticas públicas. Nessas e em outras interações, há uma constante oferta de variações episódicas, ou alterações circunscritas localmente, que podem ser selecionadas por organizações e sistemas sociais como estruturas sociais e, assim, influenciar a evolução da sociedade. No entanto, na teoria de Luhmann, evolução é o primado da contingência e do acaso, pois a produção de variações, ainda que sejam selecionadas como estrutura por interações, não garante sua seleção no nível das organizações, ou seja, em que ocorrem as principais transformações estruturais de maior generalização social. As organizações filtram essas inovações, impedindo que a instabilidade das interações gere instabilidade incontrolável na sociedade.

Tudo o que ocorre nas interações, gostando ou não, influencia as estruturas do sistema da sociedade. Tratam-se de sentidos – em particular, os que podem assumir a forma de pessoas ou papéis – que se constituem de maneira transinteracional, com uma perspectiva sobre usos que transcendem a interação em curso. Na própria interação se leva em conta esse fato e, ao contrário do que acontece nas interações, apenas uma pequena quantidade de inovação pode passar por esse filtro da difusão estendida da sociedade (Luhmann, 2006LUHMANN, Niklas. (2006), La sociedad de la sociedad. México, Universidad Iberoamericana/Herder., p. 378).

Nesse processo de seleção, estruturas inventadas em interações, como classificações morais e estigmas surgidos nas interações implementadoras de políticas públicas, podem ser tomadas como premissas decisórias em organizações, assumindo diferentes níveis de generalização e transformando-se em expectativas sociais que participam e simultaneamente transcendem as interações como tipos de pessoas, papéis sociais, programas e valores (Neves, 2019NEVES, Fabrício. (2019), “Anarquia de base, interação, relação e antiessencialismo na teoria dos sistemas sociais”, in F. Dépelteau & F. Vandenberghe (orgs.), Sociologia relacional, uma DR teórica, São Paulo, Annablume, no prelo.). Evolução social, um problema que Guerreiro Ramos (1983)GUERREIRO RAMOS, Alberto. (1983), Administração e contexto brasileiro: elementos de uma sociologia especial da administração. Rio de Janeiro, Editora da FGV. julgava ser inescapável para uma abordagem sociológica da administração pública, inclui a variação e a seleção ou não das variações, assim como sua possível estabilização em sistemas sociais.

Na sociedade moderna, são as organizações que realizam as principais seleções evolutivas na sociedade. Isso se dá porque se especializam em decisões como forma de redução de complexidade externa e construção de complexidade interna, filtrando ativamente as variações do ambiente de interações por meio de estruturas formais (programas formais, cargos e canais formais de comunicação) e/ou informais (estereótipos pessoais, redes e canais informais de comunicação etc.); desse modo, as organizações podem aportar certo grau de generalização às inovações interacionais que selecionam.

Luhmann identifica quatro dimensões estruturais em sistemas organizacionais: programas, pessoas, canais de comunicação e cargos. Tais dimensões servem de orientação importante para um diálogo entre a teoria sistêmica e a análise de burocracias de nível de rua, permitindo articular diferentes níveis sistêmicos como interação, organização, redes sociais e sistemas funcionais. Cada dimensão estrutural contribui para definir a produção contínua das decisões constitutivas da organização, transformando a contingência de alternativas a serem escolhidas em uma decisão tomada, mas que poderia ser de outro modo. Ao tornar-se passado, cada decisão reduz a insegurança da organização em relação a seu entorno, já que é contingente apenas no sentido de que poderia ter sido outra, na prática transformando-se em premissa para a construção de novas decisões.

Na primeira dimensão, programas organizacionais descrevem as premissas que orientam as decisões definidas como formalmente corretas sobre diferentes processos organizacionais, como as decisões sobre inclusão e exclusão. Os programas podem ser condicionais e orientados pelo input, isto é, voltados para estabelecer condições para que determinada ação aconteça (se isto, então aquilo), ou finalísticos e orientados pelo output, a saber, fins para cuja consecução as práticas e os recursos organizacionais são concebidos como meios. Programas finalísticos costumam ser definidores do que se costuma chamar de objetivos organizacionais. Para Luhmann, esses objetivos não esgotam o variado leque de motivos e orientações para a conduta dos membros de uma organização. Nas análises das burocracias de nível de rua, a primazia contextual de programas condicionais informais sobre programas condicionais ou finalísticos de natureza formal é evidenciada na margem de discricionariedade disponível nas situações cotidianas, nas quais os agentes privilegiam o uso e a reprodução de premissas decisórias surgidas em interações, como os padrões de uso da discricionariedade baseados em distinções morais entre pessoas, em detrimento da preocupação com a consecução de metas. Na saúde, por exemplo, é comum que organizações implementadoras privilegiem programas condicionais como o esquema diagnóstico/terapia, deixando a preocupação com o atingimento de metas para poucos gestores ou outras organizações (Vogd, 2002VOGD, Werner. (2002), “Die Bedeutung von ‘Rahmen’ für die Artz-Patient-Interaktion: eine Studie zur ärztlichen Herstellung von dem, ‘was der Fall ist’ im gewöhnlichen Krankenhausalltag”. Zeitschrift für qualitative Bildungs-, Beratungs- und Sozialforschung, 3 (2): 321-346.).

A dimensão da pessoa não deve ser confundida com o sistema psíquico, mas sim definida como o feixe de expectativas de conduta socialmente atribuídas aos indivíduos. A história compartilhada dos indivíduos no ambiente partilhado de uma organização leva à formação de expectativas que o indivíduo atribui a si mesmo e daquelas atribuídas pelos outros (colegas, clientes, alunos, pacientes, fiéis, eleitores etc.). As expectativas que estruturam as atividades de um indivíduo (trabalho, gestão) e que formam sua pessoa na organização não devem ser reduzidas às exigências formais que constam no contrato de trabalho, pois tais atividades também são estruturadas por um conjunto de expectativas informais, relativamente estáveis, formuladas pelos outros membros ou pelo público relevante da organização. Nas interações entre burocratas de nível de rua e usuários de serviços públicos, a pessoa social do usuário e a do burocrata podem ser construídas e mobilizadas enquanto premissa decisória, em uma relação seletiva com a organização, que decide o que toma da interação e aprende com ela. Essas construções sobre a pessoa social podem ser mais ou menos individualizadas ou gerais, como os “tipos de pessoas anônimas” (Schutz, 1979SCHUTZ, Alfred. (1979), Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar., p. 221), baseados em critérios de merecimento e facilitação do trabalho.

Os canais de comunicação definem e coordenam a relação entre os cargos e as pessoas na produção de decisões e interações. Assim, os processos de coordenação podem acontecer de modo hierárquico (como no modelo de Weber), por meio da concorrência interna entre os trabalhadores/gestores, da confiança recíproca e do saber profissional ou da combinação de várias formas de coordenação. Embora a coordenação seja frequentemente confundida com hierarquia, vemos a hierarquia apenas como uma forma entre outras de lidar com o problema da coordenação. Em concorrência com os canais formais de comunicação, surgem frequentemente canais informais, como as redes sociais internas ou externas à organização, que podem desafiar hierarquias formais de comando e controle, mas, como ocorre frequentemente, também podem assumir papel indispensável e complementar na estruturação de práticas e decisões da organização. Em burocracias de nível de rua esses canais informais costumam ter grande importância no acesso a serviços e bens públicos e são construídos em interações intensas entre burocratas e o público.

O cargo é a dimensão estrutural que combina as três dimensões anteriormente apresentadas. Representa a seleção de premissas de decisão condensadas em um único elemento: espera-se da pessoa ocupante de um cargo que, levando em conta os canais de comunicação apropriados, decida de acordo com os programas da organização. Os aspectos definidores de um cargo estabelecem também o peso relativo das atribuições que lhe cabem: determinam quais pessoas que, por meio de certos programas e canais de comunicação, podem lidar com problemas de coordenação. É possível identificar cargos com acesso privilegiado a problemas de coordenação, ou seja, cargos com grande poder de combinar programas, cargos e pessoas. Tais cargos de destaque em termos de gestão não necessariamente são aqueles oficial e formalmente designados para essas tarefas. Em uma unidade básica de saúde (UBS), por exemplo, é comum que o saber profissional ou o prestígio dos médicos tenha muito mais peso que as atribuições formais do gestor na hora de decidir sobre a coordenação do trabalho, as práticas e as interações.

O peso relativo e o tipo de combinação entre as quatro dimensões estruturais tendem a variar dependendo da organização e, portanto, do sistema funcional que constitui a orientação primária da organização. Assim, enquanto em organizações econômicas os programas finalísticos de lucratividade, produtividade e eficiência tendem a ter um peso crescente na definição dos canais de comunicação, das pessoas e dos cargos, subordinando o trabalho a critérios rigorosamente impessoais de avaliação e recompensa, em organizações do sistema de ensino a situação é bem distinta: como o trabalho especificamente pedagógico de formar pessoas não se deixa padronizar por programas condicionais (se isto, então aquilo), sendo constituído de um déficit tecnológico (Luhmann e Schorr, 1982LUHMANN, Niklas & SCHORR, Karl E. (1982), Zwischen Technologie und Selbstreferenz: Fragen an die Pädagogik. Frankfurt, Suhrkamp.) inarredável, torna-se impossível controlar as principais práticas da organização – ou seja, a interação entre professor e aluno – com programas formais e impessoais, cuja aplicação independa do fluxo e das estruturas da interação.

Nas burocracias de nível de rua, a construção dessas estruturas organizacionais, especialmente a pessoa, os canais de comunicação e os programas condicionais, envolve a relação entre organização e interação. Fenômenos, como a categorização de pessoas e a formação de redes sociais entre usuários e burocratas, evidenciam como as interações cotidianas, com sua autonomia enquanto sistema que produz suas estruturas, são fator central na construção dessas três estruturas organizacionais. Para sistematizar o diálogo entre a teoria dos sistemas e a análise de burocracias de nível de rua, é preciso ressaltar a diferenciação entre organização e interação e lembrar que a categorização de pessoas e a mobilização de redes sociais são seleções da própria organização relacionadas às possibilidades ligadas ao ambiente de interação entre agentes organizacionais e o público.

Fenômenos como o racismo institucional na polícia e a diferenciação de méritos feita por professores para orientar sua dedicação diferenciada a alunos são exemplos de estruturas de classificação que surgem e se atualizam em interações. Tais estruturas são selecionadas, de modo variado, por organizações, à medida que se tornam premissas para decidir sobre sanção policial, atenção pedagógica etc. 3 3 As interações e suas variações estruturais são uma espécie de microdiversidade de inovações para a seleção evolutiva (Luhmann, 2016, p. 481), portanto, para a auto-organização dos sistemas funcionais (Luhmann, 1997b). A estabilidade das expectativas é sempre dinâmica, pois depende de novas decisões e seleções baseadas na instabilidade processual do ambiente de interações.

A abordagem sociológica da burocracia de nível de rua que propomos desenvolver com a teoria sistêmica foca essa dimensão relacional do Estado. O estudo da implementação de políticas públicas intensivas e dependentes de interações é um empreendimento interessante para observar tal dimensão, já que as pesquisas têm demonstrado que, longe de ser um desvio ou uma exceção de realidades e países subdesenvolvidos ou periféricos, a necessidade de organizações e burocratas de nível de rua de construir e se apoiar em redes de relações e categorização de pessoas é fenômeno estrutural do sistema político-administrativo. Como veremos adiante, ao se programar para tarefas que envolvem transformar pessoas, suas representações e práticas, as organizações implementadoras assumem desafios que as tornam estruturalmente dependentes – Luhmann diria acopladas – de interações e relações pessoais nelas desenvolvidas.

Os efeitos do processo de implementação sobre as trajetórias de inclusão e exclusão dos indivíduos também precisam ser considerados da perspectiva da diferenciação de sistemas sociais, tanto no nível societal dos sistemas funcionais como na própria diferenciação dos níveis sistêmicos de sociedade, organização e interação. Esses efeitos devem ser pensados como produzidos pelos distintos sistemas sociais envolvidos no processo. Desse modo, devemos, na verdade, falar em múltiplos efeitos que variam com a autonomia operativa de cada sistema envolvido, que produz um efeito próprio. No entanto, o processo de implementação também possui sua unidade, que decorre do fato de que as decisões coletivamente vinculantes (função do sistema político-administrativo) afetam a cadeia de sistemas envolvidos em sua totalidade. Ainda que cada sistema reaja a essas decisões de acordo com sua história e suas possibilidades estruturais e evolutivas, todos são obrigados a reagir de alguma forma à política pública, que funciona como fonte de irritação e inovação estrutural.

Ao construir coletividades e com elas estruturar processos de inclusão e exclusão em políticas públicas, burocracias de nível de rua realizam, como veremos adiante, a função da política em uma arena específica, na qual a função de tomada de decisões coletivamente vinculantes é estruturada, por exemplo, por distinções morais e vínculos seletivos entre pessoas. As burocracias de nível de rua podem ser vistas como arena específica da construção de decisões coletivamente vinculantes, em que se decide sobre a inclusão política em políticas públicas, com efeitos pretendidos e não pretendidos sobre as trajetórias de inclusão e exclusão em outros sistemas sociais. Nesse contexto, podemos dizer que a implementação de políticas pode afetar as trajetórias – e, portanto, as estruturas – de inclusão e exclusão por meio de múltiplas irritações que contribuem para reproduzir ou transformar os critérios de inclusão e exclusão em sistemas funcionais, organizações e interações.

Na próxima seção, abordamos a relação entre discricionariedade dos burocratas de nível de rua, decisão organizacional e interação. Destacamos a dimensão relacional da administração pública que se constitui no ambiente interacional das organizações implementadoras de políticas públicas.

Burocracias de nível de rua: decisão, interação e dimensão relacional da administração pública

A tradição de pesquisa desenvolvida do trabalho de Lipsky constitui base promissora para uma análise dos efeitos da implementação sobre as trajetórias de inclusão e exclusão em uma perspectiva teórico-sistêmica. A grande contribuição dessa tradição de pesquisa foi ter demonstrado que os agentes implementadores – os chamados burocratas de nível de rua – dispõem de margem significativa de discricionariedade nas decisões organizacionais cotidianas sobre acesso a serviços, sanções e bens públicos. Essa margem de discricionariedade significa que o resultado da implementação das políticas não pode ser plenamente produzido e controlado por hierarquia de comando, impessoalidade e formalização.

Diferente do que se prevê de uma visão mais ortodoxa da sociologia da administração de Weber, o desenvolvimento do Estado moderno e de suas formas de atuação não leva ao completo insulamento da administração diante de expectativas, valores e interesses do ambiente social circundante. Especialmente nas organizações e interações responsáveis pela implementação de políticas, o leque de estruturas burocráticas formais é insuficiente para reduzir a complexidade das situações cotidianas de decisão, abrindo espaço para o poder discricionário dos burocratas de nível de rua que, com isso, podem traduzir e incorporar em suas rotinas de trabalho uma variedade de orientações, classificações, preconceitos e visões de mundo generalizadas e disponíveis na sociedade.

O poder discricionário dos agentes implementadores pode, por exemplo, permitir que preconceitos de classe, etnia, gênero, local de origem, sobretudo quando são amplamente difundidos e naturalizados na sociedade, tornem-se premissas de decisão das organizações implementadoras. Ou seja, a tradição de pesquisa sobre implementação e burocratas de nível de rua, ao destacar a discricionariedade dos agentes implementadores, não apenas lança luz sobre um momento de anti-insulamento das organizações implementadoras, face aos fatores do ambiente social circundante, como também abre caminho para investigar possíveis relações, que podem ser de reforço mútuo, de indiferença, de contradição ou antagonismo, entre as rotinas decisórias institucionalizadas nas organizações implementadoras e as estruturas de desigualdade e exclusão existentes na sociedade.

Voltando a Luhmann, é preciso lembrar que o momento de anti-insulamento das organizações implementadoras em relação ao ambiente não é interpretado como importação de estruturas ou premissas decisórias por parte das organizações, mas sim como abertura cognitiva de organizações a interações e outros sistemas que fazem parte de seu ambiente. Organizações não importam estruturas do ambiente de outros sistemas, pois transformam internamente suas estruturas e premissas formais ou informais com base no que aprendem sobre o ambiente e, sobretudo, na margem de variação estrutural interna determinada pelas condições do ambiente. São as organizações, por exemplo, que decidem transformar estruturas dos sistemas de interação, como grau de conhecimento, contato e proximidade entre os que interagem no contexto pré-decisório ( Entscheidungsvorfeld ), em premissas para decisões organizacionais sobre acesso ou não a serviços, sanções e bens.

A abordagem sistêmica aqui proposta busca, de certo modo, combinar o foco no poder discricionário e nos padrões informais de seu uso nas decisões dos burocratas de nível de rua (nível organizacional), como na tradição anglo-saxã de Lipsky (Dutra, Lotta e Pires, 2018), com a análise das interações cotidianas entre os burocratas e os usuários, como na sociologia do guichê francesa (Pires, 2017PIRES, Roberto R. C. (2017), “Sociologia do guichê e implementação de políticas públicas”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 81 (1): 5-24). Essa combinação torna-se possível quando destacamos a autonomia da interação, enquanto esfera sistêmica de tipo próprio, em sua relação com a autonomia da organização, ou seja, com a produção de estruturas de expectativas sociais que orientam decisões sobre inclusão e exclusão na implementação de políticas públicas.

Trata-se de uma abordagem sistêmica multinível da burocracia de nível de rua, na qual inclusão ou exclusão em organizações, interações e redes sociais são tratadas como fenômenos que podem condicionar a inclusão em diferentes sistemas funcionais (economia, ensino, saúde), recursos sociais (renda, poder, conhecimento) e serviços públicos. Nessa abordagem, o peso relativo de interações de implementação para trajetórias de inclusão e exclusão em cada setor de política pública depende do grau em que as organizações desse setor se tornam dependentes dessas interações enquanto campo pré-decisório.

No entanto, a abordagem multinível também precisa levar em conta o significado da diferenciação funcional para setores específicos de políticas públicas. A especificidade dos sistemas funcionais explica, em grande medida, por que em alguns setores as organizações implementadoras são mais dependentes de interações que em outros. Na sociologia das organizações de Luhmann, a diferenciação funcional não promove uniformidade na paisagem organizacional da sociedade moderna. Ao contrário de Weber, Luhmann parte da variedade das organizações e de suas estruturas, o que permite considerar o papel das interações e da dimensão relacional do Estado analisada por Lipsky e a noção de burocracia de nível de rua.

A teoria da sociedade de Luhmann fornece bases para uma sociologia da variedade funcional das organizações (Peetz, Lohr e Hillbrich, 2011). O ponto de partida é que as organizações não se limitam a um único sistema funcional nem são igualmente dominadas pela economia (Tacke, 2001TACKE, Veronika. (2001), “Funktionale Differenzierung als Schema der Beobachtung von Organisationen, zum theoretischen Problem und empirischen Wert von Organisationstypologien”, in V. Tacke (org.), Organisation und gesellschaftliche Differenzierung, Wiesbaden, Westdeutscher Verlag, pp. 141-169.). Ao contrário, deve-se pressupor que a sociedade é caracterizada por uma variedade funcional dos tipos de organização que se orientam por distintos subsistemas funcionais e constroem estruturas organizacionais afinadas com a orientação funcional predominante. Por um lado, toda organização contém uma variedade de orientações funcionais, pois, na medida em que precisam remunerar o trabalho, são dependentes da economia; assim, todas estão submetidas a normas jurídicas etc. Por outro lado, toda organização também privilegia uma referência funcional ao selecionar os objetivos organizacionais – o que Luhmann chama de programas finalísticos, Zweckprogramme –; desse modo, uma igreja privilegia objetivos religiosos, embora se oriente também por considerações econômicas; uma escola privilegia objetivos pedagógicos, apesar de se orientar também por considerações jurídicas; um hospital privilegia objetivos médicos, embora se oriente também por objetivos econômicos, jurídicos e políticos.

A proposta de uma análise sistêmica das burocracias de nível de rua pode ser assim resumida: as variedades estrutural (estruturas internas) e funcional (referência externa, aos sistemas funcionais do ambiente) das organizações, sobretudo a variação do peso relativo de estruturas informais produzidas em interações exigidas por funções sociais específicas, como ensino, policiamento, saúde, assistência social etc., afetam o processo de implementação de políticas públicas e contribuem para grande parte das diversidades entre os setores da ação estatal em relação aos problemas de controle e redução de complexidade a que suas organizações estão submetidas.

Sistemas político-administrativos buscam desdobrar e institucionalizar as ações do Estado construindo sistemas organizacionais. Nesse nível organizacional, inclusão e exclusão ocorrem por meio de decisões, como os atos reversíveis de admissão, dispensa, concessão e cancelamento de benefícios e serviços. Com a diferenciação de organizações, inclusive de organizações formuladoras e implementadoras de políticas públicas, tais decisões sobre inclusão e exclusão são orientadas por premissas decisórias que cada organização constrói internamente para absorver e processar as inseguranças do ambiente, como na chegada de uma nova demanda política de um governo recém-eleito. Para tanto, as organizações redefinem os problemas do ambiente em inovações estruturais internas.

Se estivéssemos utilizando a velha teoria dos sistemas abertos de Easton (1953)EASTON, David. (1953), The political system: an inquiry into the state of political science. Nova York, A. A. Knopf., diríamos que o input do ambiente nunca consegue entrar direto nas organizações, sendo necessária sua tradução interna (autopoiética) em um withinput,pub-date em uma referência ao ambiente produzida internamente pelo sistema. Por exemplo, as organizações formuladoras selecionam e redefinem demandas e problemas endereçados ao governo pelo público do sistema político-administrativo; as organizações implementadoras redefinem internamente os programas governamentais transmitidos pelas organizações formuladoras, traduzindo-os em programas organizacionais internos (finalísticos e condicionais), que permitem reduzir inseguranças e complexidades próprias do ambiente da implementação, que não é o mesmo da formulação; e as interações implementadoras traduzem os programas organizacionais criando classificações e distinções próprias da situação de copresença entre burocrata de nível de rua e público.

Isso toca diretamente no problema da diferenciação entre organização e interação. Ainda que interações povoem constantemente o ambiente organizacional, constituindo-se em um campo pré-decisório com premissas que podem ser selecionadas pelas decisões organizacionais, não devem ser confundidas com organizações. A organização se diferencia da interação porque a copresença de seus membros não é necessária para sua operação. Decisões podem ser produzidas sem que pessoas se engajem em situações sociais de copresença.

De fato, as organizações delimitam ações que são apresentadas como decisões, como seleções qualitativamente distintas do fluxo ambiental de interações, pelo fato de fixar alternativas equivalentes e, mesmo assim, decidir entre elas. Só há decisões encadeadas porque as alternativas, pelo menos no nível mais essencial de sua condição enquanto alternativas contingentes, são equivalentes. Caso contrário, não seria necessário decidir. Cada decisão comunica sua contingência, sua condição de alternativa entre outras (Luhmann, 2000LUHMANN, Niklas. (2000), Organisation und Entscheidung. Opladen, Westdeutscher Verlag., p. 142). Assim, Luhmann se interessa em saber como as organizações, apesar do saber sobre a contingência de suas decisões, conseguem continuar operando. Para ele, isso acontece evitando ou desarmando a contínua possibilidade de desconstrução das rotinas decisórias, dotando de estabilidade algumas estruturas organizacionais, por meio da contínua invisibilização de sua contingência e arbitrariedade. Tal fato se dá, por exemplo, quando a organização pode se apoiar em estruturas informais das interações em seu ambiente pré-decisório, efetivamente selecionando e generalizando essas estruturas em suas rotinas decisórias, sem que sejam apresentadas como estruturas sobre as quais a organização decidiu.

A identidade sistêmica das organizações é a do encadeamento recursivo de decisões. Decisões tomadas tornam-se passado e são transformadas em premissas decisórias (estruturas) para outras decisões, criando com isso certa rotina que permite escolher apesar da equivalência das alternativas. Por outro lado, esse encadeamento recursivo de decisões, que constitui o fechamento operativo de sistemas organizacionais, está enredado por um campo pré-decisório (e pós-decisório também) de interações com suas estruturas específicas, especialmente por formas de classificação moral das pessoas, como “bom cliente”, “bom policial” etc., que podem ser selecionadas pelas decisões organizacionais e traduzidas em estruturas internas desses sistemas. Por exemplo, funcionários do departamento de imigração da França, responsáveis pela concessão e renovação de autorizações de permanência no país aos demandantes de asilo, à medida que são submetidos ao atingimento de metas de produtividade, isto é, número de dossiês processados por dia, desenvolveram clara preferência pelos dossiês menos complicados, ou seja, os mais bem preenchidos e documentados (Pires, 2017PIRES, Roberto R. C. (2017), “Sociologia do guichê e implementação de políticas públicas”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 81 (1): 5-24). Nas interações cotidianas com os diferentes públicos, de países e nacionalidades distintas, os funcionários do guichê classificam os chineses como aqueles que preenchem os questionários com mais maestria, merecendo, por isso, certa preferência dos funcionários.

Com base na teoria dos sistemas, podemos interpretar esse caso de seguinte forma: a construção de programas finalísticos, como metas de produtividade, pressiona a organização para selecionar, da experiência que seus atendentes acumulam nas interações com diferentes públicos, distinções – ou seja, processos de imigrantes chineses são menos complicados – que podem ser aceitas como orientação informal na organização. Fenômenos como esse mostram, a meu ver, o caráter ativo das seleções que as organizações fazem das possibilidades oferecidas pelas interações; desse modo, a estrutura informal (preferência por chineses) que orienta o uso do poder discricionário dos funcionários da organização implementadora da política de imigração e asilo resulta, em primeiro lugar, da busca por soluções funcionais para problemas internos, como atingir metas de casos processados. Não há importação automática de um padrão de discriminação do ambiente social, mas uma seleção entre soluções alternativas para o problema. Não existe uma preferência direta pelos chineses, mas pelos formulários considerados mais fáceis de processar. A organização não se importa com o ambiente societal de discriminação positiva dos chineses, pois constrói internamente a distinção entre bons clientes, que preenchem os formulários de forma que facilita o processamento, e maus clientes, que preenchem mal os formulários e dificultam o trabalho. Dessa forma, essas distinções internas podem se acoplar a outras diferenças e contribuir para reforçar desigualdades e exclusões externas com maior generalização.

Nesse contexto teórico, a pessoalização de decisões organizacionais não deve ser entendida como a mistura entre interação e organização, mas sim como construção organizacional do feixe de expectativas de conduta socialmente atribuídas aos indivíduos enquanto pessoas na organização. Como vimos anteriormente, na sociologia das organizações de Luhmann, a pessoa, enquanto feixe de expectativas de conduta, é, ela própria, uma das premissas decisórias das organizações, ao lado dos cargos, dos programas e dos canais de comunicação. A duplicidade e a ambivalência dos indivíduos em assumir ora o papel formal de burocrata, ora o papel informal de pessoa, como forma de controlar e selecionar sob que condições a informalidade pessoal da interação entra em cena (Lipsky, [1980] 2010), são inteiramente previstas na abordagem de Luhmann. É interessante para o trabalho empírico a circunstância de que a incidência da pessoalidade ou da impessoalidade varia conforme o tipo de organização – incluindo o tipo de organização implementadora –, o que se altera segundo o tipo de referência predominante na organização em termos de sistema funcional com o qual mantém relação privilegiada.

Na próxima seção, buscamos mostrar como a abordagem sistêmica das burocracias de nível de rua articula interação, organização e sistema funcional, bem como redes sociais e outros possíveis candidatos à condição de sistemas sociais como grupos e comunidades, por meio da análise da especificidade do sistema político-administrativo enquanto Estado de bem-estar social. Essa análise permite considerar as interações entre burocratas e público como um fator característico de sistemas político-administrativos, cujas políticas públicas, como no caso dos Estados de bem-estar social, consistem em resultados que só podem ser produzidos em interações capazes de mobilizar processos de transformação da pessoa social e de seus atributos.

Sistema político-administrativo e sistemas de interação: problemas de condução, processamento de pessoas e inclusão

A diferenciação funcional do sistema político deriva, diretamente, da diferenciação de papéis sociais complementares vinculados ao exercício do poder: a diferença entre papéis de governante e governado (Schneider, 2010SCHNEIDER, Wolfgang Ludwig. (2010), “Systemtheorie, hermeneutische Tradition und die Theorie sozialer Differenzierung”, in R. John; A. Henkel & J. Rückert-John (orgs.), Die Methodologien des Systems: Wie kommt man zum Fall und wie dahinter?. Wiesbaden, VS Verlag für Sozialwissenschaften, pp. 203-224., p. 216). Somente quando esses papéis se distinguem de outros papéis sociais, sobretudo dos hierárquicos da sociedade estamental, reforçando a centralização e a monopolização do uso legítimo da violência física como garantia material dessa distinção binária especificamente política entre quem governa e quem não governa, é que se pode, segundo Luhmann (1989)LUHMANN, Niklas. (1989), Gesellschaftsstruktur und Semantik: 3. Frankfurt, Suhrkamp., falar da política como um subsistema diferenciado do restante da sociedade. O subsistema político não deve ser confundido com o Estado, que é apenas a organização central das unidades “segmentares” do subsistema (os territórios nacionais), isto é, a organização que concentra a responsabilidade de produzir decisões coletivamente vinculantes dentro desse território (Luhmann, 2002LUHMANN, Niklas. (2002), Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp., p. 243).

A função da política é a produção de decisões coletivamente vinculantes. Para realizar essa função política, é necessário não apenas garantir o monopólio da violência física como também desenvolver diferentes formas de sensibilidade para o ambiente societal de interesses, demandas e visões de mundo. Ao passo que as relações do sistema político-administrativo com o ambiente societal circundante tornam-se mais complexas e passam a envolver a inclusão crescente de grupos sociais e demandas dos mais diversos tipos, como ocorre com o desenvolvimento do Estado de bem-estar social, as organizações políticas e administrativas precisam desenvolver combinação de redundância e variação (Luhmann, 2002LUHMANN, Niklas. (2002), Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp.). Enquanto as organizações do Estado produzem redundância, partidos produzem variação de interesses, visões de mundo, grupos sociais e demandas representados. No circuito formal do poder político, a produção de redundância está diretamente ligada à relação entre administração pública e cidadãos, e a produção de variedade está relacionada à disputa entre os partidos pela adesão dos eleitores; assim, a administração tende a homogeneizar público e cidadãos, e os partidos buscam identificar e explorar politicamente as diferenças.

Com o desenvolvimento do Estado de bem-estar social, o poder formal bifurca-se em dois modos de inclusão política: um modo determinado pelo input eleitoral e outro estabelecido pelo output administrativo na forma de políticas públicas em sua função de mediar inclusão em sistemas funcionais, como educação, saúde, direito, família, esporte etc. (Stichweh, 1998STICHWEH, Rudolf. (1998), “Zur Theorie der politischen Inklusion”. Berliner Journal für Soziologie, 4 (8): 539-547.). Enquanto a primeira forma de inclusão política toma como referência última o próprio sistema político (inclusão como input ), a segunda forma de inclusão refere-se ao ambiente societal, ou seja, a outros sistemas funcionais (inclusão como output ). No entanto, no circuito do poder informal, que se torna mais robusto e importante justamente no Estado de bem-estar social, a inclusão pelo output administrativo transforma-se em input administrativo; as organizações implementadoras não apenas entregam políticas públicas ( output formal) como selecionam distinções sociais do ambiente ( input informal), sobretudo do ambiente de interações no campo pré-decisório do cotidiano da administração pública.

Nesse quadro teórico, a sensibilidade do sistema político-administrativo ao ambiente societal assume a forma de construção cotidiana de coletividades (identidades coletivas) em organizações implementadoras baseada em distinções sociais que selecionam em sua relação de dependência com interações entre burocratas de nível de rua e usuários. A construção de identidades coletivas, como mostra Nassehi (2003)NASSEHI, Armin. (2003), “Der Begriff des Politischen und die doppelte Normativität der ‘soziologischen’ Moderne”, in A. Nassehi & M. Schroer (orgs.), Der Begriff des Politischen, Baden-Baden, Nomos, pp. 133-169., faz parte da função da política em prover capacidade de tomada de decisões coletivamente vinculantes. Segundo o autor, a definição de Luhmann sobre a função da atividade política precisa ser esclarecida em um aspecto fundamental: as coletividades que sustentam as decisões coletivamente vinculantes não podem ser vistas como algo que precede à política. Pelo contrário, são produto do sistema político, isto é, um público que o sistema constrói para si mesmo e diante do qual a atividade política deve sempre legitimar-se (Nassehi, 2003NASSEHI, Armin. (2003), “Der Begriff des Politischen und die doppelte Normativität der ‘soziologischen’ Moderne”, in A. Nassehi & M. Schroer (orgs.), Der Begriff des Politischen, Baden-Baden, Nomos, pp. 133-169., p. 149). Desse modo, a função da política não é apenas a produção de decisões coletivamente vinculantes, mas também a produção de coletividades visíveis e imputáveis, o que torna possível a natureza vinculante das decisões políticas. Essa extensão da definição de política que percebe a atividade política como diferenciada em diversas arenas também possibilita a análise da emergência de identidades coletivas no cotidiano do sistema político-administrativo, constituído de contato entre agentes organizacionais e público. A implementação de políticas sociais com intensa interação entre agentes organizacionais e público pode ser uma arena importante para a construção de coletividades e solidariedades, com processos seletivos de inclusão e exclusão.

Em diversos setores, o processo de implementação de políticas se caracteriza pelo fato de o resultado da política ser alcançável apenas enquanto coprodução interativa. Isso ocorre, sobretudo, quando se trata da transformação de pessoas, ou seja, da transformação do feixe de expectativas de conduta atribuídas aos indivíduos, seja pelos outros, seja pelos próprios indivíduos. O chamado processamento de pessoas exige interação sistemática e autônoma para produzir efeitos. Para Luhmann, esse é, por exemplo, o caso das políticas voltadas para o sistema de ensino. O trabalho em sala de aula de formar pessoas, mesmo quando é bem-sucedido, consiste em sistemas de interação com grande autonomia em relação às premissas decisórias formais, sobretudo em relação aos programas condicionais (se isto, então aquilo) da organização escolar. A implementação de políticas é, portanto, dependente de que as organizações sejam sensíveis e aprendam com seu ambiente de interações e relações pessoais. Esse parece ser também o caso do sistema de saúde, do serviço social, da segurança pública, enfim, de todos os setores que Lipsky ([1980] 2010) analisa com o conceito de burocracia de nível de rua.

Portanto, de acordo com o sistema funcional envolvido na implementação, o peso que a interação entre burocratas e público possui no processo de implementação varia. O efeito das interações entre burocratas e público nas trajetórias de inclusão e exclusão tende também a variar com relação aos sistemas funcionais e aos setores envolvidos na política pública. Quando o peso da interação é maior, como no caso das políticas que envolvem transformação de pessoas em setores como saúde, ensino, serviço social, reintegração no mercado de trabalho etc., maior tendem a ser também seus efeitos sobre as chances de inclusão e exclusão de indivíduos nas organizações implementadoras e nos demais sistemas funcionais envolvidos (saúde, ensino, economia, politica, direito etc.) no processo de implementação.

Para compreender a dimensão relacional dos processos de inclusão condicionados ou determinados por políticas públicas, é necessário levar em conta a especificidade desse fenômeno na sociedade moderna. De acordo com Luhmann, inclusão e exclusão não possuem necessariamente um sentido normativo (inclusão é “boa” e exclusão é “ruim”) e variam com a diferenciação sistêmica da sociedade. Em sociedades funcionalmente diferenciadas, a inclusão nos subsistemas funcionais é estruturada por critérios internos e construídos por esses subsistemas – por exemplo, o acesso ao poder político se estrutura pela capacidade de organização e mobilização política. Porém, isso não implica que tais critérios internos sejam neutros e indiferentes em relação aos fatores do entorno do referido subsistema – por exemplo, a capacidade de organização política de um grupo social pode estar correlacionada à sua relevância econômica. A diferenciação funcional das relações de inclusão significa que as pessoas são incluídas apenas parcialmente, segundo critérios de relevância específicos no contexto da comunicação dos subsistemas. Tal diferenciação não oferece uma fórmula unitária com a qual o indivíduo pode reunir diferentes relações parciais de inclusão (Luhmann, 1989, pp. 225, 245). Essa unidade torna-se “o maior problema individual que cada um tem para resolver por si mesmo […] A sociedade já não distingue a solução, mas apenas o problema” (Luhmann, 1989LUHMANN, Niklas. (1989), Gesellschaftsstruktur und Semantik: 3. Frankfurt, Suhrkamp., p. 225). Assim, inclusão multidimensional e condução individualizada da vida estão diretamente correlacionadas.

A vida social é marcada por formas mais ou menos rotinizadas e mais ou menos problematizadas de observação e abordagem do outro, baseadas naquilo que Schutz chamou de tipos ideais de pessoas anônimas, ou seja, tipos que abstraem as “mudanças e os contornos definidos que fazem parte da individualidade” (1979, p. 221). Sistemas sociais (sistemas funcionais, organizações e interações) substituem, em operações de seleção de pessoas, a ênfase na particularidade das interioridades individuais pela atribuição supraindividual de expectativas comportamentais como forma de construir “outro generalizado” (Schneider, 2011SCHNEIDER, Wolfgang Ludwig. (2011), “Akteure oder personen/psychische Systeme?”, in N. Lüdtke & H. Matsuzaki (orgs.), Akteur – Individuum – Subjekt: Fragen zu Personalität und Sozialität. Wiesdaben, VS Verlag für Sozialwissenschaften, pp. 107-115., p. 111), permitindo suposições sobre as expectativas comportamentais de anônimos. Essas práticas de atribuição supraindividual viabilizam a generalização de expectativas comportamentais na dimensão social, construindo efetivamente atores aptos a participar de práticas sociais específicas (endereços sociais, no jargão da teoria dos sistemas) e funcionalmente diferenciadas. Tal tipo de atribuição de consenso e/ou dissenso em relação a expectativas comportamentais não alcança o nível de papéis sociais formalmente definidos, mas sim o nível da tipificação informal de portadores desses papéis sociais. Essas tipificações informais sobre pessoas aptas e não aptas a determinados papéis sociais podem ocorrer em diversos níveis sistêmicos articulados nos processos de implementação de políticas públicas e influenciar trajetórias de inclusão e exclusão de pessoas que dependem mais fortemente dos serviços públicos.

Em processos de implementação que promovem e envolvem, de forma intensa e rotinizada, o nível das interações entre burocratas de nível de rua e público, as tipificações informais possuem importância considerável. No plano das organizações sociais, tais atribuições costumam servir de premissas de decisão, sobretudo para decisões relativas à seleção de pessoas. No plano das interações entre presentes, produzem afinidades pessoais e facilitam a manutenção do contato, o que pode resultar em estruturas de expectativas ou redes sociais que influenciam a inclusão ou exclusão em serviços públicos.

Essa proposta de considerar o peso variável das interações em distintos setores da ação do Estado precisa ser desdobrada na própria observação sociológica do Estado, especialmente com relação ao Estado de bem-estar social, caracterizado, entre outros atributos, pela crescente importância política das interações implementadoras. Para Luhmann, o Estado de bem-estar pode ser definido como Estado mediador de inclusão, que desenvolve o compromisso crescente do sistema político em ampliar e intensificar a inclusão política (cidadania), desdobrando-a em múltiplas dimensões (civil social, econômica etc.) que envolvem a inclusão em outros sistemas funcionais, como saúde, educação, economia e família.

Para desempenhar esse papel, o Estado de bem-estar recorre aos mecanismos do dinheiro e da lei, envolvendo economia e direito no processo de ampliação da inclusão social e buscando influenciar as premissas decisórias das organizações implementadoras por meio de incentivos financeiros e jurídicos. No entanto, o tema da discricionariedade dos burocratas de nível de rua, além de chamar a atenção para os impactos da diferenciação da sociedade em distintos sistemas funcionais e níveis de formação sistêmica (sociedade, organização, interação) sobre a (in)governabilidade estatal do processo de implementação, também sugere a consideração do papel das interações no funcionamento do Estado e em suas relações com a sociedade. Quando a inclusão mediada pelo Estado depende de mudanças na pessoa, dinheiro e lei não se mostram mecanismos suficientes. Segundo Luhmann: “Algo que não pode ser obtido através de lei e dinheiro é a mudança da pessoa enquanto tal […] a área social atualmente abordada em termos de ‘people processing’ não pode ser controlada de um modo técnico-causal por meio de lei e dinheiro” (1981, p. 97, tradução nossa).

Nesse contexto, as interações se revelam como mecanismo alternativo, ao qual as organizações implementadoras recorrem para reduzir a insegurança de seu ambiente, formado por indivíduos que a política deseja transformar. As interações entre burocratas de rua e público criam classificações e tipos de pessoas que as organizações selecionam e aproveitam para orientar o trabalho, distinguindo, por exemplo, entre os segmentos do público mais fáceis ou difíceis de atender. 4 4 As chamadas políticas de ativação que visam despertar nos indivíduos atitudes favoráveis à reinserção no mercado de trabalho são um exemplo bem claro (Watarai, 2012, p. 6). Sistemas de interação entre burocratas e público constituem um ambiente específico de organizações implementadoras, com o qual tais organizações mantêm uma relação de seletividade, adotando não toda e qualquer distinção, mas preferencialmente àquelas que podem resolver problemas internos da organização. É o caso dos sermões morais sobre contratualidade de padrões de comportamento e volição criados para os desempregados na Alemanha nas interações entre burocratas e beneficiários financeiros (Weinbach, 2014WEINBACH, Christine. (2014), “Moralische Personenkategorien als Transformationsmechanismus in politischen Dienstleistungsbeziehungen: Das Beispiel der Jobcenter-Interaktion”. Zeitschrift für Soziologie, 43 (2): 150-166.).

As interações entre burocratas e usuários são reguladas pela expectativa dos burocratas de que os beneficiários demonstrem vontade de trabalhar como critério de classificação moral que deve incidir sobre concessão, manutenção ou suspensão de benefícios. Da perspectiva da organização, essa vontade tem de ser verificada pelo cumprimento dos acordos de integração (cursos de língua, formação profissional). Porém, como se trata de vontade, de mudança da pessoa, a interação tem papel preponderante e traduz em seus termos o que seria vontade. Assim, verifica-se grande discricionariedade, mais ou menos inclusiva ou excludente, com falhas sendo amplamente abonadas em função de nova disposição ao compromisso em alguns casos e rigorosamente punidas em outros. Tais categorias podem, eventualmente, reforçar processos cumulativos de exclusão: desemprego, falta de condições de contratualidade, desclassificação como não confiável, uso de drogas, perigo, internação, instituição total, negação do status de pessoa. Esses processos não podem, porém, ser subsumidos a uma estrutura social unitária. A implementação de políticas constitui uma dimensão própria na produção de desigualdades, formada pelas desigualdades organizacionais e interacionais e pelas combinações entre elas.

Com relação a essa combinação de desigualdades de distintos níveis sistêmicos, é preciso ressaltar o caráter operativo e binário da forma inclusão/exclusão na teoria de Luhmann. Se há comunicação, e interação é uma forma específica e diferenciada de comunicação, existe inclusão e exclusão, que constituem uma forma operativa de dois lados. Na interação está incluído quem é considerado como presente na comunicação, por meio da percepção mútua da copresença; e aqueles cuja copresença não é construída na interação estão excluídos dela. Nas interações implementadoras de políticas públicas como as analisadas pela sociologia do guichê (Pires, 2017PIRES, Roberto R. C. (2017), “Sociologia do guichê e implementação de políticas públicas”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 81 (1): 5-24), a maioria das pessoas sempre está excluída pelo próprio limite de complexidade (número de pessoas incluídas) que a situação de guichê impõe.

Nosso interesse não é, no entanto, meramente na inclusão na interação enquanto operação comunicativa isolada, pois todos os interessados que acessam as organizações implementadoras estão incluídos em interações promovidas de modo separado no tempo e no espaço pelas organizações. Buscamos entender como essas interações podem resultar na construção de estruturas de expectativas, como as tipificações informais de pessoas anônimas que orientam a atribuição de qualidades (estimas, virtudes, vontades etc.) pessoais, que acabam sendo selecionadas pelas burocracias de nível de rua como premissas decisórias de seleção de pessoas. Nesse processo de seleção e transformação de estruturas interacionais em premissas decisórias organizacionais, que marca a relação entre organização e interação, a inclusão na interação pode resultar em exclusão na organização e em sistemas funcionais, assim como a inclusão em determinadas organizações, como prisões e manicômios, pode resultar em exclusões de sistemas funcionais e interações (Stichweh, 2005STICHWEH, Rudolf. (2005), “Inklusion in Funktionssysteme der modernen Gesellschaft”, in R. Stichweh, Inklusion und Exklusion: Studien zur Gesellschaftstheorie. Bielefeld, Transcript Verlag, pp. 17-46.). Trajetórias de inclusão e exclusão podem constituir, na dimensão temporal da vida social de cada indivíduo, processos cumulativos de inclusão ou exclusão que perpassam distintos sistemas sociais.

No entanto, a implementação de políticas também é, pelo próprio caráter simultâneo dos fenômenos de inclusão e exclusão, uma arena para a construção de solidariedades e identidades coletivas. As interações implementadoras estruturadas pela classificação moral das pessoas podem construir diferentes formas de solidariedade, como redes sociais ou comunidades, como acontece em alguns programas governamentais de saúde da família no Brasil. Como demonstra Lotta (2018)LOTTA, Gabriela. (2018), “Burocracia, redes sociais e interação: uma análise da implementação de políticas públicas”. Revista de Sociologia e Política, 26 (66): 145-173. em seus estudos sobre a atuação dos agentes comunitários de saúde, as organizações – unidades básicas de saúde (UBS) e a rede formal de organizações criada pelo arranjo federativo das políticas de saúde no Brasil – se aproveitam de redes de relações construídas em interações cujos estilos são condicionados muito mais por decisões individuais e pelo exercício da discricionariedade que por “questões de contexto ou organizacionais da UBS” (Lotta, 2018LOTTA, Gabriela. (2018), “Burocracia, redes sociais e interação: uma análise da implementação de políticas públicas”. Revista de Sociologia e Política, 26 (66): 145-173., p. 164).

Embora as organizações estruturem a realização de práticas e decisões sobre acesso a atenção básica de saúde, a escolha dos estilos de interação se dá no próprio domínio da interação. A diferenciação entre esses estilos pode levar, no percurso da influência da interação para a organização, a diferentes formas de mediação entre organização e público, à construção e generalização de expectativas sociais (como os tipos ideias de pessoas anônimas) e, com isso, aos padrões de identificação coletiva selecionados e usados pela organização e que afetam as trajetórias de inclusão e exclusão.

Considerações finais

Neste artigo propomos uma abordagem do tema da burocracia de nível de rua com base na teoria sociológica de Luhmann. Dessa teoria, mobilizamos a relação entre duas formas de diferenciação da vida social que representam desafios para o sistema político-administrativo em suas relações com o público no processo de implementação de políticas públicas.

Há dois tipos de complexidade social que constituem as situações de implementação que dependem de interações entre burocratas e público. A primeira forma de diferenciação e complexidade é a que define os contornos da sociedade global enquanto esfera social mais ampla composta de sistemas funcionais operativamente fechados, mas estruturalmente acoplados com seu ambiente. Para o sistema político-administrativo, isso representa a existência de um ambiente de sistemas funcionais, como economia, educação e saúde, cuja autonomia operativa a política não pode ignorar se quer continuar a manter alguma estabilidade (sempre dinâmica) na relação com seu ambiente. A segunda forma de diferenciação e complexidade social é aquela que ocorre entre distintos níveis de formação sistêmica: sociedade, organização e interação. Aqui o problema não é a diferenciação de funções sociais, mas sim a diferença de tipos de sistemas sociais que transcendem o próprio conceito de sistema funcional, como as organizações e as interações. O problema é se a implementação de políticas que envolvem determinados sistemas funcionais, além de precisar enfrentar a incontornável complexidade resultante da diferenciação funcional, também contrai relações complexas de interdependência com organizações e interações, como aquelas analisadas por Lipsky.

O que se pode dizer é que nem todo tipo de implementação de políticas públicas articula necessariamente esses três níveis de formação sistêmica, com o mesmo grau de importância. Mas isso também significa que a importância da interação entre burocrata de rua e público para estruturar e/ou reestruturar trajetórias de inclusão e exclusão também depende do peso desse tipo de interação para a implementação da política: quanto mais a entrega da política pública consistir na coprodução de resultados por meio da interação entre agentes implementadores e público, maior é o peso das interações nas trajetórias de inclusão e exclusão. Por exemplo, uma política de renúncia tributária produz efeitos de desigualdade muito claros, mas não por meio da interação. Ela não precisa ser coproduzida na interação entre burocratas de rua e os cidadãos. Talvez dependa, em sua formulação, de interações políticas mais ou menos esporádicas, entretanto, não depende, na implementação, de interações cotidianas. Já no caso de uma política como a “Estratégia Saúde da Família” (Lotta, 2015LOTTA, Gabriela S. (2015), Burocracia e implementação de políticas de saúde: os agentes comunitários na Estratégia Saúde da Família. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.), na medida em que sua implementação depende de uma relação específica entre o sistema político-administrativo e o sistema de saúde, um sistema fortemente intensivo em interações e que envolve também esforços de reorientação de expectativas de conduta das pessoas, 5 5 “Organizações que se ocupam da transformação de pessoas […] possuem traços muito atípicos, e isso se dá porque suas comunicações são intensivas em interação e menos fixadas pela escrita” (Luhmann, 1992, p. 122, tradução nossa). o peso da interação na produção da política é muito maior, em vários aspectos da política, inclusive com relação aos efeitos da política em termos de inclusão ou exclusão. Isso abre a possibilidade de se construir uma tipologia da implementação de políticas baseada no peso relativo de interações para os resultados da política.

Por último, é preciso também lembrar que na teoria sistêmica de Luhmann o lugar do burocrata de nível de rua precisa ser redefinido com base no desnível de complexidade entre os sistemas sociais envolvidos na implementação e o ambiente, seja esse ambiente formado por interações, seja formado pelo sistema psíquico de cada indivíduo que ocupa o papel de burocrata. Com os papéis formais (cargos), as organizações implementadoras tentam enquadrar (reduzir) as possibilidades de conduta dos indivíduos por meio da formalização de expectativas de ação, mas as situações cotidianas de interação com o público são mais complexas, assim como são mais complexas a individualidade psíquica de cada burocrata, que não faz parte da organização, mas de seu ambiente. Sempre mais complexo que o papel ao qual a organização tenta reduzi-lo, perturba, traz imprevisibilidades que a organização não pode absorver sozinha e deixa para as interações um papel relevante no enfrentamento (redução) dessa complexidade.

Os ganhos obtidos com o uso da teoria dos sistemas nas discussões sobre burocracia de nível de rua se referem à necessidade de uma teoria geral da sociedade capaz de oferecer uma definição geral dos fenômenos de inclusão e exclusão e do papel específico do Estado nesses fenômenos. As discussões sobre burocracia de nível de rua destacam os limites da organização estatal na construção de decisões implementadoras de políticas públicas que afetam as trajetórias de inclusão e exclusão, oferecendo a discricionariedade exercida pelos burocratas como explicação adicional dessas decisões.

A discussão mais recente sobre sociologia do guichê e redes sociais destaca a construção, no interior das próprias redes e interações implementadoras, de estruturas informais influentes no processo decisório, sugerindo um quadro multinível de relações e estruturas de inclusão e exclusão. Nesse quadro, formas específicas de inclusão em um nível (interação, por exemplo) podem gerar exclusão em outros níveis (organização, por exemplo). Além disso, para explicar a capacidade de diferentes tipos de redes e interações promover inclusão e exclusão, tem se destacado o papel da vivência em múltiplas esferas de sociabilidade como fonte de habilidades sociais importantes na mediação entre Estado e sociedade (Lotta, 2018LOTTA, Gabriela. (2018), “Burocracia, redes sociais e interação: uma análise da implementação de políticas públicas”. Revista de Sociologia e Política, 26 (66): 145-173., p. 165).

Acreditamos que esses avanços na discussão podem gerar ganhos adicionais de conhecimento sobre a relação entre Estado e sociedade se forem agregados em um nível mais abstrato de análise, como a teoria geral da sociedade de Luhmann (1988)LUHMANN, Niklas. (1988), Ökologische Kommunikation: Kann die moderne Gesellschaft sich auf ökologische Gefährdungen einstellen?. Opladen, Westdeutscher Verlag.. Os ganhos adicionais estão na possibilidade de explicitar o conceito de diferenciação sistêmica da sociedade e do próprio Estado implicitamente pressuposto em todos esses aspectos avançados pela discussão sobre burocracia de nível de rua. A teoria da diferenciação sistêmica de Luhmann oferece, então, um quadro geral que permite comparar e relacionar formas variadas de inclusão e exclusão, destacar as influências mútuas e variadas entre elas e observar a multiplicidade dos contextos de implementação de políticas públicas. Percebemos que tais contextos, por sua vez, são gerados nos distintos setores da ação do Estado e em suas relações com a sociedade, sendo marcados pela articulação sempre específica de sistemas funcionais, organizações, redes sociais e interações.

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Notas

  • 1
    Perrow (1991)PERROW, Charles. (1991), “A society of organizations”. Theory and Society, 20 (6): 725-762. parte do mesmo pressuposto, embora desenvolva uma abordagem teórica distinta.
  • 2
    A ideia de que as estruturas também são o resultado das práticas sociais das organizações pode ser encontrada em autores como Giddens (2003)GIDDENS, Anthony. (2003), A constituição da sociedade. São Paulo, Martins Fontes. e Guerreiro Ramos (1983GUERREIRO RAMOS, Alberto. (1983), Administração e contexto brasileiro: elementos de uma sociologia especial da administração. Rio de Janeiro, Editora da FGV., p. 12).
  • 3
    As interações e suas variações estruturais são uma espécie de microdiversidade de inovações para a seleção evolutiva (Luhmann, 2016LUHMANN, Niklas. (2016), Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Petrópolis, Vozes., p. 481), portanto, para a auto-organização dos sistemas funcionais (Luhmann, 1997b).
  • 4
    As chamadas políticas de ativação que visam despertar nos indivíduos atitudes favoráveis à reinserção no mercado de trabalho são um exemplo bem claro (Watarai, 2012WATARAI, Tomoko. (2012), “Integration through activation? Unfolding paradox for mobilizing will to self-help”. Journal of Comparative Social Work, 2 (1): 1-16., p. 6).
  • 5
    “Organizações que se ocupam da transformação de pessoas […] possuem traços muito atípicos, e isso se dá porque suas comunicações são intensivas em interação e menos fixadas pela escrita” (Luhmann, 1992LUHMANN, Niklas. (1992), Universität als Milieu. Bielefeld, Haux., p. 122, tradução nossa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2018
  • Aceito
    29 Ago 2019
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