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Vozes, tosses e sussurros

RESENHAS

Vozes, tosses e sussurros

Octavio Bonet

NOGUEIRA, Oracy. Vozes do Campos do Jordão: experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo. 2 ed. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2009. 220 páginas.

Em 1985, Oracy Nogueira escreveu uma apresentação para o que seria a segunda edição do livro Vozes do Campos do Jordão, que não aconteceu nesse momento pela morte do editor. Em sua apresentação, que podemos agora apreciar nesta edição de 2009, o autor diz que pensou em republicar o livro quando colegas do Departamento de Ciências Sociais da USP manifestaram satisfação por terem descoberto o livro. Oracy escrevia para essa segunda edição que "a originalidade do trabalho consistia em tratar, com os recursos metodológicos e teóricos das ciências sociais - na confluência da sociologia, da psicologia social e da antropologia social - de um tema que até então parecia construir preocupação exclusiva de médicos e literatos" (p. 29). O texto original foi escrito como a dissertação de mestrado na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1945. Assim podemos dizer, quase sessenta anos depois da primeira edição, em 1950, que incursionamos como os seus colegas em 1985 em uma segunda redescoberta, o que permite enfatizar não só a originalidade, como o próprio autor resgata, mas o pioneirismo do livro Vozes do Campos do Jordão. Não podemos deixar de mencionar que a presente edição foi possível pelo apoio, suporte e interesse do Fundo Oracy Nogueira, sob a coordenação da prof. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcante, que vem realizando um interessante trabalho de revisão e divulgação da obra de Oracy Nogueira.

Esse pioneirismo pode ser observado tanto nos temas abordados, como na perspectiva e na metodologia escolhidas que não conhecem matrizes disciplinares, a mencionada "confluência" que o próprio autor alude na frase supracitada. Essa perspectiva respira o espírito dos anos de 1940 nas ciências sociais. Entretanto, esse pioneirismo lembra-nos que a perspectiva teórica e metodológica que subjaz o texto permite perfeitamente iluminar muitas das pesquisas que hoje são realizadas na antropologia e na sociologia da saúde.

Oracy Nogueira propõe uma pesquisa que hoje poderia ser incluída no subcampo da antropologia da saúde e da doença, mas foi realizada muito antes que esta área tenha sido cristalizada. Hoje, é recorrente dizer que o que interessa são as relações que se estabelecem entre os agentes envolvidos no processo de saúde-doença, isto é, como a doença agencia as diferentes situações vividas pelos doentes, os profissionais, os parentes, amigos etc. Em Vozes do Campos de Jordão encontramos tal proposta já na introdução do problema: o autor explicita a preocupação de contextualizar a doença incluindo-a em um "complexo cultural" (p. 49), no qual a própria doença, os traços de personalidade e os comportamentos dos doentes ganham nova luz. Nesse complexo cultural estabelecem-se as interações entre os doentes, os profissionais e os moradores da estação de cura, desenhando uma estrutura própria que regula a reprodução do próprio complexo cultural. O objetivo central do livro é desenhar esse complexo cultural em que emergem as "vozes" dos agentes que construíam a "tuberculose pulmonar" como categoria sociológica; vozes que se ouviam entre tosses e sussurros daquilo que não podia ser dito.

O livro descreve as experiências dos doentes de tuberculose, em 1944, em dois contextos diferentes: em São Paulo e, sobretudo, em Campos do Jordão, que funcionava como uma estação de cura. A escolha de priorizar a estação foi derivada da acessibilidade aos doentes e dos outros personagens que integram as relações no processo de saúde e doença.

O complexo cultural constituído em Campos do Jordão incorpora todo o imaginário que rodeava a tuberculose no século XX. O autor mostra como as idéias associadas à doença na época ecoavam sanções morais, que se ligavam a noções de "pecado", "castigo" ou, ainda, a "sanções sobrenaturais" que faziam necessária a intervenção divina na cura. Podemos encontrar ainda hoje essas representações sobre a doença, que incorporam dimensões morais e religiosas na concepção bacteriológica da doença, em pesquisas recentes sobre as representações e as práticas associadas às mais diferentes doenças em distintas comunidades no Brasil (Bonet e Tavares, 2007) e em tecnologizados serviços de saúde atuais (Menezes, 2006).

Existem doenças que poderíamos considerar como sendo sobrecarregadas pelo imaginário popular e também por uma prolífica produção literária. Ao serem mencionadas, essas doenças despertam esse imaginário. Susan Sontag, no livro A doença como metáfora (1984) diz que duas doenças foram intensamente metaforizadas: o câncer e a tuberculose, o que produziu o alargamento do seu significado para inúmeras dimensões do social que se viu retratada na literatura de Stendhal (Armance) e Thomas Mann (A montanha mágica), para mencionar apenas dois exemplos.

Por outro lado, as representações que rodeiam as doenças não são fixas, são configurações que se constituem e modificam segundo os momentos históricos e sociais e, junto com elas, modificam também o tipo de doente. Isso está muito bem descrito no livro de Claudine Herlich e Janine Pierret, Malades d'hier, malades d'aujourd'hui (1984). As autoras analisam, entre outras doenças, a tuberculose que, ao encarnar a representação do "mal", se mostra exemplar pelas mudanças que sua representação experimentou entre os séculos XIX e XX: de uma visão romântica, associada à arte e à criação artística, para uma visão associada à pobreza e às campanhas de profilaxia higiênicas que buscavam o controle e a moralização da população trabalhadora portadora do bacilo.

Estas questões certamente não passaram despercebidas para Oracy Nogueira, que descreve as diferentes representações da tuberculose como "condição romântica" (p. 20) no século XIX e como "flagelo social" no século XX: "atualmente, generalizase, cada vez mais em todas as camadas da sociedade, a concepção da tuberculose como ‘flagelo social', isto é, como algo que põe em perigo valores tidos em alto apreço pelo grupo, como a vida e a capacidade de produção de seus membros. Ao mesmo tempo, cresce a convicção de que tal situação somente poderá ser removida ou corrigida mediante ação coletiva" (p. 21). Assim, a doença transforma-se em um "problema social". Poderíamos aqui novamente estabelecer relações entre esta constatação com os desenvolvimentos de pesquisas tanto na área de saúde coletiva como na antropologia da saúde, que buscam desvendar a dimensão social da doença.

Em Vozes do Campos de Jordão, Nogueira mostra de forma brilhante que o perigo que representa a tuberculose se corporifica e contamina a pessoa doente. A partir da descoberta da sua condição de doente, o indivíduo passa a estabelecer um grande divisor em seu cotidiano que separa os "doentes" dos "sãos". É interessante a escolha do autor em mostrar esse processo de descoberta e decorrente configuração de mundo a partir de histórias de vida, que mostram os conflitos vividos pelos "novos" doentes.

A descoberta da tuberculose é percebida de forma diferente quando o doente continua vivendo no "mundo dos sãos" ou quando permanece "internado" em uma estação de cura. No primeiro caso, a descoberta gera uma preocupação em manter a doença em "segredo" para não correr riscos em suas relações sociais, mas cria-se aí um "constrangimento moral" por estar pondo os "outros" em perigo de contágio. Se não opta por esse caminho, o tuberculoso tem que conviver com o estigma associado à doença e com o imaginário que ela desperta. Novamente, o autor adianta em 23 anos a excelente análise empreendida por Erving Goffman em Estigma (publicado originalmente em 1963), pois mostra a relação entre o que é peculiar à doença, no caso um atributo desacreditador, e o estereotipo existente em situações de contatos mistos. Deparamo-nos, assim, no curso da argumentação, com expressões presentes nos depoimentos de doentes do tipo "meu mundo", "meu ambiente", associadas à paz e à tranqüilidade, por oposição a contatos casuais que levam à negação de sua condição. A fim de evitar encontros e conflitos morais, os tuberculosos se retrairiam para estações de cura.

Na segunda parte do livro, o autor descreve a vida do tuberculoso na estação de cura, que se transforma, assim, no mundo dos "colegas" (como se chamavam os doentes), apesar de ter também pessoas não tuberculosas morando numa das três vilas que compunham o complexo de Campos do Jordão, as quais desejavam criar uma "área livre de doentes".

Movimentos nesse sentido contrapunham-se à visão que os doentes tinham da estação de cura, como mostra este depoimento: "eu sinto isto aqui [Campos do Jordão] como uma coisa nossa [...] aqui o doente não tem obrigação de tomar cuidado [...]. Isto aqui é nosso. Aqui o doente se sente à vontade, como se estivesse em casa" (p. 37). Tratase, então, do "ambiente tuberculoso", isto é, uma "organização espontânea e um acervo de modos de pensar, sentir e agir" (p. 41) percebidos por doentes, médicos e enfermeiros e decorrentes das interações estabelecidas no cotidiano. É nesse ambiente que se construíam as representações e as práticas que permitiam a divisão entre "tuberculosos" e "não-tuberculosos"; era ali que surgiam as gírias, a solidariedade entre "novatos" e "veteranos", as racionalizações sobre a doença, as diversas histórias de vida e as atitudes que caracterizavam os tuberculosos, como, por exemplo, a tendência à dramatização, à individualização e ao misticismo, e o desejo por novas experiências.

O autor não se restringe aos doentes, suas práticas e representações, mas está também interessado pelas redes sociais construídas entre os diferentes grupos: doentes, médicos, enfermeiros e administradores. As características específicas da tuberculose levavam ao estabelecimento de relações duradouras entre pacientes e médicos, criando sentimentos de simpatia e apreço, de um lado, de antagonismo e hostilidade, de outro. Embora "raramente se manifesta um conflito aberto" (p. 119), existe uma "reprimida hostilidade". Esse distanciamento presente na relação com o médico não só deriva da sensibilidade adquirida pelos médicos nos anos de formação, mas também da hierarquia social que diferencia os médicos dos pacientes.

A entrada nesse "ambiente tuberculoso", ainda que permitisse aos doentes sentirem-se entre "colegas", gerando com isso uma sensação de liberdade, possibilitava também a medicalização total de suas vidas. Isto é, os regulamentos somados à estrutura da comunidade instauravam um rigoroso controle social. Os doentes precisavam, por exemplo, da autorização de seus médicos para sair na rua, pois isso perturbava as estritas rotinas de repouso que a doença exigia.

A interdisciplinaridade presente no livro, marcada pela confluência da sociologia, da antropologia e da psicologia social, e o rigor metodológico permitiram ao autor analisar as redes de relações tecidas ao redor da tuberculose. Nogueira valeu-se, nesse sentido, de diferentes técnicas metodológicas, como a reconstrução de histórias de vida, entrevistas, questionários, observação participante e, ainda, a análise de publicações em revistas e jornais. O corpo do texto é permeado por ricos e ilustrativos depoimentos de doentes, o que não deixa as análises teóricas perderem de vista a dimensão do mundo da vida que está sendo estudado.

Também devemos sublinhar a riqueza dos apêndices presentes no livro, que não trazem somente extratos da história de vida de uma paciente ou um questionário completo, mas uma reflexão teórico-metodológica da importância de trabalhar com "documentos íntimos" para, a partir deles, "aprender sobre os aspectos subjetivos da cultura e da organização social, das instituições e movimentos sociais" (p. 137).

Vozes do Campos do Jordão não só tem valor por ser uma etnografia brilhante a respeito do ambiente de cura que hoje não existe mais, o que por si só significa um registro de uma terapêutica do passado, mas também pelos diálogos que estabelece com os problemas atuais das ciências sociais voltadas para temáticas da saúde. Em outras palavras, o valor fundamental do livro está na sua contemporaneidade.

BIBLIOGRAFIA

OCTAVIO BONET é doutor em antropologia e professor no Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: octavio.bonet@gmail.com

  • BONET, Octavio A. R. & TAVARES, Fátima R. G. (2007), "O cuidado como metáfora nas redes da prática terapêutica", in Roseni Pinheiro e Ruben A. de Mattos (orgs.), Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor, Rio de Janeiro, Cepesc-IMS/Uerj-Abrasco, pp. 263-277.
  • MENEZES, Rachel Aisengart. (2006), Difíceis decisões: etnografia de um Centro de Tratamento Intensivo Rio de Janeiro, Fiocruz.
  • HERZLICH, Claudine & PIERRET, Janine J. (1984), Malades d'hier, malades d'aujourd'hui Paris, Payot.
  • GOFFMAN, Erving. (1995 [1963]), Estigma: la identidad deteriorada. Buenos Aires, Amorrortu.
  • SONTAG, Susan. (1984), A doença como metáfora Rio de Janeiro, Graal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Fev 2010
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