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O nascimento da matéria (da qual nós estamos feitos): bariogênese no Universo primordial

The birth of matter (from which we are made of): baryogenesis in the primordial Universe

Resumos

De forma similar ao caso da Educação em Química, onde é implícitamente suposto que os elementos da Tabela Periódica existem com suas abundâncias “naturais”, sem que sua origem e evolução sejam discutidas jamais, o caso da origem dos prótons e nêutrons que constituem a matéria que nos rodeiae constitui é geralmente negligenciado. As discussões do Big Bang na sala de aula não reparam nem aprofundam um dos principais alicereces daquele modelo: o Universo primitivo era bem diferente do atual, provavelmente simétrico em matéria e antimatéria, e houve uma época onde isto mudou irreversivelmente para produzir, depois de bilhões de anos, o Universo “frio” que hoje observamos. Apresentamos neste trabalho uma discussão pedagógica do complexo problema da origem da matéria no Universo, com ênfase nos fatos observados e nas condições qualitativas que os cenários precisam para explicá-los.

Palavras-chave:
Origem da matéria; Big Bang; bárions


In a similar way to the case of Education in Chemistry, where it is implicitly assumed that the elements of the Periodic Table exist with their “natural” abundances without their origin and evolution being ever discussed, the case of the origin of protons and neutrons that constitute the matter that we are made of is generally neglected. Discussions of the Big Bang in the classroom do not address or emphasize into one of the main foundations of this model: the early Universe was quite different from the current one, probably symmetrical in matter and antimatter, and there was a time when this changed irreversibly to produce, after billions of years, the Universe we observe today. We present in this work a pedagogical discussion of the complex problem of the origin of matter in the Universe, with emphasis on the observed facts and on the qualitative conditions that the scenarios need to explain them.

Keywords:
Origin of matter; Big Bang; baryons


1. Introdução

A Cosmologia contemporânea está repleta de conceitos difíceis, muito alheios do dia-a-dia e da intuição dos estudantes e professores. Em boa medida, esta situação decorre do caráter hermético das Ciências, isto é, da necessidade absoluta de preparo e conhecimento de noções previas que permitam abordar um problema complexo cujas características precisam daquele preparo. Contudo, é a tarefa dos educadores e cientistas a de aprimorar ferramentas para que esta transição seja o mais suave possível, conservando é claro, a essência dos assuntos tratados. Até que ponto é viável isto último, ainda se mantendo num nível qualitativo de explicação, é motivo de discussão [1[1] J.E. Horvath e P.H.R.S. Moraes, Astronomy Education Journal 1, 008 (2021).].

Trabalhos recentes [2[2] P. Gonçalves, P.S. Bretones e J.E. Horvath, Ciência & Educação 28, e22044 (2022)., 3[3] P. Gonçalves, HorvathJ.E. e BretonesP.S., Rev. Bras. Ens. Física 44, e20210184 (2022)] focados na Educação em Cosmologia para todos os níveis de Ensino, têm mostrado que existe uma grande assimetria no volume de material disponível para a sala de aula. Enquanto alguns temas (Cosmogonias, Relatividade, etc.) dominam o cenário dos trabalhos de Tese, Dissertações e artigos disponíveis em português, outros assuntos são pouco abordados para todos os níveis educativos. Em particular, os Processos cosmológicos: bariogênese, nucleossíntese primordial e Recombinação (CMBR) e formação de galáxias (ítem C1 dos conteúdos no artigo de Gonçalves, Horvath e Bretones [3[3] P. Gonçalves, HorvathJ.E. e BretonesP.S., Rev. Bras. Ens. Física 44, e20210184 (2022)]) detém menos de 10% do total levantado que cobre várias décadas desta produção [2[2] P. Gonçalves, P.S. Bretones e J.E. Horvath, Ciência & Educação 28, e22044 (2022).], e inclui esses temas complexos e de grande importância para entender a história do nosso Universo.

Por outro lado, é notório que alguns destes temas ocupam ostensivamente as notícias de revistas e sites especializados, embora a Escola parece ser alheia a esta realidade, já que nem os menciona a maior parte das vezes na sala de aula. Um efeito negativo é assim realimentado, já que a falta de tratamento e preparo deixa os professores inseguros e “no escuro” a respeito, e com isso os assuntos continuam sendo evitado ainda mais, em detrimento dos alunos e da Educação em geral.

Por estas razões, nos parece relevante a abordagem pedagógica destes processos no Universo, com a intenção de facilitar e encorajar o tratamento pelo professor em sala de aula. Um destes temas altamente motivador é a observação que da o título a este artigo: sabemos que a matéria ordinária (prótons e nêutrons) nem sempre existiu como tal. Mais ainda, o Universo não contém antimatéria em quantidades importantes, levando a pensar que é, de fato, assimétrico com um excesso de matéria sobre esta antimatéria. Estes assuntos serão expostos a seguir, de forma qualitativa/gráfica, simplificando a complicadíssima Física envolvida, isto é, conservando apenas o imprescindível. Ainda assim somos conscientes da considerável dificuldade cognitiva que o professor terá que confrontar para atingir uma transposição didática minimamente satisfatória. Observamos que não há no levantamento da Ref. [3[3] P. Gonçalves, HorvathJ.E. e BretonesP.S., Rev. Bras. Ens. Física 44, e20210184 (2022)] nenhum trabalho que aborde especificamente o problema da origem da matéria.

2. Matéria e Antimatéria

A primeira constatação importante é que os alunos, em geral, têm uma idéia um tanto vaga da “antimatéria”. O mundo físico real tem para eles algumas barreiras do tipo psicossocial/cognitivo que dificultam a compreensão dos assuntos, as quais convém identificar e abordar da forma mais direta possível. A existência e natureza da antimatéria é uma delas.

A recomendação é a de começar com uma discussão da antimatéria, de fato, essa ideia é contemporânea [4[4] A. Schuster, Nature 58, 367 (1898).] à descoberta da primeira partícula subatômica de matéria (o elétron), embora estes trabalhos no fim do século 19 não traziam resultados, somente especulação. No entanto, Dirac em 1928 chegou à predição da existência de soluções da sua equação para o elétron que têm “sinal trocado” para a carga elétrica [5[5] P.A.M. Dirac, Proc. Roy. Soc. Lond. A117, 610 (1928).]. Estes “elétrons positivos” foram identificados experimentalmente por C. Anderson poucos anos depois, em 1932 [6[6] C. Anderson, Science 76, 238 (1932).]. Medidas mais modernas constataram que, embora a carga das antipartículas, tais como o pósitron, é a contrária à da partícula, sua massa é idêntica. Em outras palavras, não sofrem ou carregam “antigravitação”. Isto último é uma especulação que frequentemente paira na discussão da antimatéria, mas que não confere com os dados.

Assim, a antimatéria é uma realidade experimental, bem estudada há quase 1 século. De fato, não tão somente é detectada nos laboratórios (por exemplo, vide [7[7] https://www.pbs.org/newshour/science/column-cern-trapped-antimatter-lasers-heres-physicists-super-excited, acessado em 30/10/2022.
https://www.pbs.org/newshour/science/col...
] para uma avaliação do isolamento do antihidrogênio), mas também sua presença é frequente nos raios cósmicos, as partículas de alta energia que bombardeiam a Terra aceleradas no espaço exterior. Mede-se que 1 de cada 10000 partículas primárias é um antipróton (com carga negativa), quase todas produzidas nas reações do tipo p+p3p+p¯, onde o antipróton (p¯) é resultado do excesso de energia na colisão dos prótons à esquerda da flecha, “materializada” pela identidade E=mc2.

O desfecho do encontro da matéria e antimatéria está bem documentado e medido: quando isto acontece, as partículas e antipartículas somem deixando para trás dois fótons de alta energia. Os fótons têm exatamente a energia que o par partícula-antipartícula carregava, e por isso podem ter energias extremas. Aqui é um momento ideal para insistir (de novo) no significado de E=mc2, mostrando que os fótons precisam ser muito energéticos porque o par que se aniquilou tinha uma energia mínima de 2m×c2, um número que é bem elevado.

Chegamos assim a uma forma empírica bem simples e direta de constatar a presença maciça de antimatéria no Universo: precisamos procurar quantidades de fótons gama que indiquem indiretamente a aniquilação partícula-antipartícula.

Sabemos que no Sistema Solar não há nenhuma antimatéria para nos preocuparmos: os astronautas foram e voltaram à Lua sem serem aniquilados; os veículos-robô Curiosity e seus predecessores não se aniquilaram na superfície de Marte; as naves Galileu e Juno visitaram Júpiter e nada aconteceu. Já os raios cósmicos que vagam pela galáxia inteira e chegam à Terra não mostram nenhum sinal de que há antimatéria em quantidades estelares (embora alguns antiprótons e antinúcleos existam no fluxo, eles resultam da colisão de prótons primários tal como afirmamos antes). Finalmente, o Universo inteiro poderia conter antimatéria de tal forma que esta quantidade seja igual à da matéria comum. Mas para isso, deveria haver uma separação macroscópica entre as duas (caso contrário, observaríamos os mencionados fótons gama em quantidade), e isto não seria possível sem violar a causalidade no processo que as deveu separar. Assim, chegamos à conclusão que não achamos antimatéria em grandes quantidades, de fato, quando produzida dura muito pouco porque a matéria abundante que a rodeia a faz aniquilar. Não há antimatéria em antiestrelas, antigaláxias nem em outra forma de grande porte e quantidade.

Desta forma, precisamos agora entender por quê o Universo é assimétrico: Qual é a razão pela qual a matéria constitui o Universo observado enquanto a antimatéria existente no Universo primordial sumiu por completo? O mais “natural” seria que houvesse quantidades iguais das duas, mas aí observaríamos os sinais já descritos. Esta questão deve ser enfatizada na sala de aula: não basta com dizer que “é assim mesmo”, porque desta forma a Ciência nem existiria, bastaria com aceitar que não precisamos entender a origem e as razões de coisa alguma, posição que o cientista e o educador certamente rejeitarão.

2.1. O Universo primordial e a bariogênese

Rejeitada que foi a ideia de que o Universo é assimétrico como condição inicial, a qual é manifestamente anticientífica, cabe então perguntar pela origem dessa assimetria, quando e como se originou. Quando falamos desta assimetria, devemos lembrar que estamos nos referindo aos prótons e nêutrons principalmente. Na Física estas últimas se chamam de bárions, e por isso este processo de assimetrização (criação do excesso de bárions sobre antibárions) é também conhecido como bariogênese.

Uma quantidade importante a ser determinada é a do número de bárions excedente. Chamaremos de nB à densidade de bárions por unidade de volume. Da análise da época da nucleossíntese dos primeiros núcleos (primordial), é possível saber quantos bárions havia por unidade de volume como função da densidade volumar de fótons nγ. De fato, observações das inomogeneidades do Fundo de Radiação Cósmica, o tênue “brilho” que decorre da imagem ao momento onde o Universo ficou transparente, permitem também conferir este número independentemente. Os resultados são essencialmente o mesmo, o número de bárions é nB6×10-10nγ, ou seja a matéria era naquele momento muito rara respeito dos fótons “superabundantes”: havia pouco menos de 1 próton/nêutron por cada bilhão de fótons. Mas este excesso minúsculo é responsável por todo o gás, planetas e estrelas que vemos. O problema da bariogênese consiste em explicar o mecanismo e a época que geraram este número.

Embora há várias propostas diferentes para produzir a bariogênese, existem algumas condições muito gerais sem as quais não haveria excesso nenhum. O físico russo A. Sakharov formulou na década de 1960 essas condições que deve cumprir qualquer mecanismo de bariogênese no Universo primordial [8[8] A. Sakharov, JETP Lett. 5, 24 (1967).]. As três condições são

  • O mecanismo proposto deve violar a conservação do número bariônico, ou seja, deve criar ou destruir bárions. No Universo primordial, na verdade, os prótons e nêutrons não existiam como tais. Suas componentes fundamentais, os quarks, eram os carregadores do número de bárions. Esta violação nunca foi observada em laboratório, mas acredita-se que é possível para energias muito altas.

  • Precisa haver uma assimetria nas taxas de reação que produzem ou aniquilam os bárions (quarks nessa altura), e como em geral elas não dependem da carga elétrica, precisa haver também violação da operação de conjugação da carga C. Assim, as reações não podem ficar invariantes quando são trocadas as partículas por antipartículas (ou, mais precisamente, o produto de C vezes a reflexão do processo em um espelho, ou operação de paridade P, deve ser violada)

  • Por último, deve haver desvios do equilíbrio termodinâmico, já que se o equilíbrio for mantido, o número de partículas e antipartículas se manterá igual, mesmo que as taxas de interação não o sejam. Este conceito é idêntico ao das reações químicas (Lei de Ação de Massas), mas aplicado aqui para energias enormes. Os alunos ficam bastante surpresos quando um cálculo “da Química” aparece de forma inesperada em outra área, isto é importante e pode servir para enfatizar a unidade conceitual das Ciências, quebrando a compartimentalização usual da exposição na sala de aula.

2.2. Onde e como acontece a bariogênese?

2.2.1. Bariogênese à escala de Planck ou da Grande Unificação [9[9] A. Riotto, em: 1998 Summer School in High-Energy Physics and Cosmology (Trieste, 1998). Disponível em:arXiv.hep-ph/9807454]

A época “natural” para a bariogênese poderia, a princípio, ter sido à escala de Planck, onde todas as interações da Natureza têm a mesma importância. Especulativamente, seria a gravitação quântica a que violaria CP e tambéma conservação do número bariônico. Porém, devido ao sucesso atingindo pela ideia de uma Era Inflacionária, a qual resolveria vários problemas expandindo o espaço-tempo exponencialmente ou quase, o excesso de bárions anterior a esta última teria sido diluído e o Universo estaria “vazio de matéria”. Em outras palavras, a mesma solução bem-sucedida que serve para explicar a planura do Universo e outras características, estragaria a bariogênese se esta acontecesse muito cedo, na Era de Planck. Não é possível resolver esses problemas simultaneamente. Mas o lado bom é que se a bariogênese aconteceu depois da Inflação, isto também implica que podem ser efetuados testes experimentais da sua origem.

A segunda possibilidade é a da bariogênese ter acontecido na época da Grande Unificação (abreviada como GUT em inglês), umas 4 ordens de grandeza abaixo da energia de Planck, ou seja 1015 GeV, pouco depois da Era da Planck quando a expansão do Universo o permitiu. Não sabemos realmente se houve uma Grande Unificação,os modelos relevantes para ela propõem que três das quatro interações conhecidas (forte, fraca e eletromagnética, somente a gravitação deixa de ter importância) ficavam igualmente intensas e importantes nessa escala de energia. Na verdade, a GUT é uma tentativa de extensão da unificação eletrofraca conseguida por Salam, Glashow e Weinberg, e bem testada em laboratório [10[10] E. Paschos, Electroweak Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 2007).].

O ponto central é que, se realmente é verdade que há uma energia onde tanto as forças eletromagnéticas quanto as fracas e as fortes são “indistinguíveis”, então deve haver processos que convertem, por exemplo, quarks em léptons (elétrons e outros) e vice-versa violando a conservação do número de bárions (Eq. eq1). As outras duas condições de Sakharov seriam também satisfeitas, já que a rápida expansão do Universo provoca afastamentos do equilíbrio, e os bósons X e Y por sua vez, violam as operações CP nos modelos teóricos já construídos.

A ideia principal é que no Universo primordial à escala do GUT, esses bósons X e Y seriam muito abundantes, e provocariam a geração de uma assimetria bariônica através de processos do tipo

(1) q 1 + q 2 X q ¯ + e +

onde q1 e q2 são dois tipos de quarks diferentes. Mas foi notado que estas interações também provocariam, pela sua ação, a desintegração de prótons em pósitrons e outras partículas. Se a Grande Unificação existe de fato, é notável que os mesmos processos que teriam produzido a bariogênese podem induzir o decaimento do próton em laboratório, o qual pode ser testado. Um diagrama que exemplifica o processo teorizado para o decaimento do próton está na Fig. 1.

Figura 1:
Um diagrama (de Feynman) para o decaimento do próton na escala do GUT. À esquerda, o próton formado por três quarks ao nível mais elementar (udu). De acordo com a ação do bóson X, um dos quarks do próton decai pela emissão de um pósitron, e assim o próton se “desmancha” segundo pe++π0, violando a conservação do número bariônico. Enquanto estas reações aconteceriam o tempo todo no Universo primordial, estão fortemente suprimidas a baixas energias, e de fato os limites determinados experimentalmente para a vida média do próton (>1031 anos) são bem mais longos do que as predições dos modelos de GUTs mas simples.

É também importante dizer que, com a Grande Unificação pode acontecer algo similar ao que apontamos para a bariogênese à escala de Planck: como é muito provável que a Inflação tenha acabado depois da escala do GUT (de fato, isto acontece na maioria dos modelos), não haveria possibilidade de produzir o excesso de bárions nessa época do Universo. Hoje a bariogênese GUT não é favorecida.

2.2.2. Bariogênese no fim da Inflação

A Inflação é um período muito curto onde o Universo se expande violentamente. Hoje há bastante controvérsia a respeito, mas as flutuações observadas no Fundo de Radiação Cósmica podem ser consideradas como uma forte evidência em favor da Inflação. Se isto foi o que realmente aconteceu, o desfecho desse período leva a uma consideração interessante (Fig. 2). Em quase todos os modelos, o potencial do campo ϕ cuja dinâmica é responsável pelo estágio de expansão exponencial (chamado de Inflaton) entrega a diferença de energia ΔV quando chega ao mínimo do potencial ϕC. Antes deste momento o Universo expandiu muito, mas estava “vazio”. É pelo processo de dissipação da energia potencial em quanta ordinários que a temperatura do Universo sobe muito (enquanto houve Inflação a situação estava tão fora do equilíbrio que nem é possível falar em “temperatura”). Os quarks e léptons aparecem como decorrência desta transferência de energia, e poderiam levar à bariogênese se uma assimetria mínima resultasse do processo. O problema com esta proposta é que há tantos modelos de Inflação que não resulta possível afirmar nada concreto. Nem mesmo sabemos ao certo o quê seria esse “Inflaton”. Para os puristas, porém, este estágio seria o verdadeiro Big Bang, todo o anterior seria de fato dispensável, uma espécie de fantasia desnecessária, já que o Universo começa sua história térmica com todos os processos sucessivos mesuráveis a partir desse momento. Quando a Inflação acaba, é possível, pelo menos em princípio, obter informação experimental (das flutuações produzidas e outras quantidades). Trata-se de uma atitude empirista que ganhou adeptos recentemente.

Figura 2:
O campo do “Inflaton” desce a ladeira do potencial e oscila em torno a ϕ=ϕC, transferindo a diferença de energia ΔV ao meio na forma de quanta leves que são produto de bósons instáveis muito massivos. As condições de Sakharov seriam satisfeitas, mas é difícil fazer o cenário ficar mais concreto pela existência de múltiplos modelos inflacionários ad hoc.

2.2.3. Barigênese na época eletrofraca [9[9] A. Riotto, em: 1998 Summer School in High-Energy Physics and Cosmology (Trieste, 1998). Disponível em:arXiv.hep-ph/9807454]

Devido aos problemas que apontamos recém nas energias maiores, outros mecanismos de bariogênese foram propostos, onde esta acontece em energias muito mais baixas (por exemplo, à escala da transição eletrofraca, T100 GeV). Uma versão bastante difundida propõe que a assimetria bariônica resultou de uma assimetria leptônica prévia, produzida pelo decaimento de neutrinos ultra-pesados (estes fora do Modelo Padrão, e sem evidência da sua existência até hoje). Assim, embora a natureza violaria o número leptônico e o número bariônico separadamente, mas a diferença dos dois, B-L, seria conservada.

A versão mais elaborada da bariogênese “eletrofraca” (isto é, posterior à Inflação, e onde somente as interações eletromagnéticas e fracas estariam unificadas) propõe que o Modelo Padrão sozinho poderia ser a causa, desde que sejam cumpridas algumas condições. Uma destas condições é que a transição desde a fase simétrica, favorável para alta temperatura (interações fracas e eletromagnéticas unificadas), até a fase “quebrada” a baixa temperatura (essencialmente o que vemos nos laboratórios, onde os decaimentos fracos e as interações eletromagnéticas são diferentes) seja de primeira ordem. As transições de fase de primeira ordem são bem conhecidas, por exemplo, a água congela e assim a fase de alta temperatura (água líquida) e de baixa temperatura (gelo) são análogas ao requerido na transição eletrofraca primordial.

A Fig. 3 mostra uma sequência de estados onde uma transição de fase de primeira ordem acontece microscopicamente (vide legenda). O ponto crucial é que o Modelo Padrão contém interações que permitem que quando partículas cruzam de um lado para outro (de fora para dentro da bolha), a mudança no estado fundamental permite a conversão de (tripletos) de quarks em antiléptons (ou antiquarks em léptons). Assim, há violação do número bariónico próxima da interfase que separa as duas. A passagem de uma fase para a outra começando no “topo” da barreira (chamada solução de sphaleron, do grego “escorregão”) teria sido comum à escala da transição eletrofraca, e produzido a assimetria procurada [9[9] A. Riotto, em: 1998 Summer School in High-Energy Physics and Cosmology (Trieste, 1998). Disponível em:arXiv.hep-ph/9807454]. Se a transição de fase onde a simetria entre as interações eletromagnéticas e fracas é quebrada é e primeira ordem, e suficientemente intensa, depende em grande medida do bóson de Higgs, partícula envolvida na origem das massas de todas as partículas que conhecemos. O Higgs foi descoberto em 2012, mas ainda não é devidamente entendido, e dos detalhes da “partícula maldita” (nome real que usou Leon Lederman, depois trocado para “partícula de Deus” na literatura de forma totalmente equivocada [11[11] I. Sample, Anything but the God particle, disponível em: https://www.theguardian.com/science/blog/2009/may/29/why-call-it-the-god-particle-higgs-boson-cern-lhc, acessado em 20/12/2022.
https://www.theguardian.com/science/blog...
]) poderia ou não haver condições para uma transição de fase que permitisse a bariogênese na Era Eletrofraca.

Figura 3:
Uma transição de fase de primeira ordem começa com a nucleação de bolhas da fase nova no volume ocupado pela fase antiga (segundo quadro). Se esta fase nova é mais estável, as bolhas crescem e percolam (terceiro quadro), até ocupar todo o volume no fim (quarto quadro).

2.2.4. Bariogênese produzida por buracos negros primordiais [12[12] D. Hooper e G. Krnjaic, Phys. Rev. D 103, 043504 (2021).]

Finalmente, existe a possibilidade de ter havido bariogênese pela presença de buracos negros no Universo primordial. Nestes modelos, os buracos negros emitem bárions e antibárions enquanto evaporam emitindo todo tipo de partículas (incluindo pares quark-antiquark), mas a probabilidade de “queda” dos antibárions (antiquarks) no horizonte de eventos é levemente maior. Como resultado, há um acúmulo de bárions (quarks) líquido nas vizinhanças do buraco negro, que viola a conservação do número bariônico de forma macroscópica, já que a produção microscópica de bárions e antibárions é idêntica. Outra variante disto é que os buracos negros evaporem substancialmente nos bósons X da equaçãoeq1, principalmente depois da Inflação e transição eletrofraca terem finalizado [12[12] D. Hooper e G. Krnjaic, Phys. Rev. D 103, 043504 (2021).]. A questão é saber se houve uma época onde uma população abundante de buracos negros, que precisam também evaporar logo, que poderia ter induzido a bariogênese.

Figura 4:
Os estados de mais baixa energia (vácuo) dentro e fora de uma bolha estão separados por uma barreira. Porém, excitações com energia ES acontecem com frequência, e promovem a passagem de um vácuo para outro “por cima” da barreira se a temperatura for alta. Estas soluções são conhecidas como sphaleron. Para temperaturas baixas as transições também são possíveis, mas precisam de tulenamento quântico, e estão assim fortemente suprimidas. Este processo de passagem através da parede que separa as fases viola a conservação do número bariónico.

3. Conclusões

Várias possibilidades são cogitadas para explicar a assimetria matéria-antimatéria do Universo. A existência desta assimetria é tão evidente que, na maior parte das vezes, passa desapercebida. Por isto resulta importante enfatizar sua presença, e trazer à consideração as suas possíveis origens. A bariogênese é o tipo de assunto fundamental que pode levar a uma reflexão profunda e elaboração cognitiva e conceitual se devidamente abordado.

Neste breve texto temos procurado expor de forma qualitativa e com bastantes subsídios gráficos os conteúdos que são necessários para uma apresentação básica do evento da bariogênese. É evidente que não há hoje certezas a respeito da real ocorrência, mas precisamente por isto resulta muito importante como exemplo do funcionamento real das Ciências. Não é o tipo de conhecimento “finalizado” (por exemplo, Dinâmica de uma partícula), mas antes uma problematização seguida de soluções tentativas em cenários ainda inacabados. O cientista é permanentemente confrontado com assuntos deste tipo, e o estudo de caso da bariogênese pode mostrar como é feita a Ciência “real”, viva e complexa.

Referências

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    J.E. Horvath e P.H.R.S. Moraes, Astronomy Education Journal 1, 008 (2021).
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    P. Gonçalves, P.S. Bretones e J.E. Horvath, Ciência & Educação 28, e22044 (2022).
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    P. Gonçalves, HorvathJ.E. e BretonesP.S., Rev. Bras. Ens. Física 44, e20210184 (2022)
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    A. Schuster, Nature 58, 367 (1898).
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    P.A.M. Dirac, Proc. Roy. Soc. Lond. A117, 610 (1928).
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    C. Anderson, Science 76, 238 (1932).
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    https://www.pbs.org/newshour/science/column-cern-trapped-antimatter-lasers-heres-physicists-super-excited, acessado em 30/10/2022.
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    A. Sakharov, JETP Lett. 5, 24 (1967).
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    E. Paschos, Electroweak Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 2007).
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  • [12]
    D. Hooper e G. Krnjaic, Phys. Rev. D 103, 043504 (2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2022
  • Aceito
    17 Dez 2022
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