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Física e realidade

Physik und Realität

ARTIGOS GERAIS

Física e realidade* * Tradução de Sílvio R. Dahmen, Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: silvio.dahmen@ufrgs.br.

Physik und Realität

A. Einstein

Publicado originalmente no Journal of the Franklin Institute 221, 313-347 (1936)

1. Generalidades acerca do método científico

Foi dito freqüentemente e com certeza não sem razão que o cientista seria um mau filósofo. Por que não haveria então de ser o mais correto também para o físico deixar o filosofar para os filósofos? Isto talvez se aplique em épocas nas quais os físicos crêem possuir um sólido e inquestionável sistema de conceitos e leis fundamentais, mas não nos dias atuais, quando os fundamentos da Física como um todo se tornaram problemáticos. Nestas épocas, nas quais a experiência o obriga a buscar uma base nova e mais sólida, o físico não pode simplesmente relegar à Filosofia a análise crítica dos fundamentos, uma vez que apenas ele sabe e sente melhor que ninguém onde o sapato lhe aperta; na busca por novos fundamentos é mister que ele procure se esclarecer o melhor possível acerca da necessidade e legitimidade dos conceitos por ele usados.

Toda ciência não é senão um refinamento do senso comum. É por este motivo que o senso crítico do físico não pode se restringir à sua ciência em particular, não devendo ele passar ao largo de uma reflexão crítica do senso comum, de muito mais difícil análise.

No palco de nossas experiências mentais surgem, em colorida sucessão, experiências sensíveis, seus quadros mnemônicos, representações e sentimentos. Contrariamente à Psicologia, a Física ocupa-se (diretamente) apenas com as experiências sensíveis e com a "compreensão" das relações entre elas. Mas o conceito de "mundo externo real" do senso comum também se apóia exclusivamente sobre as impressões sensíveis.

Antes porém devemos notar que a diferenciação entre impressões sensíveis (sensações) e representa cões não é conhecida, ou ao menos não o pode ser com segurança. Não pretendemos aqui nos ocupar com esta problemática que também envolve o conceito de "realidade", mas tomaremos as experiências sensíveis como tais, ou seja, um tipo especial de experiência mental existente e reconhecível.

O primeiro passo para o estabelecimento de um "mundo externo real" repousa, em minha opinião, na construção do conceito de objeto corpóreo, ou melhor de objetos corpóreos de diferentes tipos. Certos complexos de sensações que se repetem (em parte junto a sensações que podem ser interpretadas como sinais das experiências sensíveis de nossos semelhantes ) são mentalmente escolhidos, de modo arbitrário, da totalidade das experiências sensíveis, e a eles é associado um conceito - o de objeto corpóreo. Do ponto de vista lógico este conceito não é idêntico à totalidade destas experiências, mas é uma livre criação do espírito humano (ou animal). Por outro lado seu significado e legitimidade se devem exclusivamente à totalidade das experiências sensíveis às quais está associado.

O segundo passo consiste no fato que atribuímos significados em grande medida independentes ao conceito do objeto corpóreo em nosso pensamento (determinante de nossas expectativas) e às sensações causadoras deste conceito. É isto que queremos dizer quando associamos uma "existência real" ao objeto corpóreo. A legitimidade desta associação repousa unicamente sobre o fato que, com o auxílio de tais conceitos e das relações mentalmente estabelecidas entre eles, podemos nos orientar por entre o emaranhado de sensações. É por este motivo que estes conceitos e relações - embora livres definições do pensamento - parecem-nos mais firmes e imutáveis que a experiência sensível única, cujo caráter nunca poderemos com segurança deixar de atribuir à ilusão ou à alucinação. Por outro lado, conceitos e relações, em particular o estabelecimento de objetos reais ou mesmo de um "mundo real" , só são justificáveis na medida em que estão associados a experiências sensíveis entre as quais criam associações mentais.

Só nos resta admirar, conquanto nunca lograremos compreender, o fato que a totalidade das experiências sensíveis seja tal que possa ser hierarquizada através do pensamento (o operar com conceitos e a criação e aplicação de certas associações funcionais entre eles, bem como a ordena cão das experiências sensíveis a conceitos). Podemos afirmar: o eternamente incompreensível no universo é o fato de ele ser compreensível. Que o estabelecimento de um mundo externo real sem esta compreensibilidade seria algo desprovido de sentido representa um dos maiores achados de Immanuel Kant.

Quando falamos aqui de "compreensibilidade" , referimo-nos a esta expressão primeiramente em seu significado mais modesto, ou seja: através da criação de conceitos gerais e relações entre eles, bem como através de relações de algum modo pré-estabelecidas entre conceitos e experiências sensíveis, cria-se, entre estas últimas, algum tipo de ordem. Neste sentido o mundo de nossas experiências sensíveis é compreensível e, que ele o seja, é miraculoso.

Parece-me impossível afirmar algo a priori, por mínimo que seja, acerca do método pelo qual devemos construir e relacionar conceitos e o modo pelo qual os ordenar com experiências sensíveis. Apenas o sucesso no estabelecimento de um ordenamento de experiências sensíveis é que pode julgar. As regras de associação entre conceitos devem ser simplesmente definidas pois, caso contrário, o conhecimento, no sentido em que o almejamos, seria inatingível. Pode-se comparar estas regras àquelas de um jogo, regras estas em si arbitrárias, mas que só depois de definidas possibilitam que se jogue. Esta definição de regras no entanto nunca será definitiva, mas antes só poderá reclamar para si qualquer validade na área na qual estiver sendo aplicado no momento (ou seja, não há categorias finais no sentido estabelecido por Kant).

A associação entre conceitos elementares do senso comum com complexos de experiências sensíveis só pode ser apreendida intuitivamente e é, do ponto de vista científico, inatingível pela fixação lógica. A totalidade destas associações - em si conceitualmente incompreensíveis - é a única coisa que diferencia o edifício da Ciência de um esquema de conceitos lógicos desprovido de conteúdo. Graças a elas, as leis puramente conceituais da Ciência tornam-se afirmações gerais acerca de complexos de experiências sensíveis.

Os conceitos direta e intuitivamente associados aos complexos de experiências sensíveis típicos serão por nós denominados "conceitos primários". Do ponto de vista físico todos os outros conceitos apenas têm sentido na medida em que os fizermos associar, através de leis, aos "conceitos primários". Estas leis são em parte defini cões de conceitos (e proposições daí logicamente dedutíveis) e em parte leis que não seguem das defini cões mas que dizem, ao menos indiretamente, algo a respeito das relações entre "conceitos primários" e com isto entre experiências sensíveis. Leis deste último tipo são "proposições acerca da realidade" ou "leis da natureza", quer dizer, leis que têm que ser comprovadas por meio das experiências sensíveis obtidas através dos conceitos primários. Quais dentre as leis devemos chamar de defini cões e quais dentre elas de leis da natureza dependem exclusivamente da representação escolhida; tal distinção só é realmente necessária quando quisermos determinar até que ponto o sistema de conceitos com o qual estamos lidando naquele momento tem, do ponto de vista físico, um conteúdo.

2. Estratificação do sistema científico

O objetivo da Ciência é, em primeiro lugar, a mais completa compreensão conceitual de experiências sensíveis em toda sua variedade e sua interconexão lógica. Em segundo lugar porém, atingir este objetivo através do uso de um mínimo de conceitos e relações primárias (aspiração por uma visão de mundo unificada mais lógica possível ou simplicidade lógica de seus fundamentos).

A Ciência necessita de toda a multiplicidade dos conceitos primários, ou seja, daqueles diretamente ligados às experiências sensíveis bem como as leis que os relacionam. Em seu primeiro estágio evolutivo ela não possui nada além disto. O senso comum também se dá por satisfeito, em linhas gerais, com este nível. Porém para um espírito verdadeiramente engajado com Ciência isto não basta, pois a totalidade de conceitos e relações assim haurida carece de qualquer unidade lógica. A fim de suprir esta falta, cria-se um sistema mais pobre em conceitos e relações que contenha, como quantidades logicamente dele dedutíveis, os conceitos primários e relações do "primeiro estrato" . Este novo "sistema secundário" adquire uma maior unidade lógica às custas da situação na qual seus conceitos iniciais (conceitos do segundo estrato) não mais se encontram em relação direta com complexos de experiências sensíveis. Posteriormente, a aspiração por uma unidade lógica ainda maior leva à criação de um sistema terciário de conceitos e relações ainda mais pobre, para obtenção dos conceitos e relações do estrato secundário (e assim indiretamente do primário). E assim sucessivamente, até que cheguemos a um sistema de maior unidade concebível e pobreza conceitual dos fundamentos lógicos, mas que ainda seja compatível com as propriedades obtidas através dos sentidos. Se algum dia conseguiremos, por meio desta busca, chegar a um sistema definitivo, não o sabemos. Se for colocada a pergunta, uma pessoa ver-se-á inclinada a responder com um não; mas no embate com os problemas se é levado pela esperança que este objetivo supremo realmente possa ser atingido em sua plenitude.

Um adepto da teoria da abstração ou indução denominaria as camadas supra citadas de "níveis de abstração". Porém julgo incorreto esconder a independência lógica dos conceitos com relação às experiências sensíveis; não se trata de uma relação como aquela entre a canja e a galinha, mas sim entre a roupa e o cabide no armário. Além disso, os níveis não são claramente delimitados entre si. Nem mesmo é possível precisar totalmente se um conceito pertence ao nível primário. Conceitos nada mais são que construções livres, associados intuitivamente a complexos de experiências sensíveis com um grau de segurança suficiente para uma dada aplicação, de modo a não restar dúvidas quanto à aplicabilidade ou não de uma lei para um particular caso vivenciado (experimento). Essencial é apenas a tentativa de representar uma variedade de conceitos e leis próximas da experiência como sendo deduzidas a partir de uma base de conceitos e relações fundamentais mais reduzida1 1 No sentido de estreita, limitada. O termo original utilizado por Einstein é eng, ou seja, estreito ( cf. narrow). possível. Estes são, por sua vez, de livre escolha (axiomas). Com esta liberdade porém não se vai muito longe: não se trata aqui de algo semelhante à liberdade de um romancista, mas sim muito mais à liberdade de um homem a quem foi proposto um bem concebido jogo de palavras cruzadas. Ele pode, é bem verdade, sugerir qualquer palavra como solução, mas só há uma que realmente soluciona a charada como um todo. Que a natureza - na maneira pela qual ela é acessível a nossos sentidos - tenha o caráter de uma bem concebida charada é uma crença para a qual de um certo modo os sucessos até agora obtidos pela Ciência nos impele.

A multiplicidade de níveis a qual nos referimos acima corresponde ao único avanço que a luta pela unifica cão dos fundamentos da Física nos propiciou ao longo do seu desenvolvimento. Do ponto de vista do objetivo final, os níveis intermediários são apenas temporários e devem eventualmente desaparecer, por irrelevantes. Temos porém que nos ocupar com a Ciência atual, na qual tais níveis representam sucessos parciais problemáticos, que se por um lado se sustentam, por outro se ameaçam, uma vez que o sistema de conceitos atuais se nos apresenta com profundas contradições, com as quais mais tarde nos defrontaremos.

O objetivo das próximas linhas é mostrar quais caminhos o espírito humano empreendedor trilhou para chegar a uma base conceitual da Física tão logicamente unificada quanto possível.

3. A mecânica e a tentativa de sobre ela fundamentar toda a Física

Uma propriedade importante de nossas experiências sensíveis, bem como de nossas experiências em geral, é seu ordenamento temporal. Esta propriedade de ordenamento leva à construção mental do tempo subjetivo, de um esquema de ordenamento para as experiências. Como veremos adiante, o tempo subjetivo conduz então, através do conceito de objeto corpóreo e de espaço, ao tempo objetivo.

O conceito de tempo objetivo é precedido pelo conceito de espaço, que por sua vez é precedido pelo de objeto corpóreo; este último está diretamente ligado aos complexos de experiências sensíveis. Colocou-se como propriedade característica do conceito "objeto corpóreo" o fato que a ele podemos associar uma "existência" independentemente do tempo ("subjetivo") e de sua percepção através de nossos sentidos. Fazemos isto embora percebamos nele mudanças temporais. Poincaré corretamente chamou a atenção para o fato que distinguimos dois tipos de mudanças em objetos corpóreos, a saber "mudanças de estado" e "mudanças de posição". Estas últimas são aquelas mudanças que podemos reverter por meio de movimentos arbitrários do nosso corpo.

A existência de objetos corpóreos tais que a eles podemos associar tão somente mudanças de posição e não de estado, dentro de um certo limite de percepção, é fundamental para a construção do conceito de espaço (e até certo ponto mesmo para a legitimização do conceito de objeto corpóreo). Chamaremos aqui um tal objeto de "efetivamente rígido" .

Se tomarmos simultaneamente dois corpos "efetivamente rígidos" por objeto de nossa percepção, ou seja como um único todo, então haverá mudanças que não podem ser interpretadas como mudança de posição do todo, embora seja este o caso para cada um dos objetos constituintes. Isto nos leva assim ao conceito de "mudança de posição relativa" entre ambos e com isto ao conceito de "posição relativa" entre os objetos. Além do mais vê-se que existe, entre as posições relativas, uma de um tipo especial denominada "contato"2 2 É da natureza das coisas que só podemos falar destes assuntos por meio de conceitos por nós elaborados, mas que em si não são passíveis de dedução. O essencial porém é que apenas utilizemos tais conceitos caso nos sintamos seguros a respeito de sua associação ao material experimental. [A.E.] .

O contato duradouro de dois corpos em três ou mais "pontos" significa sua união em um corpo único (quase-rígido). Pode-se dizer que o primeiro corpo será estendido em um corpo quase-rígido por meio do segundo corpo, que por sua vez poderá ser quase-rigidamente estendido3 3 No original fortgesetzt, do substantivo Fortsetzung (continuação ou extensão). Embora ainda se encontre comumente o termo "continuação analítica", para citar um exemplo, este termo tem sido preterido em favor de extensão, motivo pelo qual optou-se pelo último. . A extensão quase-rígida de um corpo é ilimitada. A totalidade das extensões quase-rígidas imagináveis de um certo corpo K0 representa o "espaço" infinito por ele definido.

Na minha opinião, a base empírica de nosso conceito de espaço é o fato que todo corpo de algum modo posicionado possa ser colocado em contato com a extensão quase-rígida de um corpo K0 apropriadamente escolhido (corpo de referência). No pensamento pré-científico a crosta terrestre rígida desempenhava o papel de K0 e sua extensão. O próprio nome Geometria indica que o conceito de espaço está psicologicamente relacionado à estrutura da Terra.

A arrojada construção conceitual de "espaço" , anterior a toda geometria científica, transformou mentalmente a totalidade das relações de posição de objetos corpóreos em posições destes no "espaço" . Isto já implica, por si, uma grande simplificação formal. Por meio dela se consegue que qualquer afirmação sobre posição também seja implicitamente uma afirmação sobre contato. Dizer que um ponto de um objeto corpóreo se encontre no ponto P do espaço significa: o ponto observado do objeto toca o ponto P do corpo de referência K0 (que presumimos como tendo sido apropriadamente estendido).

Na geometria dos gregos o espaço tinha, digamos, um papel qualitativo apenas, uma vez que as posições dos objetos, embora pensadas como estabelecidas em relação ao espaço, não eram no entanto descritas por números. Esta tarefa coube a Descartes, em cujo linguajar todo o conteúdo da geometria euclidiana pode ser fundamentado axiomaticamente sobre as seguintes proposições: (1) dois pontos marcados em um corpo rígido determinam um segmento; (2) aos pontos do espaço pode-se associar os triplos X1, X2 e X3 tais que, para cada segmento observado P' – P'' com coordenadas (, , ; , , ), a expressão

s2 = ( – )2 + ( – )2 + ( – )2

independe da posição do corpo e de quaiquer outros corpos. A grandeza s (positiva) chama-se comprimento do segmento ou distância entre os pontos espaciais P' e P'' (coincidentes com os pontos P' e P'' do segmento).

Esta formulação foi escolhida premeditadamente de modo a permitir que não apenas o conteúdo lógico-axiomático mas também o conteúdo empírico da geometria euclidiana apareça claramente. Certo é que a representação puramente lógica (axiomática) da geometria euclidiana tem a vantagem de uma maior clareza e simplicidade quando comparada à formulação acima. Porém, ela os tem às custas da renúncia a uma representação da relação entre a construção conceitual e a experiência sensível; mas é justa e exclusivamente sobre esta relação que reside toda a importância da geometria para a Física. O erro fatal em fundamentar a geometria euclideana e o conceito de espaço a ela associado sobre uma necessidade lógica que antecede toda experiência, tem sua origem no fato que a base empírica sobre a qual se apóia sua construção axiomática ficou perdida no esquecimento.

Enquanto pudermos falar da existência de corpos rígidos na natureza, a geometria euclidiana será uma ciência física que deve ser validada pelas experiências sensíveis. Ela concerne à totalidade das leis válidas para o posicionamento relativo de corpos rígidos independente do tempo. Como se pode ver, o conceito físico de espaço, como usado originalmente na Física, está também ligado à existência de corpos rígidos.

Do ponto de vista da Física, a importância central da geometria euclidiana advém do fato que esta reivindica para si a validade de suas afirmações independentemente da natureza particular dos corpos de cujas posições relativas ela trata. Sua simplicidade formal é caracterizada pelas propriedades de homogeneidade e isotropia (e existência de construtos semelhantes).

O conceito de espaço é certamente útil para a geometria em si, ou seja para a formulação das regularidades das posições relativas de corpos rígidos, mas não é imprescindível. Contrariamente, o conceito de tempo objetivo, sem o qual a formulação dos fundamentos da mecânica clássica não seria possível, está atrelado ao conceito do continuum espacial.

A introdução do tempo objetivo consiste em duas proposições mutuamente independentes:

(1) Introdução do tempo local objetivo, no qual a evolução temporal de uma experiência é associada à leitura de um "relógio" , ou seja um sistema fechado com evolução periódica.

(2) Introdução do conceito de tempo objetivo para acontecimentos em todo o espaço, somente através do qual o conceito de tempo local pode então ser generalizado para o conceito de tempo da Física.

Comentário acerca de (1). Em se tratando da elucidação do surgimento ou do conteúdo empírico do conceito de tempo, não me parece ser um petitio principii4 4 Literalmente petição de princípio. Diz-se, em filosofia, do paralogismo que consiste em basear a dedução sobre a tese que se deseja provar, ou seja de incluir a tese entre as premissas adotadas. colocarmos o conceito de evolução periódica à frente do conceito de tempo. Esta concepção é exatamente análoga à precedência do conceito de um corpo rígido (ou quase-rígido) na interpretação do conceito de espaço.

Explicação mais detalhada de (2). A ilusão reinante, até o surgimento da teoria da relatividade, de que do ponto de vista do observador seria claro, a priori, o significado de simultaneidade em relação a acontecimentos espacialmente distantes e com isto o significado de tempo físico, tinha sua origem no fato que em nossa experiência cotidiana podemos desprezar o tempo de propagação da luz. Costumamos assim não diferenciar o "ver simultaneamente" do "acontecer simultaneamente", o que leva ao desaparecimento da diferença entre tempo e tempo local.

Do ponto de vista do significado empírico, a imprecisão que o conceito de tempo da mecânica clássica carrega consigo ficou velada pelas representações axiomáticas, uma vez que estas trataram o conceito de espaço e tempo como fatos independentes das experiências sensíveis. Esta "hipostatização"5 5 Do grego hipóstase, abstração ou ficção falsamente consideradas como providas de significado real. (autonomização) de conceitos não é necessariamente desvantajosa para a Ciência, mas pelo esquecimento da origem dos mesmos cria-se facilmente a ilusão que eles devem ser vistos como necessários e, com isto, imutáveis, o que pode vir a representar um sério perigo para o progresso da Ciência.

Foi uma sorte para a evolução da mecânica e com isso da Física propriamente dita que a imprecisão associada ao conceito de tempo objetivo, no que tange à sua interpreta cão empírica, tenha permanecido oculta para os pensadores que nos antecederam. Totalmente seguros quanto ao real significado da construção espaço-tempo, eles desenvolveram os fundamentos da mecânica da seguinte maneira:

(a) Conceito do ponto material: objetos corpóreos podem ser descritos, com precisão suficiente, como um ponto de coordenadas X1, X2, X3 no que diz respeito a suas posições e movimentos. Descrição de seu movimento (relativo ao "espaço" K0) através da especificação de X1, X2, X3 como funções dadas do tempo.

(b) Princípio da inércia: desaparecimento das componentes da aceleração de um ponto material, quando distante o suficiente de todos os outros.

(c) Lei do movimento (para o ponto material): força = massa × aceleração.

(d) Leis de forças (interação entre pontos materiais).

Diga-se de passagem que (b) é apenas um importante caso especial de (c). Uma teoria de verdade só existe quando as leis de força são especificadas; para que um sistema de pontos que estejam conectados espacialmente e de maneira duradoura por meio de for cas comporte-se como um ponto material, as forças devem satisfazer em primeiro lugar apenas a lei da ação e reação. Junto às leis de força da gravitação de Newton, estas leis fundamentais constituem a base da mecânica clássica dos corpos celestes. Na mecânica de Newton o espaço K0 surge de tal maneira a trazer consigo um novo elemento se comparado ao conceito de espaço definido anteriormente a partir dos corpos rígidos: (para uma dada lei de forças) tanto (b) quanto (c) não podem ser válidas para qualquer K0, mas apenas para aqueles K0 em um estado de movimento apropriado (sistemas inerciais). Com isso imputa-se ao espaço de coordenadas um caráter físico independente, alheio ao conceito puramente geométrico de espaço - um fato que causou significativa preocupação em Newton (o experimento do balde)6 6 Esta imperfeição da teoria só poderia ser derrimida através de uma formulação que fosse válida para todo K 0. Este foi um dos passos que levou à teoria geral da relatividade. Um segundo defeito, do mesmo modo só removido após a teoria da relatividade geral, é que não existe dentro da mecânica uma razão [que justifique] a igualdade da massa inercial e massa gravitacional de um ponto material. [A.E.] .

A mecânica clássica é apenas um esquema geral; ela se torna uma teoria somente quando as leis de força (d) são explicitadas, como o fez Newton, com excepcional sucesso, para a mecânica celeste. Do ponto de vista do objetivo - uma simplicação mais lógica possível dos fundamentos - o fato que as leis de força não possam ser obtidas por uma abordagem lógico-formal, mas sua escolha seja em grande medida arbitrária a priori representa uma deficiência deste método teórico. A lei da gravitação de Newton se distingue devido exclusivamente a seu sucesso quando comparada a outras leis de força concebíveis.

Embora hoje saibamos com certeza que a mecânica clássica falhou como base reinante de toda Física, ela ainda se encontra no centro do pensar físico. A razão disto é que não obstante os importantes avanços obtidos desde então, ainda não nos foi possível chegar a uma nova base da Física, da qual podemos estar seguros que a partir dela toda a multiplicidade de fenômenos pesquisados e subsistemas teóricos bem sucedidos possam ser logicamente deduzidos. Procurarei esboçar sucintamente nas próximas linhas em que ponto nos encontramos.

Primeiramente tentemos esclarecer até que ponto o sistema da mecânica clássica se mostrou adequado como base de toda a Física. Uma vez que o que aqui nos concerne são apenas os fundamentos da Física e suas transformações, não precisamos nos ocupar em especial com o progresso puramente formal da mecânica (equações de Lagrange, equações canônicas, etc.). Apenas uma observação se me parece indispensável: o conceito de "ponto material" é fundamental para a mecânica. Se buscamos agora uma mecânica para um objeto corpóreo que não pode ser tratado como ponto material - o que a rigor vale para todo objeto "sensivelmente apreensível" - então surge a questão: de que maneira devemos imaginar o objeto como sendo formado de pontos e quais as forças que devemos supor agindo entre eles? Se a mecânica deseja reivindicar para si uma completa descrição dos objetos, a colocação desta pergunta é inevitável.

É da tendência natural da mecânica assumir estes pontos materiais bem como as forças que entre eles atuam como sendo imutáveis, uma vez que uma mudança temporal [estaria aquém de seu limite (fronteira) de interpretação teórica]. Disto se conclui que a mecânica clássica necessariamente conduz a uma construção atomística para a matéria. Pode-se ver aqui, de maneira particularmente clara, o quanto epistemólogos se enganam quando acreditam que a teoria advém da experiência por caminhos indutivos, engano este do qual nem o grande Newton pode se safar (hypotheses non fingo)7 7 Não crio hipóteses. .

Do perigo de se afastar de porto seguro ao seguir esta linha de pensamento (atomismo), a Ciência se safou da seguinte maneira: a mecânica de um sistema fica definida ao se especificar sua energia potencial como função de sua configuração. Se porém as forças são tais que garantam a manutenção de certas propriedades de ordenamento da configura cão do sistema, então pode-se descrever esta configura cão, com precisão suficiente, através de um número relativamente pequeno de variáveis de configuração qn; considera-se assim então a energia potencial apenas enquanto dependente destas variáveis (e.g. a descrição da configuração de um corpo efetivamente rígido por meio de seis variáveis).

Um segundo método de aplicação da mecânica que evita a consideração da subdivisão da matéria em seus "verdadeiros" pontos materiais é a mecânica das chamadas massas continuamente distribuídas. Ela é caracterizada pela abstração na qual a densidade de massa e velocidade da matéria são funções contínuas das coordenadas e do tempo e que a parte das forças de interação não explicitamente dadas podem ser entendidas como forças de superfície (tensões) que, por sua vez, são também funções contínuas da posição. A ela pertencem a hidrodinâmica e a teoria da elasticidade de corpos sólidos. Estas teorias evitam a introdução explícita de pontos materiais através de abstrações às quais, dentro do espírito dos fundamentos da mecânica clássica, podemos atribuir apenas um significado aproximativo.

Independentemente de sua grande importância prática, através da ampliação do mundo conceitual matemático estas disciplinas permitiram que se criasse aqueles métodos formais (equações diferenciais parciais) que se mostraram necessários às tentativas posteriores a Newton de buscar uma nova fundamentação de toda a Física.

Estas duas aplicações da mecânica pertencem à chamada física "fenomenológica" , a quem é característico servir-se de conceitos os mais próximos possíveis dos experimentos, mas às custas da ampla renúncia à unidade dos fundamentos. Calor, eletricidade e luz são descritas por meio de variáveis de estados especiais e constantes materiais, além de um estado mecânico. A determinação da dependência temporal mútua de todas estas variáveis era um problema, em sua essência, somente solucionável por métodos empíricos. Vários contemporâneos de Maxwell viam, nesta abordagem, o objetivo final da Física, pois acreditavam que os conceitos empregados seriam passíveis de dedução puramente indutiva a partir das experiências, em função de sua proximidade destas. Stuart Mill e E. Mach representavam, de certo modo, este ponto de vista epistemológico.

Para mim a maior realização da mecânica de Newton está no fato que seu emprego de maneira conseqüente levou à supera cão deste ponto de vista (fenomenológico), mais precisamente na área de fenômenos de calor. Isto se fez através da teoria cinética de gases e principalmente da mecânica estatística. A primeira juntou a equação de estado de gases ideais, a viscosidade, a condutividade de calor, a difusão e fenômenos radioativos dos gases, proporcionando assim a associação lógica de fenômenos que, do ponto de vista empírico, não tinham o mínimo a ver um com o outro. A última nos proporcionou não apenas uma interpretação mecânica dos conceitos e leis da termodinâmica clássica, mas mostrou também o limite de aplicabilidade de suas leis e conceitos. Tal teoria cinética, que em muito suplantou a física fenomenológica no que tange à unidade lógica, nos deu além disso valores específicos para as verdadeiras dimensões de átomos e moléculas, comprovadas por vários métodos independentes e portanto aquém de quaisquer dúvidas. Este progresso decisivo foi obtido às custas de associarmos, a pontos materiais, entidades reais (átomos ou moléculas), cujo caráter construtivo-especulativo era notório; ninguém poderia alimentar a esperança de "perceber diretamente" um átomo. Leis acerca de grandezas de estado observáveis (e.g. temperatura, pressão, velocidade) foram deduzidas a partir dos conceitos fundamentais por meio de cálculos complicados. Assim, através da fundamentação de uma mecânica newtoniana para átomos ou moléculas, a Física inicialmente construída mais "fenomenologicamente" foi reconduzida (ao menos parte dela) a uma base mais distante da experiência, porém mais unificada.

4. O conceito de campo

Se comparada às áreas acima citadas, a mecânica newtoniana foi muito menos bem sucedida quando aplicada à óptica e fenômenos elétricos. Newton bem que tentou explicá-los, remetendo-os, com sua teoria corpuscular da luz, a movimentos de pontos materiais. No entanto, com a teoria sendo forçada cada vez mais a modificações não naturais devido ao surgimento da polarização, da refração e da interferência, a teoria ondulatória de Huygens para a luz se impôs, teoria esta cuja origem se devia primordialmente aos fenômenos ópticos em cristais e à teoria do som - esta última até certo ponto já então elaborada. Inicialmente a teoria huygeniana também se baseava na mecânica clássica. Contudo, fora necessário supor, como portador de todo movimento ondulatório, um éter que permeava todos os corpos e cuja construção, a partir de pontos materiais, não pudera ser explicada por qualquer fenômeno conhecido. Com respeito às forças internas que nele agiam bem como as forças entre ele e os meios "ponderáveis", ninguém era capaz de esclarecer algo, de modo que os fundamentos desta teoria sempre permaneceram obscuros. A verdadeira base era uma equação diferencial parcial, cuja redução a elementos mecânicos se mostrara problemática.

Para a compreensão teórica dos fenômenos elétricos e magnéticos foram introduzidas massas de um tipo especial, entre as quais cogitou-se existir forças de longo alcance, semelhantes às forças de gravitação de Newton. Mas estes tipos especiais de matéria pareciam não vir ao encontro da propriedade fundamental da inércia, e as forças que agiam entre estas massas e a matéria ponderável permaneceram obscuras. A isto se somava seu caráter de polaridade, que não se encaixava no esquema da mecânica clássica. Mais insatisfatória ainda se tornara a base da teoria quando se veio a conhecer os fenômenos eletrodinâmicos, embora estes tenham levado a uma explicação dos fenômenos magnéticos, fazendo portanto a hipótese da massa magnética dispensável. Este avanço teve por preço a complicação do tipo de forças de interação entre massas elétricas em movimento, que tiveram que ser postuladas.

A salvação desta situação desagradável por meio das teorias de Faraday e Maxwell para o campo elétrico representou, sem sombra de dúvida, a mais profunda revolução que os fundamentos da Física experimentaram desde Newton. Novamente foi um passo no sentido de uma especula cão construtiva, aumentando a distância entre os fundamentos da teoria e o sensivelmente vivenciado. A existência do campo se manifesta apenas quando corpos carregados eletricamente nele são introduzidos. As equações diferenciais de Maxwell combinam os quocientes diferenciais de tempo e espaço dos campos elétrico e magnético. As massas elétricas são apenas locais de divergência não nula do campo elétrico. A luz surge como processos eletromagnéticos ondulatórios do campo no espaço.

Além disso, Maxwell tentou explicar sua teoria de campo através de um modelo mecânico para o éter. Porém tais tentativas foram lentamente sendo relegadas a um segundo plano com o surgimento da representação de Heinrich Hertz, representação esta expurgada de quaisquer hipóteses desnecessárias e que levou o conceito de campo a assumir o papel fundamental na teoria, do mesmo modo que a massa pontual o era na mecânica newtoniana. Isto valia porém apenas para os campos eletromagnéticos no espaço vazio.

Para o interior da matéria a teoria era, num primeiro momento, ainda bastante insatisfatória, na medida em que aí era necessário introduzir dois vetores elétricos ligados por meio de uma relação dependente da natureza do meio e inacessível a quaisquer análises teóricas. Algo análogo valia para o campo magnético bem como para a relação entre densidade de corrente elétrica e campo.

H.A. Lorentz achou uma saída desta situação, indicando simultaneamente o caminho para uma eletrodinâmica de corpos em movimento até certo ponto livre de arbitrariedades. Sua teoria era construída sobre as as seguintes hipóteses básicas.

O local de definição do campo é, em todo lugar (inclusive no interior dos corpos ponderáveis) o espaço vazio. A participação da matéria nos processos eletromagnéticos advém apenas do fato que as partículas elementares da matéria carregam cargas elétricas invariáveis e assim estão, por um lado, sujeitas a efeitos ponderomotrizes e, por outro, agem criando campos. As partículas elementares obedecem às leis de movimento de Newton para os pontos materiais.

Sobre esta base H.A. Lorentz chegou a uma síntese da mecânica newtoniana e da teoria de campo maxwelliana. O ponto fraco desta teoria estava no fato que ela tentava determinar os acontecimentos através da combinação de equações diferenciais parciais (as equações de campo maxwellianas para o espaço vazio) e equações diferenciais totais (equações do movimento de pontos), o que obviamente não era natural. O insatisfatório desta teoria mostrou-se, extrinsicamente, no fato que era necessário presumir que as partículas tinham um tamanho finito, para que assim os campos em suas superfícies não se tornassem infinitamente grandes. Esta teoria também era inconclusiva no que diz respeito à natureza das enormes forças que mantinham as massas elétricas fixas em cada partícula. H.A. Lorentz aceitou inicialmente estas deficiências de sua teoria, por ele bem conhecidas, para poder assim descrever corretamente, ao menos em linhas gerais, os fenômenos.

Além disso a seguinte consideração apontava para além do âmbito da teoria lorentziana: nas proximidades de um corpo eletricamente carregado existe um campo magnético, o qual (aparentemente) contribui para a sua massa inercial. Não deveria então ser toda a inércia de uma partícula explicada eletromagneticamente? Uma resposta a esta pergunta só seria satisfatória se a partícula pudesse ser interpretada como solução regular das equações diferenciais parciais eletromagnéticas. As equações de Maxwell não admitem no entanto, em sua forma original, tal interpretação, pois as soluções correspondentes apresentam uma singularidade. Os teóricos procuraram então, durante um longo tempo, atingir este objetivo através de uma modificação das equações de Maxwell. Seus esforços no entanto não foram coroados de sucesso e o objetivo de construir uma teoria eletromagnética da matéria calcada exclusivamente no conceito de campo ficou por se cumprir, embora em princípio nada pudera ser levantado contra esta possibilidade. O que afugentou os físicos de tentativas posteriores nesta direção foi a falta de um método sistemático que levasse a uma solução. A mim porém parece certo: na base de uma teoria de campos conseqüente, não pode haver o conceito de campo ao lado do conceito de partícula; toda a teoria deve ser fundamentada unicamente sobre equações diferenciais parciais e suas soluções livres de singularidades.

5. A teoria da relatividade

Não há método indutivo que conduza aos conceitos fundamentais da Física. O desconhecimento deste fato foi o erro filosófico básico de muitos pesquisadores do século XIX; ele foi certamente o motivo pelo qual a teoria molecular e a teoria de Maxwell só lograram se impor tardiamente. O pensamento lógico é necessariamente dedutivo e baseado em conceitos hipotéticos e axiomas. Como podemos esperar que a escolha destes últimos dependa da nossa esperança na confirmação de suas consequências?

O caso mais propício parece obviamente ser quando as novas premissas básicas são sugeridas pelo próprio mundo das experiências. A hipótese da não existência de um moto perpétuo como fundamento da termodinâmica é um exemplo de uma hipótese de partida sugerida pela experiência; do mesmo modo o princípio da inércia de Galileu. Deste tipo também são as hipóteses fundamentais da teoria da relatividade, a qual levou a uma ampliação e a um aprofundamento inimagináveis da teoria de campo e à superação dos fundamentos da mecânica clássica.

Os sucessos da teoria de Maxwell-Lorentz deram grande confiança quanto à validade das equações eletromagnéticas do vácuo e, em particular, à afirmação que a luz se propaga "no espaço" com uma velocidade constante c definida. Mas seria essa afirmação da constância da velocidade de propagação da luz válida para sistemas inerciais arbitrários? Não fosse este o caso, então um sistema inercial específico ou mais precisamente um específico estado de movimento (de um corpo de referência) seria distinguível dentre todos os outros. Todos os fatos experimentais mecânicos e opto-eletromagnéticos depunham no entanto contra isto.

Era assim justificável elevar a validade da lei da constância da velocidade de propagação da luz para todos os sistemas inerciais à categoria de princípio. Disto seguia que as coordenadas espaciais X1, X2, X3 e o tempo X4, na passagem de um sistema inercial para outro, deveriam modificar-se de acordo com as "transformações de Lorentz" , que são caracterizadas pela invariância da expressão

(quando se escolhe a unidade de tempo de tal modo que a velocidade da luz c se torna igual a 1).

Deste modo o tempo perdeu seu caráter absoluto e foi classificado como uma grandeza algebricamente (quase) equivalente às coordenadas "espaciais"; o caráter absoluto do tempo e em particular da simultaneidade foi derrubado e a descrição quadridimensional introduzida como a única adequada.

Além do mais, para que com isto a equivalência de todos os sistemas inerciais com respeito aos fenômenos da natureza seja válida, é necessário que todo sistema de equações físicas que exprimam leis gerais seja invariante face às transformações de Lorentz. A execução desta exigência forma o conteúdo da teoria especial da relatividade.

Esta teoria, ainda que compatível com as equações de Maxwell, é irreconciliável com os fundamentos da mecânica clássica. Na verdade as equações de movimento de um ponto material podem ser de tal maneira modificadas (e com elas as expressões para o momento e energia cinética da massa pontual) de modo a tornar a teoria satisfatória. Mas o conceito de for ca de interação (e com ela o conceito de energia potencial do sistema) perde seu sentido, por estar assentado sobre o conceito da simultaneidade absoluta. No lugar da força surge o campo, governado por equações diferenciais.

Uma vez que esta teoria só permite interações através de campos, ela demanda também uma teoria de campos para a gravitação. E não é realmente difícil criar tal teoria na qual, como na teoria do campo gravitacional de Newton, chega-se a um escalar que satisfaça uma equação diferencial. Porém, os fatos experimentais expressos na teoria da gravitação de Newton levam a um caminho diferente daquele da teoria da relatividade geral.

É uma característica insatisfatória da mecânica clássica o fato que a mesma constante de massa surge de duas maneiras diferentes nos fundamentos; como massa inercial nas equações de movimento e como massa gravitacional na lei de gravitação. Como conseqüência disto a aceleração de um corpo em um campo gravitacional puro independe do material; ou, em um sistema de coordenadas uniformemente acelerado (em relação a um "sistema inercial") os movimentos se sucedem como num campo gravitacional homogêneo (relativamente a um sistema de coordenadas "em repouso"). Se presumirmos que esta equivalência é completa nestes dois casos, chega-se então a uma adequação do raciocínio teórico ao fato que é a igualdade das massas inercial e gravitacional.

Com isto desaparece porém a preferência de princípio dos "sistemas inerciais". Transformações não lineares das coordenadas (X1, X2, X3, X4) são permitidas em pé de igualdade. Se aplicarmos uma transforma cão deste tipo num sistema de coordenadas da teoria especial da relatividade, então sua métrica

se transforma em uma métrica geral (riemanniana) da forma

ds2 = gm n dxm dxn (somados sobre µ e n)

onde os gm n, simétricos em µ e n, são certas funções de x1...x4 que descrevem não apenas as propriedades métricas como também o campo gravitacional do espaço em relação ao novo sistema de coordenadas.

Este avanço na interpretação dos fundamentos mecânicos teve porém um preço, como uma análise mais detalhada nos ensina: as novas coordenadas não podem mais ser interpretadas diretamente como resultado de medidas em corpos rígidos ou relógios, como o eram no sistema original (um sistema inercial com campo gravitacional nulo).

A passagem para a teoria da relatividade geral é agora obtida com a hipótese que a representação das propriedades do campo no espaço através de funções gmn (ou através de uma métrica de Riemman), também se aplicam no caso geral, no qual não existe um sistema de coordenadas relativo ao qual a métrica assume uma simples forma quase-euclidiana.

As coordenadas exprimem agora não mais relações métricas, mas antes apenas propriedades de vizinhança dos objetos descritos, cujas coordenadas pouco diferem umas das outras. Todas as transformações não singulares de coordenadas são permitidas. Apenas aquelas equações que sejam covariantes por transformações deste tipo têm sentido como expressões de leis naturais gerais (postulado da covariância geral).

O primeiro objetivo da teoria geral da relatividade era uma formulação provisória que, através da renúncia a algumas exigências de coerência interna, estivesse de uma maneira mais simples possível ligada aos "fatos vivenciados". Ao nos restringirmos à mecânica gravitacional pura, a teoria da gravitação de Newton serve como modelo. Esta versão provisória pode ser assim caracterizada:

(1) O conceito de ponto material e sua massa são mantidos. A ele é dado uma lei de movimento que representa a tradução da lei de inércia na linguagem da teoria geral da relatividade. Esta lei é um sistema de equações diferenciais totais, o sistema da linha geodésica.

(2) No lugar da lei de interação gravitacional newtoniana entra um sistema de equações diferenciais covariantes escrito da forma mais simples possível para o tensor gmn. Este sistema surge ao igualarmos a zero o tensor de curvatura de Riemann contraído uma vez (Rmn = 0).

Esta formulação nos permite tratar do problema dos planetas, ou mais precisamente do problema do movimento de pontos materiais de massa praticamente nula na presença de um campo gravitacional (com simetria central) gerado por uma massa pontual imaginada como estando em "repouso". Ela não considera a reação dos pontos materiais "móveis" sobre o campo gravitacional, nem como a massa central o gera.

É a seguinte analogia com a mecânica clássica que nos mostra o o caminho para completar a teoria: coloca-se como equação de campo

onde R é o escalar da curvatura de Riemann e Tik é o tensor de energia da matéria em uma representação fenomenológica. O lado esquerdo é escolhido de tal forma que sua divergência seja identicamente nula. O desaparecimento da divergência do lado direito que daí segue nos fornece assim as "equações de movimento" da matéria na forma de equações diferenciais parciais, no caso em que o Tik introduz a mais apenas quatro funções independentes entre si para a descrição da matéria (por exemplo densidade, pressão e componentes da velocidade, onde entre as últimas existe uma identidade e entre pressão e densidade uma equação de estado).

Nesta formulação, toda a mecânica gravitacional é reduzida à solução de um único sistema de equações diferenciais parciais covariantes. Esta teoria evita todas as deficiências internas que imputamos aos fundamentos da mecânica clássica; ela é suficiente - até onde sabemos - para a representação dos fatos observados na mecânica celeste. Ela se assemelha porém a um edifício no qual uma ala é feita de primoroso mármore (lado esquerdo da equação) enquanto a outra foi construída com madeira inferior (lado direito da equação). A representação fenomenológica da matéria é de fato apenas uma tosca substituta de uma representação que faça juz a todas as propriedades conhecidas da mesma.

Não há dificuldade alguma em conectar a teoria do campo eletromagnético de Maxwell com a teoria do campo gravitacional se nos limitarmos ao espaço sem matéria ponderável e sem densidade elétrica. Basta substituir o tensor Tik no lado direito da equação acima pelo tensor de energia do campo eletromagnético no vácuo e associar o sistema de equações assim modificadas às equações gerais covariantes de Maxwell para o campo no vácuo. Haverá então entre todas estas equações várias identidades diferenciais em número suficiente para garantir sua compatibilidade. Devemos aqui acrescentar que esta propriedade formal necessária de todo o conjunto de equações deixa em aberto a escolha do sinal de Tik, o que se mostrou posteriormente ser importante.

A aspiração pela maior unidade possível dos fundamentos da teoria deu origem a inúmeras tentativas de trazer, sob um único ponto de vista formal, o campo eletromagnético e gravitacional. Aqui devemos citar em especial a teoria penta-dimensional de Kaluza e Klein. Depois de criteriosa ponderação sobre esta possibilidade eu creio ser no entanto mais correto aceitar a citada falta de coerência interna da teoria original, pois a mim a totalidade das hipóteses na base da teoria penta-dimensional não parecem conter menos arbitrariedades que a teoria original. O mesmo vale para a versão projetiva da teoria, desenvolvida de maneira cuidadosa principalmente por von Dantzig e Pauli.

As últimas discussões relacionaram-se exclusivamente à teoria dos campos livres de matéria. Como obter daqui agora uma teoria completa da matéria constituída por átomos? Tal teoria não deve ter singularidades, pois caso contrário as equações diferenciais não definiriam completamente o campo total. A representação teórica da matéria por meio de campos constitui-se num problema para a teoria de campos da relatividade geral, tanto quanto ela o foi originalmente para a teoria de Maxwell.

Aqui também a tentativa de uma construção teórica de campos para partículas aparentemente leva a singularidades. Aqui também se procura superar essa situação desagradável pela introdução de novas variáveis de campo bem como ao se ampliar e tornar mais complexo o sistema de equações. Há pouco porém descobri, junto ao Sr. Rosen, que a combinação mais simples de equações de campo gravitacional e elétrico acima indicada produz soluções de simetria central, que admitem representações livres de singularidades (as conhecidas soluções de Schwarzschild com simetria central para o campo gravitacional puro e as soluções de Reissner para o campo elétrico considerando-se seu efeito gravitacional). Sobre isto reportaremos brevemente no próximo parágrafo. Uma teoria de campos pura para a matéria e suas interações, livre de hipóteses adicionais e para cuja verificação frente aos experimentos nada se contrapõe, a não ser, entretanto sérias complicações puramente matemáticas, parece-nos factível.

6. Teoria quântica e o fundamento da Física

Os físicos teóricos da geração atual têm esperança na construção de um novo alicerce teórico da Física através do emprego de conceitos fundamentais que se desviem consideravelmente daqueles das teorias de campo até o momento consideradas. A razão disto está no fato que se toma por necessário empregar novos pontos de vista para a representação matemática dos chamados fenômenos quânticos.

Enquanto que a falha da mecânica clássica desvendada pela teoria da relatividade está relacionada à finitude da velocidade da luz (o não ser "¥"), descobriu-se, no início de nosso século, outros tipos de incongruências entre as conseqüências da mecânica e os fatos experimentais que estavam relacionados à finitude (o não ser "0") da constante de Planck h. Enquanto que a mecânica molecular exigia, essencialmente, uma diminuição da densidade de radiação (monocromática) e do calor específico dos sólidos proporcional à queda da temperatura absoluta, a experiência mostrava uma diminuição muito mais abrupta destas grandezas energéticas com a temperatura. Para explicar teoricamente este comportamento, foi necessário admitir que a energia de sistemas mecânicos não pode assumir valores quaisquer mas antes certos valores discretos, cujas expressões matemáticas sempre dependiam da constante h de Planck. Também para a teoria dos átomos (teoria de Bohr) esta concepção era essencial. Para a transição entre estes estados - com ou sem emissão ou absorção de radiação - não era possível estabelecer leis causais, mas tão somente leis probabilísticas. O mesmo valia para os processos de decaimento radioativo de átomos, estudados aproximadamente na mesma época de maneira mais minuciosa. Durante mais de duas décadas os físicos tentaram em vão encontrar uma explicação unificada para o caráter quântico de sistemas e processos. Tal explica cão só foi obtida porém há aproximadamente uma década, por dois métodos teóricos que, aparentemente, eram diferentes em tudo. Um destes nos conduz a Heisenberg e Dirac e o outro a de Broglie e Schrödinger. A equivalência matemática de ambas as teorias foi logo reconhecida por Schrödinger. Procurarei aqui esboçar a linha de pensamento de Schrödinger e de Broglie, que é mais próxima da linha de pensamento do físico, e aí tecer algumas considerações gerais.

A primeira pergunta é: como podemos associar uma sequência discreta de valores de energia Hs a um sistema definido no sentido da mecânica clássica (a função energia é uma função dada das coordenadas qr e dos momentos canonicamente conjugados pr)? A constante de Planck h associa ao valor de energia Hs a freqüência Hs/h. Basta então associar ao sistema uma seqüência discreta de valores de freqüência. Isso nos lembra que na acústica surge o caso onde associamos uma seqüência discreta de valores de freqüências a uma equação diferencial parcial linear (para condições de contorno dadas), a saber as soluções periódicas senoidais. Schrödinger colocou-se assim a tarefa de associar a uma dada função da energia E(qr,pr) uma equação diferencial parcial na variável Y, e na qual os qr e t são as variáveis independentes. E isto ele logrou conseguir (para uma função complexa Y) de tal maneira que os valores teóricos da energia (Hs) que seguiam da teoria estatística surgiam de maneira satisfatória a partir das soluções periódicas da equação.

Além disso mostrou-se impossível associar um movimento de um ponto material no sentido que a mecânica lhe atribuía a uma solução específica Y(qr ,t) da equação de Schrödinger, ou seja, a função Y não representa, ou ao menos nunca precisamente, os qr como função do tempo t. Porém se mostrou factível interpretar a função Y, segundo Born, da seguinte maneira: Y (o quadrado do valor absoluto da função complexa Y) é a densidade de probabilidade, para o ponto observado, no espaço de configuração dos qr, para o valor de tempo t. Embora um tanto imprecisamente, mas ao menos de maneira mais palpável, podemos caracterizar o conteúdo da equação de Schrödinger assim: ela determina como a densidade de probabilidade de um ensemble de sistemas estatísticos varia com o tempo no espaço de configura cões. Em poucas palavras: a equação de Schrödinger determina a variação temporal de Y como função dos qr.

Deve-se dizer que os resultados da teoria contêm a mecânica de pontos como caso limite, quando o comprimento da onda que surge da solução da equação de Schrödinger é em todo o lugar tão pequeno, que a energia potencial praticamente permanece inalterada pelo deslocamento de um comprimento de onda. Neste caso pode-se demonstrar o seguinte: escolhemos uma região G0 no espaço de configuração de tal modo que embora grande (em todas as direções) se comparada ao comprimento de onda, ela é ainda pequena em relação às dimensões do espaço de configurações, que é quem determina a escala. Isso nos permite escolher uma função Y para um tempo inicial t0 de tal modo que ela se anule fora de G0 e, de acordo com a equação de Schrödinger, comporte-se de modo a manter esta propriedade de maneira aproximada em tempos futuros, enquanto que a região G0 desloca-se para uma outra região G no tempo t. Pode-se assim falar do "movimento" da região G como um todo e aproximá-lo do movimento de um ponto no espaço de configurações. Este movimento coincide então com aquele que sai das equações da mecânica clássica.

Experimentos de interferência com feixes de partículas nos fornecem uma brilhante prova de que o caráter ondulatório do movimento, como supõe a teoria, condiz com a realidade. Além disso a teoria conseguiu, com facilidade, representar as leis estatísticas de transição de um estado quântico para outro, em um sistema sob ação de forças externas, fato que do ponto de vista da mecânica clássica assemelha-se a um milagre. As forças externas são representadas por pequenas adições à energia potencial dependentes do tempo. Ao passo que na mecânica clássica tais adições permitem apenas pequenas mudanças no sistema, na mecânica quântica elas podem provocar variações arbitrariamente grandes, mas com probabilidade proporcionalmente menor - na mais perfeita harmonia com a experiência. Até mesmo uma compreensão das leis do decaimento radioativo nos é fornecida, ao menos em linhas gerais, por esta teoria.

Jamais deve ter sido criada uma teoria que nos tenha proporcionado uma chave para a interpretação e cálculo de um tão variado conjunto de observações experimentais como a mecânica quântica. Apesar disto, acredito ser ela propensa a nos conduzir ao erro na busca por uma fundamentação unificada da Física; ela é, na minha opinião, uma representação incompleta das entidades reais que podem ser construídas a partir dos conceitos fundamentais de ponto material e força (correções quânticas da mecânica clássica), ainda que a única apropriada. O caráter estatístico (incompleteza) das leis advém obrigatoriamente da incompleteza da representação. Quero agora fundamentar esta minha opinião.

Primeiro pergunto: até que ponto a função Y representa um estado real de um sistema mecânico? Sejam Yr soluções periódicas da equação de Schrödinger (ordenadas de acordo com valores crescentes de energia). Deixarei momentaneamente em aberto a pergunta até que ponto os Yr, individualmente, são descrições completas de estados físicos. Imaginemos primeiramente um sistema no estado Y1 de energia e1. Então, sobre o sistema atua, por um tempo limitado, uma pequena força perturbadora. Obtém-se então a partir da equação de Schrödinger, para um tempo posterior, uma equação Y da seguinte forma

onde os cr são constantes (complexas). Se os Yr forem "normalizados" , então |c1| será praticamente igual a 1, |c2| e os demais pequenos quando comparados a 1. Pode-se agora perguntar: Y descreve um estado real do sistema? Se sim, então não podemos fazer outra coisa a não ser associar uma energia definida a este estado8 8 Pois a energia total de um sistema (em repouso) é, de acordo com um bem estabelecido resultado da teoria da relatividade, igual a sua inércia, e esta deve ter um valor certo e bem definido. [A.E.] , e na verdade uma que seja tal a superar em um pouco 1 (de qualquer modo 1 < < 2). Esta hipótese no entanto contradiz os experimentos de colisões de elétrons conduzidos primeiro por J. Franck e G. Hertz, se considerarmos ainda a nosso favor a prova de Millikan a respeito da natureza discreta da eletricidade. Destas experiências segue que, para um dado sistema, não existem estados de energia que se encontrem entre valores quânticos. Daí segue que nossa função Y não descreve em absoluto um estado único do sistema, mas representa uma afirmação estatística na qual os cr têm o significado de probabilidades dos valores de energia individuais. Por isso me parece claro que a interpretação estatística de Born acerca das afirmações da teoria quântica é a única possível: a função Y não descreve, em absoluto, um estado que poderia ser aquele de um sistema individual. Ela está antes relacionada a vários sistemas, a um "ensemble de sistemas" no sentido da mecânica estatística. Se a função Y, exceto em casos especiais, só nos proporciona afirmações estatísticas a respeito de grandezas mensuráveis, então isso não ocorre apenas devido ao fato que o processo de medição introduz elementos desconhecidos e apenas estatisticamente apreensíveis, mas antes pelo fato que a função Y não descreve, em hipótese alguma, o estado de um único sistema. A equação de Schrödinger determina as mudanças temporais que o ensemble de sistemas experimenta, seja ele com, seja ele sem influência externa sobre o sistema individual.

Esta interpretação também elimina um paradoxo que eu, junto a dois colegas, recentemente apresentei e que está relacionado à seguinte situação9 9 Einstein refere-se aqui a seu famoso trabalho com Boris Podolski e Nathan Rosen - O paradoxo EPR - publicado na Physical Review 47, 777 (1935). :

Seja um sistema mecânico formado por dois subsistemas A e B que interagem apenas durante um período limitado de tempo e seja a função Y, anterior à interação, conhecida. Então a equação de Schrödinger nos dá a função Y depois da interação. Determina-se subseqüentemente o estado físico do subsistema A através da medição mais completa possível. A mecânica quântica permite então que determinemos a função Y do sistema parcial B a partir do resultado da medida e da função Y do sistema total. Isto produz porém um resultado que depende de qual grandeza de estado de A foi medida (e.g. coordenadas ou momenta). Uma vez que apenas um estado físico de B pode existir após a interação, o qual não seria razoável imaginar como dependente do tipo de medida que faço no sistema A dele separado, conclui-se que a função Y não pode ser associada univocamente a um estado físico. Essa associação de várias funções Y ao mesmo estado físico do sistema B mostra, novamente, que a função Y não pode ser interpretada como uma descrição (completa) de um estado físico (de um sistema individual). A associação da função Y a um ensemble de sistemas elimina aqui também qualquer dificuldade10 10 A tomada de uma medida de A significa então a transição para um ensemble de sistemas mais estreito. Este (e também sua função Y) depende do modo como este estreitamento do ensemble de sistemas foi feito. [A.E.] .

Que a mecânica quântica permita deduzir de maneira tão simples resultados a respeito de transições (aparentemente) descontínuas de um estado total para outro, sem na verdade fornecer uma representação dos processos em si, está relacionado ao fato que na verdade a teoria não opera com o sistema individual mas sim com um ensemble de sistemas. Os coeficientes cr de nosso primeiro exemplo variam realmente muito pouco sob a ação de forças externas. Entende-se, através desta interpretação da mecânica quântica, como ela facilmente esclarece o fato que forças perturbativas fracas podem levar a mudanças arbitrariamente grandes no estado físico de um sistema. Na verdade estas forças perturbativas criam apenas mudanças relativamente pequenas na densidade estatística do ensemble de sistemas, ou seja apenas uma mudança infinitamente pequena da função Y, cuja descrição matemática nos oferece dificuldades muito menores que a representação matemática das mudanças finitas que uma parte do sistema individual sofre. Seguramente nesta abordagem o processo que ocorre no sistema individual fica totalmente indeterminado; ele é completamente eliminado da representação através da abordagem estatística.

Agora no entanto eu pergunto: algum físico realmente acredita que nós nunca conseguiremos perscrutar estas importantes mudanças nos sistemas individuais, em sua estrutura e relação causal, não obstante o fato de que estes processos singulares tornaram-se tão experimentalmente próximos de nós graças às maravilhosas descobertas da câmara de Wilson e do contador Geiger? Acreditar nisto sem cair em contradição é, na verdade, possível, mas se contrapõe tão vivamente ao meu instinto científico, que não posso deixar de lado a procura por uma interpretação mais completa.

A estas considerações juntam-se outras de diferentes tipos, que por sua vez também depõem contra o fato que o método trilhado pela mecânica quântica seja apropriado para propiciar um fundamento útil a toda a Física. Na equação de Schrödinger o tempo absoluto ou a energia potencial desempenham um papel chave, conceitos porém que a teoria da relatividade mostrou serem inadmissíveis por princípio. Se quisermos nos libertar disto devemos, no lugar das forças de interação, tomar por base os campos e suas leis. E isto nos leva a transportar os métodos estatísticos da mecânica quântica para os campos, ou seja sistemas com infinitos graus de liberdade. Embora as tentativas até o momento tenham se restringido a equações lineares, que pelos resultados da relatividade geral não devem bastar, as complicações surgidas nos engenhosos esforços empreendidos até agora são assustadoramente grandes. E elas devem se acumular, se as exigências da teoria da relatividade geral tiverem que ser obedecidas, exigências cuja legitimidade de princípio ninguém questiona.

Foi porém chamado a atenção o fato que a introdução de um continuum espaço-temporal seria provavelmente antinatural em virtude da estrutura molecular de todos os eventos em pequena escala. Talvez o sucesso do método de Heisenberg aponte para uma descrição da natureza puramente algébrica, através da eliminação de funções contínuas na Física. Mas então deve-se por princípio abrir mão do emprego do continuum espaço-tempo. Não é de todo impensável imaginar que a engenhosidade humana um dia achará métodos que tornem possível a transposição deste caminho. Por ora, no entanto, este projeto assemelha-se à tentativa de respirar no vácuo.

Não resta dúvida que a mecânica quântica capturou uma belíssima porção da Verdade e que ela será um banco de provas de uma futura fundamentação teórica da Física. Ela também terá que ser obtida como limite destes fundamentos - mais ou menos como a eletrostática o é das equações do campo eletromagnético de Maxwell ou a termodinâmica, da mecânica clássica. Mas acredito que na procura por este fundamento a mecânica quântica não sirva como ponto de partida, tanto quanto não se pode chegar aos fundamentos da mecânica fazendo o caminho inverso, ou seja partindo da termodinâmica e da mecânica estatística.

Em face desta situação parece-me totalmente justificável considerar seriamente a pergunta, se os fundamentos da Física de campos não pode sim compatibilizar-se com os fenônemos quânticos. Afinal, com o aparato matemático que hoje dispomos, este é o único fundamento que se deixa compatibilizar com o postulado da relatividade geral. A crença entre os físicos contemporâneos na inutilidade de tal tentativa provavelmente deve estar relacionada à crença não fundamentada que esta teoria deveria levar, em primeira aproximação, às equações da mecânica clássica para o movimento de partículas, ou pelo menos a equações diferenciais totais. Na verdade porém, do ponto de vista da teoria de campos, não se conseguiu até hoje qualquer representação para corpúsculos11 11 Einstein usa "Korpuskel" (corpúsculo) e também "Teilchen" (partícula). Decidiu-se manter a diferenciação no texto traduzido. que seja livre de singularidades, além do que não podemos dizer nada a respeito do comportamento de tais objetos. Uma coisa porém é certa: se uma teoria de campos nos der uma representação de corpúsculos livre de singularidades, então o comportamento temporal destes será determinado somente por equações diferenciais do campo.

7. Relatividade e corpúsculos

Quero agora mostrar que segundo a teoria geral da relatividade há soluções das equações de campo livres de singularidades e que podem ser interpretadas como representações de corpúsculos. Restringir-me-ei aqui a partículas neutras, uma vez que recentemente, junto com o Sr. Rosen, tratei deste assunto em outro lugar de maneira minuciosa e porque também é possível representar o essencial com este exemplo.

O campo gravitacional é descrito de maneira completa pelo tensor gmn. Nos símbolos de três índices também aparecem as componentes do tensor contravariante gmn, as quais são definidas pelos subdeterminantes dos gmn normalizados pelo determinante g (= |gab|). Para que os Rik possam ser construídos e permaneçam finitos, não basta que na vizinhança de qualquer ponto do continuum haja um sistema de coordenadas no qual os gmn e seus primeiros quocientes diferenciais sejam contínuos e diferenciáveis, mas também que o determinante g nunca se anule. Esta última limitação desaparece, no entanto, se substituirmos a equação diferencial Rik = 0 por g2Rik = 0, cujo lado esquerdo é constituído de funções racionais inteiras dos gik e suas derivadas.

Estas equações têm, como solução, aquelas de simetria central descobertas por Schwarzschild

Esta solução tem uma singularidade em r = 2m, pois o fator de dr2 (g11) se torna ¥ nesta hipersuperfície. Se substituirmos porém a variável r por r de acordo com

r2 = r – 2m

obtém-se

Esta solução comporta-se regularmente para todo r. O desaparecimento do fator de dt2 (g44) para r = 0 faz com que o determinante de g se anule naquele ponto mas, em função da expressão escolhida para as equações de campo, isto não implica numa singularidade.

Ao variar r entre -¥ e +¥, r varia entre +¥ até r = 2m e depois de volta a ¥, enquanto todos os r para os quais r < 2m correspondem a valores imaginários de r. A solução de Schwarzschild transforma-se assim numa solução regular, que se pode representar como um espaço físico composto de duas "cascas" idênticas que se tocam na hipersuperfície r = 0 ou r = 2m, sobre a qual o determinante g é nulo. Chamaremos uma conexão deste tipo entre as duas cascas (idênticas) de "ponte"12 12 A ponte aqui citada é também conhecida na literatura especializada como Ponte de Einstein-Rosen ou, mais recentemente, como buraco de minhocas ( wormholes). . A existência de uma "ponte" entre duas cascas em uma região finita do espaço corresponde à descrição de uma partícula material livre de singularidades.

A solução do problema do movimento de partículas neutras parece evidentemente recair no problema de determinar soluções das equações gravitacionais (escritas livres de denominadores) que apresentem várias pontes.

A teoria há pouco esboçada só é compatível desde seu princípio com a estrutura atômica da matéria se a "ponte" for, em sua natureza, um elemento discreto. Também entende-se que a constante de massa m de uma partícula neutra deva ser obrigatoriamente positiva, uma vez que as equações de Schwarzschild não possuem soluções livres de singularidade para valores de m negativos. Só após um estudo do problema-das-muitas-pontes poder-se-á mostrar se o método teórico fornece uma explicação para a igualdade das massas das partículas da natureza verificada empiricamente e se ele fará juz aos fatos explicados de maneira tão maravilhosa pela mecânica quântica.

De modo análogo pode-se mostrar que as equações combinadas da gravitação e eletricidade (com a escolha apropriada do sinal do termo elétrico nas equações gravitacionais) reproduzem uma representação-de-ponte livre de singularidades para o corpúsculo elétrico. A solução mais simples deste tipo é aquela para uma partícula elétrica sem massa gravitacional.

Enquanto não conseguirmos superar as dificuldades matemáticas para a solução do problema-das-muitas-pontes, é impossível afirmar algo a respeito da utilidade da teoria do ponto de vista físico. Esta é porém de fato a primeira tentativa de construção conseqüente de uma teoria de campos para a qual existe a possibilidade de que ela descreva as propriedades da matéria. A favor desta tentativa deve-se também afirmar que, sob o ponto de vista de nosso conhecimento matemático contemporâneo, ela se apóia sobre as mais simples equações de campo da relatividade geral.

Sinopse

A Física é um sistema de pensamento lógico em desenvolvimento, cuja base não pode ser destilada das experiências por um método indutivo mas só pode ser obtida através da livre invenção. A legitimidade (valor de veracidade) do sistema reside na confirmação, pela experiência sensível, das afirmações deduzidas, onde a relação entre a primeira e a última só pode ser apreendida intuitivamente. O desenvolvimento se dá em direção à crescente simplificação do fundamento lógico. Para nos aproximarmos deste objetivo, devemos aceitar que a base lógica se torne cada vez mais distante das experiências e o caminho do raciocínio desde os fundamentos até às conseqüências deles deduzidas, que têm nas experiências sensíveis seus correlatos, se torne cada vez mais difícil e longo.

Nosso objetivo foi esboçar, da maneira mais breve possível, o desenvolvimento dos conceitos fundamentais através de sua dependência no material da experiência, e o esforço na busca pela perfeição interna do sistema. A mim parece que o estado atual seria clarificado através desta abordagem (uma apresentação histórico-esquemática tem as cores pessoais de quem a escreve; isto é inevitável).

Procurei mostrar como o conceito de objeto corpóreo, espaço, tempo subjetivo e objetivo dependem uns dos outros e da natureza da experiência. Na mecânica clássica os conceitos de tempo e espaço são autônomos; o conceito de objeto corpóreo é substituído, nos fundamentos, por aquele de ponto material, através do qual a mecânica torna-se, em suas bases, atomística. Ao tentar fazer da mecânica fundamento de toda a Física, luz e eletricidade introduzem dificuldades insuperáveis. Isto leva à teoria de campos para a eletricidade e mais além à tentativa de fundamentar a Física sobre o conceito de campo (depois de uma tentativa de compromisso com a mecânica clássica). Esta tentativa leva à teoria da relatividade (a sublimização do conceito de espaço e tempo para um continuum com estrutura métrica).

Procurei ainda demonstrar o porquê, na minha opinião, da mecânica quântica não parecer apta a nos fornecer um alicerce útil da Física: chega-se a contradições quando se aceita a descrição quântica como uma descrição completa de sistemas físicos individuais e de processos.

Por outro lado a teoria de campos não foi ainda capaz de nos propiciar uma teoria da estrutura molecular da matéria e dos fenômenos quânticos. Mostrou-se porém que a crença na incapacidade da teoria de campo em solucionar estes problemas com seus métodos está assentada sobre preconceitos.

Nota do Tradutor

Manteve-se nesta tradução as notas de rodapé (indicadas pelas iniciais [A.E.]) bem como as aspas e termos em itálico do original. Alguns coloquialismos do autor foram substituídos por expressões equivalentes de nosso idioma. Notas de rodapé foram introduzidas quando necessário. A presente tradução, feita diretamente do alemão, foi cotejada, após seu término, com a versão inglesa do livro Einstein, Ideas and Opinions, Crown, Nova Iorque, 1954 e a brasileira em Albert Einstein: Escritos da Maturidade, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994 (traduzida do inglês). Os termos técnicos, quando possível, foram assinalados em linguagem corrente.

O tradutor gostaria de agradecer as importantes sugestões de H. Elbern, do Instituto Goethe de Porto Alegre, que muito contribuiram para dar ao presente texto uma maior fluidez. Eventuais deslizes são de inteira responsabilidade do tradutor, a quem coube a decisão sobre o texto final.

  • *
    Tradução de Sílvio R. Dahmen, Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
  • 1
    No sentido de estreita, limitada. O termo original utilizado por Einstein é
    eng, ou seja, estreito (
    cf. narrow).
  • 2
    É da natureza das coisas que só podemos falar destes assuntos por meio de conceitos por nós elaborados, mas que em si não são passíveis de dedução. O essencial porém é que apenas utilizemos tais conceitos caso nos sintamos seguros a respeito de sua associação ao material experimental. [A.E.]
  • 3
    No original
    fortgesetzt, do substantivo
    Fortsetzung (continuação ou extensão). Embora ainda se encontre comumente o termo "continuação analítica", para citar um exemplo, este termo tem sido preterido em favor de extensão, motivo pelo qual optou-se pelo último.
  • 4
    Literalmente
    petição de princípio. Diz-se, em filosofia, do paralogismo que consiste em basear a dedução sobre a tese que se deseja provar, ou seja de incluir a tese entre as premissas adotadas.
  • 5
    Do grego
    hipóstase, abstração ou ficção falsamente consideradas como providas de significado real.
  • 6
    Esta imperfeição da teoria só poderia ser derrimida através de uma formulação que fosse válida para todo
    K
    0. Este foi um dos passos que levou à teoria geral da relatividade. Um segundo defeito, do mesmo modo só removido após a teoria da relatividade geral, é que não existe dentro da mecânica uma razão [que justifique] a igualdade da massa inercial e massa gravitacional de um ponto material. [A.E.]
  • 7
    Não crio hipóteses.
  • 8
    Pois a energia total de um sistema (em repouso) é, de acordo com um bem estabelecido resultado da teoria da relatividade, igual a sua inércia, e esta deve ter um valor certo e bem definido. [A.E.]
  • 9
    Einstein refere-se aqui a seu famoso trabalho com Boris Podolski e Nathan Rosen - O paradoxo EPR - publicado na Physical Review
    47, 777 (1935).
  • 10
    A tomada de uma medida de
    A significa então a transição para um
    ensemble de sistemas mais estreito. Este (e também sua função Y) depende do modo como este estreitamento do
    ensemble de sistemas foi feito. [A.E.]
  • 11
    Einstein usa "Korpuskel" (corpúsculo) e também "Teilchen" (partícula). Decidiu-se manter a diferenciação no texto traduzido.
  • 12
    A ponte aqui citada é também conhecida na literatura especializada como Ponte de Einstein-Rosen ou, mais recentemente, como buraco de minhocas (
    wormholes).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      2006
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