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A analogia entre ondas eletromagnéticas e elastodinâmica linear

The analogy between electromagnetic waves and linear elastodynamics

Resumos

Analogias físicas ajudam os estudantes a transferir conhecimento de fenômenos familiares para conceitos físicos mais abstratos, especialmente quando a matemática é similar. Aqui apresentamos uma analogia interessante entre campos elásticos e suas equações governantes e campos eletromagnéticos, que são mais abstratos. Para isso, definimos os campos elásticos E e B, e mostramos que a equação elastodinâmica de Navier-Cauchy pode ser colocadas na forma de quatro equações do tipo Maxwell. Também introduzimos um potencial vetor elástico A e um potencial escalar elástico ϕ. Obviamente, a analogia só funciona para o referencial de repouso do meio elástico, mas parece ser pedagógica porque os alunos facilmente imaginam ondas elásticas (ondas de deslocamento u(r,t) em um material elástico), mas têm dificuldade em visualizar campos eletromagnéticos. Mostramos também que, embora o potencial vetor elástico A não seja invariante de calibre, o deslocamento u=κ+A é invariante de calibre (como uma quantidade física mensurável deve ser), onde o campo escalar κ está relacionado a ϕ por ϕ=1ctκ.

Palavras-chave:
Eletromagnetismo; Elasticidade Linear; Equações de Maxell; Elastodinâmica; Equação de Navier-Cauchy; Invariância de Calibre


Physical analogies aid students to transfer knowledgment from familiar phenomena to more abstract physical concepts, specially when the mathematics is similar. Here we present an interesting analogy between linear elastic fields and its governing equations and the more abstract electromagnetic fields. For this, we define the elastic E and B fields, and show that the Navier-Cauchy elastodynamic equation can be put in the form of four Maxwell-like equations. We also introduce a elastic potential vector A and a elastic scalar potential ϕ. Of course, the analogy only works in the rest reference frame of the elastic medium, but it seems pedagogical because students easily imagine elastic waves (displacement waves u(r,t) in an elastic material) but have dificulty to visualize electromagnetic fields. We also show that, although the elastic vector potential A is not gauge invariant, the displacement u=Aκ+A is gauge invariant (as a measurable physical quantity should be), where the scalar field κ is related to ϕ by ϕ=1ctκ.

Keywords:
Electromagnetism; Linear Elasticity; Maxwell’s Equations; Elastodynamics; Navier-Cauchy Equations; Gauge Invariance


1. Introdução

Analogias físicas e matemáticas são um poderoso recurso para o aumento da intuição física dos estudantes [1[1] C.C. Silva, Sci. Educ. 16, 835 (2007).]. O exemplo clássico é o mapeamento entre o sistema massa-mola com atrito, intuitivo para os estudantes pois eles podem visualizá-lo, e o circuito RLC, um sistema mais abstrato. Neste caso, a analogia funciona perfeitamente porque temos a mesma equação diferencial governando esses sistemas. Mas é importante chamar a atenção dos alunos para o fato de que o capacitor armazena energia fazendo o papel da mola, o indutor tem uma natureza inercial fazendo o papel da massa e o resistor tem um caráter dissipativo similar ao atrito linear. Esse mapeamento fornece ao estudante uma compreensão e intuição física que vai além da simples solução de duas equações diferenciais que são a mesma equação apenas com símbolos diversos.

A equação da Elastodinâmica de Navier (ou Navier-Cauchy) é escrita em função do vetor deslocamento u(r,t)[2[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Linear_elasticity#Elastodynamics_in_terms_of_displacements
https://en.wikipedia.org/wiki/Linear_ela...
, 3[3] M.E. Gurtin, em: Linear Theories of Elasticity and Thermoelasticity, editado por C. Truesdell (Springer, Berlin, 1973).]. A princípio o estudante pode achar que tal sistema é muito diferente do Eletromagnetismo clássico, pois Navier-Cauchy é escrita como uma equação diferencial de segunda ordem e as quatro equações de Maxwell são de primeira ordem. Mas mostraremos um mapeamento onde duas equações de Maxwell correspondem a transformar a equação de Navier-Cauchy em duas equações de primeira ordem, definindo os campos E e B elásticos. Por sua vez, outras duas equações de Maxwell decorrem dessas definições. Também discutiremos o tema de invariância de calibre (gauge invariance), que fica bem mais intuitivo no contexto da Elasticidade linear.

É importante enfatizar aqui que nosso objetivo não é reinventar o éter para o estudante. Sabemos que, historicamente, os físicos do século XIX tentavam modelar os campos eletromagnéticos como distorções e rotações de algum meio elástico. Nosso objetivo aqui é outro: usando a analogia formal entre ondas transversais elásticas (ondas de cisalhamento num meio tridimensional) e ondas eletromagnéticas, queremos ajudar o estudante a visualizar os campos E e B, os potenciais A e ϕ, e discutir o tópico de invariância de calibre (ou invariância de gauge). Por visualizar, queremos apenas reconhecer quantidades análogas em duas equações diferenciais, uma familiar (vinda da Mecânica) e outra menos familiar (vinda do Eletromagnetismo).

Feynman, na seção 20-3 (“Imaginação científica”) de suas Lectures[4[4] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, Lições de Física de Feynman: Edição Definitiva (Boookman, Porto Alegre, 2019), 2 ed.], discute essa questão da formação de imagens científicas confessando aos estudantes que ele mesmo não consegue visualizar uma onda eletromagnética:

Quando eu começo a descrever o campo magnético se movendo pelo espaço, eu falo dos campos E e B e mexo meus braços, e você pode imaginar que consigo vê-los. Vou lhe contar o que eu vejo. Eu vejo um tipo de sombra difusa, linhas oscilantes, aqui e ali existe um E e B escritos nelas de alguma forma, e talvez algumas das linhas têm flechas – uma flecha aqui ou acolá que desaparece quando eu olho com muita atenção. Quando eu falo sobre os campos se movendo no espaço, eu faço uma confusão terrível entre os símbolos que eu uso para descrever os objetos e os próprios objetos. Eu realmente não consigo fazer uma imagem que seja aproximadamente como as ondas verdadeiras. (…) Eu deveria ter feito uma figura com o potencial escalar e o potencial vetor, porque estas são talvez as quantidades mais fisicamente relevantes que estão oscilando.

No entanto, no mesmo capítulo, ele usa extensivamente a analogia entre ondas transversais em uma corda e as equações de onda eletromagnéticas. Ao enfatizar a importância do potencial vetor A e do potencial escalar ϕ, ele corrobora nossa analogia, onde o campo de deslocamentos elásticos u(r,t)=κ+A é escrito em termos de um potencial vetor A e um potencial escalar κ relacionado ao potencial escalar usual ϕ. Essa identificação permite definir os campos elásticos (adimensionais) E e B, de modo que uma comparação direta entre uma onda eletromagnética e uma onda elástica transversal pode ser feita.

2. A Analogia

Talvez seja um exagero dizer que as equações da Elasticidade linear sejam fami-liares e que as equações do Eletromagnetismo sejam menos familiares, afinal os cursos de mecânica dos meios contínuos têm desaparecido de nossos currículos em Física. Melhor seria dizer que os campos mecânicos de deslocamento u, velocidade v etc. sejam mais concretos e os campos eletromagnéticos mais abstratos. Em todo caso, partimos da pressuposição de que a equação de Navier-Cauchy, caso não possa ser derivada, possa ao menos ser exibida em uma aula de Eletromagnetismo se o professor considerar que nossa analogia é útil para fornecer intuição física para os estudantes.

A equação de Navier-Cauchy pode ser escrita na seguinte forma [2[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Linear_elasticity#Elastodynamics_in_terms_of_displacements
https://en.wikipedia.org/wiki/Linear_ela...
, 3[3] M.E. Gurtin, em: Linear Theories of Elasticity and Thermoelasticity, editado por C. Truesdell (Springer, Berlin, 1973)., 5[5] J.D. Achenbach, Wave Propagation in Elastic Solids (North-Holland, Amsterdan, 1987)., 6[6] K.S. Thorne e R.D. Blandford, Elasticity and Fluid Dynamics: Volume 3 of Modern Classical Physics (Princeton University Press, Princeton, 2021).]:

(1) ( λ + 2 μ ) ( u ) - μ × ( × u ) + f = ρ 2 u t 2 ,

onde λ e μ são os módulos elásticos de Lamé (μ também é chamado de módulo de cisalhamento), ρ é a densidade do meio e f é a densidade de força (força por unidade de volume). Esta equação é válida para meios lineares homogêneos e isotrópicos.

Nosso objetivo será obter a partir dela equações similares às de Maxwell. Para isso teremos que introduzir campos elásticos E e B (e o potencial vetor A) análogos aos do Eletromagnetismo.

2.1. O campo de deslocamento u gaugeinvariante

Todo campo vetorial pode ser escrito na forma geral de um potencial escalar κ e um potencial vetor A:

(2) u = κ + A .

Em Elasticidade linear tais potenciais são chamados de potenciais de Lamé. Vemos que tais potenciais não são únicos, pois podemos fazer uma transformação de calibre:

(3) A = A + Ω ,
(4) κ = κ - Ω ,

que deixa u invariante. Essa invariância é importante pois podemos medir o deslocamento u do meio elástico na posição r e tempo t, é uma grandeza física não arbitrária. Já o potencial vetor A não é mensurável por ser arbitrário, assim como o potencial κ.

2.2. O campos E e B elásticos

Primeiro vamos definir o campo B elástico como sendo o rotacional de u. Lembrando que o rotacional de um gradiente é zero, temos:

(5) B = × u = × A ,

uma expressão similar à usada no Eletromagnetismo para introduzir o potencial vetor A. Aqui devemos enfatizar a diferença entre u e A em termos de invariância de gauge, e a presença do potencial escalar κ na definição da equação (2).

Vamos agora definir o campo (adimensional) E elástico como sendo o negativo da velocidade local normalizada pela velocidade das ondas transversais c=μ/ρ:

(6) E = - 1 c t u , = - ( t κ c ) - 1 c t A .

Definindo agora o potencial elástico análogo ao potencial elétrico ϕ na forma ϕ=1ctκ, temos a expressão usual gauge invariante:

(7) E = - ϕ - 1 c t A .

Notar que a mudança de gauge κ=κ-Ω implica em:

(8) ϕ = ϕ - 1 c t Ω ,

que é a forma usual no Eletromagnetismo [7[7] D.J. Griffiths, Eletrodinâmica (Pearson, São Paulo, 2011), 3 ed.].

É importante notar aqui que esta não é a analogia proposta por William Thomson (Lord Kelvin), pois este identifica o campo E com o deslocamento u, embora, como nós, usa B=×u[1[1] C.C. Silva, Sci. Educ. 16, 835 (2007)., 8[8] M. de Lima e R. Costa, Rev. Bras. de Ensino de Fís. 39, e2603 (2017).]. O mesmo acontece com Maxwell, que faz a analogia entre as linhas de campo B com as linhas de campo de velocidades v, e o campo elétrico E como sendo proporcional ao deslocamento u, daí vindo o anacrônico nome de corrente de deslocamento para tE[9[9] M. Longair, Philos. Trans. R. Soc. A 373, 20140473 (2015).]. Nessas analogias, a energia do campo elétrico seria do tipo potencial e a energia do campo magnético seria do tipo cinético, ao contrário do que ocorrerá em nossa analogia.

No nosso caso, identificamos o campo elétrico com o negativo da velocidade normalizada por c, ou seja, nosso campo E é adimensional, assim como nosso campo B. Vemos que identificar E=-1/ctu parece excluir o caso eletrostático, mas ver mais adiante a discussão sobre fontes e sumidouros no divergente de E.

Na literatura recente podemos encontrar outras tentativas de analogia entre Elasticidade linear e Eletromagnetismo. A mais próxima da nossa foi feita por Wang [10[10] X-S. Wang, Prog. Phys. 2, 111 (2008).], que difere apenas pelo uso de unidades SI. No entanto, observamos que Wang tenta fazer um modelo de éter e deduzir o Eletromagnetismo a partir dele, que julgamos incompatível com a Teoria da Relatividade. No nosso caso, o objetivo é inverso: reescrever as equações elastodinâmicas e olhá-las sob nova luz, comparando-as com as equações de Maxwell. Ainda na literatura prévia, ver também o mapeamento de Dmitriyev [11[11] V.P. Dmitriyev, Am. J. Phys. 71, 952 (2003).] entre equações de Maxwell e Elasticidade linear, que porém difere do nosso por usar A=tu, bem como outras definições para E e B.

2.3. As equações de Maxwell elásticas

As duas equações de Maxwell homogêneas seguem diretamente das definições dos campos E e B elásticos:

(9) B = ( × u ) = 0 ,
(10) × E = × ( - t u c ) = - 1 c t B .

Notemos que nossas equações de Maxwell elásticas estão tomando a forma do sistema de unidades Gaussiano porque definimos E e B como tendo a mesma dimensão (na verdade, são adimensionais). No Eletromagnetismo, escolher os campos com a mesma dimensão também leva à forma Gaussiana das equações [12[12] J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, Nova Jersey, 1998), 3 ed.].

Agora vamos calcular o rotacional de B usando a equação (1) de Navier-Cauchy:

(11) × B = × ( × u ) = - ρ μ 2 u t 2 + f μ + ( λ + 2 μ ) μ ( u ) ,
(12) = 1 c t E + 4 π c j + L ,

onde usamos ρ/μ=1/c2 (c é a velocidade para ondas elásticas transversais ou ondas de cisalhamento), definimos jfc e usamos unidades onde μ=1/4π.

A quantidade L(λ+2μ)μ(u) é um termo “longitudinal”, onde aparece a assim chamada dilatação u, que é nula para campos transversais. Vemos que a analogia formal entre a equação da Navier-Cauchy e a correspondente equação de Ampére-Maxwell só é completa quando L=0. Este termo é responsável pelas ondas elásticas longitudinais e neste ponto o professor pode explicar que a ausência de um termo parecido é que faz com que não existam ondas livres longitudinais (ou, após quantização, fótons escalares de spin zero) no Eletromagnetismo.

Finalmente, vamos calcular a divergência de E:

(13) E = - t u c = - c μ ( ρ t u ) = 4 π c t ρ - 4 π c σ ,

onde nós usamos a equação da continuidade (ρtu)=-tρ+σ, onde σ>0 é uma fonte e σ<0 é um sumidouro de densidade. Agora, para obter uma equação do tipo Maxwell, precisamos lembrar que estamos usando a aproximação tρ=0 na Elasticidade linear (usamos este fato quando retiramos o fator c/μ para fora do divergente). Precisamos também identificar σ=-ρe/c de modo que:

(14) E = 4 π ρ e ,

O mesmo resultado pode ser obtido tomando o divergente da equação (12) e usando a equação da continuidade j=-tρe para definir ρe. Assim, em nossa analogia formal entre Eletrodinâmica e Elastodinâmica, a densidade de carga elétrica ρe faz o papel de uma fonte ou sumidouro da densidade, dependendo de seu sinal, e a equação de Gauss seria o análogo de uma equação de continuidade para a densidade do meio elástico.

Com efeito, Griffiths [13[13] D.J. Griffiths, Am. J. Phys. 80, 7 (2012).] nos lembra que o campo elétrico de uma carga puntual pode ser representado formalmente por ϕ=0eA=-qt/r2r^ (usamos aqui unidades Gaussianas), dado que o sentido físico de ϕ depende do gauge. No nosso caso, teríamos um deslocamento que cresce ou decresce linearmente no tempo, u(r,t)=A(r,t), dependendo do sinal de q. Ou seja, um campo E eletrostático seria análogo a um campo de velocidades estacionário (possível apenas num fluido), não um campo de deslocamentos estacionário em um sólido.

Aqui se revela um dos limites de nossa analogia, pois é difícil conceber tais fontes/sumidouros na Elasticidade linear. Assim, devemos restringir nossa analogia ao caso σ=-ρe/c=0, ou seja, uma analogia apenas com as equações de Maxwell sem dendidades de carga. Em todo caso, formalmente, olhando a equação da continuidade completa para ρ (equação13), vemos que ρe=-cσ realmente faz o papel de fonte/sumidouro para os camposE (com o sinal trocado dado nossa definição de campoE), uma interpretação usual no Eletromagnetismo.

A limitação da analogia está na definição do campo E elástico, equação (6): dado que u é limitado, as velocidades E=-1ctu têm que ser transientes ou oscilações harmônicas (o que ocorrerá nas ondas transversais). Mesmo o termo ϕ=1ctκ também não admite uma solução estacionária para u.

2.4. Ondas planas e densidade de energia

Lembrando que ×(×u)=(u)-2u, podemos escrever a equação (11) como:

(15) 2 u - 1 c 2 2 u t 2 = - f μ - λ + μ μ ( u ) .

Vemos que, na ausência de fontes f e com (u)=0 (exigido pela condição L=0), obtemos a equação para ondas transversais:

(16) 2 u - 1 c 2 2 u t 2 = 0 .

Para continuar a analogia, usando as relações entre 1/c2=ρ/μ e 1/c2=ϵ0μ0, poderíamos dizer que a permissividade ϵ0 seria proporcional à densidade do meio elástico e a permeabilidade μ0 seria proporcional ao inverso do coeficiente de cisalhamento μ. Isso faz sentido porque, para ondas transversais na Elasticidade linear, a densidade de energia pode ser escrita como uma parte de energia cinética e uma parte de energia potencial elástica. A parte cinética é dada por:

(17) 1 2 ρ ( t u ) 2 = 1 2 ρ c 2 E 2 ,

ou seja, a densidade de energia associada ao campo elástico E, definido pela equação (6), faz o papel de uma densidade de energia cinética e tem a mesma forma que a notação eletromagnética se usarmos unidades onde ρc2=μ=1/4π. Por outro lado, a energia potencial elástica tem a forma [5[5] J.D. Achenbach, Wave Propagation in Elastic Solids (North-Holland, Amsterdan, 1987).]:

(18) 𝒰 = λ 2 ( u ) 2 + μ 2 ( i j ( j u i ) 2 + ( j u i ) ( i u j ) ) = 𝒰 L + 𝒰 T ,
(19) 𝒰 L = λ 2 ( u ) 2 + μ i j ( j u i ) ( i u j ) ,
(20) 𝒰 T = μ 2 i j ( j u i ) 2 - μ 2 i j ( j u i ) ( i u j ) ,

onde 𝒰L e 𝒰T são as densidades de energia associadas aos campos longitudinais e transversais respectivamente. Note que, para separarmos os dois termos, foi somado e subtraído o termo μ2ij(jui)(iuj) nas equações (19) e (20).

Ora, mas temos que:

(21) B 2 = ( × u ) ( × u ) = i j k ϵ i j k j u k i l m ϵ i l m l u m = j k l m ( δ j l δ k m - δ j m δ k l ) j u k l u m = i j ( j u i ) 2 - i j ( j u i ) ( i u j ) ,

que corresponde exatamente aos somatórios que aparecem na equação (20). Ou seja, para nossas ondas elásticas transversais, temos que a densidade de energia é:

(22) 𝒰 T = 𝒯 + 𝒱 = E 2 + B 2 8 π ,

totalmente análogo à expressão eletromagnética. Da mesma forma, a Lagrangeana de campos livres terá a forma usual:

(23) = 𝒯 - 𝒱 = E 2 - B 2 8 π .

3. Discussão e Conclusão

A analogia entre ondas elásticas transversais e ondas eletromagnéticas faz para o Eletromagnetismo o que a analogia com o sistema massa-mola faz para o sistema RLC: fornece uma intuição física do papel de cada variável na equação diferencial do sistema e ajuda os estudantes a não estranharem o formato das equações de Maxwell, dado que equações diferenciais muito similares aparecem em outras áreas da Física.

Ao mesmo tempo, permite uma discussão sobre porque os modelos mecânicos do éter eram problemáticos e porque hoje campos são considerados entidades fundamentais irredutíveis a formulações mecânicas [9[9] M. Longair, Philos. Trans. R. Soc. A 373, 20140473 (2015).]. Embora historicamente as analogias com dinâmica de meios contínuos foram especialmente heurísticas para Maxwell, Thomson e outros, analogia não significa identidade.

Para a nossa analogia, optamos por partir da equação de Navier-Cauchy por motivos pedagógicos: o estudante deverá ver que não é a forma de equações diferenciais de primeira ordem tipo Maxwell que diferencia a Elastodinâmica do Eletromagnetismo, nem grandezas análogas aos campos E,B,A e ϕ, mas sim o termo longitudinal L onde aparece o gradiente da dilatação u.

A densidade de forças f aparece no lugar correto como fonte na equação de Ampére-Maxwell elástica, ou seja, f pode ser usado para fornecer energia ao meio e criar as ondas elásticas [5[5] J.D. Achenbach, Wave Propagation in Elastic Solids (North-Holland, Amsterdan, 1987).]. Mas, embora tenhamos feito a analogia formal f=J/c, tais grandezas são diferentes: não temos o análogo a cargas livres se movendo dentro do meio elástico. Além disso, a introdução de fontes e sumidouros na lei de Gauss elástica parece forçada para o sólido elástico. Ou seja, a analogia só funciona para campos solenoidais (dilatação u=0) sem fontes na equação de Gauss. Isso faz parecer que a analogia é trivial, mas mesmo assim ganhamos uma interessante intuição física sobre quem faz o papel de quem nas ondas eletromagnéticas: a permissividade elétrica ϵ0 faz o papel de densidade do meio ρ, o inverso da permeabilidade magnética μ0 faz o papel do módulo de cisalhamento μ, o campo E faz o papel de um campo de velocidades normalizado pela velocidade c e o campo B é o rotacional do campo de deslocamentos.

A partir dessas definições e da equação de Navier-Cauchy, escrevemos quatro “Equações tipo Maxwell” para tais campos da Elasticidade linear. A densidade de energia das ondas de cisalhamento toma a forma de uma soma de energia cinética (ligada a ρc2E2) e energia potencial (ligada a μB2). Dado que tanto o campo E quanto o campo B elásticos são adimensionais, vemos que os prefatores ρc2=μ têm corretamente a dimensão de energia por volume.

O papel do potencial vetor elástico A é interessante: embora não seja gauge invariante, ele está diretamente ligado a uma grandeza física objetiva e mensurável, o deslocamento u, que é a grandeza primordial a partir da qual definimos os outros campos. Isso lembra a intuição de muitos físicos de que, no Eletromagnetismo, A teria um papel fundamental (ver citação de Feynman na Introdução). Como já disse G. F. Leal Ferreira aqui na RBEF:

Na década de 1960, era comum ouvir-se que não se devia fazer “imagens”das grandezas elétricas, porque incorria-se no risco de mecanizá-las. Mas, por outro lado, não fazer nenhuma imagem é tratá-las todas como entidades matemáticas. (…) No caso presente, a identificação dos potenciais como entidades mais primitivas do que os campos tem certamente relevância, embora não se possa ainda saber se disso outras consequências advirão [14[14] G. Ferreira, Rev. Bras. de Ensino de Fís. 26, 27 (2004).].

E em outro paper:

Muitos consideram o Eletromagnetismo Clássico como obra terminada. Isto seria literalmente verdadeiro se nada restasse para ser entendido. Mas esse não é caso, na nossa opinião. Há em primeiro lugar o problema da precedência entre os campos de força, elétrico e magnético, e seus potenciais. Acontece que estes últimos obedecem a leis causais de propagação o que os torna mais confiáveis fisicamente [15[15] G. Ferreira, Rev. Bras. Ens. Fis. 26, 359 (2004).].

A falta de invariância de gauge do potencial vetor A criou uma polêmica histórica sobre sua interpretação física no Eletromagnetismo [13[13] D.J. Griffiths, Am. J. Phys. 80, 7 (2012)., 14[14] G. Ferreira, Rev. Bras. de Ensino de Fís. 26, 27 (2004)., 15[15] G. Ferreira, Rev. Bras. Ens. Fis. 26, 359 (2004)., 16[16] E.J. Konopinski, Am. J. Phys 46, 499 (1978)., 17[17] M.D. Semon e J.R. Taylor, Am. J. Phys. 64, 1361 (1996).]. Em nossa analogia com a Elasticidade, não existe tal polêmica pois ele está diretamente relacionado com o campo físico e objetivo u. Nossa analogia sugere que talvez fosse interessante introduzir um campo gauge invariante u=κ+A para definir B=×u no formalismo eletromagnético. Como vimos, isso não afeta a forma das equações de Maxwell, mas poderia reconfigurar a discussão sobre a realidade física do potencial vetor A.

Agradecimentos

OK agradece ao CNAIPS-USP e ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Este trabalho foi produzido como parte da atividade do CEPID NeuroMat – Centro de Pesquisa, Inovação e Disseminação para Neuromatemática – da FAPESP (processo 2013/07699-0).

Referências

  • [1]
    C.C. Silva, Sci. Educ. 16, 835 (2007).
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    https://en.wikipedia.org/wiki/Linear_elasticity#Elastodynamics_in_terms_of_displacements
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    M.E. Gurtin, em: Linear Theories of Elasticity and Thermoelasticity, editado por C. Truesdell (Springer, Berlin, 1973).
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    R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, Lições de Física de Feynman: Edição Definitiva (Boookman, Porto Alegre, 2019), 2 ed.
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    M.D. Semon e J.R. Taylor, Am. J. Phys. 64, 1361 (1996).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2022
  • Revisado
    04 Mar 2022
  • Aceito
    08 Mar 2022
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